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Mariazinha e Verônica: classe e gênero nos palcos da metrópole

Resumos

A cena teatral paulista na década de 1960 foi marcada por uma estreita articulação entre cultura e política e por mudanças na composição social do palco. O artigo examina como as dramaturgas Leilah Assumpção e Consuelo de Castro miraram as experiências desconcertantes das protagonistas femininas e os impasses de toda ordem que as condensavam - materiais, profissionais, sexuais, éticos - e, no lugar de encapsularem as personagens no quadro estreito da chamada condição das mulheres, encenaram, em peças como Fala baixo senão eu grito e À flor da pele, relações de gênero.

Teatro paulista - década de 1960; Relações de gênero; Leilah assumpção; Consuelo de castro


Dramaturgy in São Paulo in the 1960s was marked by a close articulation of culture and politics and by changes in the social composition of the stage. The article examines how playwrights Leilah Assumpção and Consuelo de Castro addressed the bewildering experiences of their female protagonists and the obstacles they faced - material, professional, sexual, ethical - and, instead of isolating their characters in the narrow frame of the so called "women's condition", how they sought to stage, in plays such as Fala baixo senão eu grito and À flor da pele, gender relations.

Theatre in São Paulo,1960s; Gender relations; Leilah assumpção; Consuelo de Castro


ARTIGOS

Mariazinha e Verônica. Classe e gênero nos palcos da metrópole* * Este artigo beneficiou-se das discussões promovidas no "Projeto Temático Fapesp - Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo". Agradeço a leitura aguda de Sergio Miceli, Marcelo Ridenti, Fernando Pinheiro, Maria Filomena Gregori, Luís Felipe Sobral e Luiz Gustavo Freitas Rossi. Agradeço ainda o apoio do cnpq, concedido sob a forma de uma bolsa de produtividade em pesquisa.

Heloisa Pontes

Professora no departamento de Antropologia da UNICAMP e pesquisadora do Pagu - Núcleo de Estudos de Gênero, da mesma universidade

RESUMO

A cena teatral paulista na década de 1960 foi marcada por uma estreita articulação entre cultura e política e por mudanças na composição social do palco. O artigo examina como as dramaturgas Leilah Assumpção e Consuelo de Castro miraram as experiências desconcertantes das protagonistas femininas e os impasses de toda ordem que as condensavam - materiais, profissionais, sexuais, éticos - e, no lugar de encapsularem as personagens no quadro estreito da chamada condição das mulheres, encenaram, em peças como Fala baixo senão eu grito e À flor da pele, relações de gênero.

Palavras-chave: Teatro paulista - década de 1960; Relações de gênero; Leilah assumpção; Consuelo de castro

ABSTRACT

Dramaturgy in São Paulo in the 1960s was marked by a close articulation of culture and politics and by changes in the social composition of the stage. The article examines how playwrights Leilah Assumpção and Consuelo de Castro addressed the bewildering experiences of their female protagonists and the obstacles they faced - material, professional, sexual, ethical - and, instead of isolating their characters in the narrow frame of the so called "women's condition", how they sought to stage, in plays such as Fala baixo senão eu grito and À flor da pele, gender relations.

Keywords: Theatre in São Paulo, 1960s; Gender relations; Leilah assumpção; Consuelo de Castro

Arte social, arte coletiva, arte da representação, inseparável da vida urbana e da sociabilidade multifacetada, o teatro em São Paulo converteu-se em laboratório voluntário e compulsório dos sonhos acalentados pelas camadas médias e pelas elites. Ele deu forma a assuntos que pulsavam, antecipou comportamentos que se tornaram emblemáticos, forneceu régua e compasso para enquadrar as transformações em curso e, quando a censura e a perseguição política aos setores de esquerda tornaram-se mais violentas com a ditadura militar instaurada em 1964, o palco virou um reduto da resistência. Comprovando, assim, a tese de que a dramaturgia é "a forma literária mais adequada à esfera da ação e, portanto, à ética e a política"1 1 Cf. Schorske, Carl. Viena fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 40. . A formulação do historiador Carl Schorske é potencializada na enunciação do escritor Alexandre Dumas, filho: "no teatro somos sempre três". Desdobrada, ela dá a ver a singularidade do espetáculo quando contrastada à prática da leitura. Silencioso, o livro "fala baixo para uma única pessoa". Já o teatro, arremata o escritor, "procede da tribuna e da praça pública"2 2 A estimativa de Alexandre Dumas filho de que as apresentações teatrais no século XIX podiam atingir mais de 1500 pessoas a cada espetáculo diz muito sobre o alcance dessa arte nos palcos das grandes cidades europeias - Paris, Londres, Viena e Berlim. Como mostra o historiador Christophe Charle , as peças de sucesso da época difundiram novas representações sociais muito antes e muito além das camadas que tinham acesso à literatura. Romances com tiragens em torno de 100 mil exemplares só apareceram no final do século XIX. Já as peças representadas mais de cem vezes para grandes plateias eram frequentes desde os anos 1850. Principal entretenimento do século XIX, o teatro esteve desde sempre na mira da censura. E por muito tempo. Na França ela só foi abolida em 1906, em Berlim e Viena perdurou até o final da Primeira Guerra. E na Inglaterra, tão liberal no plano político, ela se estendeu até a década de 1960. Tamanha ingerência do Estado e dos censores é proporcional ao efeito de real produzido pela encenação no palco, bem mais duradouro que o suscitado pela leitura solitária de um livro. Cf. Charle, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Ver também o prefácio que escrevi para esse livro, "Introdução à edição brasileira. Sociedade em cena", pp. 9-18. .

Assim, não é aleatório que a sociedade encenada no palco encontre em certos contextos tamanha ressonância na sociedade real do público3 3 Para o aprofundamento desse pressuposto, enfeixado pela relação entre cidade, teatro, público e sociedade, ver Auerbach, Erich. "La cour e la ville" (In: Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2007); Schorske, Carl. "Grace and the word: Austria's two cultures and their modern fate" (In: Thinking with history: explorations in the passage to modernism. Princeton University Press, 1998); Charle, Christophe. Théâtres en capitales (Paris: Albin Michel, 2008) e A gê nese da sociedade do espetáculo (op. cit.); e Pontes, Heloisa. Intérpretes da metrópole (São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010). . Tal foi o caso do teatro na metrópole paulista. A dramaturgia de Jorge Andrade (1922-1980) e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) sintetizou representações inquietantes de uma sociedade em fogo morto sobre a qual sobrevinha a lufada de energias impulsionadas pelos grupos emergentes. Enquanto Jorge Andrade remexeu as feridas dos abastados de ontem, Guarnieri fabricou uma classe operária povoada pelo ideário dos setores médios em ascensão4 4 Cf. Pontes, Heloisa e Miceli, Sergio. "Memória e utopia na cena teatral". Sociologia & Antropologia, vol. 2, n. 4, 2012, pp. 241-63. . A derrocada da economia cafeeira engolfou proprietários, linhagens, estilos de vida, critérios de prestígio, valores e certezas; a gênese da metrópole espicaçou a imaginação social, criou linguagens, produziu novos enfrentamentos e utopias. A cena teatral paulista, antenada com as transformações em curso, abrigou o adeus à civilização do café e exaltou a sociedade urbano-industrial. Nos palcos da cidade, ganharam tratamento renovado as vicissitudes dos setores médios; a ascensão dos imigrantes, cuja presença em sucessivas levas migratórias conformou a paisagem social e urbana da metrópole em expansão; a experiência da classe operária; as transformações nas relações de gênero; o impacto da vida urbana nos costumes e nas relações familiares.

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Improvável, quase inconcebível, seria um encontro entre Mariazinha Mendonça de Morais e Verônica. Modesta e bem-comportada, Mariazinha esforçava-se para estar sempre impecável em seu uniforme do dia a dia, um tailleur discreto. Cumpria com zelo as obrigações: a pontualidade no escritório, o pagamento das prestações do Mappin e da quitinete, adquirida com as economias feitas ao longo de cinco anos de trabalho, transcorrido em ritmo estafante, das 7 às 19 horas. O sonho da casa própria, materializado no apartamento diminuto, valeu a pena porque, segundo ela, além da segurança, iria garantir-lhe o futuro. Mas antes da mudança, na pensão para moças em que residia, Mariazinha contornava a solidão com o auxílio da televisão ligada (Hebe Camargo era um de seus programas preferidos) e dos devaneios. Se pudesse teria feito filosofia. Matéria que lhe parecia a mais adequada para dar conta de sua personalidade mística. O raciocínio complexo, do qual se sentia portadora, era expresso quase sempre em voz alta, para si mesma e para os objetos que compunham o mobiliário de seu quarto: o relógio de parede que herdara do pai, o criado-mudo, a cama e o armário. Todos eles decorados com balões e laçarotes do mesmo tipo que usava para enfeitar os cachinhos dos cabelos na hora de dormir. Quando pequena, ela cabia dentro dos móveis. Adulta, os interrogava para saber se foram eles que cresceram ou ela que diminuíra. A dúvida sobre o tamanho real das coisas - dela, dos móveis, do mundo - embaralhava-se com a perplexidade espicaçada pelo escapismo. Nas palavras de Mariazinha, "eu pensava que as pessoas passavam o dia inteiro pensando em mim" - daí o apuro no traje e o comportamento comedido. Mas elas "não sabiam que eu existia".

Verônica, ao contrário, não tinha dúvida sobre o impacto de sua presença na vida dos que lhe eram próximos: o pai, o amante, a mulher e a filha dele, o colega e amigo de faculdade. Jovem, rica, bem-nascida, ela passou quatro anos de sua adolescência perambulando sozinha pela Europa, mas sustentada pela mesada da família. A saída precoce de casa, motivada por uma briga violenta com o pai, permitiu-lhe uma profusão de experiências num registro pouco usual, na época, para as moças de sua classe. De volta ao Brasil, ingressou na Escola de Arte Dramática. Queria ser atriz. Gostava de escrever, de dançar, de sapatinho italiano, de roupas francesas, de passar os dias na piscina, de tomar uísque escocês, de se insurgir contra o mundo burguês do qual fazia parte. Gostava especialmente de namorar o professor de dramaturgia, com quem manteve por três anos uma intensa e conturbada relação amorosa. Vinte e dois anos mais velho que ela, ex-militante do Partido Comunista, o professor e amante sonhava com o teatro, mas tirava seu sustento, da mulher e da filha, das novelas medíocres, espichadas a contragosto por pressão da televisão.

