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O ofício do historiador hoje: entrevista com Stuart B. Schwartz

Resumos

Stuart Schwartz concedeu essa entrevista durante sua última visita a São Paulo em agosto de 2009, à época do lançamento da edição brasileira de seu livro Cada um na sua lei: Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico. Schwarzt discute, entre outros assuntos, as transformações no mundo acadêmico latino-americano e o novo papel dos "brasilianistas" nas últimas décadas, tanto nas universidades brasileiras quanto nas americanas.

Historiografia norte-americana; estudos brasileiros; pesquisa acadêmica; controvérsias acadêmicas


Stuart Schwartz gave the following interview during his last visit to São Paulo, in August 2009, when he was releasing the Brazilian edition of his book All can be saved: religious tolerance and salvation in the Iberian Atlantic world. Schwartz discusses the transformations in the Latin American scholarly world and the new role of "brazilianists" in the last decades, both in Brazilian and North American universities.

North American historiography; brazilian studies; academic research; academic controversies


ARTIGOS

O ofício do historiador hoje: Entrevista com Stuart B. Schwartz

Iris Kantor; Monica Dantas**] Transcrição e tradução de José Rogério Beier. [

RESUMO

Stuart Schwartz concedeu essa entrevista durante sua última visita a São Paulo em agosto de 2009, à época do lançamento da edição brasileira de seu livro Cada um na sua lei: Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico. Schwarzt discute, entre outros assuntos, as transformações no mundo acadêmico latino-americano e o novo papel dos "brasilianistas" nas últimas décadas, tanto nas universidades brasileiras quanto nas americanas.

Palavras-chave: Historiografia norte-americana; estudos brasileiros; pesquisa acadêmica; controvérsias acadêmicas.

ABSTRACT

Stuart Schwartz gave the following interview during his last visit to São Paulo, in August 2009, when he was releasing the Brazilian edition of his book All can be saved: religious tolerance and salvation in the Iberian Atlantic world. Schwartz discusses the transformations in the Latin American scholarly world and the new role of "brazilianists" in the last decades, both in Brazilian and North American universities.

Keywords: North American historiography; brazilian studies; academic research; academic controversies.

Professor no Departamento de História da Universidade de Yale, Stuart Schwartz é considerado um dos mais importantes historiadores do período colonial. Entre seus livros publicados no Brasil, destacam-se: Burocracia e sociedade no Brasil colonial (Perspectiva, 1979); Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (Companhia das Letras, 1988); Escravos, roceiros e rebeldes (Edusc, 2001); A América Latina na época colonial (com James Lockhart, Civilização Brasileira, 2002); As excelências do governador: o panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Companhia das Letras, 2002). Publicou ainda artigos em revistas brasileiras e editou importantes coletâneas ainda não traduzidas para o português, como Implicit understandings: observing, reporting, and reflecting on the encounters between Europeans and other peoples in the Early Modern Era (Cambridge University Press, 1994); Tropical babylons: sugar and the making of the Atlantic World (University of North Carolina Press, 2004). Dirigiu com Frank Salomon, o volume sobre a América do Sul The Cambridge history of native peoples of the Americas (Cambridge University Press, 1999). Organizou também a edição em língua inglesa da obra de João Capistrano de Abreu, Chapters of Brazil colonial history 1500-1800 (Oxford University Press, 1997); e, recentemente, reuniu e traduziu documentos sobre os primeiros 150 anos da colonização portuguesa: Early Brazil: a documentary collection to 1700 (Cambridge University Press, 2010).

A entrevista a seguir foi concedida pelo historiador norte-americano em sua última passagem por São Paulo, em agosto de 2009, por ocasião do lançamento de seu livro Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico11] Schwartz, Stuart. Trad. Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2009. [. Nela, Schwartz aborda as transformações dos estudos latino-americanos e o papel dos novos brasilianistas nas universidades brasileiras e norte-americanas nas últimas duas décadas, chama atenção para a complexa relação entre as agendas políticas governamentais e o mundo universitário. Os requisitos exigidos para o exercício da profissão são também objeto da sua reflexão no contexto das novas tecnologias de informação. Schwartz menciona ainda seus projetos de pesquisa em andamento, entre os quais um estudo sobre a história social dos furacões no Caribe, inspirado na obra de Fernand Braudel. Redigido era Bush, comenta o seu mais recente livro sobre as atitudes de contestação individuais e irreligiosidade no mundo ibero-atlântico; e explicita seu estilo interpretativo em que articula a história social com a história cultural e antropológica. Responde às críticas e reconstitui as polêmicas suscitadas pela publicação da obra coletiva The Cambridge history of native peoples, resenhadas em L'Homme por Claude Levi-Strauss22] L'Homme, 2001, pp. 158-59. [ e nos Annales Histoire et sciences sociales por Luiz Felipe de Alencastro e Carmen Bernand33] Annales, vol. 57, nº 5, 2002. [.

A ERA DOS BRASILIANISTAS: PRODUÇÃO UNIVERSITÁRIA E AGENDAS GOVERNAMENTAIS

Iris Kantor - Entre os historiadores brasileiros, até pelo menos meados da década de 1990, você foi reputado como um historiador brasilianista. Como se formaram os primeiros especialistas em história do Brasil nas universidades norte-americanas?

Já antes da década de 1950 havia brasilianistas nos Estados Unidos, pessoas como Alexander Marchant, cuja obra Do escambo a escravidao: sobre as relações entre portugueses e indígenas, publicada em 1943, inaugurou uma nova abordagem interpretativa. Igualmente, Stanley Stein trouxe a perspectiva dos estudos de comunidades (desenvolvido por Robert Redfield da escola de Chicago), para o campo da história em seu clássico trabalho sobre a transição do trabalho escravo para o trabalho livre na cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro, doutorado defendido em Harvard em 1951. Mas foi apenas com a revolução cubana e a crise de consciência intelectual que se seguiu que o interesse pelas realidades regionais da América Latina floresceu na academia. O Brasil era ainda pouco estudado, e um número pequeno de estudiosos como o próprio Stanley Stein, Lewis Hanke (Columbia), Richard Morse (Yale), George Boehrer (Kansas) e alguns outros começaram a orientar pesquisas sobre o país. Os Estados Unidos patrocinaram o estudo de línguas estratégicas pouco estudadas, entre as quais o português, o que foi um incentivo para os estudantes.

