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Constituição, democracia e indeterminação social do direito

Resumos

O artigo explora a tese de que a ordem constitucional vigente sob a Constituição Federal de 1988 é caracterizada pela indeterminação social do direito. Esse conceito combina dimensões empíricas e normativas: a multiplicidade de arenas decisórias especializadas na estabilização de expectativas e a luta de justificação sobre a interpretação política das normas jurídicas.

Constituição Federal de 1988; indeterminação social do direito; constituição democrática; democracia


This article explores the statement that the constitutional order in force since the promulgation of the Federal Constitution of 1988 epitomizes the social indeterminacy of law. This concept brings together empirical and normative dimensions: multifarious arenas of decision-making tailored to estabilization of expectations and struggles for justification about political interpretation of legal norms.

Federal Constitution of 1988; social indeterminacy of law; democratic constitution; democracy


DOSSIÊ: 25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Constituição, democracia e indeterminação social do direito**] Agradeço a leitura de José Rodrigo Rodriguez e Joaquim Toledo Jr. e o envio de bibliografia por Fabiola Fanti, Celso Campilongo, Jeferson Mariano Silva e Leonardo Rosa. [

Samuel Barbosa

RESUMO

O artigo explora a tese de que a ordem constitucional vigente sob a Constituição Federal de 1988 é caracterizada pela indeterminação social do direito. Esse conceito combina dimensões empíricas e normativas: a multiplicidade de arenas decisórias especializadas na estabilização de expectativas e a luta de justificação sobre a interpretação política das normas jurídicas.

Palavras-chave: Constituição Federal de 1988; indeterminação social do direito; constituição democrática; democracia.

ABSTRACT

This article explores the statement that the constitutional order in force since the promulgation of the Federal Constitution of 1988 epitomizes the social indeterminacy of law. This concept brings together empirical and normative dimensions: multifarious arenas of decision-making tailored to estabilization of expectations and struggles for justification about political interpretation of legal norms.

Keywords: Federal Constitution of 1988; social indeterminacy of law; democratic constitution; democracy.

Uma tentativa de diagnóstico dos 25 anos da ordem constitucional esbarra em muitas dificuldades, a começar pelas lacunas de conhecimento empírico — em que pese a ampla bibliografia hoje disponível sobre o STF — sobre a aplicação da Constituição nas várias instâncias do Judiciário, assim como sobre outros temas relevantes. Outra se impõe pela diversidade de perspectivas disciplinares que, da história constitucional e ciência política aos debates de teoria do direito e teoria constitucional, visam a constituição11] Cf. uma tentativa de cobrir essa diversidade de perspectiva, Avritzer, Leonardo (org.). Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. [. Menos evidente é a dificuldade de natureza conceitual: escolher um conceito de direito largo o suficiente para cobrir e interligar dimensões empíricas e normativas e produtivo o suficiente para incorporar e criticar as ofertas de explicação e compreensão da ordem constitucional vigente.

Vou delinear em grandes linhas uma tese conceitual que articula duas dimensões do direito. Na primeira dimensão, o direito é definido como conjunto de processos institucionalizados para produzir decisões e, com isso, desempenhar a função de estabilização de expectativas sobre comportamentos sociais. A segunda dimensão enfatiza o direito como prática argumentativa acerca da indeterminação das normas jurídicas. Na primeira dimensão, o direito funciona como parâmetro para a ação estratégica dos clientes do sistema jurídico. Na segunda, o direito é um medium especializado para o exercício da argumentação prática pelos cidadãos. Por si só, cada dimensão exigiria uma discussão extensa, o que não posso fazer aqui. A apresentação é limitada pelo ponto de fuga do artigo: caracterizar a indeterminação social do direito na ordem constitucional pós-1988.

Na primeira seção, a partir da teoria do direito de H. L. Hart, apresento o que significa dizer que o conceito de direito tem duas dimensões distintas, definidas aqui como aspecto externo (regularidade) e aspecto interno (regra). Na segunda seção, interpreto as duas dimensões, a partir da sociologia jurídica, respectivamente, como rotinas institucionalizadas e justificação. Discuto a indeterminação do direito nas duas dimensões. Por um lado, há uma fragmentação de arenas que produzem decisões incompatíveis que compromete a segurança jurídica. Por outro, o significado das regras é objeto de luta de justificação, resultado da existência de modelos concorrentes. Na última seção, esse esquema conceitual é empregado para interpretar a ordem constitucional pós-1988. Apresento também o significado da expressão "constituição democrática", a partir do trabalho de Maurizio Fioravanti, que permite dar intelegibilidade ao debate constitucional brasileiro mais recente. Nas duas últimas seções, analiso indícios empíricos ainda provisórios, resultado de levantamento qualitativo, para dois elementos do argumento: a percepção de insegurança jurídica, compartilhada por muitos profissionais do direito, e a pluralidade de regimes jurídicos relativamente autonômos em relação à Constituição22] Apoiei-me em entrevistas estruturadas com um conjunto de juízes, advogados públicos e privados e auditores fiscais, alguns deles professores que responderam na qualidade de profissionais, e, com alguns deles, entrevistas semiestruturadas mais extensas. São profissionais de áreas diferentes do direito, em momentos diferentes da carreira. Agradeço a todas e todos: Alberto Alonso Muñoz, Caio Farah Rodriguez, Celso Campilongo, Elival da Silva Ramos, Fernando Dias Menezes de Almeida, Francisco Satiro, Gustavo Just, Homero Batista Mateus da Silva, Jarbas Luiz dos Santos, Juliano Maranhão, José Maria Arruda de Andrade, Lucia Barbosa Del Picchia, Manoel de Queiroz Pereira Calças, Marcos Untura Neto, Milene Chavez, Rodrigo Broglia Mendes, Said Takieddine, Thiago Brito, Thiago Tannous. [.

1.

Em O conceito de direito, de 1961, Hart deu uma contribuição importante para investigar a dupla face do direito — que se revelou fecunda para a teoria social (Luhmann e Habermas) e para teorias sociológicas de médio alcance (Denis Galligan) — ao distinguir, a partir da diferença entre regularidade e regras sociais, os pontos de vista "externo" e "interno". Para que haja regularidade, é necessária e suficiente a convergência, que pode ser registrada por um observador, de comportamentos33] A convergência pode ser explicada de várias maneiras: a existência de uma regra exigindo determinada ação ou hábitos socialmente formados. [. Para que haja uma regra, é necessária a atitude específica de considerá-la como padrão que exige o comportamento; nesse caso, o padrão é um critério que justifica a ação conforme a regra e a crítica à ação que dela se desvia44] Hart, H. The concept of law. Oxford: Oxford University Press, 1997 [1961], pp. 9-11, 57-59 [ed. bras.: O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette Camara. São Paulo: Martins Fontes, 2009]. [.

