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1988 + 301 1 Com agradecimentos a Adriano Januário, Bianca Tavolari, Fernando Rugitsky, Jonas Medeiros, José Rodrigo Rodriguez, Ricardo Teperman, Ricardo Terra e Samuel Barbosa.

O impeachment foi o sintoma mais grave de que as instituições entraram em colapso. Progressivamente, passaram a funcionar de maneira disfuncional, descoordenada, e mesmo arbitrária. Para ficar apenas no dia-a-dia dos três poderes: o Executivo perdeu capacidade de liderar o governo; o Legislativo instalou uma pauta própria, independente do governo; o Judiciário estabeleceu um regime cotidiano de decisões que se afastou de qualquer padrão conhecido de jurisprudência. Há poder de fato, mas não há poder legítimo.

O funcionamento disfuncional das instituições veio juntamente com sua incapacidade de elaborar seis ondas de choque sucessivas nos últimos cinco anos. Entre 2011 e 2012, o governo Dilma adotou uma série de medidas que pretendiam reorganizar de chofre, de alto a baixo, de cima para baixo, a economia do país. Em junho de 2013, explodiram revoltas sociais de grande amplitude, expressão de insatisfações de toda ordem. Em 2014, Dilma Rousseff venceu por pequena margem uma eleição presidencial acirrada e, na sequência, anunciou a adoção de um programa econômico que tinha combatido durante toda a campanha. Ao longo de 2015,a Operação Lava Jato revelou e fez ruir as bases ilícitas de funcionamento do sistema político das últimas duas décadas. No mesmo ano, uma recessão de raro poder destrutivo se instalou por um período bastante longo. Em 2016, um processo de prensagem a frio da democracia levou ao afastamento de Dilma Rousseff da presidência e à apresentação pelo governo interino de um programa econômico que representa uma radical guinada liberal,sem qualquer discussão ou aprovação em eleições gerais.

É uma série que impressiona. São choques não apenas cumulativos, mas, sobretudo, de intensidade atordoante. Será uma tarefa de muitos anos entender esse processo em suas muitas dimensões. Mas a magnitude dos impactos não impede de concluir que os arranjos institucionais existentes se mostraram inadequados para elaborar as tensões em um sentido positivo qualquer. Sobretudo, mostraram-se incapazes de produzir as transformações fundamentais que o país terá de fazer para não entrar em uma espécie de colapso crônico,em que os choques continuarão a se suceder, com uma capacidade de amortecimento institucional cada vez menor. É sinal de miopia grave avaliar que as instituições “estão funcionando” no momento atual. O que se tem é simplesmente o tipo de “normalização do caos” que já se viu tantas vezes na história do país.

Daí que o colapso atual venha acompanhado de certa sensação de volta no tempo, de volta aos anos 1980, exemplo mais recente de “normalização do caos”. Essa sensação tem certo fundamento, assim como um tanto de ilusão. É real porque as instituições não funcionam mais segundo os parâmetros que as próprias instituições se dão e todo mundo se acostuma e se adapta a essa situação de descompasso permanente entre intenção e gesto institucionais. Do outro lado da moeda, a sensação também parece real porque é impressionante a multiplicação e a vitalidade de organizações na base da sociedade, orientadas pelos temas e problemas mais diversos, como se estivéssemos em um período pré-Constituinte. Ao mesmo tempo,a sensação de que o momento atual tem algo de inaugural, de novo começo, tem seu lado ilusório, já que não se trata de fato de uma regressão aos anos 1980. A redemocratização terminou. Não se trata mais da construção de instituições democráticas após uma ditadura nem da superação de um modelo de desenvolvimento que pertenceu ao século XX. Muito menos a situação é de descontrole total da inflação e das contas públicas. Trata-se agora de democratização, de decidir o que fazer com as instituições criadas e como rearranjá-las para que possam efetivamente funcionar segundo as necessidades de um momento pós-redemocratização.

A sensação de volta ao passado faz com que o plano de transformações estruturais do primeiro mandato de Dilma Rousseff ganhe certa cara de 1986, uma cara de Plano Cruzado. Da mesma forma, o plano Temer-Meirelles parece ter cara de 1990, uma cara de Plano Collor. São guinadas de direção que parecem radicais, mas que não fazem realmente avançar, pelo contrário. Daí também essa estranha expectativa de que o Plano Real está à porta, de que um novo ajustamento ao cenário global está à vista e que um novo ciclo de desenvolvimento vai se iniciar em breve. A expectativa é estranha não apenas porque não se está de fato nos anos 1980. É estranha principalmente porque, a cada vinte anos, o país parece achar que voltou para onde estava antes. Mas a estranheza vem agora com a novidade de, pela primeira vez, o país ter de enfrentar a necessidade de produzir um novo e efetivo pacto depois de definitivamente concluída a redemocratização. Pela primeira vez, terá de produzir novas imagens de concretização de sua Constituição dentro dos marcos da mesma ordem constitucional, da Carta de 1988. É a novidade de uma encruzilhada democrática.

O arranjo institucional que prevaleceu desde o Plano Real evitou o confronto aberto de posições conflitantes e mesmo inconciliáveis em torno do modelo de concretização da Constituição que deveria democraticamente prevalecer como resultado de eleições gerais. Dito de maneira crua, o que se produziu foi uma concretização parcial do programa constitucional mediante um grande acordo para aumentar carga tributária sem colocar em questão a própria lógica da tributação. Foi assim que, de FHC a Dilma Rousseff, firmou-se a cláusula social pétrea de que só poderia haver ganho para uma classe se todo mundo também ganhasse. Ou, pelo menos, se ninguém perdesse.

