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Fonógrafo* * Agradeço as leituras e os comentários de Carlos Fausto e Frederico Barros.

Resumos

O artigo discute as consequências do fonógrafo na produção, no armazenamento e na reprodução de sonoridades. Nessa perspectiva, investiga uma canção de Heitor Villa-Lobos, procurando avaliar em que medida apresenta elementos relacionados ao fonógrafo e qual o significado e os efeitos disso. Como resultado, pretende oferecer subsídios para se conhecer melhor sentido histórico do fonógrafo e dos métodos de composição de Villa-Lobos.

fonógrafo; Villa-Lobos; música; reprodutibilidade técnica


The article discusses the consequences of the phonograph towards the production, storage and playback of sonorities. From this perspective, it investigates a song by Heitor Villa-Lobos to evaluate the elements related to the phonograph, as well as its meaning and effects. As a result, it intends to offer support for a better understanding of the historical meaning of the phonograph and Villa-Lobos' composition methods.

phonograph; Villa-Lobos; music; technical reproducibility. 1


Não há, até os dias de hoje, nenhum fator humano ou não humano que tenha operado uma cesura tão profunda na produção e no consumo de sonoridades como o fonógrafo - já em 1888 "destinado a realizar uma enorme revolução na história do mundo"1 [1] Anônimo. "Edison's Perfected Phonograph". Nature, 29 nov. 1888. p. 109. . Seu surgimento consuma um corte epocal; gravação, armazenagem e reprodução sonoras passam, desde então e cada vez mais, a desempenhar um papel central no modo como humanos se relacionam com sonoridades. No mundo dos humanos - com suas sonoridades vindas de todos os lados e o tempo todo - gravação, armazenagem e reprodução orientam por completo a produção e o consumo de sonoridades musicais, que praticamente inexistem fora dessa circunscrição (há nichos). Parcela considerável dos humanos contemporâneos vivem em relação simbiótica com máquinas de gravação, armazenagem e reprodução sonora, mormente musicais. Ademais, a indústria de produção, gravação e circulação de sonoridades musicais, assim como a das máquinas de que elas dependem, ocupa um papel importante e em vertiginosa ascensão na economia das trocas globais e desiguais. Da invenção do fonógrafo aos dias de hoje tivemos um considerável incremento tecnológico (eletrificação, miniaturização, fidelização, digitalização), mas nenhuma transformação essencial. A invenção de Thomas Alva Edison é, indiscutivelmente, e por mais que sofram os órfãos de Steve Jobs, o marco epocal2 [2] Sobre o fonógrafo há muita literatura; cito apenas o trabalho excepcional de Kittler. Kittler, Friedrich. Grammophon, Film, Typewriter. Berlim: Brinkmann & Bose, 1986. .

Essa cesura epocal implica transformações nas formas humanas de percepção, como foi assinalado por muitos ao longo do século passado, entre impactados e surpresos, de algum modo e em medida variável, com o fenômeno. A captação, a gravação e a reprodução técnica de sonoridades significa em mesma medida, como dizia o alemão Walter Benjamin, novas formas de percepção sensíveis das sonoridades. O aparato humano perceptivo se transforma conectado com o processo técnico. Em seus termos, experimentamos um "aprofundamento da apercepção"3 [3] Benjamin, Walter. Das Kunst werk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2007. p. 39. . Ao mesmo tempo, o francês Valéry afirmava que

as numerosas e impressionantes modificações da técnica geral, que tornam toda e qualquer previsão impossível em qualquer ordem, devem necessariamente afetar mais e mais os destinos da própria Arte, por meio da criação de meios totalmente inéditos de exercer a sensibilidade4.

Por sua vez, o húngaro Bartók, alguns anos antes, plenamente consciente da cesura, declarara:

Esta invenção formidável, não como aquelas outras que têm sido responsáveis pela destruição de coisas belas, aparentemente nos foi dada como compensação pela devastação imensamente grande que tem sido a consequência desta era das invenções. Com a ajuda do fonógrafo, podemos gravar em alguns minutos a melodia mais elaborada, em toda sua plenitude e seu estado natural, e é uma tarefa fácil depois transcrever a melodia a partir do fonograma5

2.

Enquanto Bártok circulava por recantos ainda praticamente intocados da Europa, da Ásia e da África, coletando cuidadosa e amorosamente canções camponesas, o brasileiro Edgard Roquette-Pinto, arregimentado pelo coronel Cândido Rondon para fazer parte de sua "Comissão de linhas telegráficas e estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas", partia em expedição rumo à "região vastíssima do território pátrio". O ano era 1912. Pouco depois, deitou em letra um relato:

Os índios da Serra do Norte, no estado de Mato Grosso, representam talvez, neste momento, a mais interessante população selvagem do mundo.

Vivem, ainda hoje, em estado de acentuada inferioridade.

Foram supreendidos em plena idade lítica; e assim uma civilização fóssil foi encontrada no coração da América do Sul.

Aqui, mais do que alhures, justifica-se a observação de Bastian, segundo a qual a pré-história se confunde com a história nas terras da América.

Os índios da cordilheira do Norte viveram, até agora, completamente apartados do resto da população do Brasil; rodeados de outras tribos, durante séculos, fugiram ao contágio de usos e costumes de seus vizinhos.

Estes empregam armas de fogo, há mais de meio século; os índios da Serra do Norte ouviram as nossas, com todas as demonstrações de quem não está ainda bem acostumado a seu estampido.

A pele do homem negro e a do homem branco, que todos os índios do Brasil conhecem, despertavam ainda, em muitos deles, grande surpresa, conforme testemunhamos6.

Edgard levava consigo um fonógrafo Edison.

3.

"Mary had a Little Lamb": eis as palavras que, em 1877, Thomas Edison registrou em seu fonógrafo (the talking machine); são os primeiros sons gravados da história. "Mary had a Little Lamb" é uma canção, uma canção infantil7 [7] Não confundir com a canção homônima de Paul McCartney, gravada um século depois (1972). . No momento do seu surgimento, a fonografia nasceu ligada à voz humana, ao canto.

O fonógrafo (fonos-graphos: escrita do som) é um aparelho mecânico que se presta tanto à gravação como à reprodução de sons. Na situação de gravação, os sons emitidos, em geral captados por um cone acústico, vibram uma membrana, por sua vez ligada a uma agulha que, acompanhando os movimentos da membrana, sulca uma folha de estanho que recobre um cilindro em rotação, deixando registrado assim, nos sulcos sobre a folha de estanho, uma trilha sonora helicoidal. A membrana (ou diafragma), vibrando em função das sonoridades recebidas, transforma os sons em oscilações mecânicas, repassadas à agulha e, desta, à folha de estanho.

Na situação de reprodução, o processo é o mesmo, mas em sentido inverso. O cilindro recoberto de estanho é posto a girar em sentido contrário, oscilando a agulha e, assim, a membrana, que produz as oscilações sonoras ampliadas na campana. Inicialmente, a rotação do cilindro resultava do giro de uma manivela, e a velocidade de rotação vinha do controle da velocidade com que a manivela era movida. Um dos primeiros aprimoramentos foi a instalação de um mecanismo de corda, que garantiu maior regularidade das rotações, sem, contudo, eliminar por completo o problema.

Em 1888, alguns fonógrafos passaram a ser dotados de um motor auxiliar para rodar o cilindro, garantindo uma rotação mais homogênea e, consequentemente, maior controle e precisão na gravação e na reprodução das alturas e dos ritmos8 [8] Cf. Anônimo. "Edison's Perfected Phonograph". Nature, 29 nov. 1888, p. 109. O motor auxiliar, elétrico, apenas move o cilindro, não se tratando, portanto, de uma técnica elétrica de gravação, que somente surgirá em 1924-1925. . Ao mesmo tempo, a folha de estanho que recobria o cilindro e que era o suporte dos sulcos foi substituída por uma camada de cera, o que trouxe vantagens técnicas variadas ao duplo processo. Cada cilindro permitia pouco mais de dois minutos de gravação/reprodução, chegando ocasionalmente a quatro. Os cilindros de cera funcionavam como fitas cassete (para utlilizar um anacronismo com um meio técnico mais familiar ao leitor), gravando, reproduzindo e podendo mesmo ser apagados e novamente utilizados para gravações.

Entre o seu invento em 1877 e a década de 1910, o fonógrafo foi objeto de uma série de aperfeiçoamentos e foi produzido até 1929. No fim dos anos 1910, contudo, o gramofone, uma tecnologia similar e concorrente, em que o cilindro é substituído pelo disco horizontal, já demonstrava ter ganhado a batalha como o aparelho-padrão para reprodução sonora, em especial com vistas ao uso comercial9 [9] Veja, a título de exemplo, a presença e a importância do gramofone no romance A montanha mágica, de Thomas Mann (1924), ao passo que em Drácula, de Bram Stoker (1897), é o fonógrafo que aparece. Kittler apresenta outros registros literários mais significativos da presença e importância do fonógrafo. Ver Kittler, op. cit. .

A partir de 1924-1925, inicia-se a era das gravações elétricas, ou seja, da captação por meio de microfones e a consequente conversão dos sons em energia elétrica, quando os alto-falantes (desenvolvidos sobretudo a partir da invenção do telefone) passam a desempenhar um papel decisivo nos processos de reprodução sonora10 [10] Sobre a centralidade dos alto-falantes, ver Freire, S. "Early Musical Impressions from Both Sides of the Loudspeaker". In: Leonardo Music Journal, vol. 13, 2003. p. 67-71. .