Mas a distinção entre os dois pontos de vista não é idêntica à distinção entre participante e observador55] Shapiro, Scott. "What is the internal point of view?". Fordham Law Review, 75, 2006, pp. 1157- 70. [. O participante de uma ordem jurídica, ao invés de adotar a atitude crítico-reflexiva, pode assumir a regra como uma regularidade para fazer prognósticos e tomar decisões técnicas e estratégicas. Esse é o caso quando uma lei é obedecida não por respeito à lei, mas para evitar uma punição. A escolha se baseia em prognósticos: escolher pagar um imposto depende da previsão acerca de como um tribunal vai decidir a constitucionalidade do imposto. Os prognósticos serão tão mais seguros quanto mais regular for o comportamento dos tribunais sobre determinado assunto. Mais adiante vou retirar as consequências desse ponto de vista externo adotado pelo participante de uma ordem jurídica, que é um dos aspectos da dimensão de facticidade do direito. Antes, porém, quero reunir mais elementos para destacar os aspectos institucionais de uma ordem jurídica como a brasileira.

A institucionalização do direito foi explicada por Hart com o conceito de regras secundárias. Além das regras que estatuem deveres e proibições, uma ordem jurídica madura possui uma reflexividade característica: regras regulam a criação de outras regras e regulam a aplicação das regras aos casos. As regras secundárias de câmbio e de julgamento institucionalizam, respectivamente, processos decisórios de criação e aplicação do direito. Por exemplo, a Constituição define no art. 62 uma minuciosa regulação para a edição de medidas provisórias e sua conversão em lei; no art. 102, as matérias de competência do STF.

Do ponto de vista externo, os processos decisórios seriam registrados como regularidades e rotinas. Mas, do ponto de vista interno, como relações de validade. Uma medida provisória é válida porque foi criada com respeito à Constituição. Uma sentença judicial é válida quando respeita as regras de julgamento que regulam a aplicação do direito aos casos:

O juiz, ao punir, toma a regra como seu guia e a violação da regra como a razão e justificação para ele punir o autor da violação [offender]. Ele não considera a regra como uma afirmação de que ele e outros provavelmente vão punir os desvios, embora um espectador pudesse considerar a regra precisamente desta maneira66] Hart, op. cit., p. 11 (grifos do autor). E o poder desse juiz específico, para julgar esse caso, segundo esse processo específico, não se funda em uma regularidade, mas em regras de julgamento. [.

A institucionalização do direito, portanto, não é apenas uma rotina ou regularidade que pode ser descrita, mas tem uma dimensão de validade que pressupõe a adoção do ponto de vista interno. Uma questão importante é saber quem deve adotar necessariamente tal ponto de vista.

Hart propõe que um sistema jurídico existe se estiverem reunidas duas condições necessárias e suficientes: (1) as regras que definem os comportamentos obrigatórios e proibidos, que são válidas segundo critérios do sistema, são geralmente obedecidas pelos cidadãos privados; (2) as regras que definem os critérios de validade e as regras de câmbio e julgamento são aceitas pelos funcionários ("officials")77] Hart, op. cit., pp. 116-17. [.

Quanto ao participante que não atua como funcionário, basta adotar o ponto de vista externo. Já vimos em que sentido ele se comporta assumindo esse ponto de vista, orientando-se em termos técnicos e estratégicos. Ele também pode adotar o ponto de vista interno, mas isso não é necessário. Essa é uma condição importante porque exprime que a existência do direito depende da convergência dos comportamentos, isto é, as leis não devem ser geralmente desobedecidas, sem o que não existe o sistema jurídico. Já os funcionários, especialmente os juízes, adotam (isso também pode ser registrado por um observador como um fato) e devem adotar a atitude interna. Eles aceitam, não apenas obedecem, os fundamentos últimos de validade do direito. A pergunta sobre a existência do sistema jurídico, portanto, pede uma resposta com duas faces ("a Janus-faced statement"): o direito tem a dimensão de facticidade e a dimensão de validade. Um adendo importante é que, tanto para o participante que necessariamente adota o ponto de vista externo quanto para o participante oficial que deve adotar e adota o ponto de vista interno, o sentido da regra não pode ser indeterminado para todos os casos. Vale dizer, a extensão da regra é determinada para casos centrais e indeterminada apenas em casos-limite (os chamados casos de penumbra). Hart assume uma tese de filosofia da linguagem importante para seu projeto: a indeterminação da regra é definida como problema linguístico, que existe em casos de vagueza, mas nem sempre ocorre. Para os casos de indeterminação, o juiz possui um "poder discricionário", tem que fazer uma escolha que "não pode ser arbitrária ou irracional"88] Hart, op. cit., p. 127. [.

Essas são condições mínimas para a existência de todo sistema jurídico. Como Hart se move no plano de uma teoria geral do direito, e estuda o sistema jurídico, não cuida de condições mais exigentes para caracterizar um sistema jurídico determinado. Portanto, ele não oferece uma teoria da argumentação apta a fundamentar os juízos de justificação implicados no ponto de vista interno, tanto para os casos fáceis, subsumidos às regras, como para os casos difíceis (vagueza). Uma teoria da argumentação responderia qual a justificação para que uma escolha acerca de casos difíceis não fosse arbitrária ou irracional. O espaço da luta de justificação está demarcado, mas não está preenchido. Além disso, é importante questionar em que medida uma ordem jurídica democrática exigiria a participação do cidadão na luta por justificação, não sendo suficiente que ele adotasse o ponto de vista externo.

2.

Um diagnóstico adequado da atual ordem constitucional precisa levar em conta rotinas institucionalizadas e justificação, que compõem a dupla dimensão do direito. Em cada dimensão, é possível identificar um tipo de indeterminação: indeterminação institucional e indeterminação normativa. Vou chamar de indeterminação social do direito a relação entre ambas.

Já vimos que o participante de uma ordem jurídica pode adotar um comportamento técnico e estratégico com relação ao direito. A regra perde a característica deontológica (proibido, obrigatório) e adquire, do ponto de vista externo, a característica modal (é necessário, é possível)99] Para os exemplos que vou dar na sequência, é importante salientar que o uso dos símbolos "é proibido" e "é obrigatório" não é suficiente para caracterizar uma regra. Dizer que alguém deve pagar um imposto sob pena de multa pode significar que há uma expectativa (se não pagar, será multado) que não se adapta à desilusão (não pagamento). Esse é, em linhas gerais, o conceito luhmaniano de regra como expectativa normativa, que apaga a dimensão deontológica acessível do ponto de vista interno. [. Vou reservar o termo "regra" para o padrão que preserva o sentido deontológico acessível do ponto de vista interno, e adotar o termo "paradigma" para o padrão que serve de orientação técnica/estratégica e serve de base para fazer prognósticos sobre o comportamento dos tribunais. Além disso, assumo que o paradigma não é vago para todos os casos e tem, para os casos centrais, um sentido determinado.

Qualquer participante sabe enumerar um conjunto de paradigmas sobre os impostos que deve pagar, os crimes que deve evitar e sobre afirmações acerca do legislador, juiz, policial. Com base em paradigmas, faz previsões sobre o comportamento das instituições e de outros agentes, e pode fazer escolhas estratégicas1010] Um observador interessado em investigar determinada instituição se apoia na existência de paradigmas que funcionam como regras do jogo da instituição, permitindo prognosticar um padrão mínimo a partir do qual emergem outras dinâmicas passíveis de explicação. [. Em situações mais complexas, ele consulta sempre uma advogada1111] Estou considerando apenas as hipóteses em que o cliente opta por litigar nas instâncias oficiais. Mas ele poderia resolver o conflito fora da formalidade do direito, com apoio em regras sociais e mecanismos informais de solução das controvérsias. Cf. Ellickson, Robert C. Order without law: how neighbors settle disputes. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1991. [.