A eleição presidencial de 2014 e o que aconteceu depois mostraram claramente que essa maneira de evitar o confronto aberto de posições tinha chegado a seu limite. Toda a campanha girou em torno da questão da viabilidade ou não da continuidade das políticas distributivas. Que o impasse revelado em 2014 tenha sido depois engolido pela recessão, pelo estelionato eleitoral do ajuste fiscal e pela Operação Lava Jato apenas reforça a ideia de que o arranjo institucional estabelecido no Plano Real já não serve mais para lidar com a situação atual.

O período da abertura democrática foi marcado pelo generoso apoio à diversidade ideológica. Na saída da ditadura militar, o mais importante parecia ser deixar o caminho desimpedido para a multiplicação de partidos e para a diversidade de modelos de organização política. Ao mesmo tempo, havia certa expectativa de que “a competição no mercado político” levasse a uma progressiva concentração no cenário partidário. Não apenas pela indução a partir do instituto da eleição majoritária em dois turnos, mas também pela necessidade interna ao sistema de produzir coalizões de governo sólidas e efetivas.

No meio do caminho,entre a realidade caótica da década de 1980 e a expectativa em relação ao futuro,criou-se o conceito de “presidencialismo de coalizão”. Tratava-se de uma espécie de acomodação de um regime presidencialista a um sistema partidário já então razoavelmente fragmentado. A eleição em dois turnos deveria produzir um grande negociador da coalizão, o partido vencedor da eleição presidencial. Com isso, haveria também uma certa tensão - saudável e produtiva, esperava-se - entre o programa de governo da candidatura presidencial vencedora e os interesses partidários representados no Congresso, que teriam de se compor.

Não se confirmou o esperado processo de fusões & aquisições partidárias que permitiria uma gestão menos turbulenta do presidencialismo. Em lugar da maior concentração partidária, o que aconteceu, a partir de 1994, foi uma especialização partidária de caráter binário. De um lado, a esmagadora maioria dos partidos se especializou em venda de apoio parlamentar ao governo, seja qual for o governo. De outro, dois partidos, PSDB e PT, especializaram-se em dirigir esse mesmo grande bloco de apoio parlamentar segundo determinado projeto de governo. Nessa divisão binária, os partidos líderes como que terceirizaram a busca por votos,mandatos e cargos para os demais partidos,concentrando-se na tarefa de coordenação. Esse processo de terceirização na busca por votos mostrou-se tendente à fragmentação. Sempre que a competição exigiu, passou-se à quarteirização, à quinteirização e assim por diante. Nas bases eleitorais, conflitos de competição foram resolvidos com migração partidária. Na última década, a migração partidária se combinou também com a criação de novos partidos. O surgimento do PSD,em 2011,tornou-se o emblema desse movimento mais amplo.

Desde 1994, com exceção do período inicial do governo Lula e durante o abreviado segundo mandato de Dilma Rousseff, o que se viu foi a formação de megablocos de apoio ao governo e a limitação da oposição a uma franja parlamentar. Para mencionar apenas uma das muitas consequências desse arranjo,situação e oposição tiveram seus papéis hipertrofiado e atrofiado, respectivamente. É flagrante, por exemplo, a desproporção entre a votação recebida pelas candidaturas presidenciais e o total das bancadas de situação e de oposição no Congresso. Com as breves exceções já mencionadas,entre 1995 e 2014,as bancadas de oposição oscilaram nominalmente entre algo como 20% e 30% da Câmara dos Deputados,em contraste com votações das candidaturas derrotadas na eleição presidencial, que variaram, aproximadamente, entre 45% e 55% dos votos válidos (primeiro turno) e 40% e 48% (segundo turno).

Um arranjo como esse parece permitir que o partido líder que venceu a eleição presidencial aplique seu programa,seu projeto de concretização da Constituição de 1988. O que de fato acontece é o contrário. Uma base “inchada” de apoio ao governo coloca entraves e obstáculos à concretização do programa apresentado pelo partido vencedor da eleição. Para conseguir introduzir as transformações propostas em seu programa, mesmo aquelas de ordem marginal, o líder da coalizão está obrigado quase que permanentemente a contornar vetos de importância dentro de sua própria base de apoio,vetos que não consegue simplesmente afastar para impor sua posição. O partido líder perdedor da eleição presidencial pode apenas torcer para que o governo vá mal,abrindo espaço para que o poder federal lhe caia no colo. Perde-se assim, igualmente, um dos importantes papéis desempenhados por uma oposição relevante, que é o de obrigar a coalizão de governo a encontrar a aglutinação e a coesão necessárias ao enfrentamento político efetivo. Em um modelo em que a base no Congresso chega a porcentagens que superam os 70% de apoio,a oposição efetiva migra para dentro da própria coalizão de governo, torna-se “oposição interna”, impedindo que se alcance coesão e dificultando crescentemente, portanto, o que se costuma chamar de articulação política.

Como a maneira de operar desse grande e mesmo bloco de sustentação replica o modo de operar característico do PMDB, ao invés de chamá-lo pelo nome pomposo de “presidencialismo de coalizão”, preferi dar-lhe o nome de “pemedebismo”. Mas, se fosse para continuar na mesma lógica pomposa,seria possível chamar esse modelo de “presidencialismo de megacoalizões”. Trata-se uma maneira de operar que procura amortecer e suspender os conflitos em lugar de elaborá-los abertamente em uma disputa democrática que envolva toda a sociedade. Ao jogar os problemas para debaixo do tapete das grandes coalizões, o encaminhamento dos problemas também se dá embaixo do tapete. Isso não significa que conflitos abertos não ocorram e não tenham ocorrido. Significa que se procurou evitá-los ao máximo, que eles só eclodiram quando não foi possível equacioná-los sob o tapete da megacoalizão. Além disso, como Junho de 2013 demonstrou, os conflitos se agudizaram na base da sociedade sem a devida correspondência no sistema político. A polarização social não encontrou correspondência efetiva no sistema político. O que se costumou chamar de polarização entre PT e PSDB não foi nada mais do que a disputa pelo cargo de síndico de um mesmo enorme condomínio de apoio parlamentar,cuja função primeira foi tentar impedir ao máximo que perdas definitivas fossem impostas nesse processo.