Mesmo após a sua obsolecência como aparelho comercial e massivo de reprodução sonora, o fonógrafo continuou sendo utilizado como gravador portátil, sobretudo no registro de línguas, dialetos, pronúncias, canções e músicas, em especial por linguistas, folcloristas, musicólogos comparatistas e etnomusicólogos, até os anos 1950, quando do advento do gravador de rolo (fita magnética)11 [11] Simon, A. "Recording Media: Methodological Implications for Ethnomusicology". In: Music! 100 Recordings: 100 Years of The Berlin Phonogramm - Archiv 1900-2000. p. 8 (encarte de CD). Sobre a significação do fonógrafo, ver Brady, Erika. A Spiral Way: How the Phonograph Changed Ethnography. Jackson: University Press of Mississippi, 1999. .

Utilizado desde sua invenção por esses pesquisadores, o fonógrafo, portátil e fácil de usar, permitia a gravação in loco, assim como, a partir da reprodução, a transcrição. O cilindro, ao reproduzir, podia ser posto a girar mais lentamente, facilitando assim o ato de transcrever, permitindo ao ouvido e mão que transcreviam perceber mais e melhor os detalhes que permaneciam obscuros, incompreensíveis ou imperceptíveis ao estudioso no momento da execução ou da reprodução em velocidade normal.

Em 1890 ocorreram as primeiras gravações de campo, por J. Walter Fewkes, de cantos indígenas norte-americanos12 [12] Cf. Fewkes, J. Walter. "On the Use of the Edison Phonograph in the Preservation of the Languages of the American Indians". In: Nature, n. 41, 17 abr. 1890, p. 560. A título de curiosidade, vale assinalar que Fewkes foi uma das principais fontes para Aby Warburg em sua famosa conferência de 1923 sobre o "ritual da serpente". Fewkes, no artigo citado relata: "Uma das gravações mais interessantes já feitas [por ele mesmo] foi a canção da dança da serpente". . Desde então, o procedimento se proliferou pela Europa e pela América do Norte. Como disse um dos pioneiros, "O estudo da performance é criado, pode-se dizer, como um ramo da investigação mais exata da arte musical em virtude da invenção do fonógrafo [. . . ]"13 [13] Gilman, Benjamin I. Hopi Songs: A Journal of American Ethnology and Archeology. Boston: Houghton Mifflin, 1908, vol. 5. p. 27. .

4.

Com o seu fonógrafo Edison, portátil e de simples manuseio, Roquette-Pinto coletou uma série de melodias ou canções daqueles índios da Serra do Norte - Parecís e Nambikwaras, segundo ele -, algumas das quais fez transcrever por um colega do Museu Nacional, Astolfo Tavares, e publicou em seu livro Rondonia. Anthropologia. Ethnografia, cuja primeira edição veio à luz nos Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 1917, e a segunda, em 1919. O livro contém transcrições de 13 canções: 7 parecí, 2 nambikwara e 3 de sertanejos cuiabanos. São transcrições bastante simples, que procuram indicar a linha do movimento melódico e rítmico, sem atender às demais inflexões e sutilezas de entoação, descumprindo praticamente uma a uma as orientações a respeito oferecidas pelos entendidos no assunto, como Hornbostel, Abraham e outros mais14 [14] Cf. Abraham, O.; Hornbostel, E. "Über die Bedeutung des Phonographen für vergleichende Musikwissenschaft" In: Zeit schrift für Ethnologie, ano 36, 1904. p. 232-233. . De todo modo, Edgard não se pretendia musicólogo, nem folclorista, e fez o melhor que pôde. Na época, não havia especialista no assunto no Brasil e é provável que Edgard tenha sido um dos primeiros pesquisadores brasileiros, senão o primeiro, a coletar gravações de cantos indígenas com um fonógrafo15 [15] Cantos de indígenas brasileiros já haviam sido fonografados, por exemplo por Koch-Grünberg, cujas melodias foram transcritas e discutidas por papas do assunto. Ver e ouvir o CD Music! 100 Recordings indicado anteriormente. . A publicação das transcrições em Rondonia. Anthropologia. Ethnografia é um trabalho pioneiro e revelou, para o público daquele livro, um universo novo e, para alguns, sensacional.

O compositor Heitor Villa-Lobos, amigo do peito de Edgard, foi um dos que ficaram completamente tomados pelos fonogramas. Os relatos dizem que ele não se cansava de ir ao Museu Nacional para ouvi-los16 [16] Cf. Peppercorn, Lisa M. Heitor Villa-Lobos: Leben und Werk des brasilianischen Komponisten. Zurique: Atlantis, 1972. p. 63; Appleby, David P. Heitor Villa--Lobos: A Life (1887-1959). Lanham: Scarecrow Press, 2002. p. 25 e 82. , chegando a gastá-los de tanto escutá-los - os cilindros de cera são muito frágeis, razão pela qual os especialistas (aqueles cujas orientações Edgard deixara de seguir) recomendavam, assim que possível, a cópia imediata das gravações em um suporte de metal, bem mais durável.

Villa-Lobos não se contentou com as transcrições contidas em Rondonia. Anthropologia. Ethnografia. Embora as apreciasse enormemente, queria mais: queria ouvir os próprios sons, mergulhar na autenticidade única fornecida pelas gravações, que transpunham o ouvinte carioca para aquela "região vastíssima do território pátrio", em meio à "mais interessante população selvagem do mundo". Cercado por todos os lados pelas coleções de artefatos materiais indígenas do Museu, muitos deles coletados por Edgard na mesma expedição, o compositor ouvia os fonogramas em um cenário feito sob medida para a sua imaginação superlativa. A coleção museológica e os fonogramas transportaram-no, de corpo e alma, para aqueles territórios inóspitos e selvagens que suas lorotas procuraram dar estatuto de realidade posteriormente. E, pode-se especular, ele de fato esteve "lá", pois sua experiência de escuta o colocou em meio à selva e aos selvagens.

5.

A inteligência ímpar do inventor do fonógrafo procurava unir, já nos primórdios de uma revolução tecnológica, pesquisa e negócio. A invenção do fonógrafo foi pensada simultaneamente como uma conquista tecnológica e um negócio potencial. "The miracle of the 19th century, the talking wonder" poderia, segundo seu criador, cumprir várias funções. Em artigo na North American Review, pouco depois da invenção do aparelho, Edison arrolou as seguintes possibilidades, bastante atuais, mesmo passados quase 150 anos:

  1. Escrita de cartas e todos os tipos de ditado, com ou sem a ajuda de estenografia.

  2. Livros fonográficos, que falarão para as pessoas cegas, sem lhes exigir esforço.

  3. Ensino da dicção.

  4. Reprodução de música.

  5. A "memória familiar": o registro dos ditos, reminiscências etc. dos membros da família, em suas próprias vozes, assim como as últimas palavras dos moribundos.

  6. Caixinhas de música e brinquedos.

  7. Relógios que anunciam, em fala articulada, o horário de ir para casa, das refeições etc.

  8. A preservação de línguas, pela reprodução exata do modo de pronunciar.

  9. Finalidades educacionais, tais como preservar as explicações dadas por um professor, de modo que o aluno possa se reportar a elas a qualquer momento, assim como soletração ou outros deveres, formulados através do fonógrafo com vistas à memorização.

  10. Conexão com o telefone, de sorte a tornar esse instrumento um auxiliar na transmissão de registros permanentes e inestimáveis, em vez de ser apenas o recipiente de uma comunicação momentânea e passageira17 [17] Edison, T. A. apud "The History of Edison Cylinder Phonograph". Disponível em: <http://memory.loc.gov/ammem/edh tml/edcyldr.html>. Acesso em: 25 set. 2014. .

Não obstante seu ímpeto empreendedor, Edison não ajuntou à lista, talvez não por desconhecimento, mas por julgar de menor significação comercial, a utilização que se mostraria a mais longeva de todas para o fonógrafo em sua forma original: a gravação etnográfica e, em especial, a etnomusicológica. Somente nas mãos dos antropólogos da música (ainda não denominados etnomusicólogos) o fonógrafo adentraria o século XX, até ser substituído por uma tecnologia desenvolvida no esforço de guerra e disponibilizada após o fim da trajédia para outros usos: a gravação em fita magnética.

6.

A possibilidade de reprodução técnica do som permitiu o aparecimento de sons até então inexistentes, porque eram desconhecidos ou inaudíveis18 [18] O leitor cinéfilo lembra-se imediatamente de Blow out, uma "refilmagem" de Blow-up, em que a fotografia é substituída pela sonografia. Ao que se pode acrescentar o seguinte: "A gravação como uma fotografia acústica é, de fato, uma figura que até precede e depois se segue à invenção e ao desenvolvimento inicial do fonógrafo. Já em 1856, Nadar teve a ideia de um daguerréotype acoustique, que poderia reproduzir sons fielmente". Levin, T. Y. "For the Record: Adorno on Music in the Age of its Techno logical Teproducibility". In: October, vol. 55, 1990. p. 32. . Ela deu outro e novo estatuto de existência a sonoridades que permaneciam insuladas e desconhecidas em recantos e situações muito distantes e inacessíveis aos habitantes das cidades modernas - ou mesmo quase modernas, como o Rio de Janeiro dos anos 1910. Por exemplo, às sonoridades da "mais interessante população selvagem do mundo".

