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Mortos adiados

CRÍTICA

Mortos adiados

Noemi Jaffe

Autora de O que os cegos estão sonhando? (Editora 34, 2012).

SHOAH: filme de Claude Lanzmann [1985]. Instituto Moreira Salles, 2012, 570 min.

Grande parte das oito horas de duração do filme Shoah, de Claude Lanzmann, se passa em situações de trânsito: trens, carros, ônibus, carroças, barcos. Ou então em lugares transitórios: bares, uma barbearia, o portão das casas, a saída de uma igreja. As passagens e o trânsito são as condições fundamentais do filme que mais incisivamente penetrou no inominável do genocídio nazista. E o filme o faz de tal forma - com tanta discrição e sutileza - que, ao final dessas oito horas, o espectador, sem o saber, se habitua à condição de passageiro, como se tivesse assistido não exatamente a um filme, mas a uma paisagem vista a partir da janela de um veículo em movimento. Tudo está sempre passando e de passagem, embora o tema principal do filme seja o inapagável, a morte que nunca morre. Entre muitas outras coisas, é o atrito entre esse movimento e a intocabilidade do que se narra que determina o corte único que Shoah estabelece na história do holocausto e na memória de quem o vê.

Claude Lanzmann entrevista sobreviventes dos campos de concentração de Auschwitz, Treblinka, Sobibor e Belzec - os mais terríveis -, ex-oficiais nazistas e moradores dos arredores. Muitas dessas entrevistas são feitas em locais - como dito - de trânsito ou, enquanto se ouvem as vozes dos entrevistados, a câmera filma paisagens ou veículos em movimento. Como se o filme imitasse, ou capturasse, os próprios caminhos da memória e do discurso dos falantes. Vamos acompanhando os rompantes de suas lembranças, seus esquecimentos, suas dificuldades ou medo de recordar. Vamos seguindo pela gagueira e hesitação dos discursos que nunca se fixam nem fluem - ficam sempre indo e vindo, aos tropeços (com a terrível exceção de um ex-oficial de Auschwitz que, sem saber que está sendo filmado, discorre com desenvoltura e um certo sorriso irônico sobre as técnicas da máquina de execução nazista).

Ao mesmo tempo, essa câmera em trânsito também dá ao espectador - sem a necessidade sempre excessiva de explicações e interpretações de quase todos os filmes sobre o assunto - a dimensão de como a fenomenologia da engrenagem da morte nazista se deu a partir da e na ideia de passagem.

Dezenas de milhares de prisioneiros morreram asfixiados por gás dentro de caminhões - não somente em fornos crematórios, tecnologia mais avançada e desenvolvida posteriormente. Eram empurrados à força para dentro de carrocerias totalmente vedadas, para onde vazava o gás do escapamento. Os prisioneiros morriam sufocados, em silêncio e no escuro, no caminho para uma floresta, onde eram então descarregados e enterrados em valas cavadas também por judeus. Grande parte do processo de desumanização operado pelos nazistas era feita no transporte que ia das cidades até os campos. Trens de carga, onde os judeus se acumulavam feito gado - e por cuja passagem eles precisavam pagar! - privados de comida e de água, ignorantes sobre a duração da viagem, seu destino e finalidade. Dessa maneira, chegavam aos campos já praticamente impossibilitados, pela fome, pela sede e pelo desespero, de oferecer qualquer tipo de resistência às chicotadas, aos espancamentos e à morte.

Além disso, vários moradores das regiões vizinhas aos campos, conforme depoimentos no próprio filme, ao ouvirem o apelo dos prisioneiros encarcerados nos vagões, que conseguiam de alguma forma colocar uma mão para fora ou chamá-los, se aproveitavam da situação de trânsito e, derrisoriamente, faziam aos judeus o sinal de um corte na garganta.

A passagem é também a condição daqueles homens, mulheres, velhos e crianças que eram colocados, nus e em situação de absurda espera, dentro do assim chamado "tubo", de onde seriam encaminhados para as câmaras de gás. Espaços mínimos, baixos e vedados por galhos, ao longo dos quais os prisioneiros esperavam, num tempo vazio e cheio de morte, pelo chicote e pelo gás. Esse tubo era chamado, por nazistas e também por judeus, de "ascensão" ou ainda "caminho do céu".