O afastamento de Dilma Rousseff só se explica porque seu governo já não conseguia funcionar nos termos em que funcionaram todos os governos nas últimas duas décadas. Em seu segundo mandato, o governo Dilma já não oferecia duas garantias fundamentais do modelo: acesso efetivo aos fundos públicos e proteção contra investidas da Justiça. Não interessa aos partidos e grupos que fazem parte da megacoalizão de governo (seja qual for o governo) dispor de ministérios,cargos e verbas e não poder efetivamente lançar mão dos recursos, mesmo que sejam escassos. Não bastasse isso, o governo Dilma era visto como incapaz de oferecer proteção contra a ameaça da Operação Lava Jato e suas subsidiárias. Esse é um sinal de descontrole grave para o esquema de megacoalizões. O alerta soou para o sistema político com a prisão de Delcídio do Amaral. A prisão de um senador no exercício do mandato e líder do governo no Senado foi o ponto de virada para que o sistema político abandonasse de vez Dilma Rousseff. Que o governo interino de Temer tenha, no final das contas, ficado ainda mais fragilizado pela Lava Jato nada muda nas motivações da política oficial para produzir o impeachment. Trata-se de um governo de restauração. Somente tenta restaurar um modelo de funcionamento do sistema político que caducou.

A base partidária de apoio ao novo governo não se distingue daquela de Dilma senão pela ausência de PT, PDT e PCdoB e pela entrada de PSDB, DEM e PPS,tudo o mais na mesma. Exceto,claro,pelo branqueamento e pela masculinização do conjunto da equipe, coerentemente com a posição subordinada ocupada por pastas como Cultura, Direitos Humanos,Igualdade Racial e políticas para mulheres. Exceto também pelo inusitado da ausência da liderança de um dos dois síndicos até aqui do condomínio dos últimos vinte anos, de um condomínio pemedebista sob direção formal do PMDB - ou seja,com ausência de liderança efetiva. Uma vez mais,o novo governo interino se inicia com uma base formal que supera os 70% do Congresso.

É certo que a prisão de Delcídio do Amaral já tinha sinalizado a introdução de decisões que foram pontos fora da curva da jurisprudência. Mas a decisão de suspensão do mandato do deputado Eduardo Cunha mostrou que a curva e seus pontos simplesmente não vão se encontrar tão cedo. O Judiciário deixou de atuar exclusivamente segundo a lógica política indireta que o caracteriza - aquela dos pontos e das curvas que é própria do direito - para agir de maneira diretamente política sempre que acha necessário fazê-lo. Não aconteceu apenas em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi também diretamente política a decisão do juiz Sérgio Moro de divulgar sem restrições os grampos das conversas telefônicas do ex-presidente Lula, por exemplo. Como são diretamente políticos os vazamentos de pedidos de prisão, de indiciamento e de investigação que correm sob segredo ou mesmo sigilo de justiça. Até o momento, parece haver uma grande tolerância social para com a ausência de curvas visíveis nas decisões judiciais. Tolerância perfeitamente em consonância com a posição que assumiu o Judiciário de tutelar o país em meio à crise política. E só pôde se colocar nessa posição porque as instituições entraram em colapso,o próprio Judiciário,inclusive. Não se trata de uma crise conjuntural. Nada vai voltar a ser como antes depois que passar o vagalhão da Lava Jato. Porque a instabilidade não vem da operação, mas, ao contrário, vem do modo de funcionamento do sistema político que ela escancarou.

A melhor descrição de conjunto do ambicioso projeto do governo Dilma é até agora a apresentada por André Singer, que detecta continuidade entre Lula e Dilma “do ângulo programático” e uma “mudança relevante” que teria ocorrido do ponto de vista político. 2 2 Singer, André. “Cutucando onças com vara curta:o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011­2014)”. Novos Estudos — Cebrap, n. 102, jul. 2015. Seria possível discutir se a argumentação da continuidade é de fato convincente para o conjunto das medidas adotadas ou apenas para parte delas. É mais fácil ver a continuidade quando se trata, por exemplo, da política de fomento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Mas já é bem mais difícil ver como o conjunto das medidas

estruturantes do governo Dilma possa ser devidamente compreendido nesses termos. Tome-se a política de desonerações, por exemplo, que, no projeto original, substituiu a alíquota de contribuição previdenciária patronal de 20% sobre a folha de pagamento por alíquotas de contribuição entre 1% e 2% do faturamento das empresas. É o tipo de medida que representa antes uma ruptura e uma novidade relativamente ao que se costuma chamar, de maneira genérica e bastante imprecisa,de medidas anticíclicas,que foi o que se teve nos dois últimos anos do período Lula. 3 3 Em seu artigo “Sobre o ‘experimento desenvolvimentista’ de Dilma Rousseff: uma discussão com André Singer” (Revista Fevereiro, n. 9, jun. 2016), Celso Rocha de Barros propõe um diagnóstico alternativo do primeiro governo Dilma. Se entendi bem, há uma concordância de base com relação à caracterização do “lulismo” tal como feita por Singer. Para além de muitos elementos pontuais de diferença, o horizonte mais amplo de divergência parece estar no fato de que Singer não teria caracterizado o projeto do primeiro mandato de Dilma Rousseff como explicitamente fracassado (em sentido amplo e não apenas em um sentido econômico estrito), o que seria para Barros algo essencial para sua devida avaliação no momento presente, especialmente em vista de uma urgência de radical autocrítica por parte de uma esquerda em crise. Apesar da divergência de fundo, a interpretação alternativa proposta por Barros compartilha com Singer a tese de uma continuidade de larga base entre o final do segundo mandato de Lula e o primeiro mandato de Dilma Rousseff. A diferença está na caracterização da continuidade. Para Barros, o pacto lulista teria sido mantido tal e qual sob Dilma Rousseff, só que em condições internacionais que já não permitiam mais sustentá­lo, prolongamento artificial que explicaria seu fracasso. Para Singer, a continuidade nesse caso significa aprofundamento e, em certo sentido, radicalização do projeto lulista. A caracterização que proponho aqui se aproxima mais daquela de Singer, na medida em que enfatiza a muito maior amplitude e ambição do conjunto de medidas do governo Dilma. Mas me interessa aqui ressaltar não as continuidades, mas as descontinuidades entre os períodos Lula e Dilma Rousseff, de maneira a tentar com isso iluminar o caminho que levou ao declínio do modelo de gerenciamento político vigente desde o Plano Real.