No início da década de 1960, a percepção dos políticos norte-americanos das repercussões do governo de Jango e dos movimentos camponeses liderados por Julião sugeriam que o Brasil seguiria o exemplo de Cuba. Os gestores norte-americanos buscaram estimular a formação de especialistas que pudessem dissuadir as correntes de esquerda no Brasil. No entanto, por ironia, a maioria dos jovens estudiosos treinados como brasilianistas nos Estados Unidos acabaram lendo Florestan Fernandes, Caio Prado etc. Depois de 1964, eles frequentemente tomaram posições que contradiziam os interesses da política estadunidense para a região. Talvez o caso mais famoso envolvendo um brasilianista tenha sido o de Bradford Burns, cuja oposição às intervenções dos Estados Unidos na Nicarágua e em El Salvador o fez ser denunciado publicamente pelo presidente Ronald Reagan.

Monica Dantas - Afinal, qual seria o papel dos brasilianistas no mundo universitário contemporâneo?

Acho que ainda há uma espécie que se pode chamar brasilianista, mas a função do brasilianista mudou, e o mundo não é mais o mesmo. Porém, sempre houve e sempre haverá especialistas estrangeiros que se interessam pelo Brasil e dedicam seus interesses ao país; sua história, sua situação social, política etc.

No momento eu sou, num certo sentido, um dos últimos da geração em que ser brasilianista representava algo aqui no Brasil; uma pessoa que vinha olhar de fora, que apresentava as mais recentes tendências, metodologias etc. Houve um momento em que a palavra brasilianista era muito bem acolhida. No entanto, nos últimos quarenta anos, com a profissionalização do ensino no Brasil, com a expansão dos programas de pós-graduação e a decorrente ampliação do número de professores e profissionais, com formação ou no Brasil ou no exterior, o quadro realmente mudou muito. Já não há mais necessidade do olhar externo oferecido pelos brasilianistas, eles já não são mais mediadores das mais novas técnicas e metodologias. Mesmo assim, acho que ainda há um lugar para um "olhar de fora" que enriquece a visão brasileira, que apresenta outro ponto de vista. A formação de brasilianistas no exterior ainda é uma coisa positiva, mas, na verdade, atualmente, há menos apoio nos Estados Unidos para os estudos brasileiros; outras preocupações, outros lados do mundo têm preocupado mais os norte-americanos. A batalha pelos direitos civis, principalmente da população negra, nos Estados Unidos, está agora também em uma situação diferente; a comparação com o Brasil já não é tão atraente como era nos anos de 1960 ou 1970. Tudo isso mudou um pouco, e uma das queixas nos Estados Unidos é de que não temos pessoas suficientes entrando no campo da história, especialmente no campo da história da América Latina, interessadas em estudar o Brasil.

Iris Kantor - Mas o fluxo inverso também ocorre. Há brasileiros dando aulas nos Estados Unidos?

Sim, isto tem mudado. É muito difícil distinguir um brasilianista, agora, dos brasileiros; além disso, há brasileiros brasilianistas, brasileiros formados nos Estados Unidos, e brasilianistas brasileiros, que são pessoas como Robert Slenes, Douglas Libby, John Monteiro, Michael Hall... Norte-americanos que se radicaram no Brasil. Então, são brasilianistas brasileiros, impossível distinguir. Portanto, o significado da palavra tem se transformado ao longo do tempo.

Iris Kantor - Hoje, quais temas, países ou áreas de concentração responderiam mais aos interesses da política de Estado norte-americana? Como a pesquisa universitária se relaciona com as agendas estatais, e como os intelectuais convivem com esses interesses?

Essa é uma questão muito difícil e complexa. Nos Estados Unidos, poucos acadêmicos estudam uma região ou uma cultura, em seus trabalhos de doutorado, tendo em vista uma atividade política governamental. Para tanto, é mais frequente obter um título em direito ou economia e ir trabalhar diretamente para o governo. A maior parte dos acadêmicos não tem uma agenda política imediata ou um engajamento com o governo. Contudo, pode-se argumentar que a universidade como um todo é fortemente influenciada por financiamentos que vêm do governo ou até mesmo do setor privado.

Pode-se dizer que a academia norte-americana como um todo está bem mais à esquerda do que a nação. Isso leva aos constantes apelos por paridade em nomeações, grupos de vigilância estudantil relatando sobre a política dos professores e reclamações contra acadêmicos da Ivy League na Corte Suprema etc. Nos Estados Unidos há uma tendência profunda de anti-intelectualismo que normalmente impede os acadêmicos de exercerem influência política direta. Os casos de Kissinger, Brzehzinsky e alguns outros são exceções. Raramente, por exemplo, os governos seguiram o exemplo de J. F. Kennedy e nomearam embaixadores saídos da academia.

Atualmente, estudos sobre China e Oriente Médio estão recebendo muito mais estímulo governamental do que o estudo da América Latina, embora o crescimento do potencial econômico do Brasil seja constantemente mencionado nos noticiários. Assim como o México, alvo de atenções em função das disputas pós-modernas do tráfico de drogas e das questões de imigração, o Brasil, também, cada dia mais, tenderá a ganhar centralidade nos Estados Unidos.

Monica Dantas - A definição das áreas de investigação centradas no recorte regional ou nacional (American Studies, Latin-American Studies, Brazilian Studies) ainda é produtiva?

Os efeitos da globalização são perceptíveis. As abordagens regionais (América Latina, Ásia Oriental, África etc.) predominaram na academia por um longo tempo. As ciências sociais ambicionam, porém, um conhecimento mais generalizante e uma perspectiva menos cultural de seu campo de estudos específicos. Essa postura, aliada à tendência em direção a estudos sobre a globalização diminuiu o papel de especialistas regionais e de centros regionais. Além disso, o fracasso dos especialistas da União Soviética e do Leste Europeu em prever o colapso da própria União Soviética nos anos de 1980 diminuiu consideravelmente a reputação de estudos em escala regional/nacional como um paradigma para entender a dinâmica social e política de qualquer região ou país.

O OFÍCIO DO HISTORIADOR HOJE

Monica Dantas - Nos últimos anos houve profundas mudanças no sistema de pós-graduação. Do seu ponto de vista, quais as diferenças essenciais entre um mestrado e um doutorado, ou as pesquisas e as obras são essencialmente similares?