Enquanto Mariazinha se enredava nos devaneios com a ajuda dos objetos de seu quarto, Verônica aprontava todas com o suporte da irreverência, da ironia temperada com melancolia, da recusa das convenções, da indisciplina, da inteligência ferina, da bebida. Família para ela era uma questão de crença e, no caso da sua, um lixo. Na peça que escreveu com o amigo da faculdade - e que não chegou a ser montada - a intenção de ambos era incendiar a televisão, a sagrada família, os preconceitos de raça, o conceito de certo e errado. Não queriam governo de espécie alguma, nem proletariado, nem burguês, nem católico. "Não vai sobrar nada" - avisou-nos Verônica. A arma? O humor cáustico e desativado. Ofélia fingia-se de louca na versão "totalmente porra-louca de Hamlet", que estavam escrevendo. Shakespeare foi só o começo. Pretendiam liquidar também com Sófocles. "No que o Édipo descobre que comeu a própria mãe, não fica desesperado não, fica felicíssimo. Começa a ler Freud para justificar o incesto. Pede a mãe em casamento e se casam na Catedral da Sé, cantando 'mamãe, mamãe, tu és a razão dos meus dias'" - esclareceu Verônica.

O gozo era uma experiência desconhecida para Mariazinha. Apesar de "tentar", ela "não conseguia". Virgem, tida já como "solteirona", ela foi surpreendida uma noite com a entrada de um homem armado no quarto do pensionato. Se real ou fictícia, não sabemos ao certo, mas não restam dúvidas de que o acontecimento insólito precipitou um passeio imaginário pela cidade, feito com o recurso da alucinação, da vivência por procuração, do diálogo crispado, do desmonte da contenção e da convenção. Temerosa e recatada de início, furiosa e convulsionada ao final, Mariazinha gritou, falou palavrão e recuou quando o intruso disse que só a levaria ao apartamento dele se fosse para "trepar" e não para ouvir disco ou aguentar a "ondinha" dela. Impiedoso, ele teria dito: "E você acha que o bonitão aqui vai perder tempo com um bagulho como você?". Descontrolada, ela insistiu que era "inteligentíssima, independente, intelectual bonita" e, aos gritos, suplicou-lhe: "Minta! Minta! Minta! Que é um solitário que talvez se case comigo. Eu sou boa de cama! Mente que quer casar comigo".

Os desejos de Verônica, ao contrário, passavam longe do casamento e da família. Seu tormento tinha pouco a ver com a sexualidade. Nesse domínio parecia realizada. O que a dilacera eram os ciúmes que sentia do professor e amante, a tensão que modulava a relação de ambos, a admiração misturada ao amor, ao rancor e ao desprezo que nutria por ele, a recusa obstinada do estilo e dos desígnios da feminilidade convencional. A informação de que abortara após uma briga violenta com o pai, seguida pela fúria que a levou a quebrar tudo que encontrou pela frente e pela tentativa fracassada de incendiar a casa, ela transmitiu ao amante, no apartamento que usavam para se encontrar, sem muita inflexão na voz, como se relatasse um acontecimento visto de fora. Valeu-se da ironia para caracterizar o "dramalhão perfeito" que vivera, enquanto ele, desesperado com seu sumiço por mais de uma semana, procurara por ela, sem sucesso, em toda parte: na faculdade, na polícia, nos hospitais. Atônito com o relato e com a expressão estranha de alheamento que tomara conta dela, ele se inteirou horrorizado sobre o que sucedera em sua ausência: a bofetada que ela recebeu do pai, a tentativa malograda de esquivar-se dela; os vinte e quatro degraus que ela rolara escada abaixo, o aborto involuntário, mas desejado, que deu fim ao filho que ela não queria ter e que ele só então veio a saber que existia.

A súplica de Mariazinha para que o homem que invadira o pensionato se casasse com ela foi formulada, como vimos, no decorrer do passeio imaginário que ambos fizeram pelas ruas da cidade enquanto corriam ao redor do quarto. O ritmo frenético dessa deambulação acompanhou a excitação progressiva e o desvario de ambos. À medida que Mariazinha soltou a voz e explicitou os desejos recalcados, eles principiaram a quebrar com fúria todos os objetos do quarto. E só pararam quando a angústia entrelaçada à alucinação instalou-se como sentimento dominante. O homem anunciou, então, que ia embora e que a levaria com ele. Tremendo, desesperada e balbuciante ela disse que não, enquanto os laçarotes que emolduravam os móveis e seus cabelos se desfaziam ao som do estouro de balões, do ruído crescente do rádio e da televisão. Seguiu-se um silêncio denso, quebrado pela voz de uma mulher, vinda de fora, anunciando o adiantado da hora (7h) que levaria Mariazinha a perder o ponto. Ela despertou aos berros. Pediu socorro, chamou pela polícia e gritou que tinha um ladrão dentro do quarto. Foi a última notícia que se teve dela.

O último ato de Verônica foi também um pedido mudo de socorro, precedido pela certeza de sua inutilidade. Em meio a mais uma discussão crispada com o professor e amante, ela decretava a falência de tudo: da relação de ambos, da família, do progresso, da civilização - condensada num conjunto heteróclito de objetos, como o liquidificador Walita, o Modess, a nave Apolo 11, a arma química Napalm, o apresentador de televisão Chacrinha - enquanto atirava os livros, a máquina de escrever e os papéis ao chão. Em seguida, berrou e caiu gemendo como um animal. Assustadíssimo, o professor e amante abraçou-a e ela se deixou beijar; de início como uma menina e depois como uma mulher adulta e decidida. Animada, ela lhe propôs que fizesse naquela noite tudo o que ela pedisse, começando pelo ensaio do finalzinho da peça que ela terminara de escrever com o amigo da faculdade. Ele faria uma das personagens e ela a outra, mas a direção da cena desta vez seria dela. Séria e convicta, ela o instruiu para ficar de costas, quieto, sem emitir nenhum juízo crítico como era de seu feitio, por personalidade e dever de ofício (professor de dramaturgia e escritor de novela). A deixa para ele se virar e entrar em cena - no papel de Hamlet, no momento em que o príncipe dinamarquês monologa sobre o ser e o não ser - seria um gemido de dor, que ela, no papel de Ofélia, emitiria como se estivesse sendo esfaqueada.

Obediente, ele seguia a orientação. Enquanto ela, com os olhos vidrados como se estivesse mirando fixamente o público, mencionava a inutilidade de sua violência e a vontade de partilhar da única tarefa que lhe parecia ter ainda algum sentido: incendiar o lixo que tomara conta de tudo. Mas nem isso estava mais ao seu alcance. "Há um espião em mim que não consente que eu viva". O duplo suicídio, da personagem e da atriz, diante da plateia imaginária e de costas para a personagem interpretada pelo amante, foi a última notícia que tivemos de Verônica.

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A cena teatral paulista, na década de 1960, foi marcada por uma estreita articulação entre cultura e política5 5 Para uma visão abrangente dessa articulação e suas implicações, ver de Marcelo Ridenti: Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000; "Caleidoscópio da cultura brasileira: 1964-2000". In: Miceli, Sergio e Pontes, Heloisa (orgs.). Cultura e sociedade (Brasil e Argentina). São Paulo: Edusp (no prelo). . A criação de novos grupos, a consolidação do Oficina e do Teatro de Arena, a expansão do público jovem, universitário e de esquerda, a sedimentação do "conceito de engajamento artístico de esquerda"6 6 Cf. Napolitano, Marcos. "A arte engajada e seus públicos, 1955-1968". Estudos Históricos, n o 28, 2001. Para uma visão abrangente das transformações culturais em curso no período, ver Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988. , a estreia de novos dramaturgos, tudo isso, somado, alterou a composição social do palco e pôs de escanteio o teatro de repertório que, por quase duas décadas, imperara na metrópole. Temas como o adultério, a angústia e a liberdade, discutidos até então em registro metafísico e de maneira elevada, numa linguagem próxima "ao português de escola"7 7 Cf. Schwarz, Roberto. "Cultura e política, 1964-68". In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 81. , pareciam assuntos de um passado longínquo. A combinação entre "a cena 'rebaixada' e um público ativista"8 8 Ibidem. , somada à introdução de novas temáticas e de novas maneiras de dizê-las, teve um efeito extraordinário no palco e um acolhimento vibrante do público engajado. O teatro ecoava e a um só tempo vocalizava a "relativa hegemonia cultural da esquerda". Ele era um dos termômetros a medir a alta temperatura cultural do país, que "estava irreconhecivelmente inteligente"9 9 Ibidem, p. 69. , apesar da ditadura militar instaurada em 1964.

Quatro anos mais tarde - após a decretação do Ato Institucional n. 5 (AI5) em dezembro de 1968, pela junta militar que comandava o país - as forças repressivas e conservadoras, impulsionadas pela censura, pela ampliação das perseguições políticas e pela suspensão da liberdade de imprensa, não mediram esforços para desmontar a hegemonia cultural da esquerda e liquidar o sonho da revolução acalentado por uma parcela expressiva da juventude engajada. O teatro acompanhou de perto a ferocidade desse desmonte e sempre que possível contornou a censura com o recurso da burla e da linguagem cifrada. Os censores não davam trégua e os dramaturgos faziam das tripas coração para manter um controle mínimo sobre o que escreviam10 10 Uma das táticas usadas pelos autores para contornar os censores era colocar "muitos palavrões nas peças, para a hora da 'barganha'. E assim trocávamos, muitas vezes, sete palavrões da pesada e nove médios, que cortávamos, pela liberação de uma frase que considerávamos de real importância". Cf. Assumpção, Leilah. Na palma da minha mão. São Paulo: Globo, 1998, p. 114. . E ainda que a censura tenha sido inclemente, impedindo a montagem das peças ou retirando outras de cena, ela deixou passar assuntos, temas e maneiras inusitadas de abordá-los. Ao que tudo indica por incapacidade e cegueira para perceber a novidade em curso, como as trazidas por Mariazinha e Verônica e pelo universo social que confirmou a existência de ambas.

Elas de fato nunca se encontraram. Mas foram vistas juntas, quase lado a lado, nos palcos da metrópole pelo público jovem que continuou a buscar refrega na cultura. Jovens, inquietas e destemidas eram também as criadoras de Mariazinha e Verônica, as dramaturgas Leilah Assumpção (1943) e Consuelo de Castro (1946). Leilah Assumpção tinha 26 anos quando sua peça Fala baixo senão eu grito foi montada e Mariazinha se fez conhecida pelo público11 11 Cf. Assumpção, Leilah. "Fala baixo senão eu grito". In: Onze peças de Leilah Assumpção. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010, pp. 95-158. . Consuelo de Castro, a autora de À flor da pele, tinha 23 anos quando Verônica, a protagonista da peça, encarou uma plateia real12 12 Cf. Castro, Consuelo de. "À flor da pele". In: Urgência e ruptura. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Estado da Cultura, 1989, pp. 119-83. . A notoriedade de Mariazinha e Verônica deve-se à destreza de suas autoras na carpintaria da dramaturgia. E também às intérpretes que lhes deram vida: Marília Pera e Miriam Mehler.