Até aqui, acompanhamos uma possibilidade aventada por Hart: os participantes podem adotar o ponto de vista externo. É sedutor expandir a descrição para abranger o comportamento dos funcionários. Digamos, então, que juiz, promotor, advogado participam da reprodução do direito apelando para paradigmas. Por exemplo, a súmula nº 443 do TST, publicada em setembro de 2012, presume "discriminatória a despedida de empregado portador do vírus hiv ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego". Essa proposição bem detalhada sintetizaria a aplicação rotineira pelo TST de outros paradigmas mais abstratos (CLT). Um paradigma programa a atribuição de um dos valores do código do direito (jurídico/não jurídico) aos casos; os juízes dispõem de um critério para tomar decisões com economia de tempo, os advogados para planejar a defesa do seu cliente (empregado ou empregador) em um processo judicial. A repetição de paradigmas e o aprendizado de novos paradigmas criados pela legislação ou pela jurisprudência fazem do direito uma questão de rotinas que permitem prognosticar a decisão das instituições judiciais e fazer escolhas estratégicas. Quanto mais paradigmas, maior a segurança jurídica. Quanto mais paradigmas, mais redundante é o sistema jurídico, e mais se sabe o que se pode esperar.

Continuando o exercício de adotar o ponto de vista externo como suficiente, uma dificuldade a ser enfrentada é: como conciliar a tese de que o direito cria rotinas e permite prognóstico sobre o comportamento dos tribunais com a percepção de insegurança jurídica compartilhada por muitos profissionais (e cidadãos) do direito brasileiro?

A percepção de insegurança tem explicações diferentes a depender dos vários regimes jurídicos que compõem a ordem jurídica brasileira, a exemplo do direito tributário, notarial, empresarial, direito do menor, direito de falências, direito do mercado de capitais, direito antitruste etc. Para o exemplo do direito tributário, a formação de paradigmas fica seriamente debilitada em razão da constante produção de regras dos vários níveis e entes da federação em competição por receitas.

Seja qual for o regime, a insegurança se traduz na dificuldade de prognosticar a decisão dos tribunais e órgãos administrativos, percepção compartilhada pelos entrevistados. Isso porque a jurisprudência varia entre os tribunais de instâncias diferentes, entre os tribunais de mesma instância, até mesmo entre as câmaras de um mesmo tribunal. Cada tribunal cultiva sua autonomia para decidir os conflitos. Uma câmara especializada de falências em um tribunal como o de São Paulo que julga os principais casos de falência do Brasil é ciosa da sua autonomia com relação ao STJ. A autonomia do TST é reconhecida pelo STF, que evita julgar matéria trabalhista. Ou ainda, pensando em câmaras arbitrais cuja decisão é secreta, não faz sentido perguntar por um padrão jurisprudencial. Além desses fatores, a autonomia decisória ocorre porque há uma divisão de trabalho entre as instâncias: enquanto a primeira instância é vocacionada para a aplicação do direito aos casos, tribunais superiores se especializam em discussões de teses abstratas sobre a interpretação do direito. Em parte, porque o significado interpretativo fixado em instâncias superiores tem dificuldade de se irradiar de cima a baixo.

Nessa circunstância extremada de incerteza, a institucionalização do direito é a chave para explicar o desempenho da função estabilizadora. O cliente do sistema jurídico autuado por um órgão de fiscalização pode recorrer ao Judiciário para anular a multa; caso não obtenha uma decisão favorável, pode recorrer dessa decisão, de posse de uma liminar (decisão preliminar) favorável em alguma instância, não precisa se incomodar com a lentidão do Judiciário para dar um desfecho ao processo. Em outras palavras, apesar da dificuldade de prognosticar as decisões e da ausência de uma jurisprudência coerente, o cliente tem acesso a uma rede de processos institucionalizados. Com mais sucesso em alguns casos, menos em outros, o cliente obtém certezas precárias, conquistadas de decisão em decisão1212] Para uma discussão aprofundada do problema da certeza no direito do ponto de vista da teoria dos sistemas, ver Gonçalves, Guilherme Leite. "Os paradoxos da certeza do direito". Revista Direito GV, 2, 2006, pp. 211- 22. [.

Mas essa perspectiva objetivadora que a apaga a dimensão interna do direito não leva a sério a prática argumentativa tão onipresente na dinâmica jurídica que fica reduzida à "mera retórica", à criação de redundância. Parece unilateral reduzir a dinâmica do direito à situação de juízes que aplicam mecanicamente paradigmas ou a de advogados e clientes que atuam como lobistas interessados em uma decisão quase legislativa1313] Waldron, Jeremy. "Ronald Dworkin: an appreciation", 2013, p. 2, em <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2276009> , acessado em 20/07/2013. [. O cínico dirá que é isso mesmo.

Ainda admitindo a existência de paradigmas e processos institucionalizados funcionando dessa maneira, uma interpretação alternativa, que adota o ponto de vista interno, sustenta que a dimensão de justificação está interligada à dimensão das rotinas. Por um lado, a referência aos paradigmas depende de suposições de fundo: justificações, deliberações que formam a garantia para se tomar uma proposição incontroversa para os casos centrais. O acordo presumido que sustenta os paradigmas é consequência de práticas argumentativas do passado que formam o acervo de suposições de fundo pressuposto no presente. Além disso, os acordos e sua expressão paradigmática podem ser revisados na prática argumentativa do presente. Por outro lado, a ausência de jurisprudência não é um fato constatado sem mais. Um tribunal que não segue a orientação de um tribunal superior justifica a correção das suas decisões segundo a melhor interpretação que pode dar para o direito vigente. Assim, não parece utópico postular a dimensão de justificação, ela está inscrita na dinâmica do direito.