Esse processo já está em curso há bastante tempo. Quando os franceses acabaram com o Doctorat d'État, também houve questionamentos. De certa forma, essas mudanças correspondem às novas demandas da sociedade contemporânea.

Muitas dissertações de mestrado são publicadas no Brasil. Nos Estados Unidos eles raramente são publicados. O nível dos programas de mestrado nos Estados Unidos é apenas preparatório e não exige o mesmo nível de preparação que um programa de doutorado. Porém, o programa de mestrado dos Estados Unidos propicia a realização de bons trabalhos, muitos deles equivalentes aos dos estudantes europeus e brasileiros que estão entrando em programas de doutorado. Acredito firmemente que as teses e os programas de doutorado não deveriam demorar tanto. A tese deveria ser a primeira e não a última coisa que um estudante escreve.

Iris Kantor - O sistema em curso é cada vez mais opressivo, os pesquisadores são impelidos a publicar e divulgar suas investigações antes mesmo de elas estarem completamente concluídas. Doutorados que levassem mais tempo para serem concluídos não seriam mais consistentes e menos vulneráveis aos modismos acadêmicos?

Sim. Às vezes há essa queixa nos Estados Unidos: uma vez formados, com tanta pressão para publicar, muitos pesquisadores publicam coisas mais secundárias, porque não têm o "luxo" de aguardar o tempo necessário para pensar e investigar de uma maneira exaustiva; e este é o preço que estamos pagando.

Monica Dantas - Mas isso não seria perigoso? O seu último livro, por exemplo, levou dez anos para ser feito; será que, de fato, não são necessários vários anos para que se possa gestar uma pesquisa e um bom livro?

Um livro como o de Marcel Bataillon, Erasmo na Espanha (1950), por exemplo, seria muito difícil de ser concebido hoje, ninguém mais pode dizer: "vou escrever um livro de oitocentas páginas sobre Erasmo na Espanha". Realmente, não há mais a possibilidade de se fazer isso. É realmente muito difícil, dada a estrutura dos estudos de história - e considerando que a grande maioria dos historiadores está realmente ganhando o pão de cada dia lecionando -, conceber a ideia de escrever um livro de oitocentas páginas que talvez quinhentas pessoas no mundo venham a ler. Existem exceções, mas acho que é uma coisa fora do comum.

Talvez a resposta seja a obra coletiva, ou o desenvolvimento de uma série de trabalhos que poderia resultar em uma obra grande, mas que satisfaça as demandas, os requisitos da vida profissional. Em nosso sistema, conheço vários casos de pessoas que produziram o primeiro livro, conseguiram a tenure e depois foram dormir [risos]. Passaram os vinte anos seguintes incapazes de produzir sequer mais uma obra. Estes são os perigos da profissão.

Monica Dantas - Nos Estados Unidos, a universidade te libera das aulas para você escrever e pesquisar? Os anos sabáticos, por exemplo, ainda existem?

Na maioria das universidades norte-americanas há uma política de sabáticos: a cada seis anos você tem direito a um ano livre para fazer pesquisa. Em outras, há programas parecidos, mas não exatamente iguais. Há também, em várias universidades, sistemas de semestres livres, especialmente para jovens professores, para que convertam a tese de doutorado em livro. Existem apoios desse tipo para o desenvolvimento do corpo docente, e essa é uma grande vantagem, porque escrever e ao mesmo tempo preparar aulas é muito, muito difícil.

Iris Kantor - Como você avalia as transformações do nosso campo profissional desde o seu doutoramento na Universidade de Columbia em 1968? O que de fato mudou no ofício do historiador nos últimos cinquenta anos, do ponto de vista do cotidiano e da organização da pesquisa? Há mudanças significativas?

Sim, a digitalização. Comecei na época da máquina de escrever, depois passei para a máquina de escrever elétrica e depois para os primeiros computadores. Tenho acompanhado essas transformações tecnológicas, e vejo o seu impacto na pesquisa.

Eu estava pensando no meu pai, ontem. Ele nasceu realmente no início do mundo do avião e viveu para ver homens caminhando na lua, viveu transformações muito radicais. Eu também estou vivendo outra transformação radical, essa da Internet, do CD-ROM etc.

Tudo alterou completamente o nosso modo de trabalhar. Os estudantes agora fazem pesquisa com laptops e vão para o arquivo fazer um scan. Lembro que quando fui aos arquivos portugueses havia um senhor, no Arquivo da Biblioteca da Ajuda em Lisboa, que vivia de copiar documentos à mão, porque não havia sequer uma máquina de fotocópia. Então esse senhor, o Sr. Balheiro, fazia as cópias à mão e eu pagava tantos escudos por página. Isso tudo mudou, e há vantagens e desvantagens.

Monica Dantas - E quais seriam as desvantagens?

Creio que, às vezes, o contato direto com o documento vale algo. Não sei. É como consultar um livro na Internet: você perde algo. Há uma perda de informação. Por exemplo, eu estava na Espanha, para a pesquisa de meu novo livro, e tive a oportunidade de trabalhar na biblioteca colombina, que era a antiga biblioteca de Colombo na Catedral de Sevilha, onde também há um arquivo com vários tipos de documentos. Consultando alguns livros de catequese do século XVI - que eram muito populares na época e dos quais há muitos exemplos na América -, foi interessante notar que esses livros eram muito pequenos. Daí eu entendi que eles eram assim porque quando as pessoas (os imigrantes) chegavam a Sevilha para partir rumo à América, elas queriam levar algo para a viagem. Como quando estou me preparando para tomar um avião, separo um jornal, uma revista... Eram então livros de bolso, ou "guia para os pecadores". Eram edições muito pequenas. Assim, se você consulta isso só pela Internet, perde o livro como objeto, o aspecto táctil do livro. Isso é um sacrifício; ainda que a revolução digital seja muito importante, eu não estou preparado para deixar os livros de lado.

Monica Dantas - Ainda sobre a revolução digital: hoje há uma circulação de informações muito maior do que havia vinte ou trinta anos atrás. Temos, a princípio, um corpus de dados e informações à disposição, mas até que ponto isso é um benefício? Ou isso pode trazer problemas?