Sendo ou não clara a continuidade, o ponto de partida aqui é o de uma muito maior amplitude de transformação estrutural ambicionada pelo projeto do governo Dilma. É o que sobressai quando se trata de examinar a mencionada descontinuidade política entre os períodos Dilma Rousseff e Lula. E é nisso que a perspectiva inovadora proposta por Singer faz avançar: propõe-se a dissecar o projeto do primeiro mandato de Dilma Rousseff como um médico-legista busca as causas de um óbito. Ao contrário da simples execração vigente até hoje nas análises, é uma perspectiva que permite entender. E, sobretudo, permite aprender. Porque uma das grandes vantagens em adotar o procedimento proposto por Singer é não limitar o debate a uma discussão sobre se houve ou não “erros técnicos” no projeto. Para começar, porque a discussão sobre “erros técnicos” na construção do programa de Dilma Rousseff costuma se limitar ao campo da economia. E porque a discussão geralmente termina em uma gincana acadêmica sobre modelos micro e macroeconômicos, sem qualquer consideração sobre política ou sociedade. 4 4 Outra exceção notável à mera guerra de posições pode ser encontrada nas análises de Fernando Rugitsky do período Lula, tanto por não subestimar a dimensão política e social como por buscar evitar a contraposição estéril entre posições que afirmam ter sido a redução da desigualdade (econômica) simples “miragem” ou, ao contrário, “profunda transformação”. Rugitsky, Fernando. “Milagre, miragem, antimilagre: a economia política dos governos Lula e as raízes da crise atual”.Revista Fevereiro, n. 9, jun. 2016.

Como se, em uma democracia, fosse possível um “plano econômico” que não fosse simultaneamente um “plano político” e um “plano social”. Basta pensar no grande acordo do Plano Real: toda a técnica econômica do plano de estabilização seria inteiramente vazia se não estivesse apoiada em uma sólida aliança política,gestada a céu aberto e submetida a uma eleição presidencial. Basta pensar na eleição de Lula em 2002: todo o projeto de enfrentar a pobreza na escala de dezenas de milhões de pessoas, de estabelecer a política de aumentos reais do salário mínimo, de se bater pelo reconhecimento social de grupos sociais historicamente discriminados e oprimidos não pode ser separado da proposta de acordo público representada pela “Carta aos Brasileiros” e pela posição de um grande empresário de um partido considerado centrista como candidato a vice na chapa presidencial.

O programa do governo Dilma envolveu nada menos do que remodelar inteiramente a relação entre setor público e privado nas concessões públicas de infraestrutura e no setor de energia, impor parâmetros radicalmente diversos ao setor financeiro, criar e fomentar novas e longas cadeias produtivas. O detalhamento de cada um desses itens seria longo demais para ser exaustivo e preciso. Importa aqui insistir em que foram medidas de longo alcance e ambição. E, quando se pensa economia e política conjuntamente,uma mudança relevante em um dos elementos é uma mudança relevante no todo. Daí ser necessário distinguir o período Dilma do lulismo enquanto tal, indicando as descontinuidades entre os dois momentos. Para que seja possível extrair o “cerne racional” do lulismo, inclusive. Para que se possa pensá-lo para além de sua associação com o pemedebismo próprio do modelo de gerenciamento do sistema político vigente desde o Plano Real. Se, em termos de alcance e amplitude, a pretensão do governo Dilma foi equivalente à do Plano Real e à do lulismo, sua efetivação foi inteiramente diferente.

Dilma Rousseff identificou brechas e fraquezas nos mecanismos de controle do modelo de gerenciamento político em que ela mesma se apoiou,como FHC e Lula antes dela. E resolveu se aproveitar dessas brechas para impor uma espécie de blitzkrieg econômica. A ideia era produzir transformações em tal velocidade e amplitude que já teriam dado resultados dos quais seria impossível recuar depois de mostrarem seus efeitos, que, assim se esperava, seriam positivos. A primeira lição a tirar do fracasso da tentativa é que não há programa econômico que se sustente sem uma base política e social de apoio correspondente. Foi o tipo de incongruência que, nos limites de uma lógica tipicamente pemedebista, tanto Lula quanto FHC sempre evitaram. A segunda lição a tirar é que não existe reforma do pemedebismo desde dentro. Pode-se ocupá-lo pela esquerda,como fez Lula em seus dois mandatos,pode-se usá-lo como apoio para produzir um “reformismo fraco”, que é como Singer caracteriza - corretamente, a meu ver - o lulismo. Mas não é possível uma reforma do pemedebismo enquanto tal. Muito menos pretender sufocá-lo em seu próprio terreno, que foi o que Dilma Rousseff tentou em seu primeiro mandato.