Digamos então que na atual ordem constitucional há, por um lado, indeterminação institucional. Os vários órgãos e as variadas arenas judiciais, administrativas e quase oficiais para tomada de decisão não se estruturam em hierarquias rígidas. Cada órgão atua para garantir sua autonomia decisória, o que cria obstáculos à consolidação da jurisprudência. Mas, por outro lado, a luta de justificação pelo sentido da norma é aberto a disputa, tanto nos casos fáceis como nos casos difíceis. A indeterminação normativa não pode ser corretamente interpretada como indeterminação linguística (restrita aos casos de vagueza) como propôs Hart1414] Este é o saldo que retiro do debate norte-americano que apôs os autores do Critical Legal Studies aos autores da teoria analítica do direito. Tushnet, Mark. "Defending the indeterminacy thesis". QLR, 16, 1996, pp. 339- 56. Coleman, Jules e Leiter, Brian. "Determinacy, objectivity, and authority". Pennsylvania Law Review, 142, 1993, pp. 549- 637. Hartog, Hendrik. "Pigs and positivism". Wisconsin Law Review, 1985, pp. 899- 936. [. Os conflitos sociais, o fato do pluralismo das sociedades contemporâneas desafiam a suposição de evidência dos casos fáceis1515] Em razão dos conflitos sociais, o debate jurídico especializado é pressionado a inventar novas soluções permanentemente. José Rodrigo Rodriguez captou essa circunstância na expressão emblemática "dogmática é conflito", que serve para problematizar a ideia de um saber jurídico reprodutor de rotinas: "Essa necessidade de constantemente dar conta de conflitos novos, a partir de um material jurídico já existente, coloca o aparelho conceitual dogmático em um estado de 'crise' permanente. Trata-se de uma atividade voltada, ao mesmo tempo, para o passado e para o futuro, sempre em função do princípio da igualdade perante as leis". Rodriguez, José Rodrigo. "Dogmática é conflito: a racionalidade jurídica entre sistema e problema". In: Rodriguez, J. R., Püschel, Flavia Portella e Machado, Marta Rodriguez de Assis. Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 24. [. A indeterminação normativa evidencia-se em especial porque o próprio material normativo (legislação, juriprudência, literatura jurídica) expressa modelos normativos contestáveis. São modelos de justiça, de sociedade bem-ordenada, de liberdade que são disputados nas várias arenas em seu detalhamento.

Essa caracterização é tão mais plausível quanto mais presente a indeterminação que caracteriza a prática democrática e a cultura de direitos:

A consciência do direito e sua institucionalização mantêm uma relação ambígua. Esta implica, por um lado, a possibilidade de uma ocultação dos mecanismos indispensáveis ao exercício efetivo dos direitos pelos interessados, em decorrência da constituição de um corpo jurídico e de uma casta de especialistas; por outro lado, fornece o apoio necessário à consciência do direito1616] Lefort, Claude. A invenção democrática: os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 57. [.

Em uma democracia consolidada, a ambiguidade apontada por Lefort dificilmente se resolve a favor do fechamento e isolamento autárquico dos mandarins do direito. A cultura jurídica deixa de ser identificada como monopólio dos profissionais do direito e a esfera pública jurídica se alarga para cobrir outras vozes. Ganha evidência e se torna explícito o debate dos modelos normativos de justiça, sociedade bem-ordenada etc. que estão incorporados no direito, ao invés de permanerem como pano de fundo da convicção dos juristas e implícitas nas justificativas pontuais, caso a caso.

3.

A Constituição de 1988 é uma constituição democrática. Essa afirmação não tem nada de trivial. Na constituinte, não prosperou uma constituição projetada por notáveis. Vingou a expressiva mobilização e participação popular em meio ao mosaico de agremiações partidárias, de porta-vozes dos poderes institucionais (presidência, Judiciário, Ministério Público, polícia), de grupos de interesse com influência variada. A especificidade desse processo contrasta com uma história constitucional de cartas outorgadas, de constituição de notáveis, todas com reduzida participação da esfera pública1717] Sobre a história da constituinte e o processo de redemocratização, ver Barbosa, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, 2012, e Pilatti, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris e Ed. puc-rj, 2008. [.

Mas a afirmação não é trivial porque a própria expressão "constituição democrática" reúne princípios de extração diferentes, incompatíveis ou pelo menos de combinação problemática. De Kant a Habermas, a tentativa de interpretar a combinação entre direitos humanos e soberania popular, estampados na Declaração francesa de 1789, dá mostras da dificuldade do projeto do constitucionalismo democrático. A crítica ideológica da Declaração desde Marx duvida da consistência desse projeto.

Maurizio Fioravanti usa a expressão para caracterizar um tipo específico de constituição que tem exemplos no século xx, especialmente no pós-guerra1818] Fioravanti, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Madri: Trotta, 2009. [. Constituições democráticas combinam dois tipos, a constituição-programa ("constituzione-indirizzo") e a constituição-garantia ("constituzione-garantia"), formadas respectivamente no processo revolucionário francês e no norte-americano. Vou apresentar em grandes linhas a reconstrução histórica de Fioravanti porque ela dá intelegibilidade, em chave política, ao debate jurídico-constitucional brasileiro mais recente1919] Gilberto Bercovici tem produzido diversos trabalhos que buscam evidenciar o debate político que está pressuposto no debate constitucional. Ver, em especial, Bercovici, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. Igualmente vale para Cattoni, Marcelo. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. [.

O processo político da Revolução Francesa combina direitos e soberania da nação ou povo, configurando um tipo específico de constitucionalismo. Os direitos declarados desde 1789 não expressavam a experiência sedimentada em costumes e na prática das instituições como é o caso do constitucionalismo inglês, que tutela os direitos pela ação dos juízes que aplicam o common law. A experiência acumulada no Antigo Regime expressava, como diz o preâmbulo da Declaração, "ignorância, esquecimento e desprezo" dos direitos. Afirmar os direitos é indicativo de que revolução se faz contra o passado. Os direitos guardam uma dimensão de projeto de futuro, de algo a ser conquistado. Também diferentemente dos ingleses, cuja Constituição costumeira mista, equilibrando os poderes ("King in Parliament"), expressava uma soberania parlamentar limitada, no tipo francês a soberania é da nação ou povo. A definição mais precisa dos direitos é reenviada à lei; o problema não é o de limitar, encontrando o equilíbrio entre os poderes, mas o de constituir os poderes, o que coloca o problema da relação entre poder constituinte e poderes constituídos.

Com efeito, nas declarações e constituições do período revolucionário, a enunciação de diversos direitos apenas na aparência se assemelha à experiência inglesa. É o caso do art. 7º da Declaração de 1789, "Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei". Mas o reenvio à lei, que aliás aparece em posições centrais da Declaração, sugere outro horizonte político. Na interpretação de Fioravanti, é um erro ler os direitos como conjunto de garantias da liberdade e propriedade dos indivíduos. Erro porque os direitos não são experiência mas programa para o futuro, inclusive abertos à invenção de novos direitos, como os direitos sociais enunciados na Declaração jacobina de 1793. E erro porque o debate sobre o exercício da soberania antecede à discussão das garantias. Em outras palavras, a sociedade não é concebida à maneira inglesa como sociedades de indivíduos titulares de direitos à liberdade e propriedade, mas é sociedade de indivíduos politicamente ativos, cuja unidade (nação ou povo) é titular da soberania. O problema é expressar e representar a soberania da nação ou povo.

No art. 6º a Declaração de 1789 deixava aberta a dramática alternativa para a manifestação da vontade da nação ou povo, que acompanha o processo revolucionário. A alternativa é entre democracia direta e representação: "A lei é expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação". Por um lado, a soberania da nação ou povo incita à mobilização dos cidadãos, exige o sufrágio universal e meios para participação direta do povo. Fazer a revolução significa impedir que o legislador se firme como um novo soberano e que o corpo político dependa da representação para ganhar unidade. A soberania constituinte manifesta uma desconfiança dos poderes constituídos. O exemplo emblemático disso é o art. 28º da Declaração jacobina de 1793: "Um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição. Nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras às suas leis". Por outro lado, há a alternativa de fundar a representação, liberada do mandato imperativo, garantindo, com isso, uma maior autonomia da classe política capaz de transcender interesses particulares e facções. Em suma, a revolução oscila em duas direções opostas: "afirmar a prioridade do corpo constituinte soberano de cidadãos politicamente ativos contra os poderes constituídos; afirmar a primazia do legislador que encarna a vontade geral acima das facções atuantes da nação ou do povo"2020] Fioravanti, op. cit., p. 67. [.