Necessariamente os dois. Por um lado, você tem um mundo de documentação muito mais amplo. Pode-se fazer uma busca por um termo, por exemplo, "inquisição"; no Google aparecerão coisas que não poderia imaginar. Mas, ao mesmo tempo, o documento não faz nada em si, é sempre a conceitualização do historiador que torna o documento importante ou não. Os estudantes devem aprender que a conceitualização é o ponto de partida e que o documento só serve para certos fins. Um documento pode dizer coisas diferentes a pessoas diferentes.

Monica Dantas - Antigamente havia uma quantidade menor de documentos porque o acesso era mais difícil, e o pesquisador tinha que se dedicar mais para construir um embasamento teórico, metodológico e conceitual para lidar com aquele número relativamente restrito de fontes. Até que ponto esse excesso de informação não estaria levando a uma espécie de "neopositivismo"?

Podemos dizer que sim, mas acho que o positivismo não depende do número dos documentos, depende da mentalidade do historiador. O número de eventos, fatos, documentos não faz história. É o historiador que faz a história. Levando isso em conta, acho que este perigo não é tão grande. Não depende, ao menos, do número de documentos. O que é possível é verificar se os pensamentos são originais, porque é muito fácil agora conferir na internet quando as coisas são repetidas ou reutilizadas.

Iris Kantor - Como lidar com o problema dos acervos digitais que nem sempre fornecem referências exatas sobre o universo documental à disposição?

Esse é o problema dos estudantes com a Wikipédia, por exemplo, ou outros similares. Pois não há como saber de quem é a definição ou as definições da Wikipédia, ou por que o verbete foi escrito daquela maneira. Às vezes a informação que vem da internet contém erros enormes ou preconceitos. Tenho usado a internet, aproveitando para ler uma documentação que não estava disponível antes, mas eu nunca poderia depender só disso. Talvez para as futuras gerações de historiadores o arquivo se torne algo cada vez mais distante. Se eu já tenho muita coisa na internet, então porque preciso ir até o arquivo? Esse é o meu medo em relação aos alunos.

A HISTORIA SOCIAL PELO PRISMA DA CULTURA: NOVOS OBJETOS DE INVESTIGAÇÃO

Iris Kantor - Gostaria de falar um pouco sobre seu último livro e os novos projetos de pesquisa. Quais os temas que o têm preocupado neste momento?

Acabo de completar este livro sobre a história de religião ou irreligião (Cada um na sua lei), em que faço uma história cultural, um verdadeiro noviciado neste campo.

Monica Dantas - Até que ponto este é um livro de História da Cultura, e até que ponto é um livro de História do Cotidiano, já que você recupera as vivências e as expressões cotidianas em relação às práticas religiosas? Isso é uma História da Cultura ou é uma História do Cotidiano? Uma everyday life...

Não sei se devemos separar cotidiano de cultura. Creio que não. Cotidiano é simplesmente a cultura do dia a dia, em certo sentido. Na minha concepção, cultura é uma coisa muito abrangente, muito dinâmica. Não há uma cultura, mas culturas que estão em "movimento" constante, em mudança permanente. As culturas têm sua vida cotidiana e, no meu modo de entender, não há uma separação, não vejo muita diferença entre uma coisa e outra. Num certo sentido, também não percebo a diferença em relação aos antigos interesses por História Social, porque ainda estou interessado nisso. Simplesmente, nesse caso, concentrei-me nos indivíduos em vez de me deter nos grupos sociais, mas sempre com um olhar para a origem desses grupos sociais e sua relação com a sociedade como um todo; continuo interessado nisso.

Tenho atualmente três projetos que gostaria de terminar antes de me aposentar, ou antes de deixar a história de lado. Um deles é um projeto pequeno. Não tenho falado sobre isso, mas é um projeto que desenvolvi com uma pós-graduanda holandesa em Yale. Por muitos anos eu tive acesso a um texto de um senhor holandês chamado Otto Keye, intitulado "As terras quentes e as terras frias". Uma espécie de panfleto escrito no século XVII para promover a imigração holandesa às terras quentes, o Suriname, e não para Nova Amsterdam, a América do Norte. Um texto muito interessante, mas como não fiz sequer um ano de holandês, quando esta estudante fez meu curso - ela é especialista em História Contemporânea - eu a convidei para trabalhar nisso comigo. Ela foi à Holanda e fez a investigação... O que me interessou é que esse Otto Keye nunca esteve no Suriname, mas tinha experiência no Brasil holandês. Tudo o que ele descreve da terra tropical não é exatamente sobre o Suriname, mas sobre o Brasil. Quantos escravos são necessários para começar uma fazenda, quanta mandioca deve ser plantada etc. Voltou à Holanda, depois da expulsão dos holandeses do Brasil, e formou um tipo de companhia com outro senhor holandês - que tinha muito contato com a Inglaterra. Eles montaram uma colônia ao norte da América do Sul, o Suriname, na parte que agora é Guiana Francesa, e que fracassou. Ocorreu uma briga, ele matou a filha do outro, houve um processo na Holanda, e toda essa documentação existe. Ou seja, é um caso de ressaca (vamos dizer) da expulsão dos holandeses do Brasil. É um exemplo de uma dessas colonizações que falharam, fracassaram. Será um pequeno projeto que talvez resulte num livro pequeno, uma narrativa, algo assim... Ainda não sei como será. Já fizemos bastante coisa e vamos continuar trabalhando nele.

Monica Dantas - E os outros dois?

Um deles, que eu venho desenvolvendo desde o início da minha carreira é intitulado "O Atlântico no período da restauração": o Brasil e o Atlântico no mundo desde 1580 até 1670. No início, Espanha e Portugal eram os grandes poderes mundiais e, no final, poderes do segundo ou terceiro escalão. Procuro entender como foi essa transformação, o que implicou e qual foi o papel do Atlântico Sul nesse processo. Venho recolhendo materiais nos últimos quarenta anos e estou esperando uma oportunidade de sentar e escrever. Venho trabalhando em arquivos da Inglaterra, da França, da Holanda. Tenho muito material. Até demais.