Depois dos períodos FHC e Lula, a pauta das eleições de 2010 era justamente a do próximo objetivo de transformação de grande alcance do país. E, no entanto, o debate eleitoral ele mesmo não revelou qual seria esse objetivo no caso de cada uma das duas principais candidaturas. Dilma Rousseff fez uma campanha de mera continuidade, sem apresentar o programa que tentaria implementar na primeira metade de seu primeiro mandato. José Serra procurou apenas jogar cascas de banana no caminho da adversária. Dando a eleição por perdida, tentava fazer com que Dilma cometesse algum erro que pudesse lhe tirar o favoritismo. Terminada a eleição,a presidente colocou em marcha um plano de reconfiguração do capitalismo brasileiro de cima a baixo e de cima para baixo. Tratou-se de uma proposta de transformação de magnitude comparável àquelas realizadas nos períodos FHC e Lula. Diferentemente, entretanto, das transformações realizadas entre 1995 e 2010,o projeto de Dilma foi marcado por um isolamento tecnocrático do governo. Desse modo, o próximo grande objetivo ficou restrito essencialmente a manobras de bastidores em círculos bastante restritos.

A descontinuidade política do primeiro mandato de Dilma Rousseff em relação ao período Lula não se limita,entretanto,à sua blitzkrieg econômica. Do lado do sistema político, o grande objetivo foi enfraquecer o PMDB,apoiando-se nele ao mesmo tempo. A tentativa de dar umabraçodetamanduánoaliadodechapapresidencialfoiconduzido pelo governo Dilma, de um lado, e pelo próprio Lula, de outro. De seu lado,o governo Dilma colocou lenha na fogueira da fragmentação partidária, estimulando a criação de novos partidos e a migração partidária. O objetivo era atrair diretamente políticos do PMDB,diminuindo suas bancadas na Câmara e no Senado. Mas,não sendo possível alcançar esse objetivo, a criação de novas legendas que pudessem aglutinar deputados e senadores já deveria servir para mudar o equilíbrio das bancadas, tentando produzir artificialmente dois ou até três partidos médios que pudessem formar um núcleo alternativo à liderança do PMDB do cartel de venda de apoio parlamentar. Esse “novo Centrão” acabou por se formar, de fato. Mas para produzir o impeachment de Dilma Rousseff e não para enfraquecer o PMDB.

Do ponto de vista da estratégia eleitoral, elaborada por Lula, o objetivo passou a ser o de dar ao PT uma posição de maior destaque e, ao mesmo tempo, de diminuir o preço do PMDB. Nas eleições municipais de 2012, Lula estabeleceu uma tática que envolvia estabelecer coligações tanto quanto confrontos diretos com o PMDB. Compunha onde achava que não podia ganhar e tentava tomar posições onde quer que tivesse chance. O objetivo não era apenas preparar as eleições de 2014, mas tentar tomar posições diretas do principal aliado, enfraquecendo-o. Não foi um movimento capaz de sufocar o PMDB, mas foi relativamente bem-sucedido em seu objetivo. Ao mesmo tempo, acendeu a luz vermelha no PMDB, que começou a esboçar reações mais duras às investidas.

Lula manteve a mesma estratégia para as eleições de 2014. Em um movimento que não acontecia desde os anos 1980, o PT lançou candidaturas ao governo nos estados com os maiores colégios eleitorais, em competição direta com o PMDB em todos eles, com exceção de Minas Gerais. O paroxismo se deu no Rio de Janeiro, onde uma aliança fundamental para a sustentação do governo Dilma - como já era visível então e se tornou ainda mais visível depois - foi rompida para o lançamento da candidatura de Lindbergh Farias ao governo do estado. Dos maiores estados,somente na Bahia o PT venceu sem uma aliança com o PMDB, em um governo de continuidade que vinha desde a eleição de Jaques Wagner, em 2006. A estratégia fracassou. Um dos sinais relevantes do fracasso está em que, em 2014, o PT elegeu dezoito deputados a menos do que em 2010, declinando de 88 para setenta representantes na Câmara.

O primeiro governo Dilma solapou as condições de prosseguir com o modelo pemedebista sobre o qual, entretanto, se apoiou durante todo o tempo. E isso sem que tenha conseguido inaugurar um modelo alternativo. Entre a aparente vitória nas eleições de 2012 e a dura derrota de 2014, o que se teve foi nada menos do que o terremoto de Junho, a tática de enfraquecimento do PMDB e o fracasso da blitzkrieg econômica. O fracasso do projeto, entretanto, não elimina a necessidade de se alcançar um novo patamar para o país. Pelo contrário,apenas reforça essa urgência e mostra o caráter de divisor de águas, em todos os sentidos, que terão as eleições de 2018, caso sejam bem-sucedidas em rearranjar o país.

O projeto que o governo Dilma imaginou como civilizatório do capitalismo não foi o programa mais saliente da Constituição de 1988, emblema do que o país em sua diversidade de posições até hoje vê como seu modelo de sociedade. Não se tratou em nenhum momento de empregar o extraordinário montante de recursos mobilizados no primeiro mandato em saúde, educação e combate à pobreza e ao desamparo econômico. O projeto foi o de domar o capitalismo brasileiro civilizando o seu mercado,segundo uma imagem de capitalismo e de mercado que provavelmente pertencia ainda ao período nacional-desenvolvimentista, deixado para trás após o Plano Real.

Foi uma enormidade o que se desperdiçou em desonerações,cadeia do pré-sal, baixa abrupta da taxa de juros, reestruturação tecnocrática do setor de energia,cabo de guerra nas concessões de serviços públicos. O que teria acontecido se pelo menos parte substancial dessa enormidade de recursos tivesse sido simplesmente empregada em educação, em saúde,em proteção social? Poderia ter evitado o impeachment? Não há como saber. Mas não há dúvida de que, se Dilma Rousseff tivesse sido mesmo assim afastada, os governos liderados pelo PT teriam tido muito mais para mostrar e o campo da esquerda estaria em muito melhores condições para se reorganizar mais rapidamente. Talvez esteja aí, aliás,o ponto de conexão entre o velho desenvolvimentismo e o projeto do governo Dilma: prosseguiu viva no primeiro mandato de Dilma a crença economicista de que a garantia de certo exercício de autonomia na regulação e na gestão da economia levaria à produção da autonomia social e política, levaria à produção de políticas efetivas de redução de desigualdades em educação, saúde e em todos os demais domínios em que a vulnerabilidade social se fizesse presente.