Por outro lado, a situação de passagem também indica outro componente essencial nesse filme, que é justamente a referência ao tempo. Não há cenas de época no documentário. Não se busca reproduzir aquelas imagens já conhecidas de prisioneiros subnutridos, mortos amontoados em valas, soldados chegando, pessoas celebrando a vitória ou o reencontro. Tudo se passa na atualidade - em 1985, quando o filme foi feito. Há cenas em Israel, na Polônia, na ilha de Corfu, na Alemanha, nos Estados Unidos, em todos os lugares onde os sobreviventes, os antigos oficiais e os moradores da vizinhança dos campos vivem na época contemporânea ao filme. Trata-se de um filme não tanto sobre o holocausto, ou não somente sobre ele, mas sobre a memória, o discurso sobre a Shoah e a passagem do tempo.

O que foi feito de cada um que sobreviveu? De suas lembranças, seu esquecimento, sua vida? É possível falar sobre o horror? Lanzmann insiste, impiedosamente. A um sinal de dificuldade da parte dos sobreviventes - choro, mudez - Lanzmann, para desespero do espectador, atiça, não permite o silêncio. Quer saber mais, um pouco mais, ainda mais. E o mesmo com os nazistas e com os moradores das cidades vizinhas aos campos. Pergunta por detalhes aparentemente inofensivos e irrelevantes: "mas quantas vezes vocês gritavam a mesma palavra? oito ou nove vezes?"; "quem entalhou essa porta tão linda da casa onde vocês moram?"; "quantas pessoas você precisava barbear por dia? mas eram trinta ou quarenta? seja mais específico!". A forma quase agressiva com que o diretor provoca os depoentes, vítimas ou carrascos, dá a medida do movimento da memória e da fala que dela provém (ou não provém).

O tempo passou e continua passando. O que podemos fazer com essa fugacidade? Como dizer e por que dizer o que o tempo apaga ou eternamente desperta, mas sempre sob formas diferentes? As passagens mimetizam os interlúdios da memória e põem em questão a ideia da verdade. Mas qual é a verdade da Shoah?

Há inúmeras verdades - tantas quantas há sobreviventes. Mas o filme mostra que resta, entre todos os trânsitos, uma verdade que não se deixa abalar pelas versões, pelo esquecimento, pela dor: o horror. E esse horror é configurado lentamente - ao longo de oito horas, pelo cerco cerrado que Lanzmann estabelece ao entrevistar pessoas de todos os tipos: nazistas, judeus, poloneses, alemães e descendentes, além de mostrar os campos, os restos das câmaras de gás e de promover encontros entre sobreviventes judeus e moradores não judeus em suas cidades de origem. Não há como escapar da Shoah, a única verdade que não pode ser reconfigurada por nada, nem pelo tempo.

Outra insistência do filme, além das cenas de trânsito e de passagem, é o detalhamento com que ele explica a lógica e o planejamento da engrenagem técnica da morte. Inúmeras cenas demonstrando a lotação dos caminhões de gás; os horários dos trens; os turnos nos fornos crematórios; a capacidade dos caminhões, câmaras e vagões para receber os prisioneiros; as técnicas de cremação e enterramento; a velocidade com que as coisas precisariam ser feitas para dar conta do número de mortos; as medidas econômicas em termos de material, eletricidade, carpintaria; as formas de destituir os judeus de suas posses; o destino dos cabelos e dos outros bens extraídos dos prisioneiros; as experimentações científicas e também psíquicas para compreender o comportamento dos humanos sob determinadas condições. Toda essa máquina de morte é exposta como se o espectador estivesse presenciando uma linha de montagem, uma fábrica altamente planejada. Não era realmente nada fácil dizimar um povo inteiro - as menores sutilezas precisariam ser levadas em consideração, desde as técnicas até as emocionais. As mulheres, por exemplo, eram recebidas em alguns campos com o seguinte comentário: "Por favor, madame, saia com cuidado. Não queremos machucá-la, venha por aqui. Agora finalmente vocês serão bem tratadas, pois nós, alemães, não queremos machucar as damas." Tudo para que não houvesse escândalo, pânico e descontrole.