O outro projeto é uma História Social dos furacões, um projeto que venho desenvolvendo há vários anos, muito estimulado pela leitura de Fernand Braudel. Quero trabalhar um pouco com o Caribe, onde passo muito tempo por causa da minha esposa, Maria Jordan, que é porto-riquenha. Por isso, pensei em escrever algo, mas não queria mais tratar da escravidão. Tenho dois livros sobre escravidão e acho que já disse o que tinha para dizer; estou buscando, então, uma maneira de inserir o Caribe, mas que não seja pelo viés da escravidão. Relendo Braudel percebi que o caso do Caribe seria ideal para trabalhar as relações entre meio ambiente, sociedade e história. É uma zona de ocorrências anuais de furacões. E o Caribe é muito interessante porque tem ilhas britânicas, francesas, holandesas, espanholas, e todas têm que se confrontar com o mesmo fenômeno natural. Ou seja, é uma oportunidade para uma história comparativa de mentalidades, de política e de cultura. Comecei isso há quinze anos e já publiquei dois ou três artigos44] Cf., por exemplo, Schwartz, S. "The hurricane of San Ciriaco: disaster, politics and society in Puerto Rico, 1899-1901". Hispanic American Historical Review, vol. 72, nº 3, 1992, pp. 303-34. [. Este projeto já está bem adiantado. Tenho agora que decidir entre fazer dois livros. Um só sobre Porto Rico, porque tenho muito material, e outro mais geral, sobre o Caribe, que exige muito mais pesquisa, visitar, por exemplo, os arquivos das ilhas francesas e inglesas. Ou então fazer um só livro, integrando tudo.

A ideia do livro sobre Porto Rico seria tratar de cinco furacões ao longo da História, desde Colombo até o presente. São momentos políticos bem distintos: da dominação espanhola, o momento da penetração dos norte-americanos, durante a Grande Depressão etc. Assim, pela história desta ilha exploro como a sociedade confronta um desastre natural. Esses são três projetos já começados, e gostaria de terminá-los.

HISTÓRIA COMPARADA DAS AMÉRICAS

Monica Dantas - Como fazer uma historia comparada das Américas? O espaço atlântico permitiria esse tipo de abordagem? Quais são as possibilidades de trabalhar simultaneamente com as colônias britânicas da América do Norte e o restante da América?

Para o projeto do furacão, penso no grande Caribe. O Caribe do sul dos Estados Unidos, do México etc. Tudo isso faria parte do estudo. O estudo do mundo Atlântico tem que integrar a América espanhola. É uma parte fundamental do projeto. Meu foco seria a rebelião portuguesa de 1640, porque me parece importante estudar uma guerra que durou trinta anos e opôs os dois impérios ibéricos, deixando espaço para os franceses, os ingleses, os holandeses.

Mas se aqui no Brasil sou conhecido como brasilianista, minha autodefinição é de um historiador do "early modern hispanic world", porque tenho passado muito tempo pesquisando fontes espanholas, trabalhando no Caribe, no México, em Cartagena. Dessa forma meu olhar é mais amplo do que o Brasil. Vejo o Brasil nesse contexto.

Sempre conto a história da minha primeira visita ao Brasil, quando vim com uma carta de recomendação para uma entrevista com José Honório Rodrigues. Ao chegar ao Rio de Janeiro, telefonei: "estou aqui, sou estudante de Lewis Hanke e gostaria de cumprimentar e visitar o senhor". E ele disse: "não é possível nesse momento porque amanhã estou viajando para a América Latina". Eu fiquei impressionado porque eu acabara de chegar à América Latina, e a América Latina para José Honório era a Bolívia ou o Peru. O Brasil não era a América Latina. Essa era uma das diferenças entre um brasilianista e um brasileiro naquele tempo; nós não nos considerávamos apenas brasilianistas, porque também éramos especialistas em história da América Latina. Isso é a verdade sobre todos os brasilianistas. A nossa responsabilidade foi sempre a de ensinar a história da América Latina, não só a História do Brasil.

Iris Kantor - Qual é o lugar da história hemisférica nesse contexto latino-americano? Ou seja, qual a importância de fazermos uma história comparada das sociedades americanas?

Isso seria muito bom. Há excelentes historiadores especializados em América espanhola. Acabo de passar um mês no Chile, e eles sabem pouco de historiografia brasileira. Estão tratando exatamente dos mesmos assuntos, dos mesmos temas e não têm nenhuma ideia da historiografia brasileira. Quatro anos depois da publicação do livro de Laura [de Mello e Souza] sobre bruxaria, O diabo e a Terra de Santa Cruz55] Souza, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. [, um senhor chamado Fernando Cervantes publicou um trabalho sobre o diabo no México. Exatamente o mesmo tema, com muitas fontes parecidas etc. Mas não há nenhuma citação do livro da Laura. Pior do que isso é que todas as resenhas também nunca fizeram menção à existência do livro da Laura, que era sobre o mesmo tema, com a mesma metodologia e resultados semelhantes. Esse ano, quando estive no Chile, eles expressaram muito interesse na historiografia brasileira, porque agora eles estão interessados em escravidão, já que também houve escravidão no Chile. Há um grupo na Universidade do Chile que está trabalhando com escravidão. Seria muito bom fortalecer essas conexões.

Monica Dantas - Fica a sensação de que a ibero-américa e a anglo-américa tendem a ser tratadas separadamente, com a justificativa de que foram dois modelos de colonização distintos, o católico e o protestante.

De fato, a historiografia norte-americana é caracterizada por uma busca da singularidade dos Estados Unidos. Os britânicos, também, são muito autocentrados. Os especialistas britânicos em Early Modern History são muito fechados. Poucos têm uma visão mais ampla que inclua a Europa. A culpa, portanto, é um pouco deles. Mas há bons livros sobre o Canadá francês, por exemplo, que tratam dos mesmos temas que são de interesse aqui: mestiçagem, comércio.

Monica Dantas - Você concorda com essa excepcionalidade?

Não! Seria uma estupidez. Mas há uma virada agora porque a William and Mary Quarterly, que é a principal revista sobre América do Norte colonial, tem agora um latino-americanista no conselho. Eles acabam de publicar uma resenha coletiva do meu livro, feita por alguns latino-americanistas e alguns especialistas em América do Norte. Além disso, publicam, de vez em quando, artigos sobre escravidão, textos que fazem menção ao Brasil ou à América espanhola. Há uma nova abertura, ou ao menos um desejo.