O fracasso desse projeto deveria fazer pensar as imagens de modelo de sociedade que devem orientar os projetos de esquerda. Porque o fracasso do desenvolvimentismo tecnocrático do governo Dilma não deve ser simplesmente descartado como aberração. O problema que seu governo tentou enfrentar é real e persiste. Depois dos dois grandes processos de transformação dos períodos FHC e Lula, realizados sem confrontar o pemedebismo, o horizonte se deslocou. O país não está mais diante dos problemas mais básicos de uma estabilização político-monetária ou de uma democratização mínima da renda e do reconhecimento social. A redemocratização se encerrou. A questão agora não é mais como implantar a democracia, mas o que fazer com ela. E, com isso,também encontrar para o país um lugar nos arranjos globais que lhe permita alcançar o máximo de margem de autonomia possível. Mas estratégias de desenvolvimento econômico têm de ser apenas meio para a concretização do modelo de concretização da Constituição que deve democraticamente prevalecer. E não o contrário.

A cesura que marcou o fim da redemocratização foi posta por Junho de 2013. Só que essa sinalização foi ignorada pelo sistema político,que continuou a funcionar como se nada tivesse acontecido. Não entrou em linha de conta o fato de que era o próprio modelo que tinha caducado ali. O pemedebismo do sistema encarou as revoltas de Junho como uma explosão de insatisfação que iria passar em algum momento. O PT e parte da esquerda interpretaram as revoltas como manifestações de direita ou mesmo como de caráter protofascista,potencialmente danosas,portanto,ao projeto de que o PT seria o portador e condutor inconteste.

A profunda e generalizada incompreensão do sistema político em relação a Junho de 2013 fez com que as reações fossem unicamente internas ao próprio sistema. A candidatura Dilma Rousseff partiu para uma radicalização - retórica, ao menos - de esquerda na eleição de 2014. Vendo-se em situação de empate técnico com seu adversário, apostou na luta de classes para vencer a eleição. Impossibilitada de recorrer a qualquer sucesso das medidas de reorganização do capitalismo brasileiro que impôs de cima para baixo, foi buscar na reserva histórica do lulismo a vantagem de que precisava para vencer. Foi com um Lula radicalizado (ao menos no discurso) que Dilma ganhou as suas duas eleições.

A eleição presidencial de 2014 ofereceu à multidão de Junho - que,apesar de sua grande heterogeneidade,ocupava a mesma rua - a oportunidade de escolher entre duas calçadas diferentes, representadas pelas duas candidaturas que foram ao segundo turno. Mas, ao assumir, Dilma Rousseff decretou que a calçada da esquerda tinha sido fechada para obras por tempo indeterminado e deixou seu eleitorado à mercê do trânsito da rua ou da travessia para a outra calçada. Depois da derrota da estratégia de enfraquecimento do PMDB, refazer o acordo nas velhas bases para um segundo mandato de Dilma era tarefa longe de ser fácil. O estelionato eleitoral de 2014, a gravidade da recessão e a devastação da Lava Jato introduziram os elementos que faltavam para produzir uma instabilidade estrutural,impeditiva. O resultado é que o sistema político acabou por avaliar que não era possível refazer o acordo pemedebista clássico com Dilma Rousseff na presidência.

Na situação atual de funcionamento disfuncional das instituições, a demanda por soluções rápidas, definitivas e ilusórias se multiplica. Foi assim que uma grande parte da sociedade acreditou que o impeachment de Dilma Rousseff produziria a estabilidade política que faltava. É assim que propostas de plebiscito, eleições gerais, ou Constituinte para a reforma política surgem agora como panaceias para todos os males. Se há algo que a década de 1980 ensinou é que saídas como essas têm fôlego curto. A crise é estrutural e a saída dela vai exigir tempo e muito esforço para rearranjar as instituições em um sentido novo e positivo. Vai ser preciso lidar com o colapso sem apelar nem para pretensas soluções mágicas nem deixar que ele se instale de maneira duradoura. Para isso, pode ser que olhar para trás ajude a ver quais são as possibilidades que temos adiante.

A eleição de 1989 teve a peculiaridade de ser uma eleição solteira, votou-se apenas para presidente. Não foi pequena a influência desse fator sobre o resultado do governo de Fernando Collor, que terminou em impeachment. Nesse sentido,2018 não se parece com 1989. Mas,por duas outras razões, há algo de 1989 no ar. Em primeiro lugar, um quadroatéagoradegrandedispersãodasforçaseleitorais. Colloralcançou 28% dos votos no primeiro turno da eleição, Lula chegou ao segundo turno em 1989 com 16% dos votos. Se o quadro atual se mantiver (mesmo que sejam outros os nomes na urna), não é improvável que algo semelhante se repita. As eleições de 2018 deverão guardar outra semelhança ainda com a de 1989 porque, novamente, é alta a probabilidade de que o presidente pertença ao PMDB e que chegue ao final de seu mandato com grandes dificuldades e popularidade em níveis precários. Com isso, como em 1989, um candidato governista teria poucas chances. Sem o ímã da presidência da República para aglutinar um dos polos da eleição, todas as candidaturas seriam, no limite, de oposição, tornando a disputa ainda mais incerta.