Peça de um único ato, Fala baixo senão eu grito centra-se em duas personagens (Mariazinha e o Homem, sem nome definido), encerradas em um mesmo lugar (um quarto de pensão). A ação transcorre em uma única noite. A habilidade da autora reside em multiplicar o espaço dramático, como mostra Elza Cunha de Vincenzo,

sem que se altere o espaço físico do palco, e o tempo se torna verdadeira duração, através do puro discurso verbal, dosado com perícia entre as rubricas e o diálogo. As rubricas compõem a narrativa teatral, de forma a caracterizar a personagem central mesmo antes de sua primeira fala. Por Mariazinha, falam os objetos de seu quarto, os balões coloridos, os laçarotes, a roupa, o cabelo13 13 Cf. Vincenzo, Elza Cunha. Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1992, p. 92. .

A peça estreou no Teatro da Aliança Francesa da capital paulista em 1969, sob a direção de Clóvis Bueno, com Marília Pera no papel de Mariazinha e Paulo Villaça - o namorado da atriz na época - interpretando o homem que invade seu quarto de pensão com uma arma na mão e que a conduz pelo passeio imaginário na cidade. Mariazinha marcou a carreira de Marília Pera, associada até então à atriz de musicais14 14 Marília Pera estreou no palco aos quatro anos, em 1951, na companhia de Henriette Morineau, Os Artistas Unidos, onde trabalhavam os pais, o ator Manoel Pera e a atriz Dinorah Marzullo. Carioca, iniciou a carreira no período em que o teatro brasileiro procurava "acertar os ponteiros" com as rotinas do teatro moderno, tal como estabelecidas na cena internacional. E, embora ela não tenha participado diretamente desse movimento de renovação, foi beneficiária dos seus efeitos, sob o ponto de vista das conquistas feitas no plano da dramaturgia e da concepção do espetáculo teatral. . Graças ao mecanismo social e cultural de burla teatral - que permite aos intérpretes, com o acordo tácito do público, contornar constrangimentos diversos (físicos, sociais e de gênero)15 15 Para um desenvolvimento dessa ideia, ver Pontes, Heloisa. "A burla do gênero: Cacilda Becker, a Mary Stuart de Pirassununga". Tempo Social, vol. 16, n o 1, 2004, pp. 231-62. - Marília Pera, então com 26 anos, tornou-se crível no papel de uma solteirona. A maquiagem que vincou os traços de seu rosto e a postura encurvada do corpo - em tudo contrário à leveza que Marília adquirira como bailarina amadora e atriz de musical - ajudaram a compor a personagem. Mas o mais importante veio da inteligência e da capacidade de intepretação da atriz, que misturou dimensões trágicas com registros da comédia desataviada, para dar vida à personagem patética e à "sutil ambiguidade [do] realismo da peça". Qual seja, de que "a invasão do estranho - grande desempenho de Paulo Villaça - podia ser apenas fantasia de mulher carente", premida entre o desejo de "ruptura, liberdade ou escapismo"16 16 Cf. Del Rio, Jefferson. "Leilah e o tempo". In: Pace, Eliana. Leilah Assumpção: a consciência da mulher. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007, Coleção Aplauso, p. 118. .

O entusiasmo de Marília Pera pelo papel foi imediato. Assim que ouviu a primeira leitura da peça ficou claro que ela "queria dizer aquelas palavras, queria [se] exibir fazendo aquela mulher. Ela falava coisas que [Marília] gostaria de falar"17 17 Trechos do depoimento de Marília Pera transcritos no livro Vissi d'arte (de Marília Pera e Flavio de Souza), São Paulo: Escrituras, 1999, p. 75. . Segundo atriz,

Mariazinha era uma pessoa muito deprimida, louca para se soltar e aí chega aquele homem, um cínico, sem nenhum senso moral e acaba com o mundo todo arrumadinho dela [...] Ela tinha a ver comigo por ter, dentro dela, uma menina reprimida que ainda existe em mim até hoje, não sei se é um defeito ou uma qualidade, mas é uma característica minha. Ela tinha um jeito "ostra", tímida, tímida, tímida, meiga, frágil e isso é parecido com a menina que eu tenho dentro de mim. Acho que foi essa a identificação instantânea que aconteceu entre nós duas18 18 Ibidem. .

Distanciamento e identificação, tais foram os recursos que Marília Pera utilizou para compor a personagem e transitar da comédia para as cenas dramáticas. O impacto de sua interpretação levava a plateia a chorar junto com ela a cada apresentação. Segundo a atriz, foi a primeira vez que isso aconteceu em sua carreira. "Quando o espetáculo terminava, eu estava com o nariz vermelho de tanto chorar, e isso foi um passo novo para mim, apesar de [ser] um espetáculo muito engraçado, com momentos de fazer a plateia rolar de rir"19 19 Ibidem, p. 78. .

A autora da peça, Leilah Assumpção, estranhou quando viu o texto montado porque "acreditava ter escrito um drama, com a Mariazinha muito sofrida", e ao vê-la corporificada por Marília Pera constatou que ela tinha virado uma tragicomédia. Intrigada, perguntou ao diretor, e seu namorado na época, Clóvis Bueno se ele achava que ela tinha se tornado uma "comediógrafa". À dúvida seguiu-se o aprendizado de que "as grandes atrizes se apropriam dos personagens", como fez Marília Pera ao dosar na medida certa o seu lado tragicômico e fazer da peça uma comédia pungente, que levava o espectador a rir "com um sorriso trêmulo que dá vontade de chorar"20 20 Todas as citações desse parágrafo são de Leilah Assumpção e encontram-se em Pace, Eliana. Leilah Assumpção: a consciência da mulher, op. cit., p. 50. .

O sucesso da peça deu uma guinada na vida da atriz e da autora. Marília Pera ganhou o prêmio mais cobiçado na época pelos intérpretes (o Molière), a projeção nacional e a "confiança em si mesma como protagonista e produtora de seus espetáculos"21 21 Cf. Pera e Souza, op. cit., p. 71. . Leilah Assumpção foi premiada pela Associação Paulista de Críticos Teatrais. E mudou de vida. Largou o emprego - modelo de alta-costura, contratada pelo costureiro de maior projeção nacional na época, Dener - e deixou o pensionato em que vivia para morar com Clóvis Bueno. Pouco tempo depois, ambos viajaram para a Europa, onde viveram alguns meses no clima da contracultura e no estilo hippie, com o dinheiro que ganharam com o espetáculo22 22 A viagem à Europa naquele período foi uma experiência "iniciática" para muitos artistas importantes da época. Refúgio contra a perseguição acionada pela ditadura, ela foi também um espaço de aprendizado da contracultura e da liberdade propiciada pelo deslocamento. Cacilda Becker (1921-1969), a grande atriz do teatro paulista, teve essa experiência um ano antes de sua morte precoce, na companhia do ator e então marido Walmor Chagas no momento em que ambos tentaram, sem sucesso, uma nova reconciliação. A viagem, iniciada pelos Estados Unidos, se estendeu pela Europa, durou três meses e teve, segundo Décio de Almeida Prado, um efeito notável sobre Cacilda. Lá, ela "fumou maconha, viu espetáculos recentes de vanguarda e voltou modificada. Perdera o medo da pobreza". Cf. Prado, Décio de Almeida. Peças, pessoas, personagens. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 150. . Mas antes disso ela recebeu em grande estilo, no Teatro Municipal, a distinção que a consagrou como dramaturga23 23 O sucesso de Fala baixo senão eu grito pode ser medido pelos prêmios que Leilah Asumpção recebeu, pela longevidade que a peça conheceu no Brasil e pelas montagens que foram feitas no exterior. Ela estreou, como vimos, em 1969; no ano seguinte foi montada no Rio; em 1971, em Curitiba; em 1972, em Bruxelas, na Bélgica (com essa montagem Leilah recebeu uma Menção Especial da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais pelo recorde de permanência de uma peça brasileira no exterior); em 1973, ela foi apresentada em Belo Horizonte; em 1974, tornou a ser montada em São Paulo; em 1975, foi encenada em Paris, em 1976, estreou em Salvador, em 1977, foi montada em Buenos Aires e, mais tarde, em Portugal e Cuba. As informações sobre a trajetória da peça encontram-se em Pace, op. cit., p. 53. , o Molière de Melhor Autora de 1969. Na lembrança do crítico de teatro Jefferson Del Rios, quando o prêmio foi anunciado,

[Leilah] saiu dos bastidores em linha reta até o meio do palco, em seguida avançou em direção à plateia. Usava minissaia e botas pretas até a metade das pernas longas. Foi espetacular. Era a bela manequim de Dener de Abreu, a moça de Botucatu, formada em Pedagogia, atleta de saltos ornamentais, que se consagrava com a peça inicial, Fala baixo senão eu grito24 24 Cf. Del Rio, op. cit., p. 116. .

O gosto pela escrita ela herdou da mãe, que morreu jovem, quando Leilah tinha treze anos. Ambas nasceram "num casarão sombrio cheio de tias professoras, em Botucatu". A primeira escola da cidade foi fundada pela bisavó. O pai nasceu na fazenda do avô em Tietê, conheceu o descenso social e tornou-se professor. Após a morte da mãe, Leilah foi viver com a irmã mais velha, que já estava casada. Saiu de lá para fazer o curso de pedagogia em Campinas, antes de se transferir para a capital e dar continuidade aos estudos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo. Formou-se em 1964 em pedagogia. Nesse período morava num pensionato na avenida Angélica que não era administrado por freiras como os outros dois em que residira antes. Esse fato, somado à liberdade que sentia por não estar controlada diretamente pela autoridade familiar, fez do pensionato um "lugar ideal para se viver"25 25 Informação obtida em Pace, op. cit. .