Em síntese, esse tipo de constituição-programa subordina a lógica da garantia à lógica da soberania. Quer pela mobilização permanente do poder constituinte, quer pelo legislador virtuoso, a elaboração da lei garante os direitos. Em um e outro caso, não há espaço para uma constituição com força para limitar os poderes e se firmar com supremacia e rigidez sobre a legislação.

Do processo revolucionário norte-americano, resulta o tipo da constituição-garantia. A crise cujo desfecho é a independência é catalizada pela reação dos colonos às leis do Parlamento inglês que criam novos tributos sem o consentimento dos interessados. A reação se baseia em uma complexa teoria política decantada na vibrante esfera pública americana. Uma mescla de republicanismo radical, da literatura jurídica sobre a ancient constitution e dos escritos da ilustração combinam-se para criticar a soberania parlamentar e para a defesa dos direitos dos colonos que se referem de modo ambivalente aos direitos dos costumes antigos e aos direitos naturais.

Para Fioravanti, o constitucionalismo norte-americano estabiliza a constituição como governo limitado com fins de garantia. Em primeiro lugar porque o poder constituinte das assembleias coloniais e da convenção dos Estados reunidos se manifesta na criação de constituições escritas. A constituição, não as leis, é a principal fonte do direito. As leis se subordinam à constituição, que não pode ser modificada por procedimentos ordinários. Em segundo lugar porque a defesa da supremacia da constituição se encaminha pela via judicial, expediente que se firma no início do século XIX. Pesou aqui a experiência da tutela de direitos pelo common law importado do constitucionalismo inglês. Por fim, porque a oposição à soberania parlamentar não se resolve na linha jacobina, apesar da linhagem de pensamento radical presente no universo de referências. A estabilização dos poderes constituídos se deu na fórmula dos freios e contrapesos, definidos pela constituição escrita e rígida.

Na Europa pós-revolucionária, a doutrina do direito público reage a essas duas tradições. Rejeita a concepção de direitos e liberdades pré-estatais e a supremacia e rigidez constitucional que fundamentam critérios externos para avaliar a lei estatal. Os direitos e liberdades são interpretados como posições jurídicas subjetivas criadas e tuteladas pela lei do Estado. Os códigos e as leis ganham posição de destaque nas fontes do direito, a constituição é reduzida a "frame of government". O percurso é resumido por Fioravanti em duas máximas: "da proclamação revolucionária das liberdades à tutela dos direitos pelo direito positivo estatal" e "da supremacia da constituição à supremacia do Estado". A doutrina do direito público rejeita também a ideia do poder constituinte popular permanentemente mobilizado:

Enquanto na outra margem do Atlântico a constituição, rígida e protegida pelo controle de constitucionalidade, se impõe aos poderes públicos para garantir os direitos, na Europa continental é o Estado de direito, a lei do Estado, o poder público como reflexo orgânico da nação, quem custodia os direitos e por eles é defendido, desde um ponto de vista rigorosamente liberal, das intromissões desestabilizadoras da constituição, do poder constituinte, das vontades particulares dos indivíduos e das forças sociais2121] Fioravanti, op. cit., p. 107. [.

Essa exposição esquemática é suficiente para discernir algumas estruturas do constitucionalismo que importam para interpretar as constituições do pós-guerra, dentre elas a Constituição brasileira de 1988. A tese de Fioravanti é que as constituições da democracia de massa e do Estado social combinam a tradição da constituição-garantia e da constituição-programa. Por um lado, recupera-se a supremacia e rigidez da constituição, vale dizer, a legislação está subordinada à constituição, que só pode ser modificada por processos especiais. A ideia do legislador que encarna a vontade geral é corrigida pelo status superior da constituição. Além disso, o Judiciário ganha centralidade como arena para dar efetividade à constituição. Por outro lado, a constituição projeta-se para o futuro como conjunto de princípios, valores e fins que deve ser levado em conta pelos poderes e pela sociedade. Além disso, dá fundamento para a invenção de novos direitos, em outras palavras, a luta de justificação não se resume à função de garantias dos direitos já consagrados ou a luta por sua universalização. Não é apenas garantia, mas projeto de futuro. Das duas tradições, recupera-se o conceito e a prática do poder constituinte que havia sido silenciado pela doutrina do direito público do Estado de direito.

O debate constitucional brasileiro mais especializado é inteligível a partir desse pano de fundo. As discussões sobre teoria da interpretação e teoria da argumentação ganharam centralidade, avançando para além da doutrina do direito público tradicional2222] Aarnio, Aulis. "Sobre el derecho y el Estado de Bienestar". In: Derecho, racionalidade y comunicación social. México: Fontamara, 1995, pp. 33- 46. [. São discussões que procuram alargar o conceito de norma jurídica para contemplar padrões cuja estrutura não é evidente para os profissionais do direito. É perceptível a diferença entre uma regra que prescreve "niguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado" e o princípio "a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana". Há também discussões sobre como justificar uma decisão com base nesse acervo normativo alargado, não raro com conflitos e colisões entre as normas; sobre como aplicar os direitos sociais que exigem prestações positivas do poder público; sobre como aplicar direitos fundamentais, classicamente formulados para a relação entre Estado-indivíduos/cidadãos, para a relação entre privados. O debate de teoria da argumentação tem como referência a crescente importância de tribunais especializados para interpretar a constituição com efeitos gerais, não apenas para um caso específico; para decidir sobre a constitucionalidade de leis e emendas aprovadas pelo Parlamento. A jurisprudência desses tribunais é cada vez mais levada em conta na construção doutrinária e na argumentação2323] Alguns desses temas estão exemplificados no debate constitucional mais recente em Silva, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. Mendes, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação dos poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. Just, Gustavo. Interpréter les théories de l'interprétation. Paris: L'Harmattan, 2005. Souza Neto, Cláudio Pereira e Sarmento, Daniel (orgs.). A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. [. O debate constitucional procura responder à combinação das dimensões de garantia (supremacia e rigidez da constituição, tutela judicial dos direitos e de defesa da constituição) e de programa (direitos sociais, projetos de futuro, invenção de novos direitos).

A indeterminação social da constituição democrática, entendida como luta de justificação acerca da indeterminação normativa nas várias arenas judiciais, administrativas e quase oficiais, pode ser exemplificada a partir de um caso recente. A união entre pessoas do mesmo sexo (união homoafetiva) é um direito reconhecido pela constituição? Em 2011, o STF decidiu que sim. Mas em que sentido essa decisão responde à pergunta? Significa que, a partir da decisão, existe esse direito e que antes não existia? O reconhecimento da união homoafetiva implica o reconhecimento do casamento?