Mesmo tendo vencido a eleição em 1989,Fernando Collor foi incapaz de se colocar como polo aglutinador do campo político da direita. Ao chegar ao segundo turno, Lula terminou por aglutinar as forças de esquerda em torno de uma nova candidatura presidencial na eleição seguinte. Foi a formação desse polo de esquerda e, sobretudo, o favoritismo da candidatura Lula até o primeiro semestre de 1994 o fator decisivo para que FHC conseguisse aglutinar as forças do campo da direita. Tendo como esteio concreto o Plano Real, de um lado, e a ameaça de uma vitória de Lula, de outro, FHC conseguiu impor ao pemedebismo do sistema uma magnitude de transformação maior do que seria normalmente aceitável. E, assim, o que poderia ter acontecido em 1989 acabou acontecendo somente em 1994:as duas candidaturas maisvotadassetornaramosdoispolosaaglutinaramaioriadasforças políticas em torno de si pelas cinco eleições seguintes.

É razoável supor que as eleições de 2018 terão algo semelhante a essa projeção no futuro observada em 1994. Só não parece provável que os polos funcionem da mesma maneira. Os partidos líderes dos últimos vinte anos têm nomes fortes, pelo menos em tese, para a eleição presidencial, mas, por razões diferentes, estão em processo de desagregação. Isso não significa que as duas candidaturas que chegarem ao segundo turno da próxima eleição presidencial não possam pertencer ou ter pertencido a um desses dois partidos, PT e PSDB. Também não significa que, como em 1994, a formação de um polo não possa acabar levando à produção do polo adversário. Significa apenas que a aglutinação de forças em torno dos polos deve se dar de maneira diferente.

Porque o caminho até 2018 vai ser construído sobre duas tendências contraditórias. Assim como aconteceu após o impeachment de Collor, o afastamento de Dilma tende a reforçar o pemedebismo, na medida em que reforça a característica de seguro anti-impeachment que adquiriu desde 1992. Se se pode tirar alguém da presidência da maneira como foi com Dilma Rousseff, vale quase tudo. Essa tendência é reforçada pela Lava Jato, que vai continuar a provocar uma desesperada busca por autoproteção por parte do sistema político e estimularacriaçãodeumpemedebismo2. 0. Deoutrolado,atolerânciasocial para com uma continuidade do pemedebismo se esgotou e boa parte do ativismo social na base da sociedade se dá de costas para a própria lógica institucional e não apenas para o seu arranjo atual. A organização de coletivos e grupos na base da sociedade se multiplica na mesma velocidade em que parece se distanciar da política institucional. 5 5 Uma porta de entrada privilegiada para esse novo universo ativista na base da sociedade pode ser encontrada no artigo de Adriano Januário, Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro, “As ocupações de escolas em São Paulo (2015): autoritarismo burocrático, participação democrática e novas formas de luta social” (Revista Fevereiro, n. 9, jun. 2016), bem como no livro Escolas de luta: o movimento dos estudantes contra a “reorganização” escolar, de Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro (São Paulo: Veneta, no prelo).

O argumento de que o pemedebismo é representativo da sociedade brasileira é tão conservador quanto dizer que o Congresso é representativo do eleitorado. É mais que sabido que as instituições selecionam os selecionáveis, que decidem os critérios de escolha de quem pode e de quem não pode ser candidato em uma eleição. E os critérios de seleção dos últimos vinte anos foram os do pemedebismo. É uma enormidade o desperdício de bons quadros políticos que se retiraram ou foram retirados do jogo. É uma enormidade o desperdício de bons quadros que não entram na política porque não veem sentido em entrar em uma empresa terceirizada de venda de apoio parlamentar.

Ao mesmo tempo, é impressionante a vitalidade e a diversidade de forças políticas na base da sociedade. Uma sociedade organizada em forma de arquipélagos de ativismo estabelece a alternativa entre voltar as costas para a política institucional ou decidir transformar as instituições. Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Surge, em diferentes configurações, um pouco pelo mundo todo. Não é apenas no Brasil que formações partidárias tradicionais se encontram em uma crise que parece terminal, da mesma forma como tem caráter global o desenvolvimento de estratégias de combate à corrupção que, para seu avanço, recorrem à blindagem do apoio popular direto. Mas não é por toda parte que um processo de redemocratização se encerrou nem coincidiu com um momento em que um partido de esquerda formado na abertura política foi afastado de um governo que liderava.

Para ser efetiva, uma reorganização radical em vista das eleições de 2018 tem de começar imediatamente. Os dois anos que precedem as próximas eleições gerais serão um momento de debate e de disputa aberta de posições como talvez apenas a década de 1980 tenha produzido. Para que seja efetiva, tem de começar a partir da base da sociedade,tem antes de tudo de se desarmar das couraças dos partidos, dos sindicatos e dos movimentos sociais tradicionais. Do ponto de vista da lógica institucional, é evidente que ajudaria muito estabelecer a proibição de coligações em eleições proporcionais e cláusulas de desempenho eleitoral minimamente exigentes. São medidas básicas para tentar impor freios à fragmentação inerente ao pemedebismo. Mas a Lava Jato revelou uma estrutura a tal ponto corrompida que a imaginação institucional vai ter de ser acionada para além de medidas pontuais como essas para dificultar a volta do modelo de megacoalizões sob nova roupagem.

Mais que isso ainda, evitar o quadro de altíssima fragmentação que se desenha para 2018 significa começar desde já a organizar frentes políticas plurais, sem estabelecimento prévio de liderança e direção por parte de nenhum grupo. No caso da frente de esquerda,a reunião de forças é fundamental para tentar evitar um cenário como o da recente eleição presidencial no Peru, quando duas candidaturas de direita foram ao segundo turno. A negociação de um futuro governo tem de começar por um debate público amplo sobre seus limites e possibilidades. Sobretudo, a formação de frentes não pode se limitar a uma associação de movimentos sociais, partidos e sindicatos no formato que têm hoje essas organizações. Os coletivos que se formaram e que continuam a se formar na base da sociedade se recusam a ter suas lutas e pautas instrumentalizadas por essas formas tradicionais de organização.