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A inserção de Leilah Assumpção no universo teatral paulista principiou pela atuação como atriz figurante em Vereda da salvação, de Jorge Andrade. A peça estreou no Teatro Brasileiro de Comédia (tbc) em junho de 1964, três meses depois do golpe militar. Baseada em acontecimentos reais ocorridos no nordeste de Minas Gerais (em Malacacheta), ela aborda com o recurso da intriga "simples e densa" o messianismo e o fanatismo religioso que tomou conta do lugar. A história "flui do crepúsculo de um dia ao amanhecer do dia seguinte, num pequeno grupo de agregados, adeptos de uma seita em que traços adventistas se misturam a resquícios de catolicismo"26 26 Cf. Candido, Antonio. "Vereda da salvação". In: Andrade, Jorge. Marta, a árvore, o relógio. 2-ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 631. . A caracterização é de Antonio Candido e uma parte do material fotográfico que ele coligiu para sua tese de doutorado, Os parceiros do rio Bonito, foi reproduzida no programa da peça. Nas palavras de Candido,

fechados pelo latifúndio, esmagados pela miséria, privados dos elementos mínimos de realização pessoal, desamparados de qualquer instrumento que lhes permita afirmar-se no universo da propriedade e da espoliação - só resta aos agregados a saída para o transcendente. [...] Nessa atmosfera de transe coletivo - que Jorge Andrade cria com os mais belos recursos expressivos, suscitando um mundo ansioso de libertação - se anuncia a intervenção da polícia que vem restabelecer a ordem exterior, dos patrões e das leis27 27 Ibidem, p. 632. .

Familiarizado com a dramaturgia de Jorge Andrade e sintonizado com os debates suscitados pela peça, Antunes Filho dirigiu o espetáculo com um elenco composto de vinte e três intérpretes. Depois do sucesso estrondoso de Os ossos do barão, que ficou quase um ano em cartaz no ano anterior e ajudou a levantar as finanças do Teatro Brasileiro de Comédia, não só o elenco como todos os diretamente envolvidos com a companhia paulista, especialmente o diretor, esperavam, se não a mesma adesão por parte do público, ao menos uma boa recepção para a nova peça de Jorge Andrade. Afinal, a temática social engajada - o mundo agrário visto pela ótica dos dominados - estava afinada com o clima de contestação política da época. Mas era ousada demais para o público de extração burguesa que frequentava o tbc. Relações sem subterfúgios entre as classes, apreendidas na chave da desigualdade, do mando e do autoritarismo, tal como expostos por Jorge Andrade em Vereda da salvação, excediam o esperado por esse público. A não ser pelo apoio da crítica, a montagem foi um fracasso de tal ordem que liquidou de vez os recursos da companhia, obrigando-a ao fechamento. Vereda da salvação foi a última peça encenada pelo tbc28 28 Como que antevendo o fim, o programa traz um histórico sintético da companhia e informa que ela apresentara 144 peças, entre 1948 (ano de sua inauguração) até 30 de junho de 1964. Com Vereda da salvação, cuja estreia se deu em 1-º de julho, completaria 145, ao longo de seus 16 anos de existência com elenco estável, dirigido de início por diretores estrangeiros de nacionalidades diversas e, mais tarde, por brasileiros de reputação e prestígio no meio, como Flávio Rangel e Antunes Filho. Das 145 peças encenadas, a maioria (111) era de dramaturgos estrangeiros, ainda que no programa de Vereda da salvação haja um destaque maior para as peças de autores brasileiros. Estas, em termos absolutos (34 no total), ficavam em segundo lugar, logo após as 35 peças de autores ingleses levadas ao palco. Ao todo, foram 8.990 representações - sendo 6.551 em São Paulo, 2.363 no Rio de Janeiro e 76 no interior - e quase dois milhões de espectadores (1.991.128, distribuídos da seguinte maneira: 1.332.767 em São Paulo, 538.885 no Rio de Janeiro e 39.476 no interior). Esses dados encontram-se transcritos no programa de Vereda da salvação (1964). Remeto o leitor interessado no aprofundamento da história do TBC ao trabalho de Alberto Guzik, TBC: crônica de um sonho (São Paulo: Perspectiva, 1986) e ao meu livro, Intérpretes da metrópole (op. cit.). e também a primeira e última experiência de Leilah Assumpção como atriz.

O interesse de Leilah pelo palco, longe de arrefecer, ampliou-se. A carpintaria da dramaturgia ela aprendeu nos cursos, especialmente com Eugênio Kusnet29 29 Professor, ator e diretor russo radicado no Brasil, com ampla atuação no teatro paulista, Eugênio Kusnet (1189-1975) atuou na Companhia Maria Dela Costa, no TBC e no Teatro de Arena, antes de integrar-se, em 1962, ao Teatro Oficina. , no Teatro Oficina. A ele e ao grupo, ela deve "a maior parte da [sua] formação teatral"30 30 Cf. Assumpção, Na palma da minha mão, op. cit., p. 56. . Ao clima da época e à Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, ela atribui a descoberta de Marx, do comunismo, da política, filtrada na primeira peça que escreveu, em 1964, quando ainda morava no pensionato que serviu de ambiência para Vejo um vulto na janela. Inspirada na vivência e na sociabilidade das moças que residiam no pensionato, alheias, engajadas ou divididas pelos embates políticos, atônitas ou confiantes com a substituição acelerada dos valores no plano das relações amorosas e familiares, a peça, de nítido cunho autobiográfico, não chegou a ser montada por determinação da censura.

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Prova de fogo, a primeira peça de Consuelo de Castro, conheceu destino similar: foi proibida pela censura em 1968, em meio às primeiras leituras do texto promovidas pelo Teatro Oficina. Os personagens principais são jovens, universitários, divididos pelas clivagens políticas que atravessavam o movimento estudantil, às voltas com a ocupação da Faculdade de Filosofia da usp, sediada na rua Maria Antônia, no tenso período que antecede a invasão do prédio por parte da polícia e a edição do Ato Institucional n. 5. No decorrer da ocupação, vêm à tona conflitos de ordem individual, relações amorosas, visões de mundo contrastantes, experiências familiares distintas, um torvelinho de emoções e sentimentos enredados nas disputas e nas alianças que os estudantes travam entre si dentro da faculdade ocupada. "O entrelaçamento desses dois planos, o afetivo e o político, o individual e o coletivo, o burguês e o revolucionário, dá à peça um caráter de tragicomédia que ela desenvolve consciente e exemplarmente, indo, com igual firmeza, da tensão dramática à distensão farsesca"31 31 Cf. Prado, Décio de Almeida. "As provas de fogo". In: Castro, Urgência e ruptura, op. cit., p. 518. . A avaliação de Décio de Almeida Prado é corroborada pelo juízo crítico de Sábato Magaldi. Além das virtudes requeridas pela dramaturgia - diálogos incisivos tensionados pela corda esticada do conflito -, Sábato Magaldi vê em Prova de fogo "um dos mais verdadeiros e importantes documentos do país", essencial para quem desejar "entender, no futuro, o que se passou no Brasil, de 1964 a 1968"32 32 Cf. Magaldi, Sábato. "Um documento exemplar". In: Castro, Urgência e ruptura, op. cit., p. 517. . Tamanho acerto dramatúrgico e voltagem histórica devem-se à desenvoltura com que Consuelo de Castro relaciona "o microcosmo cênico com o macrocosmo social"33 33 Ibidem, p. 516. .

Uma parte do acerto advém da maneira com que ela trata as palavras, imprimindo "ao virtuosismo do seu domínio verbal, um aspecto de jogo, de brincadeira intensamente lúdica, que combina muito bem com a natureza específica do teatro"34 34 Cf. Michalski, Yan. "Consuelo de Castro: sempre urgente. Sem rupturas". In: Castro, Urgência e ruptura, op. cit., p. 23. , esclarece o crítico Yan Michalski. Ciente de que "cada frase tem um tempo" e que o tempo é a "pedra de toque no teatro" - se bem usado ele fisga o espectador e o enlaça na peça, caso contrário, o faz "roncar na plateia"35 35 As citações dessa frase são de Consuelo de Castro e foram retiradas da transcrição do depoimento audiovisual que ela concedeu, em 2006, aos sessenta anos, para Daisy Perelmutter e Luis Francisco de Carvalho, no âmbito do projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade". -, Consuelo tem ainda outro trunfo na mão: a ampla intimidade com o universo social, político e existencial retratado em suas peças.

Tensionada desde muito cedo pela infância transcorrida entre Araguari, cidadezinha do interior de Minas, e a vibrante metrópole paulista, Consuelo principiou a aventura pelas letras na adolescência, amparada pelo acesso à Biblioteca Municipal e pelo estímulo do modernista Guilherme de Almeida, com quem discutia literatura e de quem recebeu a primeira avaliação crítica pelo livro de poesias que escreveu aos dezesseis anos, A última greve, publicado pela Martins Editora36 36 O primeiro contato de Consuelo de Castro com Guilherme de Almeida foi intermediado pela mãe de uma colega de escola, amiga da mãe do escritor, que se prontificou a levar os poemas de Consuelo para o filho ler. "Ele gostou e me ligou. Imagine que chique", nas palavras de Consuelo. Combinaram, então, um encontro na Biblioteca Municipal. Aconselhada por ele, ela não parou mais de frequentar a biblioteca, não só para ler, mas para ter um lugar tranquilo para escrever. "Na verdade - prossegue Consuelo - ele sabia que a minha vida era uma bagunça e que eu não ia conseguir me concentrar em nenhum outro lugar. E foi uma boa dica." Trecho do depoimento de Consuelo de Castro para o projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade", op. cit., pp. 5-6. . Dois anos depois ela ingressou na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Escolheu o curso de Ciências Sociais porque queria mudar o mundo. Consuelo "faz parte de uma geração que despertou para a vida adulta sob o impacto do golpe militar de 1964 e teve a fase decisiva da sua formação intelectual, existencial, cívica e emocional fundamentalmente afetada e condicionada pelas consequências desse golpe"37 37 Cf. Michalski, op. cit., p. 15. , ocorrido no mesmo dia da sua primeira aula na faculdade.