Bem antes da decisão do STF, nos tribunais de várias instâncias, nas casas legislativas estaduais e municipais, em órgãos da administração como o INSS, foi objeto de disputa a extensão de direitos ou efeitos de direitos à comunidade LGBT: direitos previdenciários, partilha de bens, hereditários, relativos à adoção, relativos a concorrerem a cargos públicos etc.2424] Anis e Associação Lésbica Feminista de Brasília Coturno de Vênus. Legislação e Jurisprudência lgbttt. Brasília, 2007, em <www.mp.mg.gov.br/portal/public/interno/arquivo/id/4145, acessado em 20/07/2013. [. Saber se há família, união estável, casamento entre pessoas do mesmo sexo tem como pano de fundo esse contexto de disputa por vários direitos. Assim, leis estaduais e municipais já haviam assegurado equiparações a relações heterossexuais em vários temas. Antes de 2011, o STJ, mesmo afastando a qualificação da união estável, reconheceu em muitas decisões a união de fato, expediente suficiente para dar provimento aos direitos reclamados. Por sua vez, o tse já havia reconhecido a união estável para caracterizar a inelegibilidade em matéria eleitoral. Em 2000, o inss expediu regra disciplinando a concessão de benefício ao companheiro ou companheira homossexual, com abrangência em território nacional. Em 2008, o Tribunal de Justiça do Piauí expediu provimento para os cartórios do Estado, obrigando o registro de contrato de convivência entre "pessoas capazes, que vivam ou pretendam viver uma relação de comunhão afetiva", "independentemente de oposição de sexo entre os contratantes". Logo após a decisão do STF e apesar de não mencionar o casamento homoafetivo, o STJ reconheceu a habilitação para o casamento em uma decisão que beneficiava um casal de lésbicas do Rio Grande do Sul; meses antes um juiz de primeira instância em Jacareí (SP) autorizava o primeiro casamento civil gay, com parecer favorável do Ministério Público. Vários Tribunais de Justiça estaduais, na sequência, ordenaram aos cartórios a habilitação para o casamento e conversão da união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, o CNJ procurou uniformizar nacionalmente o reconhecimento desse direito2525] Marcos Nobre, em um diagnóstico sobre os vinte anos da Constituição Federal, formulou uma tendência hipotética que apareceu retratada nas entrevistas: "se é pacífico que cabe ao STF produzir uma imagem íntegra da CF, o material a que terá de recorrer para tanto foi forjado em grande medida pelos tribunais inferiores. E estes continuarão a disputar a interpretação da cf, seja qual for o encaminhamento dado pelo STF", em Nobre, Marcos. "Indeterminação e estabilidade: os 20 anos da Constituição Federal e as tarefas da pesquisa em direito". Novos Estudos, n. 82, 2008, p. 106. A tese desse artigo, a indeterminação social do direito, ao mesmo tempo institucional e normativa, oferece elementos analíticos para embasar esse diagnóstico. [.

A luta de justificação ocorreu e prossegue em várias arenas, não começou e não terminou no STF2626] Ver, para mais detalhes, Rodriguez, op. cit., p. 28: "A obtenção de uma resposta jurisdicional não faz cessar o debate dogmático. Ele cessa em relação ao caso concreto, mas pode continuar em nome dos casos futuros que sejam semelhantes àquele, sobre os quais aquela decisão poderá vir a ter influência na condição de jurisprudência. Por isso mesmo, a possibilidade de que o debate permaneça ocorrendo na sociedade, mesmo diante de uma resposta jurisdicional já dada, tem importância para a legitimidade e para a eficácia do direito". [. A autonomia dos processos institucionalizados de tomada de decisão, que foi interpretada como mecanismo de estabilização de expectativas, pode ser interpretada como possibilidade para o exercício da luta de justificação que permite o aprendizado cruzado entre os vários órgãos e a invenção de novos direitos. Novos paradigmas ("o casamento homoafetivo é reconhecido no direito brasileiro") são definidos na luta de justificação. É importante lembrar que o debate se beneficia de experiên­cias legais e jurisprudências de outros países, e com a legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero que se adensa em convenções e normas de soft law2727] Cf. Princípios de Yogyakarta, em <http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf>, acessado em 20/07/2013. [. Esse caso é um exemplo de que, em muitos temas, a luta de justificação não é autárquica, mas se define em redes que transcendem culturas jurídicas particulares.

Mas a Constituição não reconheceu a união estável apenas entre homem e mulher2828] CF, art. 226, § 3º. "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". [. Não vou detalhar qual foi a justificação dada pelo STF. Apenas registro que nenhum juiz afastou o princípio de fidelidade à Constituição. Em outras palavras, a justificação é expressamente apresentada como se a Constituição já trouxesse inscrita essa possibilidade de reconhecimento: o debate especializado na atualidade ampliou o repertório dos tipos de justificação aceitos na argumentação jurídica. Essas observações sumárias indicam que o campo da teoria da argumentação está aberto, com possibilidade de defesas dos novos esquemas de justificação e críticas aos abusos2929] "Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia ao afastamento de regras claras e 'completas', para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um todo de respeitabilidade. Isso tudo, parece-me, em detrimento de uma concretização jurídica constitucionalmente consistente e socialmente adequada", em Neves, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. São Paulo: Martins Fontes, 2013, pp. IX- X. [.

Além disso, um diagnóstico realista precisa considerar o fato da fragmentação do direito brasileiro em regimes jurídicos diferentes. Mais que uma especialização temática, a divisão entre os regimes exprime lógicas com relativa autonomia que se manifestam de várias maneiras. Os vínculos entre os regimes e a Constituição são os mais diversos. Comparando entre os regimes, varia o grau de importância de argumentar com base na Constituição: de forma ocasional e indireta no direito antitruste, bancário, mercado de capitais e societário; frequente e necessária no direito tributário, administrativo, urbanístico, direito de família, direito do menor. Para um regime específico, o peso do argumento constitucional depende do nível jurisdicional em que se pratica a justificação: na primeira instância judicial, a aplicação do direito penal e em muitas áreas do direito civil se baseia primariamente nos respectivos códigos; nas instâncias superiores, a justificação se apoia com mais frequência na Constituição. Dependendo dos regimes, a formação de paradigmas foi concluída mais rapidamente. É o caso das várias decisões do STF que consolidaram uma jurisprudência em matéria tributária, o que não impediu a indeterminação para inúmeros outros temas tributários. As reformas do Judiciário introduziram mecanismos processuais visando a uniformização da jurisprudência para alguns regimes, cujos efeitos já se fazem sentir; mas o sucesso dessa política está em aberto. O certo é que a fragmentação em regimes jurídicos é um incentivo ao desenvolvimento de uma cultura jurídica restrita aos profissionais, porta-vozes de orientações estratégicas ou de justificações restritas aos casos.

***

Um diagnóstico da ordem constitucional pós-1988 deve levar a sério a indeterminação social do direito. Essa é uma fórmula para exprimir a articulação entre segurança jurídica e legitimidade do direito, a função estabilizadora do direito e a luta por justificação que desafia os paradigmas aceitos, a multiplicidade de arenas institucionalizadas e a indeterminação normativa.