A captação, a gravação e a reprodução técnica possibilitaram que essas sonoridades não somente aparecessem, mas também soassem com uma "autenticidade" absolutamente inédita e sensacional. No caso das gravações etnográficas e do uso do fonógrafo, sonoridades que até então só podiam ser transcritas em um sistema de notação inadequado puderam ganhar a forma "viva" de sonoridades reprodutíveis, que não as submetiam mais aos constrangimentos da fria notação musical ocidental moderna (embora a inovação tecnológica as submeta aos constrangimentos do aparelho e das possibilidades de gravação, assim como de reprodução do material registrado)19 [19] Como lembra Kittler, op. cit., p. 11-12, o fonógrafo rompe com o monopólio da escrita. .

Entretanto, a questão vai muito mais além. Seria preciso esclarecer se o fonógrafo não possibilita (ou revela) a emergência de um aural unconscious 20 [20] Formulo em inglês por conta das associações que o "aural" permite. A expressão remete ao "das Optisch-Unbewusste" de Benjamin e o The Optical Unconscious, de Rosalind Krauss. Cf. Benjamin, op. cit., p. 38-41; cf. Lindner, B., verbete "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit". In: Lindner, B. (Org.). Benjamin Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2011. p. 245-247. , até então oculto (ou inexistente?). Se Benjamin acertou, o fonógrafo abre para a percepção as portas de um novo mundo, no mesmo ato em que remodela os próprios mecanismos de percepção. A voz que canta para o fonógrafo não é a mesma que entoa para o ouvido, criando um outro espaço, "que atua de modo inconsciente"21 [21] Benjamin, op. cit., p. 40-41. . Ademais, na condição de uma talking machine, o fonógrafo é "mágico", operando uma participation mystique que une sujeito e objeto22 [22] Não posso avançar nessa direção; ver Taussig, M. Mimesis and Alterity. Nova York: Routledge, 1993, em especial p. 200-201. . É o que explica, entre outras coisas, o transporte "real" de Villa-Lobos da sala do Museu Nacional para o recôndito daquela região virgem e selvagem. O primitivo e o moderno se enlaçam, se criam e se determinam mutuamente.

Portanto, a gravação etnográfica não eliminou aura alguma, senão que possibilitou uma forma de sua emergência e presença. Justamente aquilo que desaparecera na transcrição de uma "canção" indígena, aquela diferença radical, que notação alguma podia fazer reviver e se convertera em letra morta, a gravação faz aparecer, mesmo que de modo embaçado e turvo, mesmo que em meio aos ruídos de uma tecnologia ainda incipiente. A sonoridade reproduzida não se desconecta da situação de sua produção, antes o contrário: produção e reprodução estão indissoluvelmente atadas. O registro sonoro ressalta aquela situação e ao mesmo tempo reconhece que ela não se confunde com o aqui e agora da reprodução. Estabelece uma diferença, e é nessa e dessa diferença que algo emerge; digamos, uma "aura".

A gravação não desconecta a obra da tradição, mas enfatiza o seu vínculo a um contexto. Ela não apaga os rastros, deixa-os ali; tende a torná-los indeléveis, além de os ressaltar. Em vez de acabar com a unicidade, a gravação reforça-a, pois aquela sonoridade é única, registrada naquela gravação (não por acaso, se diz de certas gravações que captaram mais do que simplesmente sons ou imagens, mas a "atmosfera", a "energia" e as "vibrações", algo absolutamente único daquela situação única - seja um ritual de uma cultura outra, um show na Ilha de Man, uma apresentação no Canecão, um concerto na Philharmonie ou mesmo uma sessão nos estúdios de Rudy van Gelder).

Nesse sentido, a reprodutibilidade não emancipa o canto ritual de seu ritual, mas evidencia, ainda que de forma embaçada, confusa e mediada, o vínculo entre eles. Por mais que as restrições técnicas impeçam, decerto, que o ritual seja registrado adequadamente, os traços mantêm-se no registro. Mesmo que de modo mutilado, a gravação permite e exige que se reconheça que ela registra uma situação (até uma situação artificialmente produzida, criada para o registro, como vemos nas fotos de Densmore ou Bartók: cantadas para o fonógrafo23 [23] Gostaria de remeter a quatro fotografias: Frances Densmore e o chefe Blackfoot em estúdio, em 1916, disponível no verbete dedicado a Densmore na Wikipédia (embora a foto seja de uma audição, e não gravação); Béla Bartók gravando em 1907, na aldeia de Zobordarazs, atualmente Eslováquia (diversas fontes, basta fazer busca: bartók phonograph); a fotografia no 10 do livreto ou no 3 do duobox 1 do CD Music! 100 Recordings, já mencionado; a fotografia na p. 215 de Taussig, M., op. cit. Benjamin formulou a questão, com vistas ao filme, mudo ou sonoro: "O decisivo é que se representa para o aparelho - ou, no caso do filme sonoro, para dois". E ainda: "põe no lugar do público o aparelho". Benjamin, W., op. cit., p. 27-28. O fonógrafo "frequentemente criava uma barreira psicológica entre músicos e o aparelho. Os artistas tinham de cantar ou tocar com todas as forças em direção a um grande funil à menor distância possível. Alguns viajantes relataram que seus informantes temiam que esse aparelho amaldiçoado roubasse suas vozes, um medo que pode ser tomado literalmente porque a voz realmente desaparecia para dentro dele e a pessoa branca a levava embora junto com a caixa". Simon, A., op. cit. p. 8. ). Os restos remetem ao todo de que são provenientes. Essa tecnologia permite que alguém esteja "presente como agente, mas corporalmente ausente". O resultado é que "a ausência se aproxima da presença": "quanto mais ausentes estão os corpos dos músicos, mais presente está a sua música"24 [24] Cf. Gumbrecht, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 98 e 172. .

7.

"Môkôcê cê-maká" é uma canção de Villa-Lobos, ao que consta, composta no Rio de Janeiro, em 1919. Publicada apenas dez anos depois, como parte dos esforços do compositor em se fazer imprimir em Paris, por uma editora prestigiosa, é a primeira das "Canções típicas brasileiras" - Chansons typiques brésiliennes, lemos na partitura -, parte de uma coletânea de dez peças para canto e piano25 [25] Há também versão posterior orquestrada. . Como uma espécie de subtítulo explicativo, ou tradução, "Môkôcê cê-maká" traz estampados os dizeres "Dorme na rede. . . / Canção para acalentar as criancinhas entre os índios Paricis". É dedicada a Elsie Houston e traz registrado: "Recolhido por E. Roquette-Pinto / Harmonizado por Villa-Lobos".

Contendo apenas 13 compassos, cuja execução demanda pouco mais de 30 segundos, "Môkôcê cê-maká" é uma das obras máximas do compositor. Também aqui, e ainda mais em um compositor tão prolífico, less is more.

8.

Embora só o exagero possa descortinar o xis da obra, o superlativo pode soar estranho. Ainda que se reconheça a presença de "elementos" ou aspectos da "música" de índios brasileiros no compor de Villa-Lobos, e ocasionalmente a sua importância26 [26] Este artigo é parte de um livro em preparação, no qual há um capítulo dedicado a "os índios de Villa-Lobos", em que procuro identificar e discutir a presença do "índio" na música do compositor. O tema é recorrente na literatura e todas as monografias sobre o compositor ao menos o mencionam. A título ilustrativo, pode-se ver: Volpe, Maria A. Indianismo and Landscape in the Brazilian Age of Progress: Art Music from Carlos Gomes to Villa-Lobos, 1870s-1930s. Tese (doutorado), University of Texas, 2001; Béhague, Gerard. "Indianism in Latin American Art-Music Composition of the 1920s to 1940s: Case Studies from Mexico, Peru, and Brazil". In: Latin American Review, vol. 27, n. 1, 2006. p. 28-37; Moreira, Gabriel F. O elemento indígena na obra de Heitor Villa-Lobos: observações músico-analíticas e considerações históricas. Dissertação (mestrado), Udesc, 2010; Waizbort, L. "Villa-Lobos e seus índios". In: Ladeira, M.; Belchior, P. (Orgs.). Presença de Villa-Lobos. Rio de Ja neiro: Museu Villa-Lobos, 2012. v. 14, p. 137-143. Para uma perspectivação comparativa, ver: Pisani, Michael V. Imag ining Native America in Music. New Haven: Yale UP, 2005; Born, Georgina e Hesmondhalgh, David (Orgs.). Western Music and Its Others: Difference, Representation, and Appropriation in Music. Berkeley: California UP, 2000. , "Môkôcê cê-maká" não está inscrita no cânone das obras do compositor. Qual é de fato o seu interesse, e o que a torna tão importante? As respostas exigem algumas voltas.

Quase todo mundo conhece ou ao menos já ouviu falar do "Pica-páo" - não o desenho animado, claro, mas o "Choros no 3" de Villa-Lobos, que traz esse título. Composto em São Paulo, em 1925, dedicado a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, obra proteiforme para coro masculino e septeto de sopros, ou apenas coro masculino a capella, ou septeto de sopros somente, eis uma obra que pertence ao cânone. O nome vem de uma brincadeira rítmica repetida ao longo da obra, entoada pelo coro: "pica-pau, pi-pau pi-pau pi-pau" etc. e que se relaciona, de modo que ainda está por ser avaliado, com a poesia "Pau-brasil" de Oswald - durante sua estada parisiense de 1923, Villa-Lobos ficou muito chegado ao casal Tarsiwal, que por ali estava. Contudo, lemos também no cabeçalho da partitura: "sur une chanson des Indiens Parecís".

