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NOVOS ESTUDOS ENTREVISTA FERNANDO HADDAD

O Cebrap tem tradição na reflexão e no debate sobre as dinâmicas sociais e econômicas das metrópoles.Essa contribuição aparece já em 1973, com Imperialismo e urbanização na América Latina, livro organizado por Manuel Castells que conta com a participação de quatro cebrapianos - Cândido Ferreira de Camargo, Fernando Henrique Cardoso,Lúcio Kowarick e Paul Singer.Pouco depois,Kowarick, Camargo e Vinicius Caldeira Brant publicariam São Paulo 1975: crescimento e pobreza, outro marco para estudos urbanos. Desde 2000, o CEM - Centro de Estudos da Metrópole, grupo multidisciplinar baseado no Cebrap - investiga temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas.

A partir dessa significativa experiência, Novos Estudos propôs um encontro de pesquisadores do Cebrap com o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Nesta entrevista, ele apresenta sua perspectiva sobre os desafios da gestão da cidade e os instrumentos que a prefeitura tem se dado para enfrentá-los. Formado em direito pela Universidade de São Paulo, Haddad teve um percurso acadêmico heterogêneo e rico, passando por vários departamentos da mesma instituição: é mestre em economia, doutor em filosofia até se tornar professor de ciência política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em 1997. Afastou-sedocargoem2001edesdeentãosededicaàvidapública.Sua passagem pela prefeitura vem sendo marcada pela participação constante em fóruns e debates sobre a questão das cidades.

A entrevista foi realizada no dia 15 de outubro de 2015, na sede do Cebrap, em São Paulo, com mediação de Ricardo Teperman, editor executivo de Novos Estudos.

EDUARDO MARQUES: Vamos começar falando sobre mobilidade, e os avanços produzidos nessas áreas, que, a meu ver, concentram-se no binômio transportes-planejamento, com a implantação das faixas exclusivas, corredores, assim como a aprovação do novo plano diretor e de outras legislações associadas à regulamentação, além de mudanças na estrutura da própria administração para fazer frente aos desafios da regulação. Que efeitos de médio e de curto prazo a gestão espera dessa política para a estrutura da cidade e para a forma como o desenvolvimento de São Paulo vai acontecer nas próximas décadas?

FERNANDO HADDAD: Acho que você tocou num ponto inicial muito oportuno. O desenvolvimento de São Paulo se deu de forma desequilibrada. Se pudéssemos resumir em uma frase sintética qual foi a principal falha de planejamento do ponto de vista urbanístico, diria que nós adensamos a cidade onde ela era privada de transporte de massa. Ou seja, cometemos uma falha básica de planejamento. O eixo de desenvolvimento da cidade é o eixo sudoeste. Da av. Paulista, descemos o espigão na direção da Marginal Pinheiros e o nosso eixo de desenvolvimento foi Faria Lima-Berrini. Hoje já estamos na av. Chucri Zaidan, encostando na ponte João Dias. O sudoeste foi o vetor de desenvolvimento,de geração de empregos qualificados,nova economia - tudo rumou nessa direção. Coincidentemente, para o nosso azar, trata-se de uma região totalmente privada de transporte público de massa.É uma falha básica,que não podia ter sido cometida. A maioria dos trabalhadores ainda se encontra na zona leste,então eles ficam mais distantes ainda do seu posto de trabalho.

O plano diretor reverte isso, dizendo: “Você só pode passar onde há transporte de massa planejado com ordem de serviço da obra” - o que tem dois efeitos. Em primeiro lugar, as pessoas vão ficar mais próximas de um eixo de mobilidade.Em segundo lugar,você lineariza o desenvolvimento, que deixa de ser blocado. O mercado imobiliário tem essa mania de desenvolver bairros em um sistema de cluster: vão todos para Moema, vão todos para Pinheiros; e os bairros passam por uma enorme transformação,sem o cuidado prévio de compatibilizar o adensamento com a capacidade de suporte do viário. É isso que transformou o Itaim Bibi, a Vila Olímpia, Pinheiros no que são.

O plano diretor afasta esses riscos,porque o desenvolvimento não só é associado aos eixos de mobilidade como deixa de ser por distrito e passa a ser mais linear, o que faz com que ele se capilarize na cidade e as oportunidades se aproximem dos bairros,inclusive os periféricos. Seu principal legado é essa organização urbana,se você combinar isso com medidas de curto prazo como nós procuramos fazer - ou seja, segregando faixas para ônibus, democratizando o viário. As pessoas dizem: “O que você tem contra o carro?”. Nada, mas ele não pode ser imperial, não pode ser dono de todo o viário. O carro tem o seu espaço, mas o pedestre, o ciclista e o transporte de massa têm de ter o seu espaço segregado também,para que não convivamos com aquela cena de um ônibus num trânsito de carros,que antes era tão comum em São Paulo e que hoje não se vê tanto.Ainda se vê nos bairros,mas onde tem uma malha viária estruturada não se encontra mais.

Entendo que houve uma reversão. Saiu uma pesquisa que me chamou muito a atenção:caiu de 56% para 45% o número de paulistanos que usam o carro para deslocamento todos os dias.Isso é muito significativo; significa que as pessoas estão buscando alternativas.

A outra face dessa moeda é procurar levar moradores para zonas já estruturadas, como é o caso do centro, que está vivendo - bem, estava vivendo até o ano passado, este ano a crise econômica afetou essa tendência - um certo boom imobiliário, com muitos lançamentos. Penso também na PPP em que a prefeitura é parceira do governo do estado,cedendo terrenos para habitação de interesse social.Esse repovoamento do centro é um movimento que também precisa ser explorado, considero que é uma tendência que veio para ficar.

EM: Tanto a produção do transporte público, dessa forma como vocês fizeram, quanto o planejamento e a regulação do território são politicamente conflitivos: há perdedores, e eles sabem que são perdedores. Qual é a influência sobre o mercado de terras desse eixo de ações da gestão e como aconteceram as relações com o setor privado, tanto o produtor da habitação, da incorporação imobiliária, quanto o setor dos prestadores de serviço urbano, especialmente os donos das empresas de ônibus?

FH: Os conflitos são conhecidos,não há novidade nisso,a novidade tem sido a forma de enfrentar a questão. Há um aprendizado do poder público nesse processo. Nossa gestão foi a primeira a contratar uma verificação, uma auditoria internacional sobre o sistema de transporte. Estamos falando de uma licitação de mais de 100 bilhões de reais, e você não pode assinar um contrato sem ter muita segurança do que está fazendo. A contratação da Ernst & Young, por licitação, nos deu clareza sobre a situação. Não é tão ruim quanto pensávamos nem tão boa quanto desejaríamos: as taxas de retorno são muito elevadas.