Iris Kantor - O livro que você escreveu em parceria com James Lockhart, A América Latina na época colonial, já propõe uma história comparada da América hispânica e da América portuguesa. Há interesse no mundo editorial norte-americano pela publicação de obras de escopo comparativo?

Sim. Não são muitas, mas há algumas. O estudo de John Elliott, Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America (1492-1830)66] New Haven: Yale University Press, 2006. [ é um bom exemplo. O nosso livro foi publicado nos Estados Unidos em 1983 e ainda está à venda. Há uma edição em espanhol e uma brasileira. Não sei se vende ou não vende, mas... Não é um livro comparativo, não intencionalmente, ao menos. Nosso desejo era fazer uma história integrada da América Latina em que o Brasil fosse colocado com suas peculiaridades, mas como parte do mesmo processo.

Monica Dantas - Quanto ao século XIX, o Brasil me parece um grande incômodo para grande parte dos estudiosos, seja de países da América hispânica, seja da América inglesa. E, na verdade, o problema parece ser: "era uma monarquia". Sempre se lê o Brasil a partir da ideia "todo mundo virou república e o Brasil virou uma monarquia".

Sim, a relação do Brasil com a América espanhola no século XIX é uma relação tensa. Toda a questão do Rio da Prata (no início do Império), a Guerra do Paraguai (ao fim do Império), o barão do Rio Branco que nunca nutriu muita amizade pelos argentinos e falou dos países da América Central como as "putas" dos Estados Unidos e esse tipo de coisa. Isto sempre complicou a relação, mas ao mesmo tempo, após a decretação da República, foi Rio Branco quem estabeleceu as primeiras embaixadas na América espanhola. O Brasil do século XIX estava muito voltado ainda para a Europa.

O livro de João Camillo de Oliveira Torres, A democracia coroada77] Petrópolis: Vozes, 1964 (1ª edição 1957)., defende que, de fato, a única república, no século XIX, foi a monarquia brasileira, porque as outras eram ditaduras. Enquanto havia caudilhos nas repúblicas do resto das Américas, o Brasil era o único país com uma situação política estável, com eleições, etc. [risos].

CADA UM NA SUA LEI? ATITUDES DE CONTESTAÇÃO ONTEM E HOJE

Iris Kantor - Voltando ao seu último livro: você demonstra a perfeita compatibilidade entre a história cultural e a análise socioeconômica.

Sim. Sou profundamente materialista, e isto tem uma influência na maneira que vejo as coisas. Sempre busco as explicações econômicas, os interesses econômicos das gentes. Mas, às vezes, encontro pessoas que não estão buscando seus interesses econômicos, cuja classe não explica seu pensamento e suas ações, porque somos, como seres humanos, uma mescla, uma mistura de interesses. Não somos sempre previsíveis, não estamos sempre buscando o interesse econômico e tudo o que é subordinado a isso. Mesmo os senhores de engenho, que queriam ganhar muito dinheiro, paravam os engenhos aos domingos. Então, como explicar? Porque eles viviam o cotidiano da sua cultura. Como seres humanos, somos muito complexos, e economia, sociedade e cultura formam o contexto das nossas ações.

Gostei muito dos personagens com que me deparei na leitura dos processos da Inquisição. Essas pessoas tornaram-se minhas amigas, e o mais impressionante é que elas - a despeito de toda a força do governo, toda força da igreja, toda força da sua sociedade, dos seus vizinhos e amigos - impulsionavam em outra direção e manifestaram suas opiniões: "Não, eu não concordo com isso. Eu não vou viver minha vida dessa maneira. O meu entendimento da nossa religião é outro...". Eles representam algo muito singular. E a decisão individual é uma coisa que inspira respeito; mesmo nos tempos mais horríveis - no holocausto etc. - houve pessoas que disseram: "Não, não concordo. Não vou fazer isso".

Estava lendo um livro recentemente, um livro que concorria com o meu para o prêmio internacional Cundill oferecido pela Universidade McGill de Montreal, no Canadá. É de Peter Fritzsche, historiador da Universidade de Illinois que escreve sobre a Alemanha contemporânea. Ele publicou um livro chamado Vida e morte no Terceiro Reich em que procura entender por que as pessoas colaboraram com os nazistas, mesmo quando eles mesmos não eram nazistas. Eles sabiam dos objetivos dos nazistas e, por uma razão ou outra, diziam: "não quero problema", "talvez tenha um bom resultado para mim", "não quero colocar minha família em perigo" etc. Por alguma razão eles decidiram assim. E, num certo sentido, meu livro trata da outra face da moeda, pois, no meu caso, algumas pessoas decidiram não colaborar. Mesmo assim, nós dois estamos procurando por que, dentro da sociedade, pessoas tomam suas próprias decisões, pois isso também é um dos motores da história. Trata-se da mesma pergunta que temos em relação a Voltaire, Espinoza, aos grandes pensadores, pois eles são singulares no seu pensamento...

Monica Dantas - E os anônimos?

Os anônimos também. Mas, como conjunto, se fossem muitos, poderiam mudar o pensamento. Mudar a sociedade.

Iris Kantor - De que forma sua abordagem pode ser relacionada com a ascensão dos neoconservadores na cena política norte-americana nos últimos quinze anos?

Não quero me estender muito sobre política nessa entrevista, mas a verdade é que fiquei muito, muito descontente e frustrado com o regime dos últimos oito anos. Não gostei nada da reintrodução da religião dentro de um Estado laico. Achei e acho um erro que um governo esteja motivado por pensamentos religiosos em sua política externa, em sua política interna, na educação etc. Nesse sentido, sou um filho da Revolução Francesa, sou muito francês. Realmente acredito na separação entre religião e governo. Religião é sobre a verdade, governo é sobre negociação. Acho que os dois planos da realidade não devem ser unidos. Isso não quer dizer que religião não seja importante na vida das pessoas, mas acho que deve ser uma coisa privada e não pública. Isso seguramente estava por trás dos meus pensamentos quando eu estava fazendo essa pesquisa; pois aquele era um momento em que, apesar da religião ter peso no governo, havia pessoas que diziam que "não, isso não é a maneira de armar a sociedade".