Trata-se de uma das canções recolhidas por Edgar, o "Phonogramma 14. 597", transcrito e publicado em Rondonia. Anthropologia. Ethnografia e cuja melodia inicia-se entoando "Nozani-ná ôre kuá kuá"27 [27] Roquette-Pinto, op. cit., p. 84 bis. : o célebre "Nozani-ná", com que se inicia o "Pica-páo", cantado só por homens, como convém a um bom ritual indígena. Villa-Lobos tomou a melodia transcrita e publicada no livro de Edgar e fez dela o motivo principal de seu "choro". Letra e melodia reaparecem de forma literal na abertura da composição, marcando indelevelmente, pelo impacto do início, a obra como um todo. Mais ainda, já se afirmou que "a melodia 'Nozani-ná' rapidamente ganhou um enorme significado para Villa-Lobos, ganhando em sua obra um valor quase simbólico como uma representação total do indianismo"28 [28] Wright, Simon. Villa-Lobos. Oxford: Oxford UP, 1992, p. 37. . Não obstante a afirmação simplificar a figuração do "índio" e do "indígena", bastante variada e complexa, ela possui uma dimensão de verdade, pois sendo um tema "simples" (um elemento decisivo na ficcionalização do "indígena" na música de concerto), presta-se muito bem a adquirir esse "significado enorme". Quase todo mundo que conhece o "Pica-páo" sabe entoar o "Nozani-ná-orê-kuá-kuá", como se a cada "á" do "kuá" o pica-pau desse uma bicada na madeira, tal como o pica-pau do desenho animado.

Entretanto, o "Pica-páo" retoma um material já trabalhado por Villa-Lobos em outra das "Canções típicas brasileiras", intitulada "Nozani-ná", também de 1919 e na qual o compositor assinala a sua proveniência do fonograma 14. 597. A melodia provém sem dúvida daquela estampada em Rondonia. Anthropologia. Ethnografia. Também é dedicada a Elsie e traz os mesmos dizeres que "Môkôcê cê-maká": "Recolhido por E. Roquette-Pinto / Harmonizado por Villa-Lobos"29 [29] As questões que o "harmonizado por" coloca com relação à "autoria", e as implicações daí recorrentes, não serão tratadas aqui, a despeito de sua relevância. . Considerando-se a profunda impressão que Rondonia deixou no compositor, seria mesmo surpreendente que ele esperasse até 1925 para utilizar algum material do livro em suas composições. "Nazani-ná", a segunda das "Canções típicas brasileiras", também para canto e piano, apresenta o principal do que será, depois, apresentado no "Choros no 3" e, mais ainda, do que aparecerá de forma fragmentada e reelaborada em outros momentos da obra do compositor.

Em 1919, essa canção reforça a importância do contato de Heitor com as transcrições impressas no livro de Edgar, e de seu interesse pelo assunto30 [30] No mesmo ano em que Villa-Lobos compunha, Bartók enfatizou o interesse do material fonografado para a composição musical: "Os gêneros explorados de música folclórica mais ou menos exótica parecem provocar um interesse incomparavelmente maior, por parte de compositores, do que fazem, por exemplo, coleções etnográficas em relação a artistas ou textos folclóricos em relação a escritores. Preocupamo-nos aqui, portanto, não apenas com conquistas relacionadas a questões puramente científicas, mas também com aquelas que têm um efeito estimulante em compositores". Bartók. "Music folklore". In: Essays. op.cit., p. 163. . Mostra também o quanto pode render uma melodia transcrita sem maiores preocupações nas mãos de um compositor talentoso, que com poucos recursos (modo de dizer, pois o piano e a voz humana possuem muitos) consegue um resultado expressivo de alta voltagem. A simplicidade do motivo, somada ao incompreensível do texto e a sua rítmica marcada e fácil, tornam a canção uma síntese muito bem-sucedida de procedimento composicional e material "autêntico"31 [31] "A melodia é hexatônica: sol-lá-si-dó-mi-fá. / Não há armadura de clave, mas há uma polarização da melodia na nota sol. A nota fá aparece sempre natural, tanto na melodia quanto no piano, o que poderia sinalizar o emprego do modo mixolídio. A nota ré que caracteriza a dominante de sol não aparece na melodia. / O acompanhamento é muito simples, baseado somente em dois acordes: dó maior com intervalos de sétima e nona acrescentados e fá maior com intervalos de sétima e nona acrescentados, permeados por um ostinato rítmico." Marun, Nahim. Revisão crítica das canções para voz e piano de Heitor Villa-Lobos: publicadas pela editora Max Eschig. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 42-43. .

Já com "Môkôcê cê-maká" a situação é bem outra. Os leitores de Rondonia. Anthropologia. Ethnografia procurarão em vão no livro por uma transcrição dessa canção, ou melhor, do fonograma. Podemos supor que Villa-Lobos teve contato direto com o fonograma, tendo ele mesmo feito a transcrição (faltam informações a esse respeito). Esse fato é muito importante, pois a transcrição de Villa-Lobos é completamente distinta do padrão das transcrições publicadas em Rondonia (atribuídas a Astolfo Tavares). Como há o registro de Pepperkorn de que Villa-Lobos ia frequentemente ao Museu Nacional ouvir os fonogramas coletados por Roquette- -Pinto, tudo leva a crer ter sido o próprio compositor o autor da transcrição32 [32] Ao que parece, ir ao museu ouvir os fonogramas era programa obrigatório para os interessados no assunto. Não só Villa-Lobos, mas também Luciano Gallet e Mário de Andrade lá estiveram. Cf. Andrade, Mário de. "Quarto de tom". In: Música, doce música. São Paulo: Martins, 1963. p. 291; Gallet, Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro: C. Wehrs, 1934. p. 44. - sobretudo pelo incomum de sofisticação que ela apresenta se comparada com as transcrições publicadas em Rondonia. Anthropologia. Ethnografia.

Em seu livro, Roquette-Pinto descreve a "canção para acalentar as criancinhas", em uma dicção bastante romantizada:

A luz das fogueiras, subindo por entre as redes, trançadas de linhas vermelhas ou amarelas, iluminava os corpos nus, estendidos transversalmente. Numa rede, uma família inteira ressonava: pai, mãe e dois filhos, todos muito abraçados. Mais além, uma criança choramingava, ao lado de uma índia moça que a balouçava nos braços, cantando:

"Ená-môkôcê cê-maká

Ená-môkôcê cê-maká

(Menino dorme na rede. . . )"33 [33] Roquette-Pinto., op. cit., p. 82.

Essa descrição deve ter inspirado Villa-Lobos, pois o fonograma, que podemos ainda hoje ouvir, não prometeria tanta fortuna34 [34] As gravações que puderam ser recuperadas foram editadas e apresentadas no CD Rondônia 1912 (Coleção Documentos Sonoros), que pode ser baixado no site do Museu Nacional. . Villa-Lobos, transportado para o meio da "mais interessante população selvagem do mundo", ouviu, transcreveu, harmonizou e criou sua obra.

As transcrições presentes em Rondonia. Anthropologia. Ethnografia são bastante simples. Em momento algum há a tentativa de exprimir uma entoação ou uma rítmica mais complexa, antes o contrário. Contudo, é pouco provável que todos os cantos transcritos apresentassem a simplicidade rítmica indicada e também de entoação. Na transcrição (ou recriação, se preferirmos) de "Mokocê cê-maká" por Villa-Lobos, logo de início somos confrontados com o problema. Ritmicamente, na escolha do compasso 5/4, complexificado pelo uso de tercinas. Melodicamente, na sugestão da afinação "desafinada" da sílaba inicial, "Ê", que se inicia em e cai para bemol. Essa bemolização consuma um tipo de entoação menos preciso, segundo os padrões da música ocidental, e que foge ao registro no sistema sonoro do ocidente35 [35] A lembrarmos o mencionado artigo de Mário de Andrade sobre o "quarto de tom", que discute com a tese de Luiz Heitor sobre o ritmo, a escala e a melodia da música dos índios brasileiros e ressalta a "maneira oscilante de entoar, [...] [que] consiste em cantar os sons eternos por aproximações apenas, envolvendo-os de portamentos e indecisões sonoras". Cf. Andrade, Mário de., op. cit., p. 292. Mas toda essa discussão é muito posterior ao trato de Villa-Lobos com o assunto: estamos em 1919, e Mário em 1939; a tese de Luiz Heitor é de 1938. . Nesse sentido, essa canção de 1919 é um documento decisivo para se pensar a representação (ou ficcionalização) do indígena na música de Villa-Lobos: aqui se revela uma música complexa, realmente outra, e que resiste a ser transposta para o sistema ocidental. Ademais, como a canção lança mão de procedimentos de repetição, o elemento assinalado ganha grande evidência e centralidade.

Agora, a melodia que costumava ser simples - tal como em "Nozani-ná" - torna-se bastante complexa. Não é somente essa bemolização que simboliza uma afinação outra; todo o motivo é de alta complexidade:


Note-se o ritmo, no compasso 5/4, mas complexificado pelas tercinas nos dois primeiros tempos, e pela acentuação do contratempo na sílaba "ká", que é a altura inferior extrema da melodia nessa ocorrência. E mais, uma melodia de um cromatismo inusitado: , bemol, sol, sustenido, mi sustenido.

A parte do piano conjuga complexidade e repetição. A canção possui 13 compassos; em 10 deles, o piano repete o mesmo acompanhamento, a mão esquerda plenamente, a direita apenas alterando umas poucas notas, mas mantendo sempre o mesmo ritmo. Somente nos 3 compassos finais (a coda) isso se altera, quando a mão direita mantém o movimento usual, mas a esquerda transforma a figura rítmica usual em apogiaturas, que de todo modo continuam dirigidas às notas usuais.