Inspirada pelas duas professoras que mais a marcaram, Ruth Cardoso e Giocanda Mussolini, Consuelo quis ser antropóloga e acadêmica como elas. Mas foi desaconselhada por Décio de Almeida Prado, que não a considerava talhada para o ofício. O sentimento de urgência e de inquietação que ela sentia, no entender do crítico, seria mais bem canalizado em outra direção. Ela escolheu o teatro. O interesse pela dramaturgia, alimentado pelas leituras, pela vivência na cidade e pela militância no Partido Comunista, foi sedimentado no decorrer da graduação, no prédio da rua Maria Antônia, epicentro do movimento estudantil, em meio à convivência com Plínio Marcos. No último ano do curso, ela largou a faculdade e se profissionalizou como publicitária. Mas não a abandonou como assunto e eixo de sua formação, como atesta a primeira peça, Prova de fogo. Proibida pela censura, ela trouxe, porém, um notável rendimento simbólico para a autora, que aos vinte e dois anos virou uma "celebridade" no meio teatral. Nas palavras de Consuelo,

Todos os diretores queriam fazer [a peça]. Ela estava sendo montada pelo Oficina. Estava em processo de leituras quando foi proibida pela censura em todos os itens, aí saiu nos jornais. Eu fiquei muito orgulhosa, porque eu pensava assim: Bom, se eu, mineira, com meu jeanzinho, bota ''topa-tudo"... - a gente usava uma bota da Alpargatas, chamada "topa-tudo", para fugir da polícia. Ela era dessa altura assim, de borracha, ninguém pegava a gente com aquilo, a gente voava, era uma ave com aquela bota, era uma bota que era o uniforme do pessoal da Filosofia - então uma menina com aquela bota topa-tudo, aquele velho jeans desbotado, uma camisetinha e sem saber - eu não sei até hoje como se mexe com revólver - então ser tão perigosa, eu falei: Gente, mas eu sou o máximo! Eu falei para você no depoimento e vou dizer aqui: eu acho que a censura foi quem mais levou a sério a dramaturgia, foi quem nos deu o impulso. Eu devo à censura ter me explicado que era por aí, porque, se com uma simples peça eu consigo fazer um estrago destes, se eles acham que eu posso fazer esse estrago, então é isso mesmo, eu quero fazer este estrago, então é por aí que eu vou fazer. Minha fé no teatro vem daí38 38 Trecho do depoimento de Consuelo de Castro para o projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade", op. cit., p. 22. .

A segunda peça de Consuelo de Castro, À flor da pele, escrita um ano depois de Prova de fogo, estreou em 1969, em São Paulo, no teatro Paiol. Miriam Mehler fez o papel de Verônica; Perry Salles interpretou Marcelo, o professor de dramaturgia, escritor de novela, casado, pai de uma filha adolescente e amante da protagonista. Para o sucesso da peça contribuíram a direção de Flávio Rangel, a atuação dos intérpretes, a temática ventilada sem peia, o vigor do texto. O drama que leva Verônica ao suicídio condensa o impasse vivido por duas gerações: a da autora da peça e daquela que a precedeu - prensada entre as constrições da vida adulta, o acerto de contas com as ilusões políticas do passado, a aceitação amargurada das limitações do presente, o acicate da diferença geracional, o escape da relação amorosa extraconjugal.

A resposta do público foi imediata. A da crítica também. Todos os críticos importantes se manifestaram para ressaltar a força do espetáculo e a urdidura do texto. Entre as avaliações recebidas, vale a pena destacar a de Antonio Candido. Ao contrário de Décio de Almeida Prado, cujo treino na leitura da literatura dramática o capacitava a imaginar de imediato o desdobramento no palco, para Candido "o efeito da leitura depende das qualidades propriamente literárias, desde a fatura com o que o autor constrói o desenvolvimento até o recado final, que é a mensagem"39 39 Cf. Candido, op. cit., p. 525. .

Por essa razão, não foram poucas as vezes em que Antonio Candido se surpreendeu com "a diferença entre o que leu e o que viu; ou, pelo contrário, a diferença entre o que viu e o que leu depois". Na peça de Consuelo de Castro essa surpresa não se manifestou. Em 1969, quando assistiu à primeira montagem de À flor da pele, ele gostou tanto que voltou ao teatro para vê-la de novo, "porque desejava refazer a experiência daquele choque dramático intenso, que mantinha o público num ritmo ofegante de catástrofe". A maneira como a autora "desenha o conflito como condição das relações, das quais ele é ao mesmo tempo a maldição e o combustível"; a coragem de trazer para uma peça "modernamente anticonvencional, o punhal suicida dos dramalhões", com o propósito de sublinhar os dilemas, as angústias e os impasses da época; "a capacidade de fazer sentir o que era comum a toda uma geração, mas expresso no plano irredutível do que há de mais individual em cada um", explicam a adesão total que Antonio Candido sentiu entre o texto e o espetáculo, entre o que ele viu e o que leu40 40 Todas as citações do parágrafo são de Antonio Candido e encontram-se no artigo citado, pp. 525-26. . Explica também para os que não o viram, mas leram o texto, o alcance da peça, as razões de seu impacto junto ao público e a ressonância que ela tem até hoje, quarenta e quatro anos depois da primeira montagem.

5

Leilah Assumpção e Consuelo de Castro tornaram-se conhecidas em 1969. A coincidência da data não é casual. Ela registra o início da autoridade cultural das mulheres na dramaturgia, um domínio até então masculino. Na divisão de trabalho que então sustentava o universo teatral, as mulheres tiveram uma presença constante e marcante como atrizes, mas foram quase ausentes como autoras41 41 Nos grupos e nos elencos, a figura da primeira atriz, remodelada pelas concepções do teatro moderno, continuou a ter grande centralidade, mesmo quando o nome dela não vinha estampado no nome da companhia. Para a manutenção de tal centralidade, as mulheres fizeram valer a competência adquirida como atrizes, com a anuência e apoio de seus parceiros. Não aleatoriamente singularizaram ou mesclaram seus nomes artísticos aos de suas companhias, como procurei mostrar em Intérpretes da metrópole. . Enquanto o trabalho de ator era facultado a homens e mulheres, o da dramaturgia era privilégio ou atributo dos homens. Entre o polo mais "feminino" da representação, ocupado por atores e atrizes, e o mais "masculino" da dramaturgia, exercido pelos autores, encontravam-se os diretores e as ensaiadoras, com claro e diferenciado reconhecimento para os primeiros.

Na virada da década de 1960, esse panorama se alterou. As mulheres entraram na cena escrita não mais de forma isolada e esporádica, mas como "um conjunto de nomes de autores que, por sua vez, integra um grupo mais amplo de dramaturgos estreantes, o qual veio a ser conhecido como o da nova dramaturgia"42 42 Cf. Vincenzo, op. cit., p. XIX. Entre os nomes isolados de autoras com passagem pela dramaturgia entre os decênios de 1930 a 1950, encontram-se Maria Jacinta (Trovão da Costa Campos), autora de Conflito, encenada em 1939 pela Companhia Dulcina de Moraes; Clô Prado, autora de Diálogo de surdos, encenada em 1952 pelo TBC; Rachel de Queiróz, autora de Lampião, encenada pela Companhia Nydia Licia-Sergio Cardoso; e Edy Lima, autora de A farsa da esposa perfeita, montada pelo Teatro de Arena, em 1959. . A novidade era dupla: de gênero e de procedência cultural e institucional. Da "inquieta república de que a faculdade da Rua Maria Antônia era um dos centros de irradiação"43 43 Cf. Candido, op. cit., p. 525. - na imagem precisa de Antonio Candido para se referir à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, antes de sua transferência para o campus universitário - vieram alguns dos nomes mais expressivos da "nova dramaturgia"44 44 Segundo o crítico Jefferson Del Rio, a geração teatral de Leilah Assumpção e Consuelo de Castro é "quase toda da Universidade de São Paulo - mais especificamente o território intenso e, no fim, perigoso da Rua Maria Antônia. Timochenco Wehbi cursou Sociologia, [como Consuelo] José Vicente de Paula fez Filosofia, Mário Prata, Economia. Antônio Bivar e Eloy Araújo, que estudaram teatro no Rio de Janeiro e em São Paulo, eram a exceção". Cf. Del Rio, op. cit., pp. 117-18. .

Mariazinha e Verônica, as protagonistas das peças abordadas, condensam uma parte importante da experiência social das mulheres no período. Vistas de relance, elas são muito diferentes. Mas, quando examinadas de perto, à luz das novas experiências e dos novos desafios que se abriram no plano da sexualidade, na vida púbica e no rearranjo das relações de gênero, elas parecem ser a face e a contraface uma da outra. Ambas são impensáveis sem a experiência fervilhante da metrópole e o esgarçamento em curso dos estilos dominantes de feminilidade e de família. Mariazinha estava fora da universidade; Verônica, dentro dela. O transe imaginário de Mariazinha por alguns dos espaços mais representativos da cidade (a Praça Roosevelt, a rua Augusta, o cemitério da Consolação, o Mappin) é acompanhado pela implosão da contenção infantilizada que a caracteriza e pela liberação vicária de energias solapadas e desejos recalcados. Verônica, por sua vez, faz a primeira aparição em cena como jovem liberada, desafiante e contestatória, ciente da represália do amante, pela ousadia que tivera de bater na casa dele, bêbada, para contar para a mulher e a filha sobre o caso que mantinham há três anos. Envergonhada e a um só tempo envaidecida com o que fizera, ela relata o incidente com o recurso da ironia e o sustenido do dramalhão. Os mesmos recursos que ela usará para sair de cena e da vida. Personagem complexa e dilacerada, Verônica dá a ver o diapasão cerrado de possibilidades que interpelavam as mulheres da geração dela e da autora que a pôs no palco.

Há, assim, uma incontornável relação entre as feições das dramaturgas e das personagens que elas criaram. Verônica é uma projeção ambivalente de Consuelo de Castro e da linha de frente de sua geração. Mariazinha não é Leilah. Ela era sem graça, contida, limitada. Leilah, ao contrário, era exuberante, inquieta, modelo de alta-costura, pedagoga de formação. Mas uma poderia ter sido a outra se tivessem passado pelos mesmos espaços que dividiram o destino social de ambas - a Faculdade de Filosofia, o movimento estudantil, o teatro.