Monica Dantas - No caso dos Estados Unidos a liberdade religiosa aparece como um dos princípios fundadores do novo Estado, mas também há uma grande identificação entre ser religioso e ser uma boa pessoa. Nesse sentido, a impressão que se tem é de que há quase uma condenação ao agnosticismo ou ao ateísmo, como se fosse o outro lado da moeda da liberdade religiosa norte-americana.

Sim, justamente. Os primeiros..., os pais da constituição, muitos deles eram deístas, eram religiosos no sentido de que acreditavam na existência de um criador... Jefferson não era um cristão no sentido normal. Ele fez sua própria Bíblia, tirando as partes que não gostava. Hoje em dia, nos Estados Unidos, há uma tendência, um desejo, de transformar esses fundadores em cristãos, em bons cristãos, muito religiosos. À época da independência dos Estados Unidos, menos de metade das pessoas era praticante em igrejas formais. Menos da metade! O livro de meu colega, John Butler, de Yale, é sobre a história da religião dos Estados Unidos. Ele resgata as pessoas que não iam regularmente às igrejas. Metade! Mas agora há uma tendência a reinventar os "pais fundadores" como homens muito religiosos.

Monica Dantas - "They are sanctifying the founding fathers".

Sim, "sanctifying the founding fathers". Quando eu estava na escola, o grupo dos conservadores convidou um senhor para fazer uma palestra e eu fui recebê-lo. Fiquei de queixo caído porque ele estava completamente equivocado. Nos Estados Unidos, que é um país da vanguarda da ciência, é muito estranho questionar a teoria da evolução nas escolas. O que é isso? Imagine! Você acha que se nós não fizermos pesquisa com células-tronco, os coreanos e os japoneses vão deixar de fazê-lo? Isso só vai deixar nosso país muito atrás. Muito atrás! É por isso que religião e Estado devem ser separados, sempre. O contrário fará com que os Estados Unidos caiam para segunda categoria. Por isso aqueles oito anos, acredito, foram um desastre para os Estados Unidos.

POLÊMICAS E MODELOS INTERPRETATIVOS: ENTRE A DISPUTA DA AMÉRICA E A PREEMINÊNCIA ACADÊMICA

Iris Kantor - Eu gostaria de entrar um pouco no debate em torno das teorias pós-estruturalistas e pós-colonialistas. Qual a sua opinião a respeito das interpretações estruturalistas dominantes nos anos de 1960 e 1970? Como você vê esses modelos teóricos?

A teoria é uma arma. Ajuda ou não ajuda? Pode ser "helpful or not helpful". Eu nunca abracei o pós-colonialismo, porque nunca me ajudaram a explicar os fenômenos que eu queria explicar. Às vezes, os livros que falam de pós-colonialismo tratam do período do colonialismo. Não entendo o que é pós-colonialismo. Isso não me atrai.

Iris Kantor - Os Estados nacionais que tiveram um passado colonial não teriam nada em comum?

Antigamente dizia-se que a falta de desenvolvimento da África decorria de ter vivido séculos como colônia, impossibilitando que os países se desenvolvessem de maneira a estabelecer a estabilidade política, econômica etc. Mas, ao mesmo tempo, desconsideram a Malásia, o sudeste asiático, os tigres do sudeste, que também eram colônias. A Índia, por exemplo, a grande colônia da Inglaterra, agora está em processo de desenvolvimento. Logo, acho que o colonialismo pode resultar em atraso ou não. Assim, essa visão não ajuda muito para pensar sobre a especificidade da situação política.

Monica Dantas - Como você vê a aplicação de modelos matemáticos na análise historiográfica?

Há vários tipos de perguntas históricas e cada uma merece um tratamento adequado. Se estou interessado no desenvolvimento da indústria do algodão, tenho que buscar certo tipo de fonte e aplicar certos métodos, certas técnicas para responder tais perguntas. Se procuro as origens do pensamento religioso, tenho que recorrer a outros métodos e fontes. Então, a minha metodologia é sempre um pastiche. É muito prática e é um tipo de apropriação de vários métodos em função do objeto. Cada pergunta é diferente. Por exemplo, uma pergunta sobre "onde" é diferente de uma acerca do "porquê". Se estou interessado na pergunta de "onde", então a cartografia é muito boa; espaço, lugar etc. Se estou interessado em "quando" ou "como", então é necessário outra maneira de pensar. Sou muito eclético nesse sentido.

Íris Kantor - Os dois volumes da obra coletiva coordenados por você e Frank Salomon - The Cambridge history of native peoples (1999) foram objeto de acirrada polêmica nas páginas da prestigiosa revista francesa Annales em 2002. Passados sete anos, qual é sua percepção das críticas que lhes foram dirigidas?

Tenho pensado muito nisso, não sou concorrente dos historiadores e antropólogos franceses, ao contrário, sempre admirei seus livros, e alguns deles são realmente velhos amigos. Meu livro mais recente é dedicado a Nathan Wachtel, que é o fundador da antropologia histórica francesa; portanto, não há disputas intelectuais em jogo. No fundo, acho que a polêmica tem algo a ver com a diferença entre a França e os Estados Unidos no que concerne à integração dos imigrantes e à formação da identidade nacional. O multiculturalismo dos Estados Unidos - que não é tratado em nosso livro - parece ser uma preocupação dos franceses, que têm outra maneira de integrar os imigrantes, e pretendem que eles se tornem completamente franceses. O debate sobre o véu islâmico é uma prova disso.

A visão política francesa considera que os norte-americanos estão errados na sua maneira de fazer a integração dos imigrantes, e creio que a polêmica suscitada pelo livro foi uma oportunidade para explicitar esse desacordo. A crítica ao nosso volume veio de dois lados: de um lado, a notável historiadora Carmen Bernand disse que éramos demasiados favoráveis aos índios e que todas as fontes indígenas eram preferidas às fontes europeias etc. De outro, o ataque de Lévi-Strauss, que foi seu orientador, foi na direção oposta, ao afirmar que procuramos desculpar os europeus pela destruição das culturas indígenas. Então estávamos danados pelos dois lados [risos].