A melodia indicada ocupa seis tempos (incluindo a pausa), em uma fórmula de compasso de cinco tempos. Isso significa que a peça, que se baseia em repetições dessa melodia, realiza um deslocamento de fase entre canto e piano, pois a unidade de repetição do piano é o compasso. Esse deslocamento vai se acentuando com o curso da peça, criando um desencontro altamente expressivo entre voz e instrumento. A isso se soma um elemento central na composição (que comentarei em detalhe a seguir), que ocorre duas vezes, na quarta e na sétima repetições: a melodia é encurtada em um tempo (excluindo a pausa). Esses encurtamentos fazem a defasagem ocasionalmente andar para trás, ou atrasar, embora a linha geral de seu movimento seja para frente. É como se o compositor estivesse brincando com a defasagem, jogando-a de lá para cá e de cá para lá. Além dessa dimensão lúdica, há incremento da complexidade.

O elemento central que mencionei é o seguinte: os dois tempos iniciais da melodia são, em duas ocorrências, compactados em um único tempo. Ou seja, a célula melódica de cinco notas em dois tempos (duas tercinas) torna-se uma célula de cinco notas em um único tempo (quintina, compassos 6 e 10). Como explicar essa alteração? Ainda mais que as ideias de "simplicidade" e "repetição" levariam a esperar uma repetição sem alterações?

O que ocorreu foi uma falha técnica do fonógrafo no processo de gravação, que Villa-Lobos incorporou em sua composição. Em vez de ignorar ou corrigir o erro da máquina, Villa-Lobos transformou-o em material expressivo. Mais ainda: em um material expressivo decisivo, pois altera o padrão da repetição.

Estamos falando de uma composição em que a repetição desempenha um papel central. Contudo, noto que essa repetição é sistematicamente subvertida por meio de procedimentos os mais variados. Ouçamos mais de perto. Ao escutarmos a gravação do fonógrafo, notamos uma falha técnica na reprodução sonora. Ela é, provavelmente, oriunda do processo de gravação. É provável que, durante a gravação, o cilindro do fonógrafo tenha falhado e girado mais lentamente do que deveria. Já vimos que a constância da rotação do cilindro é central para a gravação e a reprodução adequadas.

Na reprodução, isso acarretou uma alteração na frequência sonora, que se tornou muito mais aguda, além da aceleração da dicção (o mesmo processo que ocorria quando, em uma vitrola, o prato girava em uma rotação mais alta do que a correta). Como resultado final, o fonograma registra a melodia indígena na frequência normal e também em frequência alterada. Ao ouvi-lo, Villa-Lobos percebeu com clareza a questão, mas não a ignorou, antes o contrário. Ele transcreve a melodia na frequência correta, mas também a falha técnica, de sorte que, a melodia de Villa-Lobos é uma melodia tanto do canto indígena como da falha técnica.

Não há notícia, na história da composição musical do início do século XX (estamos em 1919), de um compositor que tenha incorporado a falha técnica na gravação/reprodução como um elemento expressivo da obra de arte musical. Em vez de expurgar da obra a falha, ele a traz para dentro da obra, convertendo-a em dimensão expressiva. Trata-se de uma tematização do registro e da reprodutibilidade técnica da obra de arte, pela via da própria obra; um procedimento autorreflexivo que o situa na ponta de lança das vanguardas artísticas de sua época (e mesmo além dela). A reprodutibilidade técnica deforma e transforma as sonoridades, que em seguida são trazidas para dentro da composição. Procedimentos similares a esse só aparecerão na música ocidental na virada para o século XXI.

Acompanhemos esse momento. A apresentação do tema (que se repete variadas vezes ao longo da canção) "Êná-môkôcê cê-maká", no terceiro compasso, toma todo o compasso (como dito composto de cinco tempos) e avança para o primeiro tempo do compasso seguinte. A seguir, ele é repetido duas vezes (compassos 4, 5 e 6), com a mesma duração ou com um tempo estendido (seis ou sete tempos) e o mesmo âmbito (descendo de lá para mi sustenido). Entretanto, ao final do sexto compasso acontece algo diferente, que é o momento em que ocorreu a falha técnica do fonógrafo.

Nesse instante, tanto a frequência sonora se eleva, como a velocidade se acelera, e é exatamente isso o que ouvimos também na canção: o "Êná-môkô", que antes ocupava dois tempos (em duas tercinas), agora ocupa apenas um tempo (em uma quintina). E se antes partia de lá 4, agora parte de sol 5, quase uma oitava acima (uma oitava significaria, em termos de frequência, o dobro das vibrações, e o dobro da velocidade de rotação do cilindro). A partir do "cê", tudo retorna à forma original, embora transposto um semitom acima. Trata-se de um episódio em meio à canção que irá se repetir, seguindo o mesmo padrão, no compasso dez. Como na gravação a falha técnica não se repete, fica muito patente a sua incorporação por Villa-Lobos como um recurso expressivo.

Outro aspecto da melodia dessa canção é que, após esse episódio, ao final do sexto compasso e sua "normalização" no início do sétimo compasso, a próxima repetição do tema, que se inicia ao final do sétimo compasso, o transpõe uma quarta diminuta abaixo. Se antes ele ia de 4 a mi sustenido 4, agora ele vai de mi natural 4 a si sustenido 3, no mesmo cromatismo indicado anteriormente. Também na gravação do fonograma podemos ouvir que, depois da aceleração que elevou a frequência e acelerou o ritmo, há uma desaceleração que parece ultrapassar, agora para baixo, a frequência correta, de sorte que a melodia se torna um pouquinho mais grave e mais lenta. Novamente, Villa-Lobos parece seguir as oscilações da máquina e a transposição do motivo uma terça abaixo encontra aí sua justificativa.

Essa melodia descendente repetida, com as variações mencionadas, oito vezes ao longo da canção, é ainda enfatizada por se iniciar sempre com um sforzando ou "ff" e ir decrescendo à medida que descende cromaticamente. Ocupando uma extensão que vai de si sustenido 3 a sol 5, uma décima terceira portanto, a canção exige da soprano/mezzo-soprano, cujo âmbito usual vai de C 4 (= si sustenido 3) a C 6 (com variações, evidentemente).

O que interessa assinalar é que a melodia explora a extensão vocal da cantora de um extremo a outro - o que, obviamente, nada tem a ver com as melodias "simples" e de âmbito restrito que se esperaria de uma melodia "indígena" (como se depreende do cluster simbólico36 [36] Desenvolvo a ideia do "cluster simbólico" relativo ao "índio de Villa-Lobos" em texto ainda inédito. ). Há, portanto, uma oposição clara entre a tessitura do motivo e a extensão total da voz na canção, que explora toda a tessitura da cantora. Se a primeira delas "reforça" a pretensa simplicidade da música indígena, a segunda a destrói.

O acompanhamento do piano, que se repete compasso a compasso, acentua sempre o contratempo do quarto tempo, como mencionado com relação à voz, operando assim uma ênfase importante nessa fração. Mas isso ocorre somente no primeiro compasso em que temos a presença da voz (o terceiro), pois, a partir de sua primeira aparição, o tema vocal, como assinalei, entra em defasagem com o piano.

Ele vai "atrasando": na primeira repetição, o tema começa no segundo tempo do compasso, na segunda, no terceiro tempo, e na terceira, quando ocorre a "falha" pela primeira vez, no quinto e no último tempo do compasso. Tema vocal e acompanhamento pianistíco somente entram novamente em fase (padrão do compasso três) no compasso dez, mas então o tema vocal aparece, pela segunda vez, "falhado", de sorte que não cumpre o esquema métrico do compasso três (o tema, em vez de ocupar 6 tempos, como nos compassos 3 e 4, ocupa apenas 4 tempos). Ou seja, melodia e acompanhamento, em fase no compasso 3, entram em defasagem a partir do compasso 4, para nunca mais se reencontrarem.

Podemos falar, creio, de algo ainda mais radical do que aquilo que Wisnik indicou em sua análise das "Danças características africanas", de 1914-191537 [37] Wisnik, José M. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 146-147. , pois há um padrão que se repete, mas não se repete jamais38 [38] Essa formulação evidencia o problema do "tempo" na e da música, que é profundamente afetado pelo processo de gravação, na medida em que coloca a música em outro registro de temporalidade. Entretanto, não é possível abordar o problema nesta ocasião. .

Em se considerando que as claves não possuem armadura, a parte do piano parece estar em dórico; o soa no piano ininterruptamente durante toda a peça39 [39] Intérpretes da obra sugerem ainda reforçar o ré pelo uso do pedal. "Sugerimos ao pianista sustentar a oitava ré-2/ré-3 com o pedal harmônico, ou tonal, durante toda a canção". Marun, N., op. cit., p. 37. , mas só aparece na melodia vocal no oitavo compasso, assim como no nono, na mencionada transposição do tema. 4 e 3, soando o tempo todo, e sempre abaixo da melodia vocal, formam uma espécie de base sonora, sobre a qual se sobrepõe a melodia cromática. Entre essa base e a voz, o piano desenvolve um movimento ascendente - portanto, em sentido contrário à melodia vocal -, também muito marcado por cromatismo, indo do 3 mencionado ao si 3. Esse movimento é escrito quase como um ornamento em torno de algumas notas centrais na ascensão, o que se consuma nos três compassos finais, quando as notas secundárias assumem a forma de apogiaturas, ou mesmo desaparecem, como ocorre no compasso final.