Uma rápida comparação entre Mariazinha e Verônica, de um lado, e Lucília, a personagem mais pé no chão de A moratória (1955), de Jorge Andrade45 45 Andrade, Jorge. "A moratória". In: Marta, a árvore e o relógio. 2-ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. , ajuda a tornar mais claro o protagonismo diverso que as três tiveram na cena teatral da metrópole. Na peça de Jorge Andrade, os personagens, antes de serem caracterizados com os traços da psicologia individual, são "o Pai, a Mãe, o Filho, a Filha; e os atos, pensamentos e desejos que deles derivam, ligam-se menos à história isolada de cada um do que à história da propriedade a que pertencem. É a perda da fazenda que explica a revolta do pai, o fracasso do filho, a crispação subterrânea da filha, a desencantada abnegação da mãe"46 46 Cf. Souza, Gilda de Mello. "Teatro ao sul". In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 114. . Lucília, a filha e a protagonista da peça, é a "única personagem que abandona a lamúria pela fortuna perdida e enfrenta com decisão a realidade"47 47 Cf. Magaldi, Sábato. "Dos bens ao sangue". In: Andrade, Marta, a árvore e o relógio, op. cit., p. 650. .Realista e avessa ao exercício complacente do autoengano, empenhada na sobrevivência da família com o auxílio da máquina de costura que lhe serviu de hobby quando menina rica e bem-vestida e que, no momento do descenso, tornou-se a fonte de sustento da família, Lucília expõe sem meios-tons a ruína que dilacera a todos. Ela recusa a proposta do noivo para que os pais dela fossem morar com eles depois do casamento, porque, não estando mais de "igual para igual"48 48 Cf. Andrade, "A moratória", op. cit., p. 155. , isso seria uma humilhação para o pai e para ela também. O noivo, que até a derrocada da família representava muito para ela "no meio que [lhe] pertencia e que agora não pertence mais"49 49 Ibidem, p. 156. , deixara de suscitar a paixão de antes. Não por vontade dele, mas dela. A consciência do rebaixamento social e a vivência de sentimentos ambivalentes no registro forte do ressentimento crispado a impedem de deixar os pais para ter uma vida própria, ao mesmo tempo que a levam a romper o noivado.

Família é tudo que Verônica não quer. Numa conversa ao telefone com o amigo e colega de faculdade, ouvimos Verônica repetir em voz alta:

- O exame? Deu duvidoso. Veja você; tudo comigo tem que ser mais ou menos. Azar... Pois é. Posso estar grávida, como posso não estar. [...] Não falei nada pro Marcelo [o professor e amante]. Ele ia dar uma de romântico e ia querer ter o filho. Mas eu vou rezar para dar negativo o resultado. Que filho, Toninho. Você ficou louco? Pra que é que eu vou querer um filho? [...]E já pensou o desastre se o Marcelo resolver criar a criança à maneira dele? [...] O pior não é isso. O pior é se for menina. Não quero nem saber. Eu já não aguento comigo [...] Essas pílulas... Eu me atrapalho toda. Isto é que é. Tomo tudo errado, ou então esqueço de tomar. Foi por isso que já engravidei de besta umas mil vezes já [...] Eu tinha brigado com o Marcelo. Aí, joguei o pacotinho das pílulas no lixo, em sinal de protesto. E estava na metade do mês - arremata Verônica, aos risos, dançando iê-iê-iê, antes de encerrar a conversa com o amigo50 50 Cf. Castro, "À flor da pele", op. cit., pp.149-50. .

O rompimento violento com o pai, o aborto involuntário, mas desejado, o sarcasmo com que se refere à família (a "sagrada instituição"), o desejo de pôr fogo em tudo são indicadores eloquentes do protagonismo desvairado de Verônica. A constatação de que isso não seria mais possível em vida levou-a a ser protagonista da própria morte.

Contida, carente, desengonçada, apesar do esforço diário para se manter impecável, Mariazinha vivia aprisionada no universo de restrições sociais e psíquicas da classe média rebaixada. O aceno de uma vida mais livre, propiciado pelo passeio imaginário pela cidade na companhia do homem que invadira seu quarto, é pesado na balança oscilante do resguardo e da entrega. Num dos momentos mais pungentes da peça, o homem, que não tem nome, insiste para que continuem a "voar nas nuvens, leves, leves". Evasiva, ela menciona "o viaduto, o bar, o viaduto, o bar, o Municipal". Em seguida, como se estivesse encurralada, grita: "O viaduto! O viaduto! O viaduto aqui na minha frente! O Viaduto"51 51 Cf. Assumpção, Fala baixo senão eu grito, op. cit., p. 154. . O desejo cifrado do suicídio é desfeito e estancado com a palavra para-raios (o Mappin) e a lembrança súbita das obrigações, simbolicamente enfeixadas no pagamento da prestação que ela contraíra junto à loja de departamentos mais conhecida de São Paulo na época.

A família de Mariazinha, ausente da vida dela no pensionato, se materializa nos objetos e nos móveis de seu quarto, com os quais ela conversa, pede e concede bênção, compartilha o desconcerto diante do mundo. Embora seja muito menos afirmativa que Verônica, que, além de mais jovem, era socialmente mais elevada e existencialmente mais trunfada pelos deslocamentos e pela inscrição em espaços que não lhes eram franqueados (a Europa, a casa luxuosa dos pais, a faculdade onde cursava as artes cênicas, o apartamento onde se encontrava com o professor e amante), Mariazinha está longe de ser apenas uma vítima passiva. Seu protagonismo advém do gradiente complexo de sentimentos, tão bem captado pela atriz que lhe deu vida no palco e pela autora que a criou com as palavras.

O protagonismo das personagens e de suas autoras é inseparável da experiência delas na metrópole. São Paulo aparece nas peças por intermédio das ruas, logradouros e instituições que aglutinam o imaginário na época sobre os prazeres perigosos e transgressivos da cidade: as ruas Augusta, Aurora e Consolação, o Teatro Municipal, a Faculdade de Filosofia, o Mappin. O leque social dessa geografia urbana abarca os espaços de circulação e sociabilidade da juventude, do sexo pago com dinheiro, da cultura da elite, do saber contestatório e do consumo conspícuo resumido na primeira loja de departamentos da cidade, o Mappin, inaugurada em 1913.

Desdobramento nacional dos department stores ingleses, como a Harrods, e dos grandes magazins franceses, como o Printemps e o Bon Marché, o Mappin destinava-se, de início, a um segmento reduzido de mulheres privilegiadas que não mediam tempo, esforço e dinheiro para adquirir novas mercadorias e novos hábitos de consumo52 52 Para uma análise densa e original do Mappin, na linha da história social, ver Bonadio, Maria Claudia. Moda e sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920. São Paulo: Ed. do Senac, 2007. . Com a deterioração progressiva do centro da cidade e o deslocamento das elites para outros bairros, ele foi se convertendo em uma loja para as camadas médias e remediadas, que, como Mariazinha, podiam pagar os sonhos de consumo com o recurso da prestação.

No final dos anos 1960, o Mappin virou também presença obrigatória na trilha urbana dos jovens politizados de classe média, em luta aberta contra a censura e a ditadura. Sua localização era estratégica: em frente ao Teatro Municipal, bem no "olho" da cidade. Além dos espetáculos culturais montados para as elites, o teatro abrigava em suas escadarias comícios variados. "Os conchavos, os pré-conchavos e o conchavo dos conchavos"53 53 Cf. Depoimento de Consuelo de Castro para o projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade", op. cit., p. 48. , que antecediam os comícios e o deslocamento dos jovens em direção ao Teatro Municipal, eram finalizados nas portas da entrada do Mappin. Ali decidiam a política, fruíam a sociabilidade, partiam e chegavam da Faculdade de Filosofia, da Biblioteca Municipal, dos bares, dos cafés e dos teatros localizados nas imediações. Segundo Consuelo de Castro, "havia uma cumplicidade entre o espaço e as pessoas. A cidade era nossa. Havia também uma sensação de que ela nos esconderia, de que ela era segura". Esse sentimento de pertencimento, de intimidade com o espaço público, foi rompido com a ditadura. "Ela tirou essa sensação da gente"54 54 Ibidem, p. 9. - nas palavras da dramaturga.

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Mariazinha e Verônica condensam as transformações que ocorreram na cidade, na dramaturgia e na plateia, motivadas pela alteração da composição social do público e do padrão de recrutamento do alunado do ensino superior no campo das humanidades. Ao contrário das faculdades tradicionais (direito, medicina e engenharia), a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências foi, desde o início, bem mais receptiva às moças e aos descendentes de famílias imigrantes. E isso teve um efeito visível (e notável) no plano cultural. A entrada em cena dos filhos da segunda ou terceira geração de imigrantes de variadas procedências, a maneira desopilada com que os imigrantes foram tratados na dramaturgia de Jorge Andrade, o foco na estreia das peças de Leilah Assumpção e Consuelo de Castro, o exame detalhado das personagens femininas que as protagonizaram em plena vigência dos parâmetros de censura e repressão impostos pelo regime militar, tudo isso, quando escrutinado de perto, permite recuperar a reelaboração dramática à luz das injunções de classe e de gênero que enredavam os personagens, seus inventores, a sociedade em cena e a sociedade real do público.

Leilah e Consuelo fizeram valer os trunfos da formação sofisticada recebida na Universidade de São Paulo para driblar as vicissitudes de uma cena cultural ainda hostil e reticente às pretensões de dicção e criação autoral das mulheres. O aprendizado misturado à sociabilidade praticada por inteiro no centro de irradiação da universidade garantiu às jovens estreantes na dramaturgia a ousadia necessária para assumirem riscos na escrita (e na vida). As peças de estreia que as tornaram conhecidas, calibradas pelo viés das marcas de classe e de gênero, desarrumaram as convenções dramáticas usuais. Em pleno regime militar, elas miraram as experiências desconcertantes das protagonistas femininas e os impasses de toda ordem que as condensavam - materiais, profissionais, sexuais, éticos. Mas, no lugar de encapsularem as personagens no quadro estreito da chamada condição das mulheres, elas encenaram relações de gênero. Materializadas nos objetos, no par amoroso, nos estilos de feminilidade e masculinidade, elas foram corporificadas também pelas personagens masculinas que a um só tempo atiçavam a libido, solapavam as balizas correntes do relacionamento amoroso e escancaravam os limites de todos no mundo social em transformação convulsa retratado nos palcos.