Em lugar de se delegar a um partido ou a uma liderança a tarefa de, após a eleição, negociar um governo nos limites do que se considera possível, é preciso iniciar essa negociação desde já, de maneira transparente e sem escamotear dificuldades. Antecipar a negociação da futura coalizão de governo no âmbito de frentes políticas pode se mostrar um poderoso antídoto contra a fragmentação e contra o modelo de megacoalizões. Uma frente nesses moldes nada tem que ver com as coligações eleitorais que se teve até hoje. Tem de conseguir se conectar com a base da sociedade e se organizar em função dos debates e dos arranjos entre as diferentes posições que consigam produzir uma imagem coerente do que deva ser o futuro. Negociações políticas de fato e não mera compra e venda de tempo de TV.

As condições para uma mudança dessa envergadura na cultura política parecem próximas e distantes ao mesmo tempo. O esgotamento do modelo das últimas décadas é visível a olho nu. A longa blindagem do sistema político contra a sociedade que prevaleceu na redemocratização é universalmente rejeitada. E, no entanto, essa rejeição se manifesta não poucas vezes como rejeição às instituições elas mesmas e não apenas ao seu modo de funcionamento atual. Mesmo quando existe a intenção de participar das disputas na arena institucional, é altíssimo o grau de fragmentação das novas formas de organização na base da sociedade.

As formas tradicionais de organização podem simplesmente apostar que não há alternativa à institucionalidade e que todo o impulso vital da base da sociedade está condenado a se conformar às opções que elas, como controladoras dos portões institucionais, lhe oferecerem. Podem uma vez mais apostar em uma candidatura isolada que possa chegar ao segundo turno e se tornar dessa forma polo aglutinador do sistema político para o futuro, assim como aconteceu entre as eleições de 1989 e 1994. Mas essa aposta é a maneira mais segura de produzir uma nova figura do pemedebismo, um novo tipo de presidencialismo de megacoalizões. O resultado será o mesmo se apostarem pura e simplesmente nas máquinas partidárias existentes. Com a rejeição generalizada a essa cultura política, o resultado vai ser apenas um aprofundamento do já preocupante divórcio entre sociedade e sistema político que precisa ser elaborado e superado. Sem isso, o país continuará a adiar as inadiáveis decisões estratégicas que tem de tomar até 2018 para evitar o “caos normal” que resulta do colapso de seus atuais arranjos institucionais.

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    Com agradecimentos a Adriano Januário, Bianca Tavolari, Fernando Rugitsky, Jonas Medeiros, José Rodrigo Rodriguez, Ricardo Teperman, Ricardo Terra e Samuel Barbosa.
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    Singer, André. “Cutucando onças com vara curta:o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011­2014)”. Novos EstudosCebrap, n. 102, jul. 2015.
  • 3
    Em seu artigo “Sobre o ‘experimento desenvolvimentista’ de Dilma Rousseff: uma discussão com André Singer” (Revista Fevereiro, n. 9, jun. 2016), Celso Rocha de Barros propõe um diagnóstico alternativo do primeiro governo Dilma. Se entendi bem, há uma concordância de base com relação à caracterização do “lulismo” tal como feita por Singer. Para além de muitos elementos pontuais de diferença, o horizonte mais amplo de divergência parece estar no fato de que Singer não teria caracterizado o projeto do primeiro mandato de Dilma Rousseff como explicitamente fracassado (em sentido amplo e não apenas em um sentido econômico estrito), o que seria para Barros algo essencial para sua devida avaliação no momento presente, especialmente em vista de uma urgência de radical autocrítica por parte de uma esquerda em crise. Apesar da divergência de fundo, a interpretação alternativa proposta por Barros compartilha com Singer a tese de uma continuidade de larga base entre o final do segundo mandato de Lula e o primeiro mandato de Dilma Rousseff. A diferença está na caracterização da continuidade. Para Barros, o pacto lulista teria sido mantido tal e qual sob Dilma Rousseff, só que em condições internacionais que já não permitiam mais sustentá­lo, prolongamento artificial que explicaria seu fracasso. Para Singer, a continuidade nesse caso significa aprofundamento e, em certo sentido, radicalização do projeto lulista. A caracterização que proponho aqui se aproxima mais daquela de Singer, na medida em que enfatiza a muito maior amplitude e ambição do conjunto de medidas do governo Dilma. Mas me interessa aqui ressaltar não as continuidades, mas as descontinuidades entre os períodos Lula e Dilma Rousseff, de maneira a tentar com isso iluminar o caminho que levou ao declínio do modelo de gerenciamento político vigente desde o Plano Real.
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    Outra exceção notável à mera guerra de posições pode ser encontrada nas análises de Fernando Rugitsky do período Lula, tanto por não subestimar a dimensão política e social como por buscar evitar a contraposição estéril entre posições que afirmam ter sido a redução da desigualdade (econômica) simples “miragem” ou, ao contrário, “profunda transformação”. Rugitsky, Fernando. “Milagre, miragem, antimilagre: a economia política dos governos Lula e as raízes da crise atual”.Revista Fevereiro, n. 9, jun. 2016.
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    Uma porta de entrada privilegiada para esse novo universo ativista na base da sociedade pode ser encontrada no artigo de Adriano Januário, Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro, “As ocupações de escolas em São Paulo (2015): autoritarismo burocrático, participação democrática e novas formas de luta social” (Revista Fevereiro, n. 9, jun. 2016), bem como no livro Escolas de luta: o movimento dos estudantes contra a “reorganização” escolar, de Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro (São Paulo: Veneta, no prelo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2016

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2016
  • Aceito
    15 Jun 2016
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