O sinal emblemático de que a definição do sentido da Constituição se projeta no tempo é que o desânimo com algumas derrotas (convocação de uma Assembleia Constituinte distinta de um Congresso, sobre o afastamento de congressistas biônicos, sobre retrocessos nas votações do texto final, sobre a prática de interpretar a Constituição à luz do direito da ditatura) não embotou o potencial emancipador inscrito na Constituição3030] Nobre, op. cit., pp. 99, 104.. Resta saber em que medida a Constituição será capaz de infiltrar seus princípios normativos fundamentais nos vários regimes jurídicos e nas várias arenas decisórias. Nesse caso, a justificação que ocorre caso a caso se mediria à luz dos modelos de sociedade inscritos na Constituição. Resta saber qual será o significado da nossa Constituição com o aprofundamento da democracia, o alargamento da esfera pública jurídica e a intensificação da luta de justificação por direitos.

Recebido para publicação em 8 de julho de 2013.

SAMUEL BARBOSA é professor do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da usp e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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  • [1] Cf. uma tentativa de cobrir essa diversidade de perspectiva, Avritzer, Leonardo (org.). Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
  • [4] Hart, H. The concept of law. Oxford: Oxford University Press, 1997 [1961], pp. 9-11, 57-59 [ed. bras.: O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette Camara. São Paulo: Martins Fontes,
  • [5] Shapiro, Scott. "What is the internal point of view?". Fordham Law Review, 75, 2006, pp. 1157-
  • [11] Estou considerando apenas as hipóteses em que o cliente opta por litigar nas instâncias oficiais. Mas ele poderia resolver o conflito fora da formalidade do direito, com apoio em regras sociais e mecanismos informais de solução das controvérsias. Cf. Ellickson, Robert C. Order without law: how neighbors settle disputes. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1991.
  • [12] Para uma discussão aprofundada do problema da certeza no direito do ponto de vista da teoria dos sistemas, ver Gonçalves, Guilherme Leite. "Os paradoxos da certeza do direito". Revista Direito GV, 2, 2006, pp. 211-
  • [13] Waldron, Jeremy. "Ronald Dworkin: an appreciation", 2013, p. 2, em <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2276009> , acessado em 20/07/2013.
  • [14] Este é o saldo que retiro do debate norte-americano que apôs os autores do Critical Legal Studies aos autores da teoria analítica do direito. Tushnet, Mark. "Defending the indeterminacy thesis". QLR, 16, 1996, pp. 339-
  • 56. Coleman, Jules e Leiter, Brian. "Determinacy, objectivity, and authority". Pennsylvania Law Review, 142, 1993, pp. 549-
  • 637. Hartog, Hendrik. "Pigs and positivism". Wisconsin Law Review, 1985, pp. 899-
  • [15] Em razão dos conflitos sociais, o debate jurídico especializado é pressionado a inventar novas soluções permanentemente. José Rodrigo Rodriguez captou essa circunstância na expressão emblemática "dogmática é conflito", que serve para problematizar a ideia de um saber jurídico reprodutor de rotinas: "Essa necessidade de constantemente dar conta de conflitos novos, a partir de um material jurídico já existente, coloca o aparelho conceitual dogmático em um estado de 'crise' permanente. Trata-se de uma atividade voltada, ao mesmo tempo, para o passado e para o futuro, sempre em função do princípio da igualdade perante as leis". Rodriguez, José Rodrigo. "Dogmática é conflito: a racionalidade jurídica entre sistema e problema". In: Rodriguez, J. R., Püschel, Flavia Portella e Machado, Marta Rodriguez de Assis. Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012,
  • [16] Lefort, Claude. A invenção democrática: os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987,
  • [17] Sobre a história da constituinte e o processo de redemocratização, ver Barbosa, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados,
  • 2012, e Pilatti, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo Rio de Janeiro: Lumen Juris e Ed. puc-rj,
  • [18] Fioravanti, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Madri: Trotta, 2009.
  • [19] Gilberto Bercovici tem produzido diversos trabalhos que buscam evidenciar o debate político que está pressuposto no debate constitucional. Ver, em especial, Bercovici, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin,
  • [22] Aarnio, Aulis. "Sobre el derecho y el Estado de Bienestar". In: Derecho, racionalidade y comunicación social. México: Fontamara, 1995, pp. 33-
  • [23] Alguns desses temas estão exemplificados no debate constitucional mais recente em Silva, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros,
  • 2005. Mendes, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação dos poderes e deliberação São Paulo: Saraiva,
  • 2011. Just, Gustavo. Interpréter les théories de l'interprétation Paris: L'Harmattan,
  • 2005. Souza Neto, Cláudio Pereira e Sarmento, Daniel (orgs.). A constitucionalização do direito Rio de Janeiro: Lumen Juris,
  • [25] Marcos Nobre, em um diagnóstico sobre os vinte anos da Constituição Federal, formulou uma tendência hipotética que apareceu retratada nas entrevistas: "se é pacífico que cabe ao STF produzir uma imagem íntegra da CF, o material a que terá de recorrer para tanto foi forjado em grande medida pelos tribunais inferiores. E estes continuarão a disputar a interpretação da cf, seja qual for o encaminhamento dado pelo STF", em Nobre, Marcos. "Indeterminação e estabilidade: os 20 anos da Constituição Federal e as tarefas da pesquisa em direito". Novos Estudos, n. 82, 2008, p.
  • [29] "Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia ao afastamento de regras claras e 'completas', para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um todo de respeitabilidade. Isso tudo, parece-me, em detrimento de uma concretização jurídica constitucionalmente consistente e socialmente adequada", em Neves, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. São Paulo: Martins Fontes, 2013, pp. IX-
  • *
    ] Agradeço a leitura de José Rodrigo Rodriguez e Joaquim Toledo Jr. e o envio de bibliografia por Fabiola Fanti, Celso Campilongo, Jeferson Mariano Silva e Leonardo Rosa.
    [
  • 1
    ] Cf. uma tentativa de cobrir essa diversidade de perspectiva, Avritzer, Leonardo (org.).
    Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
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  • 2
    ] Apoiei-me em entrevistas estruturadas com um conjunto de juízes, advogados públicos e privados e auditores fiscais, alguns deles professores que responderam na qualidade de profissionais, e, com alguns deles, entrevistas semiestruturadas mais extensas. São profissionais de áreas diferentes do direito, em momentos diferentes da carreira. Agradeço a todas e todos: Alberto Alonso Muñoz, Caio Farah Rodriguez, Celso Campilongo, Elival da Silva Ramos, Fernando Dias Menezes de Almeida, Francisco Satiro, Gustavo Just, Homero Batista Mateus da Silva, Jarbas Luiz dos Santos, Juliano Maranhão, José Maria Arruda de Andrade, Lucia Barbosa Del Picchia, Manoel de Queiroz Pereira Calças, Marcos Untura Neto, Milene Chavez, Rodrigo Broglia Mendes, Said Takieddine, Thiago Brito, Thiago Tannous.
    [
  • 3
    ] A convergência pode ser explicada de várias maneiras: a existência de uma regra exigindo determinada ação ou hábitos socialmente formados.
    [