Toda a parte do piano, que como vimos se repete compasso a compasso, pode ser compreendida como um ostinato, um elemento muito presente na obra de Villa-Lobos40 [40] Cf. Salles, Paulo T. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, passim. , por um lado, e também tido como "característico" da expressão "indígena", no âmbito do cluster simbólico, por outro. Não obstante a compreensão como ostinato ser precisa, ela não me parece destacar suficientemente a especificidade do que está em jogo. Ocorre que o ostinato pode ser pensado, e talvez deva mesmo, como uma espécie de motorismo (Motorik), muito presente e importante na música daquela quadra histórica41 [41] Cf. Adorno, T. W. Gesammelte Schriften. Frankfurt: M, Suhrkamp, 1984. vol. 18 p. 69. O problema ostinato/motorismo ainda será mais desenvolvido. Cf. Böggemann, M. "Beispile IV: Linie und Motorik". In: Mauser, S. e Schmidt, M. (Orgs.). Geschichte der Musik im 20. Jahrhundert: 1900-1925. Laaber: Laaber, 2005. p. 253-268. . No nosso caso, isso é tanto mais significativo, quanto o motorismo carrega uma carga simbólica ligada ao "primitivismo", sendo um de seus exemplos o célebre "Allegro barbaro", de Béla Bartók (1911). Soma-se a isso a associação do fonógrafo-máquina com a ideia de motor, e temos um prato cheio, que chega a transbordar quando se lembra de que tudo isso ocorre em meio a processos complexos de defasagem.

"Môkôcê cê-maká" termina com uma espécie de fade-out nos três últimos compassos, em que as intensidades diminuem gradualmente e o motivo vocal fragmenta-se e reduz-se paulatinamente até desaparecer. O piano segue a mesma lógica, seja sustentando o cada vez mais levemente, seja concluindo com uma fermata na mesma nota. Além disso, aquele movimento ascendente do piano, embora continue, é, como vimos, simplificado, pois as notas principais do percurso são acompanhadas apenas de apogiaturas, ou nem isso.

9.

A audição e a incorporação da falha técnica como elemento composicional e expressivo é notável. Digamos que Villa-Lobos conjuga primitivismo e tecnologia de ponta. O "primitivo" da música indígena, mobilizado esteticamente na época, com a tecnologia mais avançada, valorizada por outras vertentes artísticas. Em trinta segundos, Villa-Lobos dá um nó e amarra tudo junto, algo que, na época, não se ouvia em lugar algum (um autêntico "ar de outro planeta")42 [42] Para situar a questão e dimensionar em contexto o fenômeno Villa-Lobos, ver Katz, Mark. Capturing Sound: How Technology Has Changed Music. Berkeley: California UP, 2004, cap. 5. .

Villa-Lobos trouxe a performance da máquina para dentro da composição, com o que a reprodução musical foi convertida em produção musical. Compondo música em uma época caracterizada pela reprodutibilidade técnica, ele antecipa na prática a discussão contemporânea do bauhausiano László Moholy-Nagy, interessado nas consequências da fonografia para a composição musical e na influência (e nas possibilidades) que novas tecnologias podem exercer sobre (ou abrir para) o compor musical. Com clarividência e espírito inquiridor, Moholy-Nagy, a partir de 1922, formulou a relação de reprodução e produção, para mobilizar a primeira em favor da segunda: "Dado que sobretudo a produção (a configuração [Gestaltung] produtiva) está a serviço da estrutura [Aufbau] humana, precisamos tentar alargar os aparelhos (meios), empregados até agora apenas para fins de reprodução, para finalidades de produção"43 [43] Moholy-Nagy, L. Malerei, Fotografie, Film. Berlim: Gebr. Mann, 1986. p. 28-29 (originalmente 1925). . Em outras palavras, defende "transformar o gramofone de um instrumento de reprodução em um instrumento de produção"44 [44] Moholy-Nagy, L. "Musico-Mechanico, Mechanico-Optico". In: Musikblätter des Anbruchs. Musik und Maschine (edição especial) ano 8, out.-nov. 1926. p. 365. Para outros exemplos, ver Kittler, op. cit., e Katz, op. cit. ; exatamente o que Villa-Lobos, a seu modo, realizara poucos anos antes. O tema - digamos, a "invasão da técnica na arte"45 [45] A expressão é do músico Leo Kestenberg, em publicação que organizou sobre o tema: Kunst und Technik. Berlim, 1930, apud Schöttker, D. "Kommentar". In: Benjamin, W. op. cit., p. 114-115. Desde então, o tema não saiu do ar: a técnica como elemento central na produção da obra de arte. Cf. Hennion, A. e Latour, B. "How to Make Mistakes on So Many Things at Once: And Become Famous for it". In: Marrinam, M.; Gumbrecht, H.U. (Orgs.). Mapping Benjamin: The Work of Art in the Digital Age. Stanford: Stanford UP, 2003. p. 96. - é amplo e gerou muita discussão nos anos entre Guerras. Contudo, na composição musical, os resultados práticos foram bem restritos durante o período, o que faz ressaltar a contribuição de Villa-Lobos.

Não resta dúvida de que a reprodutibilidade técnica produz como efeito colateral contingente (ou função latente) a falha técnica. Villa-Lobos soube explorar simultaneamente ambas: incorporando a falha como elemento inscrito no processo de reprodutibilidade - e não a ignorando ou procurando purificar tal processo. Assim, a falha técnica tornou-se expressão, reconvertida em material alterado e em procedimento composicional. Pode-se pensar essa questão em conjunto com Max Weber, que detectara, poucos anos antes, e precisamente no âmbito da sociologia da música, as falhas no processo de racionalização do material musical e, mais ainda, assinalou as possibilidades de se haver com essas falhas - enclaves irracionais em um material racionalizado. Uma das alternativas é justamente a incorporação do elemento que não se deixa racionalizar como recurso expressivo46 [46] Ver Weber, M. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995. A sociologia da música foi tão central para Weber que ele a utilizou como modelo para sua sociologia da religião amadurecida. Essa mesma ideia dos enclaves irracionais em um material racionalizado reaparece em seus estudos sobre a ética econômica das grandes religiões universais, em que demonstrou como o racionalismo consequente procura racionalizar ao máximo e deslocar tudo o que permanece não racionalizado e irracional para o mais longe possível. O que permanece irracional pode ser, argumenta ele, processado de duas maneiras. Ou é encoberto e/ou deixado de lado, ou é utilizado como um elemento de enriquecimento do material racionalizado. Cf. Weber, Max. Max Weber Gesamtausgabe, vol. I/19. Tübingen: J.C.B. Mohr (P. Siebeck), 1989. p. 102-103. . Exatamente o que constato em Villa-Lobos.

É preciso ainda observar que a forma da canção é tributária da gravação fonográfica. Essa é uma das explicações para a curteza da canção, uma economia de meios levada ao extremo (que se costuma atribuir a outros compositores, mas não ao prolífico, extenso e exagerado Villa-Lobos), não obstante a repetição. Repetir, nesse caso, nada tem de supérfluo ou redundante, nem indica falta de criatividade ou capacidade composicionais, senão que é força expressiva, pois a repetição é um traço característico, seja da gravação, seja do "original", que é transposto à serviço da obra. E, como assinalei, a repetição inverte-se (schlägt um, como se dizia) em não repetição.

A exploração da tecnologia como matriz para a composição musical significou tornar o erro do fonógrafo procedimento composicional. Ao fazê-lo, o compositor antecipa um processo que se desenvolverá somente no fim do século XX: "Alguns artistas vão trocar a clareza alcançada pelo som digital por uma postura pós-digital, na qual os distúrbios, os erros e as falhas dos próprios dispositivos eletrônicos são usados como material sonoro"47 [47] Iazzetta, F. Música e mediação tecnológica. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 184. . A pane que ocorreu no fonógrafo de Roquette-Pinto repete-se nos computadores e gadgets de hoje.

A estética "pós-digital" foi desenvolvida em parte como resultado da experiência de trabalhar imersivamente em ambientes saturados de tecnologia digital [. . . ]. Mais especificamente, é das "falhas" da tecnologia digital que esses novos trabalhos emergem: glitches, bugs, erros de aplicativos, travamento de sistemas operacionais, clipping, aliasing, distorção, quantização de ruído, e mesmo o ruído de fundo das placas de som, são a matéria-prima que compositores buscam incorporar em suas músicas48.

"A música passa a alimentar-se justamento do erro, das distorções e das falhas dos sistemas. [. . . ] a tecnologia torna-se alvo do seu próprio ruído, o qual é cada vez mais exposto dentro da obra de arte"49 [49] Iazzetta, F., op. cit., p. 198 e 214. . Pode-se dizer que Villa-Lobos inaugura um procedimento musical que só passado um século encontrará desenvolvimento programático e sistemático.

Na gravação de Roquette-Pinto, tivemos uma Time Axis Manipulation(TAM)50 [50] Cf. Kittler, op. cit., p. 56-57. involuntária, em virtude de erro de manipulação do aparelho ou de falha técnica da própria máquina (o que ocorreu de fato, não sabemos). A TAM foi desde o início um elemento reconhecido e valorizado do fonógrafo, utilizado nas propagandas do aparelho por Edison. O usuário do aparelho podia brincar à vontade, alterando a velocidade de rotação do cilindro e ouvindo a voz grave tornar-se aguda (ou o contrário), o que se tornou uma sensação. Por outro lado, a manipulação prestava grande serviço à musicologia comparada, pois, como assinalei, permitia ao pesquisador ouvir com mais atenção passagens de difícil percepção e compreensão51 [51] Cf. Kittler, op. cit., p. 57-58. . Na verdade, a reprodução na velocidade exata, de modo a garantir a mesma altura e duração da emissão original, foi sempre um problema para o fonógrafo, sujeito a variações na rotação, seja na captação/gravação, seja na reprodução52 [52] As consequências são inúmeras, bastando lembrar o mais famoso e divertido deles: o pretenso (?) anúncio da morte de Paul McCartney em "Revolution 9" (White Album), pondo o disco a girar no sentido contrário. . Com a TAM, o fonógrafo ofereceu ao ouvido humano, pela segunda vez, o até então inaudível. Pela primeira vez, ao possibilitar a presença do ausente; pela segunda vez, ao criar, via manipulação voluntária ou involuntária, novas sonoridades53 [53] Cf. Kittler, op. cit., p. 58. . O passo seguinte já se prenuncia: a manipulação como solução para impasses e dificuldades, seja dos músicos, seja dos engenheiros de som (casos emblemáticos: Glenn Gould e os DJs).