Estamos num embate que começa hoje, para ser bem honesto, com a publicação do edital, que fixa uma taxa interna de retorno teto para a licitação. Ou seja, estamos criando condições de competitividade no certame, mas, por não haver segurança de que essa competição vai se realizar na prática - porque há variáveis que nós não controlamos -, nós fixamos uma TIR [taxa interna de retorno] máxima no edital. É a primeira vez que se faz isso, o que já gerou conflito, e tendo a crer que essa conflituosidade vai aumentar ao longo dos próximos meses. A fiscalização passa a ser exclusivamente eletrônica e as punições por falta de cumprimento de algumas cláusulas contratuais são bastante elevadas.

Entendo que o setor tem que amadurecer. Não estamos sendo mais rígidos do que seria razoável: estamos sendo rígidos na medida em que a população exige um serviço melhor pelo que paga, na forma de tributo ou na forma de tarifa. Creio que a temperatura sobe um pouco, mas a conversa com o setor é no sentido de trazê-lo para um ambiente de negócio mais seguro para ele e mais confortável para o usuário, e vejo um desfecho possível.

No caso do setor imobiliário,penso que aprovamos o plano diretor em um momento talvez único na história da cidade: o setor estava muito fragilizado pela descoberta da máfia do ISS e por isso teve sua ação dificultada. Não falo do sindicato, que sempre agiu com muita transparência, mas é um erro imaginar que só o sindicato age. Na verdade,a preocupação maior é com aqueles que de certa maneira negam a legitimidade da negociação sindical e fazem uma negociação dentro da Câmara, mais ou menos desconsiderando os acordos pactuados à luz do dia.Esse é o grande problema das leis urbanísticas de São Paulo. O setor estava fragilizado e nós escancaramos o debate na cidade: todas as emendas foram publicadas com antecedência;não houve emenda “submarino” (aquela de última hora, que entra às duas da manhã) - nós sepultamos esses procedimentos.

O Ministério Público,em comum acordo com a prefeitura,ajudou. Nossa controladoria, à época recém-criada, também. Isso criou um ambiente de transparência que permitiu aos movimentos organizados da cidade - o movimento social de moradia, os urbanistas ligados à FAU ou a outras escolas de urbanismo - jogar luz sobre o debate e sobre a Câmara na aprovação do que considero o plano diretor mais avançado da cidade. As circunstâncias políticas acabaram favorecendo. Talvez 2013 tenha assustado um pouco todo mundo e favoreceu o poder público que queria fazer direito, tinha respaldo do movimento social para fazer.

EM: Há um custo difuso da imposição de uma regulação mais democrática do espaço viário, em que o carro impere de uma forma menos clara e menos absoluta. Esse custo está associado aos usuários do carro, que normalmente as pessoas dizem que é a elite, mas na verdade também é uma classe média, classe média baixa. Como você vê a sustentabilidade dessa política no tempo, considerando que governos mudam?

FH: O meu palpite é que o que estará em disputa num futuro próximo é se essa política vai continuar, não se ela vai ser revertida. É difícil revertê-la porque o tempo joga a favor dela. Se pegarmos as últimas pesquisas de opinião dessas medidas, você vai ver que quanto mais distantes no tempo, mais aprovação têm. A faixa de ônibus atingiu no último Ibope 90% de aprovação;as ciclovias,que são uma política mais recente, 59%, ou seja, trinta pontos a menos. A redução de velocidade teve 43%, portanto quinze pontos a menos. Garanto que isso mudará para melhor, a favor dessas políticas, com a consolidação e com os resultados.

São Paulo é uma cidade que precisa reduzir as mortes no trânsito de 12 por 100 mil para 6 por 100 mil, nós reduzimos de 12 para 9 em um espaço curto de tempo. O curioso dessas políticas, que são adotadas no mundo inteiro, é que, ao contrário do que se pensava, elas não favorecem apenas as pessoas que tiveram a vida poupada no trânsito. Você tem efeitos sobre todo o comportamento da cidade: tem maior fluidez,tem uma série de benefícios correlatos.Até pouco tempo atrás - em São Paulo até dez anos, mas no mundo até vinte, trinta anos atrás -, imaginava-se que ampliar a malha viária melhoraria o trânsito. Hoje, a academia internacional já sepultou essa tese: você gera trânsito. Quanto maior o seu viário, a demanda aumenta proporcionalmente mais do que a oferta. Até outro dia estávamos gastando dinheiro ampliando a Marginal Tietê pela supressão de área verde.Hoje, isso seria considerado crime ambiental.É uma política equivocada do ponto de vista da mobilidade, não só do meio ambiente.

As etapas estão sendo vencidas: hoje você tem uma Política Nacional de Mobilidade Urbana,que não existia até 2012.Assim como o Estatuto da Cidade foi um avanço,o plano nacional de mobilidade é outro avanço, que ajuda muito as metrópoles. Quero crer que o que está em jogo é a velocidade da mudança. Podemos viver uma estagnação:a pessoa se elege com um discurso de contestação dessa política e para com os investimentos, isso pode acontecer. Mas não consigo ver uma reversão.

CARLOS EDUARDO TORRES FREIRE: A cet [Companhia de Engenharia de Tráfego] tem anos de trabalho de alta competência, mas não estava voltada para a mobilidade por bicicleta, devido a uma forte cultura rodoviarista. Como foi a concepção das ações para a mobilidade por bicicleta dentro da prefeitura? Nos casos internacionais que deram certo, como Nova York, houve não só o chamado empoderamento da secretária de Transportes, mas contava-se com equipe, com estrutura. Houve um plano? Vocês se inspiraram em que cidades, em que casos? Há gerências específicas dentro da secretaria? Como se está pensando o monitoramento e a avaliação?

FH: Bem, nunca faltou estudo para São Paulo: os estudos não saem do papel porque não tem quem decida.Os primeiros trabalhos mais robustos sobre malha cicloviária em São Paulo datam do começo da década de 80. Já era uma tendência, já havia experimentos internacionais nessa direção. O problema, e vou começar pelo mais grave, é que a SPTrans [São Paulo Transporte] e a CET são duas empresas que tinham culturas completamente diferentes: uma cuidava de transporte público e a outra, de transporte de automóvel, como se você pudesse planejar esses dois setores, com duas culturas diferentes, em dois departamentos diferentes. Isso era regra. Lembremos do caso clássico do [Roberto] Scaringella, que foi uma grande liderança: você dificilmente via o Scaringella falar de fluidez do ônibus, velocidade do ônibus.

Esse paradigma foi quebrado. As equipes de planejamento hoje sentam à mesma mesa, sob o mesmo comando. Não existe mais essa segregação como se estivéssemos falando de duas cidades. Temos uma cidade, um viário - e é preciso dividir esse viário, que não vai se expandir (só marginalmente pode haver algum incremento).

O curioso disso tudo é que, enquanto no campo a propriedade goza de uma certa sacralidade (a reforma agrária sempre foi um bicho-papão no Brasil), na cidade a terra pública goza dessa sacralidade como um espaço de liberdade individual. É uma subversão de valores. O que é público é o espaço da liberdade do cidadão: “Se tenho o meu carro,tenho o direito de usá-lo da maneira como bem entender (subir na calçada,invadir faixa de ônibus).É o espaço da liberdade,é público”.