Fala baixo senão eu grito e À flor da pele, como dão a entender as faíscas insinuadas nos títulos, arriscaram inovações substantivas em diversas frentes e dimensões. Constituíram as protagonistas femininas em sujeito da ação, o retrovisor das projeções do espectador, o móvel dos dilemas éticos. Fizeram com que a temática feminina invadisse o cerne da trama e se convertesse em filtro privilegiado das mudanças sociais em curso, prensadas entre o desgaste dos modelos tradicionais de classe e de gênero, o influxo de energias represadas, o acerto de contas com as utopias e os desacertos políticos do passado recente; o deslocamento da urgência da transformação para o plano das relações amorosas, menos sujeitas às investidas crescentes da ditadura e da censura. Assim como as novas carreiras universitárias nas humanidades impulsionaram "vocações" de moças talentosas, os palcos da metrópole paulista forneceram régua e compasso para o desenho de novos sujeitos e novos regimes de enunciação. Ecoaram experiências de vida que pouco tempo depois seriam abordadas com radicalidade pelo movimento feminista e diluídas pela mídia, em especial pela televisão, voltada para um público mais amplo, segmentado e diversificado do que aquele que frequentava os palcos da cidade55 55 Sobre a tematização dessas experiências de vida pelo movimento feminista, ver Pontes, Heloisa. Do palco aos bastidores: o SOS Mulher e as práticas feministas contemporâneas. Campinas: dissertação de mestrado, Departamento de Antropologia, UNICAMP, 1986. Sobre a ressignificação que elas sofreram na televisão, ver Almeida, Heloisa Buarque de. Pedagogia feminista no formato da teledramaturgia, São Paulo, 2013 (mimeo). Como mostra a autora, o seriado Malu Mulher, exibido pela Rede Globo, trouxe "à cena uma 'nova mulher' que as camadas médias urbanas pareciam buscar na televisão no começo da modesta abertura do regime militar [...] De um modo um tanto ousado para a Rede Globo de então, mas já corriqueiro noutras produções culturais mais afeitas à elite cultural do país, nota-se assim uma certa transformação no ideal de feminilidade que passa a ser promovido também nas telenovelas". .

Recebido para publicação em 12 de agosto de 2013.