Como em toda parte, mas ainda mais em se tratando da conhecida eficiência alemã, a burocracia praticamente substituía o conteúdo ou o mérito do que estava sendo praticado. Em vários trechos, o filme nos faz perceber como, para alguns oficiais, a eficácia no cumprimento ortodoxo das ordens e deveres era mais importante do que o objeto da operação: o judeu, o prisioneiro de guerra, a vitória alemã. Antes de tudo, o que estava em questão era fazer a máquina funcionar, independente do que estaria sendo produzido: parafusos ou a liquidação de um povo inteiro.

A forma tenaz e por vezes até irritante com que Lanzmann insiste na abordagem da guerra como uma máquina o conduz - e o espectador - também a outra conclusão sobre os disfarces que Hitler precisou usar para atenuar e ocultar o conteúdo nazista. A ideologia se entranhava, em grande parte de forma subliminar, nas engrenagens da máquina, na burocracia e na linguagem do campo. Na linguagem assim como na burocracia e na preocupação com o bom funcionamento das operações ocultam-se, de forma prática, econômica, mas principalmente asséptica, as vozes do totalitarismo e o desejo de destruição: os prisioneiros jamais podiam pronunciar a palavra "vítima" para se referir aos judeus que eles mesmos precisavam enterrar. Deviam dizer "marionetes" ou então "trapos". Para os oficiais nazistas, as ordens eram de "ações de transferência", o que posteriormente se revelou como "morte". O extermínio de todos os judeus era conhecido como "a solução final". Os judeus cuja função era lidar com os mortos eram chamados de "judeus de trabalho". O local onde os judeus esperavam pela execução era conhecido como o "tubo" ou "ascensão". A transferência para um campo de extermínio era chamada de "reassentamento". O momento de atacar um grupo de judeus de surpresa era conhecido como "a hora" e, como esses, seguem-se inúmeros outros exemplos de higienização e eufemização da linguagem.

A obsessão do filme com o fenômeno linguístico, tanto da parte dos nazistas como do próprio Lanzmann, que, como dito, insiste até o ponto da exasperação em que todos sejam detalhados e precisos em suas descrições, dá conta do papel da palavra no nazismo e em sua história. Para os perpetradores, ela exercia a função de amortecer as práticas de extermínio e para que a ideologia se enraizasse mais profundamente em todos; para as vítimas, a função purificadora da linguagem tampouco é desprezível, pois também para eles era preciso atenuar a morte, mas, principalmente, as palavras podiam exercer a função de resistência, disfarce e defesa. Se todos rumavam para a morte, talvez as palavras ainda pudessem resgatar algum resto de vida e de sentido, como demonstram, por exemplo, os líderes da resistência de Auschwitz - sim, eles existiam! - e algumas testemunhas que estiveram próximas aos mortos nas câmaras de gás. Estes últimos contam como os condenados, nos estertores, falavam do "anjo da morte" e apoiavam-se em orações.

Para Lanzmann, da mesma forma, a palavra conduz seu método, que é impiedoso e insuportavelmente preciso. Em sua perseverança no detalhe, na medida, no rigor das palavras, vai sendo desvendada a verdade do mal e do sofrimento. Se não fosse por sua obstinação com as palavras, o filme certamente não penetraria tão fundo no horror de ambos.

E, finalmente, para os sobreviventes e para as outras gerações, é a palavra, na medida do possível, que possibilita o luto, a lembrança e a transformação do horrível em continuação da vida.

Para alguns, uma vida de "mortos adiados" mas, para nós, que sobrevivemos aos sobreviventes, uma vida em que talvez seja possível, pela palavra, capturar a "flecha tardia"1 1 "Flecha tardia" é uma expressão do poeta Paul Celan, extraída do poema "Sob um quadro". e lançá-la para outro lugar.

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    "Flecha tardia" é uma expressão do poeta Paul Celan, extraída do poema "Sob um quadro".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Nov 2013
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