Enrique Peñalosa diz: “A questão de mobilidade na cidade é uma questão política; a correspondência é com a democracia, com o debate democrático”. Ele causou o rebuliço que causou no mundo com essa frase inspirado em boas práticas, inclusive brasileiras, no caso, de Curitiba, que manifestamente inspiraram as experiências da Colômbia.Quer dizer:o Brasil exportou uma tecnologia e abdicou dessa tecnologia que criou.

CETF: Você se inspirou em Bogotá?

FH: De certa maneira, sim. Os temas urbanos começaram a ser objeto de estudos acadêmicos robustos, e a academia hoje é um suporte muito importante para prefeitos progressistas, como respaldo para decisões. Respaldo que você não encontra muitas vezes nos meios de comunicação, que acabam refletindo o senso comum. E o senso comum,no capítulo mobilidade,está invariavelmente errado.Não é intuitivo que você,diminuindo a velocidade,vai melhorar o trânsito; nem que, segregando faixa de ônibus, vai melhorar a mobilidade e não prejudicar o carro. Essas coisas são contraintuitivas, então, quando você tem os estudos disponíveis comprovando que esse é o caminho, isso dá um alento. De onde viria o respaldo para tomar esse tipo de decisão?

CETF: Até por essa razão, você não acha que a prefeitura poderia comunicar melhor o que seria o plano cicloviário?

FH: Existe um déficit de comunicação, mas que não é dado só por uma ação, ou falta de ação, da prefeitura. Ele é dado também por um sistema de contrainformação que hoje é muito poderoso. Hoje o poder público está invariavelmente fragilizado na sua capacidade de comunicar ações. Para começar, ninguém mais vai a audiências públicas: vão as mesmas vinte pessoas, num universo de 12 milhões. Temos efetivamente que pensar a comunicação, e ninguém sabe direito como fazê-lo.

Isso dito, há colegas prefeitos sofrendo a pressão contrária nas suas cidades.Há ações civis contra prefeitos para que eles façam o que São Paulo está fazendo,enquanto aqui estou discutindo nos tribunais com a Ordem dos Advogados e com o Ministério Público a reversão desse processo. De certa maneira, estou ajudando os meus colegas a fazer as coisas: basicamente, executar o plano de mobilidade com menos resistência. Em Fortaleza, por exemplo, você tem 26 mortos por 100 mil habitantes. É mais do que o dobro do que em São Paulo, que já é um escândalo. Lá, a justiça está acionando o prefeito para que tome medidas,enquanto aqui eu estou me defendendo na oab contra a medida já tomada e que já surtiu efeito: já caíram cerca de 25% as mortes no trânsito.

Uma curiosidade: outro dia, conversando com jornalistas de fora de São Paulo que faziam exatamente este tipo de provocação: “Haddad, você se comunica mal”, um deles disse: “Você tem muitos apoiadores é em Florianópolis, em Recife”. Aí eu falei: “Então eu me comunico bem”. Se fora de São Paulo sabem o que estou fazendo, o problema deve ser de outra natureza.

CETF: Vamos voltar para a questão do desenvolvimento. Sabemos das restrições orçamentárias e de investimento, até por conta da dívida com a União, mas São Paulo representa 11% do pib nacional, é a cidade com as atividades econômicas produtivas mais importantes do país. Nos anos 90, havia um debate, que vinha da academia, da São Paulo “metrópole de serviços”, e não se sabia em qual direção a cidade iria. Ainda bem que isso passou e hoje sabemos que, independentemente de serviços ou indústria, o que importa são as atividades de mais alto valor agregado com inovação, que gerem empregos mais qualificados, que estejam conectadas a cadeias de valor internacionais. O debate público sobre o desenvolvimento econômico não está tímido demais? Qual é a sua visão sobre a agenda de desenvolvimento econômico para São Paulo?

FH: Considero a pergunta muito oportuna. Outro dia, conversando com o dono de um grande jornal, eu dizia: “As finanças municipais deviam ser objeto de análise, porque hoje as cidades estão no centro do debate sobre desenvolvimento nacional”. A economia urbana hoje, a economia criativa, entretenimento, patentes, hoje esse debate se dá nas metrópoles ou em grandes cidades e, portanto, é a mola do desenvolvimento. Os trabalhos do [David] Harvey demonstram com muita riqueza de dados o quanto a urbanização tem a ver com o desenvolvimento capitalista do pós-guerra. Aliás, não só do pós-guerra, porque começa com a Paris de Haussmann, mostrando como o processo de urbanização foi mola de desenvolvimento nacional - não local, nacional. Isso está suficientemente documentado para chamar a atenção, mas, no caso brasileiro, não chama. Eu já estranhava isso antes de ser prefeito e agora, que deparei com os dados da economia paulistana e do que ela representa, mais ainda. É curioso que os economistas continuem discutindo macroeconomia descasada do desenvolvimento local e em especial o desenvolvimento metropolitano. No debate dos grandes macroeconomistas do país não se está discutindo a questão fundiária nas cidades nem a economia criativa nas cidades. É espantoso: temos a melhor universidade da América Latina a alguns quilômetros daqui e a gente não está discutindo o que ela vai reverter em termos de desenvolvimento local e nacional como deveríamos.

Também aí o plano diretor indica caminhos muito interessantes. O principal deles é desenhar o cartão-postal definitivo da cidade de São Paulo,com a ocupação das margens do Pinheiros e do Tietê.Estou seguríssimo de que o nosso cartão-postal do século XXI vai ser dado pela resposta à pergunta:“O que será das margens do Tietê?”.Por isso a Ceagesp é tão importante: porque é um obstáculo ao desenvolvimento da cidade nessa perspectiva.

Estamos fazendo um debate muito aprofundado sobre distribuição de oportunidades no território: o polo de Itaquera, toda aquela área incentivada de Itaquera e agora Parelheiros, no sentido de gerar empregos de uma forma mais bem distribuída,buscando reequilibrar a cidade que é pensada para o lado sudoeste.Também não temos mais medo de discutir industrialização e economia de serviços, porque sabemos de que não é disso que se trata. Esse debate, que era um pouco acanhado internamente na prefeitura, deixou de ser: agora o debate público introduz essas variáveis. Temos tempo ainda neste ano para mostrar o potencial do que foi estudado em torno da questão do Tietê. Isso pode fazer uma grande diferença,porque temos âncoras preciosas nesse espaço:a Ceagesp, o Anhembi, o Campo de Marte, toda a Lapade Baixo, a operação Água Branca (que já foi aprovada),a operação Apoio Norte (que será encaminhada para a Câmara no ano que vem).

CETF: Você não acha que a prefeitura pode liderar, por exemplo, a discussão sobre novos tipos de parques tecnológicos, que os estados americanos já estão fazendo e as regiões europeias também? Não acha que é possível aproveitar esse tempo e colocar um debate que pense São Paulo para o futuro?