  • 1 Cf. Schorske, Carl. Viena fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 40.
  • 2 A estimativa de Alexandre Dumas filho de que as apresentações teatrais no século XIX podiam atingir mais de 1500 pessoas a cada espetáculo diz muito sobre o alcance dessa arte nos palcos das grandes cidades europeias - Paris, Londres, Viena e Berlim. Como mostra o historiador Christophe Charle, as peças de sucesso da época difundiram novas representações sociais muito antes e muito além das camadas que tinham acesso à literatura. Romances com tiragens em torno de 100 mil exemplares só apareceram no final do século XIX. Já as peças representadas mais de cem vezes para grandes plateias eram frequentes desde os anos 1850. Principal entretenimento do século XIX, o teatro esteve desde sempre na mira da censura. E por muito tempo. Na França ela só foi abolida em 1906, em Berlim e Viena perdurou até o final da Primeira Guerra. E na Inglaterra, tão liberal no plano político, ela se estendeu até a década de 1960. Tamanha ingerência do Estado e dos censores é proporcional ao efeito de real produzido pela encenação no palco, bem mais duradouro que o suscitado pela leitura solitária de um livro. Cf. Charle, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • 3 Para o aprofundamento desse pressuposto, enfeixado pela relação entre cidade, teatro, público e sociedade, ver Auerbach, Erich. "La cour e la ville" (In: Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2007);
  • Schorske, Carl. "Grace and the word: Austria's two cultures and their modern fate" (In: Thinking with history: explorations in the passage to modernism Princeton University Press, 1998);
  • Charle, Christophe. Théâtres en capitales (Paris: Albin Michel, 2008) e A gê
  • nese da sociedade do espetáculo (op. cit.); e Pontes, Heloisa. Intérpretes da metrópole (São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010).
  • 4 Cf. Pontes, Heloisa e Miceli, Sergio. "Memória e utopia na cena teatral". Sociologia & Antropologia, vol. 2, n. 4, 2012, pp. 241-63.
  • 5 Para uma visão abrangente dessa articulação e suas implicações, ver de Marcelo Ridenti: Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000;
  • Caleidoscópio da cultura brasileira: 1964-2000. In: Miceli, Sergio e Pontes, Heloisa (orgs.). Cultura e sociedade (Brasil e Argentina) São Paulo: Edusp (no prelo).
  • 6 Cf. Napolitano, Marcos. "A arte engajada e seus públicos, 1955-1968". Estudos Históricos, no 28, 2001.
  • Para uma visão abrangente das transformações culturais em curso no período, ver Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • 7 Cf. Schwarz, Roberto. "Cultura e política, 1964-68". In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 81.
  • 10 Uma das táticas usadas pelos autores para contornar os censores era colocar "muitos palavrões nas peças, para a hora da 'barganha'. E assim trocávamos, muitas vezes, sete palavrões da pesada e nove médios, que cortávamos, pela liberação de uma frase que considerávamos de real importância". Cf. Assumpção, Leilah. Na palma da minha mão. São Paulo: Globo, 1998, p. 114.
  • 11 Cf. Assumpção, Leilah. "Fala baixo senão eu grito". In: Onze peças de Leilah Assumpção. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010, pp. 95-158.
  • 12 Cf. Castro, Consuelo de. "À flor da pele". In: Urgência e ruptura. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Estado da Cultura, 1989, pp. 119-83.
  • 13 Cf. Vincenzo, Elza Cunha. Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1992, p. 92.
  • 15 Para um desenvolvimento dessa ideia, ver Pontes, Heloisa. "A burla do gênero: Cacilda Becker, a Mary Stuart de Pirassununga". Tempo Social, vol. 16, no 1, 2004, pp. 231-62.
  • 16 Cf. Del Rio, Jefferson. "Leilah e o tempo". In: Pace, Eliana. Leilah Assumpção: a consciência da mulher. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007, Coleção Aplauso, p. 118.
  • 17 Trechos do depoimento de Marília Pera transcritos no livro Vissi d'arte (de Marília Pera e Flavio de Souza), São Paulo: Escrituras, 1999, p. 75.
  • 26 Cf. Candido, Antonio. "Vereda da salvação". In: Andrade, Jorge. Marta, a árvore, o relógio. 2-ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 631.
  • 45 Andrade, Jorge. "A moratória". In: Marta, a árvore e o relógio. 2-ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.
  • 46 Cf. Souza, Gilda de Mello. "Teatro ao sul". In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 114.
  • *
    Este artigo beneficiou-se das discussões promovidas no "Projeto Temático Fapesp - Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo". Agradeço a leitura aguda de Sergio Miceli, Marcelo Ridenti, Fernando Pinheiro, Maria Filomena Gregori, Luís Felipe Sobral e Luiz Gustavo Freitas Rossi. Agradeço ainda o apoio do cnpq, concedido sob a forma de uma bolsa de produtividade em pesquisa.
  • 1
    Cf. Schorske, Carl.
    Viena fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 40.
  • 2
    A estimativa de Alexandre Dumas filho de que as apresentações teatrais no século XIX podiam atingir mais de 1500 pessoas a cada espetáculo diz muito sobre o alcance dessa arte nos palcos das grandes cidades europeias - Paris, Londres, Viena e Berlim. Como mostra o historiador Christophe Charle
    , as peças de sucesso da época difundiram novas representações sociais muito antes e muito além das camadas que tinham acesso à literatura. Romances com tiragens em torno de 100 mil exemplares só apareceram no final do século XIX. Já as peças representadas mais de cem vezes para grandes plateias eram frequentes desde os anos 1850. Principal entretenimento do século XIX, o teatro esteve desde sempre na mira da censura. E por muito tempo. Na França ela só foi abolida em 1906, em Berlim e Viena perdurou até o final da Primeira Guerra. E na Inglaterra, tão liberal no plano político, ela se estendeu até a década de 1960. Tamanha ingerência do Estado e dos censores é proporcional ao efeito de real produzido pela encenação no palco, bem mais duradouro que o suscitado pela leitura solitária de um livro. Cf. Charle, Christophe.
    A gênese da sociedade do espetáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Ver também o prefácio que escrevi para esse livro, "Introdução à edição brasileira. Sociedade em cena", pp. 9-18.
  • 3
    Para o aprofundamento desse pressuposto, enfeixado pela relação entre cidade, teatro, público e sociedade, ver Auerbach, Erich. "La cour e la ville" (In:
    Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2007); Schorske, Carl. "Grace and the word: Austria's two cultures and their modern fate" (In:
    Thinking with history: explorations in the passage to modernism. Princeton University Press, 1998); Charle, Christophe.
    Théâtres en capitales (Paris: Albin Michel, 2008) e
    A gê nese da sociedade do espetáculo (op. cit.); e Pontes, Heloisa.
    Intérpretes da metrópole (São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010).
  • 4
    Cf. Pontes, Heloisa e Miceli, Sergio. "Memória e utopia na cena teatral".
    Sociologia & Antropologia, vol. 2, n. 4, 2012, pp. 241-63.
  • 5
    Para uma visão abrangente dessa articulação e suas implicações, ver de Marcelo Ridenti:
    Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000; "Caleidoscópio da cultura brasileira: 1964-2000". In: Miceli, Sergio e Pontes, Heloisa (orgs.).
    Cultura e sociedade (Brasil e Argentina). São Paulo: Edusp (no prelo).
  • 6
    Cf. Napolitano, Marcos. "A arte engajada e seus públicos, 1955-1968".
    Estudos Históricos, n
    o 28, 2001. Para uma visão abrangente das transformações culturais em curso no período, ver Ortiz, Renato.
    A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • 7
    Cf. Schwarz, Roberto. "Cultura e política, 1964-68". In:
    O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 81.
  • 8
    Ibidem.
  • 9
    Ibidem, p. 69.
  • 10
    Uma das táticas usadas pelos autores para contornar os censores era colocar "muitos palavrões nas peças, para a hora da 'barganha'. E assim trocávamos, muitas vezes, sete palavrões da pesada e nove médios, que cortávamos, pela liberação de uma frase que considerávamos de real importância". Cf. Assumpção, Leilah.
    Na palma da minha mão. São Paulo: Globo, 1998, p. 114.
  • 11
    Cf. Assumpção, Leilah. "Fala baixo senão eu grito". In:
    Onze peças de Leilah Assumpção. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010, pp. 95-158.
  • 12
    Cf. Castro, Consuelo de. "À flor da pele". In:
    Urgência e ruptura. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Estado da Cultura, 1989, pp. 119-83.
  • 13
    Cf. Vincenzo, Elza Cunha.
    Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1992, p. 92.
  • 14
    Marília Pera estreou no palco aos quatro anos, em 1951, na companhia de Henriette Morineau, Os Artistas Unidos, onde trabalhavam os pais, o ator Manoel Pera e a atriz Dinorah Marzullo. Carioca, iniciou a carreira no período em que o teatro brasileiro procurava "acertar os ponteiros" com as rotinas do teatro moderno, tal como estabelecidas na cena internacional. E, embora ela não tenha participado diretamente desse movimento de renovação, foi beneficiária dos seus efeitos, sob o ponto de vista das conquistas feitas no plano da dramaturgia e da concepção do espetáculo teatral.
  • 15
    Para um desenvolvimento dessa ideia, ver Pontes, Heloisa. "A burla do gênero: Cacilda Becker, a Mary Stuart de Pirassununga".
    Tempo Social, vol. 16, n
    o 1, 2004, pp. 231-62.
  • 16
    Cf. Del Rio, Jefferson. "Leilah e o tempo". In: Pace, Eliana.
    Leilah Assumpção: a consciência da mulher. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007, Coleção Aplauso, p. 118.
  • 17
    Trechos do depoimento de Marília Pera transcritos no livro
    Vissi d'arte (de Marília Pera e Flavio de Souza), São Paulo: Escrituras, 1999, p. 75.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    Ibidem, p. 78.
  • 20
    Todas as citações desse parágrafo são de Leilah Assumpção e encontram-se em Pace, Eliana.
    Leilah Assumpção: a consciência da mulher, op. cit., p. 50.
  • 21
    Cf. Pera e Souza, op. cit., p. 71.
  • 22
    A viagem à Europa naquele período foi uma experiência "iniciática" para muitos artistas importantes da época. Refúgio contra a perseguição acionada pela ditadura, ela foi também um espaço de aprendizado da contracultura e da liberdade propiciada pelo deslocamento. Cacilda Becker (1921-1969), a grande atriz do teatro paulista, teve essa experiência um ano antes de sua morte precoce, na companhia do ator e então marido Walmor Chagas no momento em que ambos tentaram, sem sucesso, uma nova reconciliação. A viagem, iniciada pelos Estados Unidos, se estendeu pela Europa, durou três meses e teve, segundo Décio de Almeida Prado, um efeito notável sobre Cacilda. Lá, ela "fumou maconha, viu espetáculos recentes de vanguarda e voltou modificada. Perdera o medo da pobreza". Cf. Prado, Décio de Almeida.
    Peças, pessoas, personagens. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 150.
  • 23
    O sucesso de
    Fala baixo senão eu grito pode ser medido pelos prêmios que Leilah Asumpção recebeu, pela longevidade que a peça conheceu no Brasil e pelas montagens que foram feitas no exterior. Ela estreou, como vimos, em 1969; no ano seguinte foi montada no Rio; em 1971, em Curitiba; em 1972, em Bruxelas, na Bélgica (com essa montagem Leilah recebeu uma Menção Especial da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais pelo recorde de permanência de uma peça brasileira no exterior); em 1973, ela foi apresentada em Belo Horizonte; em 1974, tornou a ser montada em São Paulo; em 1975, foi encenada em Paris, em 1976, estreou em Salvador, em 1977, foi montada em Buenos Aires e, mais tarde, em Portugal e Cuba. As informações sobre a trajetória da peça encontram-se em Pace, op. cit., p. 53.
  • 24
    Cf. Del Rio, op. cit., p. 116.
  • 25
    Informação obtida em Pace, op. cit.
  • 26
    Cf. Candido, Antonio. "Vereda da salvação". In: Andrade, Jorge.
    Marta, a árvore, o relógio. 2-ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 631.
  • 27
    Ibidem, p. 632.
  • 28
    Como que antevendo o fim, o programa traz um histórico sintético da companhia e informa que ela apresentara 144 peças, entre 1948 (ano de sua inauguração) até 30 de junho de 1964. Com
    Vereda da salvação, cuja estreia se deu em 1-º de julho, completaria 145, ao longo de seus 16 anos de existência com elenco estável, dirigido de início por diretores estrangeiros de nacionalidades diversas e, mais tarde, por brasileiros de reputação e prestígio no meio, como Flávio Rangel e Antunes Filho. Das 145 peças encenadas, a maioria (111) era de dramaturgos estrangeiros, ainda que no programa de
    Vereda da salvação haja um destaque maior para as peças de autores brasileiros. Estas, em termos absolutos (34 no total), ficavam em segundo lugar, logo após as 35 peças de autores ingleses levadas ao palco. Ao todo, foram 8.990 representações - sendo 6.551 em São Paulo, 2.363 no Rio de Janeiro e 76 no interior - e quase dois milhões de espectadores (1.991.128, distribuídos da seguinte maneira: 1.332.767 em São Paulo, 538.885 no Rio de Janeiro e 39.476 no interior). Esses dados encontram-se transcritos no programa de
    Vereda da salvação (1964). Remeto o leitor interessado no aprofundamento da história do TBC ao trabalho de Alberto Guzik,
    TBC: crônica de um sonho (São Paulo: Perspectiva, 1986) e ao meu livro,
    Intérpretes da metrópole (op. cit.).
  • 29
    Professor, ator e diretor russo radicado no Brasil, com ampla atuação no teatro paulista, Eugênio Kusnet (1189-1975) atuou na Companhia Maria Dela Costa, no TBC e no Teatro de Arena, antes de integrar-se, em 1962, ao Teatro Oficina.
  • 30
    Cf. Assumpção,
    Na palma da minha mão, op. cit., p. 56.
  • 31
    Cf. Prado, Décio de Almeida. "As provas de fogo". In: Castro,
    Urgência e ruptura, op. cit., p. 518.
  • 32
    Cf. Magaldi, Sábato. "Um documento exemplar". In: Castro,
    Urgência e ruptura, op. cit., p. 517.
  • 33
    Ibidem, p. 516.
  • 34
    Cf. Michalski, Yan. "Consuelo de Castro: sempre urgente. Sem rupturas". In: Castro,
    Urgência e ruptura, op. cit., p. 23.
  • 35
    As citações dessa frase são de Consuelo de Castro e foram retiradas da transcrição do depoimento audiovisual que ela concedeu, em 2006, aos sessenta anos, para Daisy Perelmutter e Luis Francisco de Carvalho, no âmbito do projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade".
  • 36
    O primeiro contato de Consuelo de Castro com Guilherme de Almeida foi intermediado pela mãe de uma colega de escola, amiga da mãe do escritor, que se prontificou a levar os poemas de Consuelo para o filho ler. "Ele gostou e me ligou. Imagine que chique", nas palavras de Consuelo. Combinaram, então, um encontro na Biblioteca Municipal. Aconselhada por ele, ela não parou mais de frequentar a biblioteca, não só para ler, mas para ter um lugar tranquilo para escrever. "Na verdade - prossegue Consuelo - ele sabia que a minha vida era uma bagunça e que eu não ia conseguir me concentrar em nenhum outro lugar. E foi uma boa dica." Trecho do depoimento de Consuelo de Castro para o projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade", op. cit., pp. 5-6.
  • 37
    Cf. Michalski, op. cit., p. 15.
  • 38
    Trecho do depoimento de Consuelo de Castro para o projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade", op. cit., p. 22.
  • 39
    Cf. Candido, op. cit., p. 525.
  • 40
    Todas as citações do parágrafo são de Antonio Candido e encontram-se no artigo citado, pp. 525-26.
  • 41
    Nos grupos e nos elencos, a figura da primeira atriz, remodelada pelas concepções do teatro moderno, continuou a ter grande centralidade, mesmo quando o nome dela não vinha estampado no nome da companhia. Para a manutenção de tal centralidade, as mulheres fizeram valer a competência adquirida como atrizes, com a anuência e apoio de seus parceiros. Não aleatoriamente singularizaram ou mesclaram seus nomes artísticos aos de suas companhias, como procurei mostrar em
    Intérpretes da metrópole.
  • 42
    Cf. Vincenzo, op. cit., p. XIX. Entre os nomes isolados de autoras com passagem pela dramaturgia entre os decênios de 1930 a 1950, encontram-se Maria Jacinta (Trovão da Costa Campos), autora de
    Conflito, encenada em 1939 pela Companhia Dulcina de Moraes; Clô Prado, autora de
    Diálogo de surdos, encenada em 1952 pelo TBC; Rachel de Queiróz, autora de
    Lampião, encenada pela Companhia Nydia Licia-Sergio Cardoso; e Edy Lima, autora de
    A farsa da esposa perfeita, montada pelo Teatro de Arena, em 1959.
  • 43
    Cf. Candido, op. cit., p. 525.
  • 44
    Segundo o crítico Jefferson Del Rio, a geração teatral de Leilah Assumpção e Consuelo de Castro é "quase toda da Universidade de São Paulo - mais especificamente o território intenso e, no fim, perigoso da Rua Maria Antônia. Timochenco Wehbi cursou Sociologia, [como Consuelo] José Vicente de Paula fez Filosofia, Mário Prata, Economia. Antônio Bivar e Eloy Araújo, que estudaram teatro no Rio de Janeiro e em São Paulo, eram a exceção". Cf. Del Rio, op. cit., pp. 117-18.
  • 45
    Andrade, Jorge. "A moratória". In:
    Marta, a árvore e o relógio. 2-ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.
  • 46
    Cf. Souza, Gilda de Mello. "Teatro ao sul". In:
    Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 114.
  • 47
    Cf. Magaldi, Sábato. "Dos bens ao sangue". In: Andrade,
    Marta, a árvore e o relógio, op. cit., p. 650.
  • 48
    Cf. Andrade, "A moratória", op. cit., p. 155.
  • 49
    Ibidem, p. 156.
  • 50
    Cf. Castro, "À flor da pele", op. cit., pp.149-50.
  • 51
    Cf. Assumpção,
    Fala baixo senão eu grito, op. cit., p. 154.
  • 52
    Para uma análise densa e original do Mappin, na linha da história social, ver Bonadio, Maria Claudia.
    Moda e sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920. São Paulo: Ed. do Senac, 2007.
  • 53
    Cf. Depoimento de Consuelo de Castro para o projeto "Memória oral da Biblioteca Mário de Andrade", op. cit., p. 48.
  • 54
    Ibidem, p. 9.
  • 55
    Sobre a tematização dessas experiências de vida pelo movimento feminista, ver Pontes, Heloisa.
    Do palco aos bastidores: o SOS Mulher e as práticas feministas contemporâneas. Campinas: dissertação de mestrado, Departamento de Antropologia, UNICAMP, 1986. Sobre a ressignificação que elas sofreram na televisão, ver Almeida, Heloisa Buarque de.
    Pedagogia feminista no formato da teledramaturgia, São Paulo, 2013 (mimeo). Como mostra a autora, o seriado
    Malu Mulher, exibido pela Rede Globo, trouxe "à cena uma 'nova mulher' que as camadas médias urbanas pareciam buscar na televisão no começo da modesta abertura do regime militar [...] De um modo um tanto ousado para a Rede Globo de então, mas já corriqueiro noutras produções culturais mais afeitas à elite cultural do país, nota-se assim uma certa transformação no ideal de feminilidade que passa a ser promovido também nas telenovelas".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Nov 2013

    Histórico

    • Recebido
      12 Ago 2013
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