A pane do sistema fornece o princípio estruturador-expressivo da composição de Villa-Lobos54 [54] Cf. Adorno, T. W. Gesammelte Schriften. Frankfurt: M, Suhrkamp, 1978, vol. 16. p. 247-248. . É precisamente a alteração de tempo e altura, decorrente da falha do fonógrafo, que está no âmago do procedimento composicional, pois irrompe e rompe com o curso estabelecido e com a repetição, criando um deslocamento, um "fora do lugar" que é o coração da canção e que encontra sua contraface nas defasagens diante do piano55 [55] Como o motivo "Êná-môkôcê cê-maká" foi reutilizado e manipulado em variadas outras obras de Villa-Lobos, ele transfere e irradia o que foi aqui argumentado para outros momentos da obra. Portanto, a sua significação não é pontual, mas tem maior poder de generalidade, o que não pode ser explorado neste artigo. . Dessarte, tanto a voz como o piano operam deslocamentos, marcando um relacionamento que difere ao mesmo tempo em que se complementa, do que resulta uma síntese poderosa e única, algo que se convencionou denominar "obra-prima". Por outro lado, e ao mesmo tempo, é evidente que um tal procedimento composicional implode por completo a ideia de arte como "imitação da natureza": se ela imita algo, é a técnica56 [56] Cf. Blumenberg, H. "Nachahmung der Natur: Zur Vorgeschichte der Idee des schöpferischen Menschen". In: Wirklichkeiten in denen wir Leben. Stuttgart: Reclam, 1986. p. 55-103 e, do mesmo autor, Geistesgeschichte der Technik. Frankfurt: Suhrkamp, 2009. p. 65. Também Benjamin, W., op. cit., p. 35-36. . Para se ver aonde tinha chegado, nos idos de 1919, impelidos pelo movimento das forças socio-históricas, o primado do compor e o ímpeto criativo da fantasia subjetiva.

  • *
    Agradeço as leituras e os comentários de Carlos Fausto e Frederico Barros.
  • [1]
    Anônimo. "Edison's Perfected Phonograph". Nature, 29 nov. 1888. p. 109.
  • [2]
    Sobre o fonógrafo há muita literatura; cito apenas o trabalho excepcional de Kittler. Kittler, Friedrich. Grammophon, Film, Typewriter. Berlim: Brinkmann & Bose, 1986.
  • [3]
    Benjamin, Walter. Das Kunst werk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2007. p. 39.
  • [4]
    Valéry, Paul. "Avant-propos". In: Encyclopédie. Paris: Société de Gestion de l'Encyclopédie Française, vol. 16, 1935. (Arts et Litté ratures dans la Société Contemporaine.)
  • [5]
    Bartók, Béla. "The Folklore of Instruments and their Music in Eastern Europe" (1911-1931). In: Bartók, Béla. Essays. Nova York: St. Martin's, 1976. p. 239.
  • [6]
    Roquette-Pinto, E. Rondonia. Anthropologia. Ethnografia. In: Archivos do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917, vol. XX, p. XII. (Ortografia atualizada.)
  • [7]
    Não confundir com a canção homônima de Paul McCartney, gravada um século depois (1972).
  • [8]
    Cf. Anônimo. "Edison's Perfected Phonograph". Nature, 29 nov. 1888, p. 109. O motor auxiliar, elétrico, apenas move o cilindro, não se tratando, portanto, de uma técnica elétrica de gravação, que somente surgirá em 1924-1925.
  • [9]
    Veja, a título de exemplo, a presença e a importância do gramofone no romance A montanha mágica, de Thomas Mann (1924), ao passo que em Drácula, de Bram Stoker (1897), é o fonógrafo que aparece. Kittler apresenta outros registros literários mais significativos da presença e importância do fonógrafo. Ver Kittler, op. cit.
  • [10]

    Sobre a centralidade dos alto-falantes, ver Freire, S. "Early Musical Impressions from Both Sides of the Loudspeaker". In: Leonardo Music Journal, vol. 13, 2003. p. 67-71.
  • [11]

    Simon, A. "Recording Media: Methodological Implications for Ethnomusicology". In: Music! 100 Recordings: 100 Years of The Berlin Phonogramm - Archiv 1900-2000. p. 8 (encarte de CD). Sobre a significação do fonógrafo, ver Brady, Erika. A Spiral Way: How the Phonograph Changed Ethnography. Jackson: University Press of Mississippi, 1999.
  • [12]

    Cf. Fewkes, J. Walter. "On the Use of the Edison Phonograph in the Preservation of the Languages of the American Indians". In: Nature, n. 41, 17 abr. 1890, p. 560. A título de curiosidade, vale assinalar que Fewkes foi uma das principais fontes para Aby Warburg em sua famosa conferência de 1923 sobre o "ritual da serpente". Fewkes, no artigo citado relata: "Uma das gravações mais interessantes já feitas [por ele mesmo] foi a canção da dança da serpente".
  • [13]

    Gilman, Benjamin I. Hopi Songs: A Journal of American Ethnology and Archeology. Boston: Houghton Mifflin, 1908, vol. 5. p. 27.
  • [14]

    Cf. Abraham, O.; Hornbostel, E. "Über die Bedeutung des Phonographen für vergleichende Musikwissenschaft" In: Zeit schrift für Ethnologie, ano 36, 1904. p. 232-233.
  • [15]

    Cantos de indígenas brasileiros já haviam sido fonografados, por exemplo por Koch-Grünberg, cujas melodias foram transcritas e discutidas por papas do assunto. Ver e ouvir o CD Music! 100 Recordings indicado anteriormente.
  • [16]

    Cf. Peppercorn, Lisa M. Heitor Villa-Lobos: Leben und Werk des brasilianischen Komponisten. Zurique: Atlantis, 1972. p. 63; Appleby, David P. Heitor Villa--Lobos: A Life (1887-1959). Lanham: Scarecrow Press, 2002. p. 25 e 82.
  • [17]

    Edison, T. A. apud "The History of Edison Cylinder Phonograph". Disponível em: <http://memory.loc.gov/ammem/edh tml/edcyldr.html>. Acesso em: 25 set. 2014.
  • [18]

    O leitor cinéfilo lembra-se imediatamente de Blow out, uma "refilmagem" de Blow-up, em que a fotografia é substituída pela sonografia. Ao que se pode acrescentar o seguinte: "A gravação como uma fotografia acústica é, de fato, uma figura que até precede e depois se segue à invenção e ao desenvolvimento inicial do fonógrafo. Já em 1856, Nadar teve a ideia de um daguerréotype acoustique, que poderia reproduzir sons fielmente". Levin, T. Y. "For the Record: Adorno on Music in the Age of its Techno logical Teproducibility". In: October, vol. 55, 1990. p. 32.
  • [19]

    Como lembra Kittler, op. cit., p. 11-12, o fonógrafo rompe com o monopólio da escrita.
  • [20]

    Formulo em inglês por conta das associações que o "aural" permite. A expressão remete ao "das Optisch-Unbewusste" de Benjamin e o The Optical Unconscious, de Rosalind Krauss. Cf. Benjamin, op. cit., p. 38-41; cf. Lindner, B., verbete "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit". In: Lindner, B. (Org.). Benjamin Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2011. p. 245-247.
  • [21]

    Benjamin, op. cit., p. 40-41.
  • [22]

    Não posso avançar nessa direção; ver Taussig, M. Mimesis and Alterity. Nova York: Routledge, 1993, em especial p. 200-201.
  • [23]

    Gostaria de remeter a quatro fotografias: Frances Densmore e o chefe Blackfoot em estúdio, em 1916, disponível no verbete dedicado a Densmore na Wikipédia (embora a foto seja de uma audição, e não gravação); Béla Bartók gravando em 1907, na aldeia de Zobordarazs, atualmente Eslováquia (diversas fontes, basta fazer busca: bartók phonograph); a fotografia no 10 do livreto ou no 3 do duobox 1 do CD Music! 100 Recordings, já mencionado; a fotografia na p. 215 de Taussig, M., op. cit. Benjamin formulou a questão, com vistas ao filme, mudo ou sonoro: "O decisivo é que se representa para o aparelho - ou, no caso do filme sonoro, para dois". E ainda: "põe no lugar do público o aparelho". Benjamin, W., op. cit., p. 27-28. O fonógrafo "frequentemente criava uma barreira psicológica entre músicos e o aparelho. Os artistas tinham de cantar ou tocar com todas as forças em direção a um grande funil à menor distância possível. Alguns viajantes relataram que seus informantes temiam que esse aparelho amaldiçoado roubasse suas vozes, um medo que pode ser tomado literalmente porque a voz realmente desaparecia para dentro dele e a pessoa branca a levava embora junto com a caixa". Simon, A., op. cit. p. 8.
  • [24]

    Cf. Gumbrecht, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 98 e 172.
  • [25]

    Há também versão posterior orquestrada.
  • [26]