FH: Estávamos num bom debate com o Ministério da Ciência e Tecnologia sobre isso, o Glauco [Arbix] estava insistindo muito nessa perspectiva, e a gente estava se alinhando. A prefeitura pode liderar o debate, mas um polo tecnológico em São Paulo, do tamanho que São Paulo precisa, não dispensa a participação do governo do estado e do governo federal. O polo do Jaguaré está há muitos anos na gaveta, e o Ministério da Ciência e Tecnologia olha para outras regiões com mais apetite do que olha para São Paulo, como São José dos Campos, por exemplo. Agora que estávamos com o alinhamento um pouquinho melhor, houve mudança de comando.1 1 O sociólogo Glauco Arbix, professor da USP, assumiu em 2011 a presidência da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), instituição ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.Três meses após a nomeação de Aldo Rebelo para o ministério,em janeiro de 2015,Arbix foi substituído por Luis Manuel Rebelo Fernandes.

MAURICIO FIORE: O Cebrap teve a oportunidade de participar de uma pesquisa sobre o programa Braços Abertos. Ainda estamos terminando a análise desses dados, que serão lançados em novembro, em um seminário que a prefeitura está ajudando a organizar. No geral, o programa é bem avaliado pelos beneficiários, mas queria perguntar sobre o conceito que o move. O senso comum e o discurso midiático mantêm a ideia de que a questão é resolver aquilo - a Luz e a Cracolândia - e que o programa não resolve aquilo. Qual é o objetivo final do programa? Como se vai medir isso daqui a pouco?

FH: Vamos lembrar que aquela região tem vinte anos de degradação, não é um problema que começou ontem. Entendo que não há como negar que houve uma reversão de expectativa. Não existia nenhuma esperança até dois anos atrás, hoje existe esperança. Quais são os objetivos do programa? Do ponto de vista da cidade, é recuperar o espaço público. Considero inadmissível uma feira livre de drogas no coração de São Paulo, da maneira como aquilo estava organizado. A primeira medição que fizemos, pouco depois que assumi, em torno de abril ou maio de 2013, deu conta de quinhentos metros lineares de viário tomados. Considerando a rotatividade de pessoas, o número estável médio era de 1.500 usuários no percurso que sai da Sala São Paulo, passando pela estação Júlio Prestes até chegar ali na Helvétia, Dino Bueno,largo Coração de Jesus.Era impossível entrar na Sala São Paulo a pé.Uma coisa impressionante:um mar de gente e um descuido completo com a cidade e com as pessoas.

A primeira coisa que fizemos foi recuperar o espaço público. Hoje o que se chama de fluxo tem cinquenta metros e trezentas pessoas em média. Ou seja, é uma redução de 80% do número de pessoas e 90% do espaço ocupado, até porque elas estão um pouquinho mais compactadas.Temos presença da força de segurança,com redução drástica da criminalidade, sequestro, roubo, furto, agressão - não é dado da prefeitura, é dado de boletim de ocorrência do Infocrim.

A praça Júlio Prestes foi reformada, aquele larguinho em frente à Júlio Prestes foi reformado, o largo Coração de Jesus foi inteiramente reformado. São espaços ocupados pela comunidade, então, acho que é desonestidade intelectual dizer que nada mudou ali, não é possível que as pessoas não enxerguem isso. Agora, dependendo do enquadramento da câmera, você vê o fluxo e dá a impressão de que é a mesma coisa. Mas a escala é outra.

Em segundo lugar, a presença de assistentes sociais e agentes de saúde nunca foi tão importante: nós estamos presentes, o estado está lá. Em terceiro lugar, a Polícia Civil começou a fazer um trabalho de inteligência que também já tinha desistido de fazer.Eu disse para eles: “Olha,eu consigo chegar até um certo ponto abordando pessoas e convidando-as para o programa”. O Braços Abertos oferece alojamento, alimentação, frentes de trabalho voluntário e remunerado, cuidados de saúde. Ou seja, não é uma coisa tópica. O objetivo em relação aos beneficiários é o que chamamos de redução de danos. Chegar ou não à abstinência é algo que depende de variáveis que você não controla. Mas está provado que é possível promover a redução do consumo e a reorganização da vida dessa pessoa. Muita gente de classe média consome drogas e trabalha,tem família.Quer dizer,não é verdade que quem tem algum nível de drogadição não possa viver, se organizar e ser um bom cidadão. O que nós queremos é que aquelas pessoas não tenham de recorrer à criminalidade, à violência, que tenham alguma dignidade, um teto, possam se alimentar.

Não sei se vocês fizeram o questionário com essas quinhentas pessoas, mas a expressiva maioria vai dizer: “Eu mudei de vida para melhor”. Esse é o objetivo do programa: mudar a vida daquelas pessoas para melhor. Vi gente fritando cabeça de peixe em frigideira improvisada com óleo diesel, para não falar de cenas piores, quase impublicáveis.Não vejo mais ninguém agindo assim.Ainda há cenas pavorosas, mas precisamos contar agora com um pouco da inteligência da Polícia Civil, que está sendo comandada por uma pessoa que me parece com os melhores propósitos,com o objetivo de fazer aquele fluxo encolher ainda mais.Não na expectativa de que tenhamos uma cidade livre das drogas - nenhuma cidade é livre das drogas -, mas de que se tenha os espaços públicos recuperados e que se dê condições aos usuários ou dependentes de uma perspectiva de reabilitação.

MF: Alguns movimentos sociais, alguns especialistas afirmam que o programa está baseado em uma tolerância ao usuário e uma intolerância ao tráfico, quer dizer, uma ação das forças de segurança...

FH: Não é papel da prefeitura combater o tráfico, você tem estado e União, que têm a responsabilidade legal de fazê-lo. Enquanto não houver uma discussão sobre uma eventual mudança da legislação sobre o assunto - hoje a droga é proibida -, estado e União é que têm de combater.

O que nós estamos sinalizando ali é a intolerância à feira livre no coração da cidade de São Paulo, que não nos parece aceitável, porque aquilo é um convite permanente a jovens, a crianças, a população vulnerável socialmente a entrar nesse mundo sem nenhuma perspectiva de se reorganizar depois.

MF: O programa não fica um pouco manco enquanto mantiver a distinção entre usuário e traficante, que na verdade é muito fluida - quer dizer, quem é traficante e quem não é? A prefeitura tem apoiado discussões nesse sentido, como a vinda do Carl Hart diversas vezes. É possível ter um programa sustentável de redução de danos no contexto de uma política maior que é essa da criminalização?

FH: Acredito que um subproduto importante do programa é abrir um debate mais transparente e honesto sobre o capítulo das drogas Nós sabemos que há muito oportunismo político em torno desse debate. Estive outro dia em um debate com um pessoal da Open Society, e o ex-presidente Fernando Henrique estava presente: já há vozes querendo jogar luz numa perspectiva séria de aprofundamento da discussão sobre a guerra às drogas,sobre se a política de encarceramento vai nos levar a algum lugar, sobre os custos envolvidos com a guerra às drogas e o encarceramento. São outras abordagens que parecem hoje mais adequadas ou mais eficazes inclusive do ponto de vista da sustentabilidade econômica nos programas.