Por essas razões, trata-se de um debate muito incômodo e infrutífero. Mas o pior aconteceu quando fizemos nossa resposta para ser publicada nos Annales e os editores na ocasião não quiseram publicá-la tal como tinha sido redigida, e suprimiram certos pontos para proteger a fama de certas pessoas. Sim, os editores alteraram nossa resposta tirando certas partes. Os Annales dedicaram duas resenhas aos nossos dois volumes, uma de Luiz Felipe de Alencastro para o caso do Brasil, e outra de Carmen Bernard para região dos Andes. A resenha de Luiz Felipe de Alencastro é excelente e muito pertinente; embora enfatizasse posições que diferiam das nossas, apreciamos plenamente seus comentários e sua perspectiva mais abrangente. Contudo, os editores não nos permitiram colocar nosso acordo com Luiz Felipe de Alencastro, porque isso sugeria que não estávamos dando igual valor à outra resenha; na verdade, não o fizemos porque sentimos que esta era tendenciosa.

Por exemplo: Carmen Bernand escreveu que: "há uma falta de bibliografia escrita por pessoas importantes, especialmente os franceses. Onde estão os livros de fulano? Onde estão os livros de sicrano?" Acho que ela não entendeu que a Cambridge history não tem notas de rodapé; a Cambridge history tem poucas notas, mas cada capítulo tem um ensaio bibliográfico. Ela não deu muita atenção aos ensaios bibliográficos. Disse: "onde estão os livros de Wachtel? Como os estudantes vão saber deste tema sem os livros de Wachtel?" etc. Fiz uma contagem dos livros dos autores mencionados no ensaio bibliográfico. Wachtel era citado vinte e uma vezes, outro autor, vinte e duas vezes e, um terceiro, dezoito vezes. Eu, na resposta, disse isso. Não quiseram publicar porque revelava que talvez ela não tivesse entendido a organização do livro.

Monica Dantas - E tiraram mesmo?

Tiraram: "vamos deixar este parágrafo de resposta à parte porque é uma 'conta de boticário'". Depois, quando publicaram nossa resposta, o titulo que nós escolhemos foi "Um americano imaginário em Paris"; um jogo com o filme An American in Paris, porque achamos que muitas críticas eram feitas à maneira "americana" de pensar mais do que às posições defendidas no livro. Além disso, os Annales publicaram uma nota do editor, antes de nossa resposta, que dizia: "estamos publicando essa resposta, todo mundo sabe que daqui a cem anos vamos ainda estar lendo as obras de Lévi-Strauss etc.". Tínhamos um problema: o Lévi-Strauss queria uma história triste dos índios. Os índios como vítimas. Nosso problema é que no século XX há índios. Há movimentos indígenas na Bolívia. Como explicar isso se fizermos somente uma história triste dos índios? Como explicar o Evo Morales ou os movimentos indígenas no Chile? O índio deve ser ator na sua história e não somente vítima. Esse era o problema de Lévi-Strauss; mas daí a chamar-nos de equivalentes a negadores, ou negacionistas do holocausto americano..., aí já era demais, e especialmente de um homem que tanto admiro e que foi tão importante na minha formação e na de todos nós. Houve também muita crítica dos volumes sobre América Central. Murdo Macleod, que é escocês de origem, queria responder e também não quiseram publicar a resposta dele.

Iris Kantor - Nos Annales também?

Sim, nos Annales. E ele tratou de responder a Serge Gruzinski - que fez a resenha do seu volume sobre Mesoamerica -, afirmando que se tratava de uma representação da historiografia anglo-saxônica. Só que Murdo Macleod nasceu nas ilhas da Escócia e cresceu falando gaélico e não falando inglês. Chamá-lo de anglo-saxônico é no mínimo uma incorreção.

Em nossa resposta dissemos que a crítica se relacionava mais com a crise da antropologia na França do que com nosso volume e que, realmente, depois do estruturalismo, a antropologia na França perdeu a orientação, não sabendo mais para onde ir. Mas, mesmo que não saibam disso, estão seguros de que querem chegar lá primeiro, antes dos norte-americanos. Mas o problema do futuro das ciências humanas no período pós-estruturalista não é só francês; é, na realidade, mundial.

Monica Dantas - Mas até que ponto as ciências sociais não estão em crise, uma crise dos sociólogos e antropólogos com os historiadores? Haveria uma crise de paradigma, que não necessariamente é uma crise da história, e daí o incômodo e mal-estar?

Sou formado em antropologia e história. Tenho uma forte tendência para a antropologia. Mas a antropologia que eu gostava era a de Sidney Mintz, Marshall Sahlins e Clifford Geertz. A antropologia contemporânea ou pós-moderna, que está preocupada com o antropólogo, não me interessa muito, porque não me ajuda muito. Eles estão questionando se o observador é participante. Seguramente é participante. O historiador sabe isso desde o início [risos]. E sabe que todas as fontes são criações imperfeitas. A pergunta para o historiador é sempre se ele pode cruzar esta série de imperfeições e extrair algo de valor nas fontes que analisa. Todas elas, de uma maneira ou outra, deformam em algum grau a realidade. Talvez esse exercício crítico seja, afinal, um ato de fé para o historiador. Mas em relação a isso sempre fui e ainda sou um crente.

Recebido para publicação em 20 de outubro de 2010.

IRIS KANTOR é professora do departamento de História da Universidade de São Paulo.

MONICA DANTAS é professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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  • [1] Schwartz, Stuart. Trad. Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • [4] Cf., por exemplo, Schwartz, S. "The hurricane of San Ciriaco: disaster, politics and society in Puerto Rico, 1899-1901". Hispanic American Historical Review, vol. 72, nş 3, 1992, pp. 303-34.
  • [5] Souza, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
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    ] Transcrição e tradução de José Rogério Beier.
    [
  • 1
    ] Schwartz, Stuart. Trad. Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
    [
  • 2
    ]
    L'Homme, 2001, pp. 158-59.
    [
  • 3
    ]
    Annales, vol. 57, nº 5, 2002.
    [
  • 4
    ] Cf., por exemplo, Schwartz, S. "The hurricane of San Ciriaco: disaster, politics and society in Puerto Rico, 1899-1901".
    Hispanic American Historical Review, vol. 72, nº 3, 1992, pp. 303-34.
    [
  • 5
    ] Souza, Laura de Mello e.
    O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
    [
  • 6
    ] New Haven: Yale University Press, 2006.
    [
  • 7
    ] Petrópolis: Vozes, 1964 (1ª edição 1957).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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