  • 4
    ] Hart, H.
    The concept of law. Oxford: Oxford University Press, 1997 [1961], pp. 9-11, 57-59 [ed. bras.: O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette Camara. São Paulo: Martins Fontes, 2009].
    [
  • 5
    ] Shapiro, Scott. "What is the internal point of view?".
    Fordham Law Review, 75, 2006, pp. 1157- 70.
    [
  • 6
    ] Hart, op. cit., p. 11 (grifos do autor). E o poder desse juiz específico, para julgar esse caso, segundo esse processo específico, não se funda em uma regularidade, mas em regras de julgamento.
    [
  • 7
    ] Hart, op. cit., pp. 116-17.
    [
  • 8
    ] Hart, op. cit., p. 127.
    [
  • 9
    ] Para os exemplos que vou dar na sequência, é importante salientar que o uso dos símbolos "é proibido" e "é obrigatório" não é suficiente para caracterizar uma regra. Dizer que alguém deve pagar um imposto sob pena de multa pode significar que há uma expectativa (se não pagar, será multado) que não se adapta à desilusão (não pagamento). Esse é, em linhas gerais, o conceito luhmaniano de regra como expectativa normativa, que apaga a dimensão deontológica acessível do ponto de vista interno.
    [
  • 10
    ] Um observador interessado em investigar determinada instituição se apoia na existência de paradigmas que funcionam como regras do jogo da instituição, permitindo prognosticar um padrão mínimo a partir do qual emergem outras dinâmicas passíveis de explicação.
    [
  • 11
    ] Estou considerando apenas as hipóteses em que o cliente opta por litigar nas instâncias oficiais. Mas ele poderia resolver o conflito fora da formalidade do direito, com apoio em regras sociais e mecanismos informais de solução das controvérsias. Cf. Ellickson, Robert C. Order without law: how neighbors settle disputes. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1991.
    [
  • 12
    ] Para uma discussão aprofundada do problema da certeza no direito do ponto de vista da teoria dos sistemas, ver Gonçalves, Guilherme Leite. "Os paradoxos da certeza do direito".
    Revista Direito GV, 2, 2006, pp. 211- 22.
    [
  • 13
    ] Waldron, Jeremy. "Ronald Dworkin: an appreciation", 2013, p. 2, em <
    [
  • 14
    ] Este é o saldo que retiro do debate norte-americano que apôs os autores do
    Critical Legal Studies aos autores da teoria analítica do direito. Tushnet, Mark. "Defending the indeterminacy thesis".
    QLR, 16, 1996, pp. 339- 56. Coleman, Jules e Leiter, Brian. "Determinacy, objectivity, and authority".
    Pennsylvania Law Review, 142, 1993, pp. 549- 637. Hartog, Hendrik. "Pigs and positivism".
    Wisconsin Law Review, 1985, pp. 899- 936.
    [
  • 15
    ] Em razão dos conflitos sociais, o debate jurídico especializado é pressionado a inventar novas soluções permanentemente. José Rodrigo Rodriguez captou essa circunstância na expressão emblemática "dogmática é conflito", que serve para problematizar a ideia de um saber jurídico reprodutor de rotinas: "Essa necessidade de constantemente dar conta de conflitos novos, a partir de um material jurídico já existente, coloca o aparelho conceitual dogmático em um estado de 'crise' permanente. Trata-se de uma atividade voltada, ao mesmo tempo, para o passado e para o futuro, sempre em função do princípio da igualdade perante as leis". Rodriguez, José Rodrigo. "Dogmática é conflito: a racionalidade jurídica entre sistema e problema". In: Rodriguez, J. R., Püschel, Flavia Portella e Machado, Marta Rodriguez de Assis.
    Dogmática é conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 24.
    [
  • 16
    ] Lefort, Claude.
    A invenção democrática: os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 57.
    [
  • 17
    ] Sobre a história da constituinte e o processo de redemocratização, ver Barbosa, Leonardo Augusto de Andrade.
    História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, 2012, e Pilatti, Adriano.
    A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris e Ed. puc-rj, 2008.
    [
  • 18
    ] Fioravanti, Maurizio.
    Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Madri: Trotta, 2009.
    [
  • 19
    ] Gilberto Bercovici tem produzido diversos trabalhos que buscam evidenciar o debate político que está pressuposto no debate constitucional. Ver, em especial, Bercovici, Gilberto.
    Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. Igualmente vale para Cattoni, Marcelo. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.
    [
  • 20
    ] Fioravanti, op. cit., p. 67.
    [
  • 21
    ] Fioravanti, op. cit., p. 107.
    [
  • 22
    ] Aarnio, Aulis. "Sobre el derecho y el Estado de Bienestar". In:
    Derecho, racionalidade y comunicación social. México: Fontamara, 1995, pp. 33- 46.
    [
  • 23
    ] Alguns desses temas estão exemplificados no debate constitucional mais recente em Silva, Virgílio Afonso da.
    A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. Mendes, Conrado Hübner.
    Direitos fundamentais, separação dos poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. Just, Gustavo.
    Interpréter les théories de l'interprétation. Paris: L'Harmattan, 2005. Souza Neto, Cláudio Pereira e Sarmento, Daniel (orgs.).
    A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
    [
  • 24
    ] Anis e Associação Lésbica Feminista de Brasília Coturno de Vênus. Legislação e Jurisprudência lgbttt. Brasília, 2007, em <
    [
  • 25
    ] Marcos Nobre, em um diagnóstico sobre os vinte anos da Constituição Federal, formulou uma tendência hipotética que apareceu retratada nas entrevistas: "se é pacífico que cabe ao STF produzir uma imagem íntegra da CF, o material a que terá de recorrer para tanto foi forjado em grande medida pelos tribunais inferiores. E estes continuarão a disputar a interpretação da cf, seja qual for o encaminhamento dado pelo STF", em Nobre, Marcos. "Indeterminação e estabilidade: os 20 anos da Constituição Federal e as tarefas da pesquisa em direito".
    Novos Estudos, n. 82, 2008, p. 106. A tese desse artigo, a indeterminação social do direito, ao mesmo tempo institucional e normativa, oferece elementos analíticos para embasar esse diagnóstico.
    [
  • 26
    ] Ver, para mais detalhes, Rodriguez, op. cit., p. 28: "A obtenção de uma resposta jurisdicional não faz cessar o debate dogmático. Ele cessa em relação ao caso concreto, mas pode continuar em nome dos casos futuros que sejam semelhantes àquele, sobre os quais aquela decisão poderá vir a ter influência na condição de jurisprudência. Por isso mesmo, a possibilidade de que o debate permaneça ocorrendo na sociedade, mesmo diante de uma resposta jurisdicional já dada, tem importância para a legitimidade e para a eficácia do direito".
    [
  • 27
    ] Cf. Princípios de Yogyakarta, em <
    [
  • 28
    ] CF, art. 226, § 3º. "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
    [
  • 29
    ] "Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia ao afastamento de regras claras e 'completas', para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um todo de respeitabilidade. Isso tudo, parece-me, em detrimento de uma concretização jurídica constitucionalmente consistente e socialmente adequada", em Neves, Marcelo.
    Entre Hidra e Hércules. São Paulo: Martins Fontes, 2013, pp. IX- X.
    [
  • 30
    ] Nobre, op. cit., pp. 99, 104.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Jul 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Jul 2013
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