O Braços Abertos foi a primeira intervenção da prefeitura naquele território: não tem precedente, a prefeitura simplesmente ignorava aquela situação - “Droga não é assunto nosso”. É a primeira administração que diz:“É da cidade,nós vamos;o problema é nosso, nós vamos intervir”. E fizemos isso contrariando as diretrizes da própria Polícia Militar. Vou dar um exemplo: a polícia recomendava que fechássemos os hotéis que serviam o tráfico e a prostituição. Argumentei que aconteceria o que aconteceu com a demolição dos prédios desapropriados: geraria mais fluxo, e não menos. Aí fomos ao governador e dissemos: “Nossa proposta é diferente de fechar os hotéis, vamos alugar os hotéis. Vamos ‘estatizar’ aquilo, quer dizer, publicizar aquilo para um programa de acolhimento”.O governador, numa reunião, se alinhou com a prefeitura. Faz vinte anos que não dá certo, vamos tentar de outro jeito. Se não der certo do outro jeito, vamos tentar um terceiro. Às vezes querem fazer um joguinho “prefeitura/redução de danos” e “governo do estado/internação”. Não existe essa disputa no território, a gente trabalha junto. Há pessoas que são encaminhadas para internação porque querem e têm recomendação médica para tanto, e não somos obstáculo a isso de maneira nenhuma. As equipes tentam trabalhar sem cair na lógica da disputa menor. Quando há algum atrito no território, ligo pessoalmente para o governador ou vice-versa, e a gente restabelece o clima de cooperação, da qual dependemos para avançar.

MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA:Uma pergunta que tem relação com o que foi falado agora. Sou antiga o suficiente e entrei na idade adulta circulando pelo centro. Gostaria de saber como a prefeitura está pensando isso: os prédios estão todos ocupados, tem gente dormindo pela rua, numa escala um pouco superior à que existe em qualquer metrópole.

FH: No plano privado, da propriedade privada, de fato há muita ocupação no centro hoje. O que a administração tem feito? Estamos dando consequência ao IPTU progressivo no tempo, ou seja, os imóveis ociosos estão sendo tratados por uma legislação tributária mais rígida: a alíquota pode chegar a 15% do valor venal.Na prática,isso significa que ou o proprietário dá uma destinação para o seu imóvel ou vai perdê-lo,pois com o tributo que pagará não compensa manter a propriedade.Está em curso, mas a legislação exige tempo, você não pode fazer isso da noite para o dia. Ao final do processo se pode inclusive emitir títulos da dívida municipal para isso,é uma coisa que pode dar muito certo.

Em relação a moradores em situação de rua, essa população, que vinha crescendo 5% ao ano ao longo da década, cresce ainda, mas à metade da taxa:2,5% ao ano.E quando digo população em situação de rua, somo aqueles que são abrigados durante a noite. O que não acontece mais,e isso está causando uma certa estranheza,é aquela política de “fazer a limpa” no centro às cinco horas da manhã, como era feito até recentemente.Não acordamos ninguém com jato d’água nem com cassetete. A guarda foi proibida de agir dessa maneira.

Abrimos 2.600 vagas em albergue na cidade de São Paulo. Durante o dia, a pessoa não fica nesses albergues. No inverno mais rigoroso que tivemos,acho que em 2013,nós levávamos e trazíamos as pessoas pela manhã - pessoas que ficavam com medo de ir para o albergue e não voltar para os seus pontos de familiaridade.

Quando assumi,fizemos um censo das favelas do centro:havia dezessete favelas em praças públicas. Você lembra como era o largo São Francisco até dois anos atrás? Havia cinquenta barracas naquele gradil do metrô. O local foi desfavelizado, mas ninguém foi expulso dali. Eram dezessete favelas e não existe mais nenhuma,o último problema do centro expandido é Bresser e Alcântara. O problema é que quando você desfaveliza, mesmo abrindo abrigos em hotéis ou albergues, ao longo do dia essa população é moradora do centro,vive da catação,dos pequenos favores, da ajuda de ONGs.

MHTA: Vamos falar um pouco de educação. Os resultados do município de São Paulo na avaliação nacional de alfabetização são piores que os de algumas cidades do estado, e há uma certa sensação de que temas importantes para a população, como educação e saúde, ficaram em segundo plano na sua gestão.

FH: O debate público não é ditado pela prefeitura - eu falo de educação e saúde o dia inteiro. A fila do SUS saiu de cena porque caiu. É a primeira vez que cai a fila do SUS, e a imprensa não tem interesse em divulgar,notícia boa não é notícia.A imprensa está no papel dela, mas por que não se publica mais a fila do SUS em destaque? Simplesmente porque caiu.

Estou fazendo três hospitais gerais, isso nunca foi feito antes na história de São Paulo, três hospitais gerais simultaneamente: o da Vila Santa Catarina, o de Parelheiros e o da Brasilândia. Vou entregar trinta hospitais-dia - temos 21 prontos, até o ano que vem faço mais nove. Vou dobrar a capacidade de cirurgias de baixa e média complexidade: no ano que vem vamos fazer 118 mil cirurgias de baixa e média complexidade. Essa é a fila que falta derrubar - a de consultas e a de exames já caiu.

Tenho 32 CEUs com universidade pública dentro, cursos de graduação, especialização e mestrado - quem sabe disso? Só este ano abrimos 33 mil vagas em creches: é o dobro do melhor ano anterior, o recorde até então era de 17 mil vagas. Digo isso todo dia no rádio, mas não é assunto. Quando o tema sai da agenda, ele está ou resolvido ou encaminhado.

Sobre qualidade [na educação], o Brasil não vai bem nos exames internacionais? Já foi muito pior. Nosso Pisa de 2000 talvez tenha sido o pior da história. De lá para cá, o Brasil foi destaque no programa, o terceiro país que mais evoluiu. Não é pouca coisa. Hoje o Brasil está até um pouquinho melhor que a Argentina, que sempre teve um sistema educacional muito melhor que o nosso.Em parte porque eles caíram um pouco,em parte porque a gente foi o terceiro país que mais subiu. Educação é sempre preocupante, mas nós estamos, estávamos, não sei se estamos ainda, numa trajetória de ascensão. Considero inegáveis os avanços educacionais do Brasil da última década,sobretudo o acesso à educação profissional, à universidade, à educação infantil.

No Brasil só havia foco no ensino fundamental.Não só melhorou o ensino fundamental por todos os indicadores como também o acesso à educação infantil, que é uma ponta, e à universidade e à educação profissional, na outra. As pessoas valorizam muito a expansão das federais, o Prouni, o Fies. Com essa crise com o Fies quase acabou o mundo,e com toda a razão,porque é uma terceira porta que se abriu,é importante você financiar sem fiador - quando é que se pensou isso no Brasil? Com fiador você tem um programinha,sem fiador você tem um programão, então tudo isso mudou muito para melhor.