    Este artigo é parte de um livro em preparação, no qual há um capítulo dedicado a "os índios de Villa-Lobos", em que procuro identificar e discutir a presença do "índio" na música do compositor. O tema é recorrente na literatura e todas as monografias sobre o compositor ao menos o mencionam. A título ilustrativo, pode-se ver: Volpe, Maria A. Indianismo and Landscape in the Brazilian Age of Progress: Art Music from Carlos Gomes to Villa-Lobos, 1870s-1930s. Tese (doutorado), University of Texas, 2001; Béhague, Gerard. "Indianism in Latin American Art-Music Composition of the 1920s to 1940s: Case Studies from Mexico, Peru, and Brazil". In: Latin American Review, vol. 27, n. 1, 2006. p. 28-37; Moreira, Gabriel F. O elemento indígena na obra de Heitor Villa-Lobos: observações músico-analíticas e considerações históricas. Dissertação (mestrado), Udesc, 2010; Waizbort, L. "Villa-Lobos e seus índios". In: Ladeira, M.; Belchior, P. (Orgs.). Presença de Villa-Lobos. Rio de Ja neiro: Museu Villa-Lobos, 2012. v. 14, p. 137-143. Para uma perspectivação comparativa, ver: Pisani, Michael V. Imag ining Native America in Music. New Haven: Yale UP, 2005; Born, Georgina e Hesmondhalgh, David (Orgs.). Western Music and Its Others: Difference, Representation, and Appropriation in Music. Berkeley: California UP, 2000.
  • [27]

    Roquette-Pinto, op. cit., p. 84 bis.
  • [28]

    Wright, Simon. Villa-Lobos. Oxford: Oxford UP, 1992, p. 37.
  • [29]

    As questões que o "harmonizado por" coloca com relação à "autoria", e as implicações daí recorrentes, não serão tratadas aqui, a despeito de sua relevância.
  • [30]

    No mesmo ano em que Villa-Lobos compunha, Bartók enfatizou o interesse do material fonografado para a composição musical: "Os gêneros explorados de música folclórica mais ou menos exótica parecem provocar um interesse incomparavelmente maior, por parte de compositores, do que fazem, por exemplo, coleções etnográficas em relação a artistas ou textos folclóricos em relação a escritores. Preocupamo-nos aqui, portanto, não apenas com conquistas relacionadas a questões puramente científicas, mas também com aquelas que têm um efeito estimulante em compositores". Bartók. "Music folklore". In: Essays. op.cit., p. 163.
  • [31]

    "A melodia é hexatônica: sol-lá-si-dó-mi-fá. / Não há armadura de clave, mas há uma polarização da melodia na nota sol. A nota fá aparece sempre natural, tanto na melodia quanto no piano, o que poderia sinalizar o emprego do modo mixolídio. A nota ré que caracteriza a dominante de sol não aparece na melodia. / O acompanhamento é muito simples, baseado somente em dois acordes: dó maior com intervalos de sétima e nona acrescentados e fá maior com intervalos de sétima e nona acrescentados, permeados por um ostinato rítmico." Marun, Nahim. Revisão crítica das canções para voz e piano de Heitor Villa-Lobos: publicadas pela editora Max Eschig. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 42-43.
  • [32]

    Ao que parece, ir ao museu ouvir os fonogramas era programa obrigatório para os interessados no assunto. Não só Villa-Lobos, mas também Luciano Gallet e Mário de Andrade lá estiveram. Cf. Andrade, Mário de. "Quarto de tom". In: Música, doce música. São Paulo: Martins, 1963. p. 291; Gallet, Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro: C. Wehrs, 1934. p. 44.
  • [33]

    Roquette-Pinto., op. cit., p. 82.
  • [34]

    As gravações que puderam ser recuperadas foram editadas e apresentadas no CD Rondônia 1912 (Coleção Documentos Sonoros), que pode ser baixado no site do Museu Nacional.
  • [35]

    A lembrarmos o mencionado artigo de Mário de Andrade sobre o "quarto de tom", que discute com a tese de Luiz Heitor sobre o ritmo, a escala e a melodia da música dos índios brasileiros e ressalta a "maneira oscilante de entoar, [...] [que] consiste em cantar os sons eternos por aproximações apenas, envolvendo-os de portamentos e indecisões sonoras". Cf. Andrade, Mário de., op. cit., p. 292. Mas toda essa discussão é muito posterior ao trato de Villa-Lobos com o assunto: estamos em 1919, e Mário em 1939; a tese de Luiz Heitor é de 1938.
  • [36]

    Desenvolvo a ideia do "cluster simbólico" relativo ao "índio de Villa-Lobos" em texto ainda inédito.
  • [37]

    Wisnik, José M. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 146-147.
  • [38]

    Essa formulação evidencia o problema do "tempo" na e da música, que é profundamente afetado pelo processo de gravação, na medida em que coloca a música em outro registro de temporalidade. Entretanto, não é possível abordar o problema nesta ocasião.
  • [39]

    Intérpretes da obra sugerem ainda reforçar o ré pelo uso do pedal. "Sugerimos ao pianista sustentar a oitava ré-2/ré-3 com o pedal harmônico, ou tonal, durante toda a canção". Marun, N., op. cit., p. 37.
  • [40]

    Cf. Salles, Paulo T. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, passim.
  • [41]

    Cf. Adorno, T. W. Gesammelte Schriften. Frankfurt: M, Suhrkamp, 1984. vol. 18 p. 69. O problema ostinato/motorismo ainda será mais desenvolvido. Cf. Böggemann, M. "Beispile IV: Linie und Motorik". In: Mauser, S. e Schmidt, M. (Orgs.). Geschichte der Musik im 20. Jahrhundert: 1900-1925. Laaber: Laaber, 2005. p. 253-268.
  • [42]

    Para situar a questão e dimensionar em contexto o fenômeno Villa-Lobos, ver Katz, Mark. Capturing Sound: How Technology Has Changed Music. Berkeley: California UP, 2004, cap. 5.
  • [43]

    Moholy-Nagy, L. Malerei, Fotografie, Film. Berlim: Gebr. Mann, 1986. p. 28-29 (originalmente 1925).
  • [44]

    Moholy-Nagy, L. "Musico-Mechanico, Mechanico-Optico". In: Musikblätter des Anbruchs. Musik und Maschine (edição especial) ano 8, out.-nov. 1926. p. 365. Para outros exemplos, ver Kittler, op. cit., e Katz, op. cit.
  • [45]

    A expressão é do músico Leo Kestenberg, em publicação que organizou sobre o tema: Kunst und Technik. Berlim, 1930, apud Schöttker, D. "Kommentar". In: Benjamin, W. op. cit., p. 114-115. Desde então, o tema não saiu do ar: a técnica como elemento central na produção da obra de arte. Cf. Hennion, A. e Latour, B. "How to Make Mistakes on So Many Things at Once: And Become Famous for it". In: Marrinam, M.; Gumbrecht, H.U. (Orgs.). Mapping Benjamin: The Work of Art in the Digital Age. Stanford: Stanford UP, 2003. p. 96.
  • [46]

    Ver Weber, M. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995. A sociologia da música foi tão central para Weber que ele a utilizou como modelo para sua sociologia da religião amadurecida. Essa mesma ideia dos enclaves irracionais em um material racionalizado reaparece em seus estudos sobre a ética econômica das grandes religiões universais, em que demonstrou como o racionalismo consequente procura racionalizar ao máximo e deslocar tudo o que permanece não racionalizado e irracional para o mais longe possível. O que permanece irracional pode ser, argumenta ele, processado de duas maneiras. Ou é encoberto e/ou deixado de lado, ou é utilizado como um elemento de enriquecimento do material racionalizado. Cf. Weber, Max. Max Weber Gesamtausgabe, vol. I/19. Tübingen: J.C.B. Mohr (P. Siebeck), 1989. p. 102-103.
  • [47]

    Iazzetta, F. Música e mediação tecnológica. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 184.
  • [48]

    Cascone, T. "The Aesthetics of Failure: 'Post-Digital' Tendencies in Contemporary Computer Music", apud Iazzetta, op. cit., p. 198.
  • [49]

    Iazzetta, F., op. cit., p. 198 e 214.
  • [50]

    Cf. Kittler, op. cit., p. 56-57.
  • [51]

    Cf. Kittler, op. cit., p. 57-58.
  • [52]

    As consequências são inúmeras, bastando lembrar o mais famoso e divertido deles: o pretenso (?) anúncio da morte de Paul McCartney em "Revolution 9" (White Album), pondo o disco a girar no sentido contrário.
  • [53]

    Cf. Kittler, op. cit., p. 58.
  • [54]

    Cf. Adorno, T. W. Gesammelte Schriften. Frankfurt: M, Suhrkamp, 1978, vol. 16. p. 247-248.
  • [55]

    Como o motivo "Êná-môkôcê cê-maká" foi reutilizado e manipulado em variadas outras obras de Villa-Lobos, ele transfere e irradia o que foi aqui argumentado para outros momentos da obra. Portanto, a sua significação não é pontual, mas tem maior poder de generalidade, o que não pode ser explorado neste artigo.
  • [56]

    Cf. Blumenberg, H. "Nachahmung der Natur: Zur Vorgeschichte der Idee des schöpferischen Menschen". In: Wirklichkeiten in denen wir Leben. Stuttgart: Reclam, 1986. p. 55-103 e, do mesmo autor, Geistesgeschichte der Technik. Frankfurt: Suhrkamp, 2009. p. 65. Também Benjamin, W., op. cit., p. 35-36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2014
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