São Paulo ficou em 35º lugar na região metropolitana, é um escândalo,estamos trabalhando para reverter isso.Saiu um indicador novo que me agrada,criado pelo Reynaldo Fernandes,que era presidente do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira] na minha época de ministro e criou o Ideb,2 2 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, criado em 2011. que é uma renovação institucional importante. Ele permite acompanhar as escolas e compará-las com elas mesmas. Não faz sentido comparar coisas muito diferentes,como escolas de alunos de alta renda com escolas de alunos de baixa renda, mas comparar a escola com ela mesma faz. Enfim, o Reynaldo criou agora um indicador novo, nem foi por encomenda dos governos, não me lembro agora quem patrocinou, mas por uma dessas ongs ligadas à educação, mostrando que, quando você leva em consideração não só quem está na escola mas também quem não está, São Paulo se sai bem: fica na primeira posição entre as capitais.3 3 Trata-se do Ioeb (Índice de Oportunidades da Educação Brasileira), lançado no dia 7 de outubro de 2015.É uma iniciativa do Centro de Liderança Pública com o apoio do Instituto Península, da Fundação Lemann e da Fundação Roberto Marinho. Isso foi publicado há duas semanas.

A cobertura de zero a três anos em São Paulo é notável, existe hoje uma rede de creches espetacular na cidade, que está evoluindo. Mas temos que resolver o problema da qualidade do ensino fundamental. Não podemos ficar em 35º lugar,dentre 38 municípios,que é a última divulgação do Ideb. É um desafio, porque há muito corporativismo, há uma repulsa aos indicadores de qualidade por parte dos sindicatos. Quando eu era ministro e fui divulgar os indicadores por escola, houve quem apostasse que eu não ia ficar no cargo.Os governadores e prefeitos ligavam para a Casa Civil pedindo para o MEC não divulgar porque era ano eleitoral, foi uma grande confusão na época. Hoje ninguém discute mais. De novo: é a faixa de ônibus, depois de dois anos todo mundo se acostuma. Mas na hora em que você toma a decisão, geralmente é muito difícil. Teve jornalista que apostou na coluna que nós não iríamos divulgar, porque não resistiríamos à pressão política. E não estou falando de qualquer jornalista.

MHTA: Sei que a questão de educação na cidade não é só uma questão da prefeitura, mas como ela está pensando em lidar com esse problema da qualidade?

FH: Nós reestruturamos o currículo nas nossas escolas, reestruturamos os nove anos em três ciclos de três anos.O primeiro,que é o ciclo de alfabetização, ficou bem organizado, com o foco forte na questão do letramento.O último também está muito bem ajustado.É um ciclo autoral: você termina o seu fundamental com um TCC. O ciclo intermediário - esse miolinho dos nove, dez, onze anos - é que é o desafio,está passando por uma mudança em outros sistemas educacionais do mundo também, está se organizando.

Também acabamos com a aprovação automática - e as pessoas confundem um pouco o que é isso, dá a impressão de que você vai começar a reprovar. Do ponto de vista educacional, pedagógico, trata-se de devolver para a escola o que nunca deveria ter sido retirado dela: decidir se o aluno deve ou não prosseguir. A aprovação automática é a supressão ou encolhimento da autonomia da escola.

Nós devolvemos para a escola essa capacidade:voltar a decidir como se organizar e, estudando caso a caso, se entender que um aluno vai se recuperar com aulas de reforço no ano seguinte, aprova; se não achar que é possível, reprova.

Eu diria que essas duas ferramentas - a reorganização do ciclo e a ampliação da autonomia das escolas - vão surtir efeito a médio prazo, que é o que acontece em educação. Não há choque de qualidade: você rearranja os processos e colhe a médio prazo. Não precisa de longo prazo. Eu colhi no Ministério da Educação - você sabe que, segundo a Unesco,fui o único ministro do mundo que alcançou meta em educação? Nenhum ministro faz isso,fixar meta de qualidade.Por quê? Porque não depende dele. As coisas estavam tão precárias que eu disse: “Vou fixar e ver o que acontece”. E cumpri todas as metas de qualidade que foram estabelecidas, então o Brasil tem hoje um sistema de metas de qualidade que,na minha opinião,é menos valorizado do que deveria.

MARCOS NOBRE: Temos hoje a conjunção de uma crise econômica praticamente inédita em 25 anos, com um elemento ainda mais grave, que é uma desorganização do sistema político. Quando tivemos uma crise parecida no governo Collor, imediatamente se formou um polo para substituir o presidente, uma organização no sistema para dar um rumo. Queria saber sua opinião: quais são as origens da atual crise política brasileira, qual é a estrutura dela e o que a gente pode vislumbrar de perspectiva?

FH: Comungo da tua preocupação, e é bastante nítido que o sistema entrou numa rota perigosa do ponto de vista institucional. Na minha opinião, houve falhas na condução da política econômica a partir do final de 2012, em virtude de um diagnóstico que não se comprovou. A ideia de que algumas variáveis da economia internacional, de que aquilo não ia durar muito tempo, de que não estava havendo uma mudança de regime da economia internacional. Então se apostou em algumas medidas até erroneamente chamadas de anticíclicas,porque algumas não eram anticíclicas, imaginando-se que íamos atravessar um período com mais déficit, e que isso era natural para uma economia madura,e de fato é.Mas [a aposta era] que sairíamos do outro lado da margem já em rota de crescimento, e isso não aconteceu.

Como isso não aconteceu, veio a conta. E a conta não é pequena, a conta do ajuste não é pequena. Entendo é que talvez o governo esteja tentando perseguir dois objetivos simultaneamente,e que [estes] não sejam passíveis de serem atingidos. O governo está querendo trazer a inflação para o centro da meta; e está querendo trazer a trajetória da dívida pública como proporção do pib, no mínimo estabilizar essa relação. Não vejo como esses dois objetivos possam ser atingidos simultaneamente, porque a política monetária está corroendo a base fiscal do Estado e o corte de gastos é menos do que suficiente, em função do engessamento do orçamento,para fazer com que essa segunda variável se estabilize. Há uma tensão permanente entre política fiscal e política monetária,que concorrem para uma contradição do sistema. A solução que todo mundo está apontando,na verdade concedendo,é o aumento da carga tributária. Hoje já se vê empresários, banqueiros dizendo:“Vamos ter que aceitar a CPMF ou alguma coisa no lugar para fechar essa conta e retomar a confiança”. Como é que o Congresso vai reagir a isso?

O problema é que o sistema político parece ter ganhado uma certa autonomia em relação à base material da sociedade,está com as costas voltadas. O apetite pelo poder e pela exploração das possibilidades dadas pela crise estão falando mais alto do que a solução do problema nacional. Não bastasse a contradição entre a política fiscal e a política monetária no plano da crise econômica, há outra contradição entre o sistema político e o sistema econômico. O sistema econômico quer uma solução, qualquer que seja, porque ele perde mais com a não solução do que com uma solução que considera ruim. Esse é o ponto, e o empresário sabe disso: uma solução ruim é melhor do que uma não solução. Mas a política não aceita, e não só por oportunismo - é porque isso tem um preço em voto. Quando você toma uma medida impopular como a cpmf,tem um preço para quem aperta o botão do sim.

MN: Nas últimas três eleições municipais em São Paulo aconteceu uma coisa que, acho, não aconteceu em nenhum outro lugar do mundo: tivemos três candidatos presidenciáveis que ficaram em segundo lugar e que foram candidatos a prefeito em São Paulo. É espantoso e mostra alguma coisa sobre o sistema político brasileiro, sobre o que está em jogo em São Paulo, mas na eleição do próximo ano.

FH: Não tinha me dado conta disso. E, curiosamente,nas duas últimas vezes, perderam a eleição. Um case, praticamente.

MN: É, é um case. Winston Churchill, é aquela coisa: ganha a guerra e perde a eleição. Enfim, a novidade do ano que vem é que não vai haver mais candidato presidenciável como candidato a prefeito de São Paulo. Queria saber sua opinião: o que está em jogo na eleição do ano que vem? O que está se jogando aqui em São Paulo e que tem a ver com a política nacional e com o quadro nacional?

FH: Vale aquela frase: quem disser que sabe está mal informado. É muito difícil neste momento saber o que vai acontecer no debate da eleição no ano que vem. As eleições municipais às vezes conseguem se descolar do debate nacional, não sei se isso vai ser possível o ano que vem. Em 2004, o Lula já estava bem aprovado, numa situação confortável, um presidente já popular - não tanto como no final do mandato, mas já popular. E a Marta perdeu a eleição aqui. Em 2008, o Lula estava ainda melhor do que em 2004 - estava quase no auge da sua popularidade. E a Marta perdeu a eleição aqui. Então, existe algum grau de autonomia dos pleitos municipais em relação ao pleito nacional.

A questão do PT vai pesar, não tem como - a crise que o PT está vivendo... Qual é a resposta que os dirigentes vão dar para crise que o partido está vivendo e que afeta as ações de governo aqui? Porque você acaba vivendo num ambiente bastante hostil.Por serem tomadas por mim, medidas que poderiam ser aceitas com facilidade acabam visivelmente tendo mais dificuldade de ser assimiladas pela sociedade. Confesso que nem em junho de 2013 vivi momentos como agosto de 2015,com a redução da velocidade nas marginais.O grau de hostilidade à medida foi uma coisa que me impressionou muito - de as pessoas pararem o carro e abrirem a janela para exteriorizar um sentimento que eu desconhecia até então.

Quando você está seguro do que está fazendo, bem. Mas fico imaginando que uma pessoa mais frágil de convicções não ia suportar: ia rever uma semana depois a decisão.

O ambiente está muito contaminado, e penso que em São Paulo mais que no resto do Brasil. Por ter participado do governo federal, tenho amigos em todas as unidades da federação: o ambiente aqui é certamente mais carregado do que em qualquer outra capital. Então não sei o grau de influência das questões nacionais - economia,crise ética, crise política. Mas minha impressão é que isso tudo vai fazer parte da próxima eleição.

MN: Mas como você vê o futuro do PT? Enfim, ex-editor de Teoria e Debate, alguém que pensou o partido: qual é o futuro desse partido?

FH: O PT surpreende. É um partido que tem muita raiz. Você vai para os lugares e ainda se ouve muito: “Se não for PT, ninguém vai resolver o meu problema”. Existe a sensação de que, se os mais vulneráveis abrirem mão desse instrumento, não vai haver outro no lugar. Mas, obviamente, existe um grau de decepção com o que alguns dirigentes fizeram. É inaceitável a conduta de algumas pessoas que iniciaram o processo de formação desse partido que acabaram caindo aí numa vala comum horrível da política. Existe essa sensação, mas ao mesmo tempo existe uma intuição de que precisamos de alguma maneira preservar esse instrumento de mudança.

Outro dia eu falava com o Fernando Henrique e ele dizia: “O PT vai sobreviver a essa crise. Não sei de que tamanho vai ficar, mas vai sobreviver a essa crise”. Desde os meus quinze anos,tudo o que se faz no país tem a ver com o PT: evitar que o PT chegue,tirar o PT do lugar.O Lula é figura central desse processo, mas tudo que se fez no Brasil desde os anos 70 é assim: como impedir o Lula de chegar e, agora, como impedir o Lula de voltar.Quarenta anos de história e é disso que se trata o Brasil. Não há como não enxergar nisso uma força: essa obsessão com o Lula é proporcional à força que ele tem.Na pior situação - que é a que nós estamos vivendo -,ele figurar em segundo lugar,com 35% ou 37% de intenção de voto, não é qualquer coisa.

Eu não desprezaria nem a força institucional nem a força de liderança que o Lula representa.É uma situação de fragilidade,existe uma incógnita aí. Nem deveria estar falando isso, porque é um recado para a oposição: não subestimar a força do PT e do Lula, mas eu, no lugar deles,não subestimaria.Aliás,eles não estão subestimando,porque o aparato que está criado para espezinhar é notável. Todo dia, 24 horas por dia, é impressionante.

ANGELA ALONSO: Você mencionou há pouco como foi difícil junho de 2013. O PT sempre teve uma relação umbilical com movimentos sociais; você mencionou em várias respostas a participação dos movimentos. Mas em junho de 2013 essa participação foi muito diferente: você sofreu a oposição forte da mobilização no começo e resistiu a ela, inclusive com aliança ao Alckmin num primeiro momento, e contra a redução da tarifa. Depois foi objeto de hostilidades. Queria saber como foi essa experiência de “mudar de posição”: como o professor da USP, vinculado a movimentos sociais, virou o prefeito que teve que lidar com eles na oposição? Qual foi o aprendizado da relação entre autoridades e movimento a partir disso, o que mudou na sua cabeça?

FH: Aquilo de certa maneira me surpreendeu, surpreendeu o Brasil. Concretamente, o que aconteceu? Depois de dois anos e meio, a prefeitura deu 6,5% de reajuste na tarifa.Esse é o dado objetivo:não havia espaço orçamentário para continuar dando subsídio naquela proporção.Eu tinha recém lançado o programa de metas da prefeitura de São Paulo, tinha um comprometimento de investimento grande. E sabia que o recuo ali...

Primeiro: era justo, não era acima da inflação. Segundo: eu tinha dado uma entrevista dois meses antes propondo a municipalização da cid, o imposto sobre combustíveis, para viabilizar a modicidade tarifária do transporte público. Nunca tinha sido procurado pelo movimento social para discutir essa proposta, que acabou sendo incluída na carta do movimento Passe Livre endereçada à presidenta Dilma - sem mencionar o autor da proposta, como se fosse uma ideia deles -, o que é ótimo. É um movimento que não buscou interlocução. Eu cresci no movimento social em que as mediações são feitas, em que se estabelece uma mesa de negociação, em que se abre dados, se discute as consequências de a, b ou c. Deparei ali com um movimento que eu desconhecia e de tipo novo na forma. Você pode dizer que o conteúdo é interessante - a ampliação de direitos sempre interessa. Seis bilhões no sistema de transporte para todo mundo viajar de graça - acho ótimo. Mas, na forma, há uma novidade que não pode ser desprezada, porque em política a forma é tão importante. Em tudo: na arte também, forma e conteúdo não podem ser dissociados. Ali havia uma tese interessante, mas uma forma de atuação política nova, que não vem de uma tradição da esquerda clássica - pelo menos brasileira. Movimentos radicais como o MST, o MTST, saúde, educação; nenhum dos movimentos radicais clássicos da esquerda brasileira até aquele momento adotava aquela forma de atuação.

Penso que aquele movimento estava fadado a ficar do tamanho que era, com protesto, mas evoluindo para um outro tipo de cenário. Já tinha havido protesto contra o aumento da passagem em outras capitais, e mesmo em São Paulo, mas sempre com uma escala administrável. Eu considerava e considero justo discutir tarifa. É importante para as pessoas,sobretudo para o estudante - pagar para estudar não é pouca coisa para um jovem da periferia. Tanto é que fiz o Passe Livre depois, sem pressão nenhuma. Fiz porque quis: nem tinha prometido fazer passe livre na campanha, minhas promessas eram outras. Incorporei a bandeira, restrita aos estudantes e aos idosos.

O que entendo que aconteceu? Aquela forma de agir acabou servindo muito mais à direita do que à esquerda. A direita - que nunca soube lidar com movimento social, movimento de rua e tem dificuldade em organizar a população - viu naquela forma uma brecha até então inexplorada, como quem diz: “Ah, assim talvez dê”. E no fim a direita engoliu a esquerda, que foi expulsa da rua. Vi acontecer diante dos meus olhos - e entendia que isso ia acontecer,dizia para os meus interlocutores. A direita adotou a forma de organização que é muito mais aderente aos seus propósitos do que a própria esquerda, que procura mediações.A direita não gosta de mediações,gosta da política mais chapada. A direita foi para a rua e adotou a forma. Não por acaso o assunto hoje é MBL [Movimento Brasil Livre]: trocaram o P [de Movimento Passe Livre] pelo B e ficou tudo por isso mesmo. Adotaram a forma - que parecia progressista, pela horizontalidade, pela não mediação, pela não concessão - e engoliram o conteúdo, que hoje é todo conservador.Tanto é que houve um encolhimento,para não falar de uma expulsão, do pensamento progressista das ruas.

AA: Mas o que mudou na sua atuação como prefeito, que planos foram acelerados ou adiados? Você mencionou o Passe Livre, mas os corredores de ônibus também não estavam planejados na escala e na rapidez com que vêm sendo implementados.

FH: Fiz o movimento oposto.Falei:“O que eu gosto dessa história? O conteúdo” - então a administração [adotou] o conteúdo de esquerda.

AA: Mas você adiantou uma pauta que já tinha ou alterou a sua pauta?

FH: Na verdade, nós tínhamos que sair daquela armadilha, porque o que estava em discussão na rua não era a qualidade do transporte público.Era o que me interessava discutir,então eu disse:“O que de bom resta disso? Discutir transporte público. Querem acelerar a história? Têm um aliado aqui, vamos acelerar, mas na direção correta”.

AA: Queria insistir: o que mudou na sua atuação, na sua maneira de se relacionar com os movimentos? Várias das coisas que você mencionou têm a ver com antigos movimentos, vamos dizer, de inspiração socialista. Mas esses novos, autonomistas ou horizontalistas, esses agora assim chamados de direita: como é a relação agora com esses movimentos?

FH: A forma não mediada de interlocução com um governo que tinha sido eleito com a bandeira da mobilidade não me parece uma coisa progressista. Tanto não era que o desdobramento do movimento foi ser totalmente apoderado por bandeiras conservadoras: as bandeiras progressistas sumiram das ruas. O que restou foram bandeiras conservadoras e a eleição do Congresso mais conservador da história desde a democratização.

Considero que política é mediação. Quando você trava a mediação e estabelece uma lógica binária de conflito, com quem quer que seja - desprezando as características, a trajetória do incumbente -, penso que está adotando um tipo de postura que favorece muito mais o conservadorismo. Falei dos movimentos radicais, mas radicais que estabelecem mediações mais adequadas.Não estou falando da horizontalidade:isso é um simples subterfúgio para se recusar ao diálogo, você não consegue estabelecer com quem conversar. Não estou fazendo referência a uma característica, estou fazendo referência a como o movimento se apresentou, com toda a sua complexidade naquele momento, e por que ele, ao final, tendo, entre aspas, sido vitorioso, foi derrotado. Uma aparência de vitória que se traduziu em uma grande derrota.

MN: E se todas as formas de movimentos sociais dominantes a partir de agora forem desse tipo? Não vou discutir direita, esquerda, conservador ou progressista, porque a forma pode ser apropriada por todos.

FH: Podemos estar diante disso. Talvez essa mudança de forma tenha vindo para ficar, talvez diante disso a velha distinção entre esquerda e direita não faça mais sentido. Você só vai separar uma coisa da outra pelo conteúdo e não mais pela forma, porque a forma vai ser essa, independentemente das suas bandeiras. Sou cético em relação ao resultado disso. A impressão que tenho é que isso não vai produzir os melhores resultados para quem eu defendo.

AA: Mas como é que o Estado vai lidar com isso? Se não há uma interlocução clara, como prefeito, como é que você pode reagir?

fh: Recebo os movimentos sociais no meu gabinete e me reuni com vários estudiosos desses novos movimentos: o Pablo [Ortellado], a Esther [Solano] estiveram comigo mais de uma vez conversando sobre isso, e o debate termina exatamente onde esse terminou. Eu disse: “Entendo o que está acontecendo, o que vocês estão me dizendo é inteligível - mas sou muito cético em relação a essa perspectiva, considero que a chance de regressão política é enorme diante da forma que foi adotada”. Insisto: a forma na política é tão importante quanto o conteúdo. Se opusermos horizontalidade e verticalidade, de novo, caímos num raciocínio binário - não funciona assim. O problema é essa coisa anti-institucional, esse viés antiestatal - e essas não são questões menores.

Entrevista realizada em 15 de outubro de 2015.

  • 1
    O sociólogo Glauco Arbix, professor da USP, assumiu em 2011 a presidência da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), instituição ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.Três meses após a nomeação de Aldo Rebelo para o ministério,em janeiro de 2015,Arbix foi substituído por Luis Manuel Rebelo Fernandes.
  • 2
    Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, criado em 2011.
  • 3
    Trata-se do Ioeb (Índice de Oportunidades da Educação Brasileira), lançado no dia 7 de outubro de 2015.É uma iniciativa do Centro de Liderança Pública com o apoio do Instituto Península, da Fundação Lemann e da Fundação Roberto Marinho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2015
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