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APRESENTAÇÃO: O MAL-ESTAR NO SUPREMO

Nos trinta anos da Constituição, este dossiê pretende colocar o Supremo Tribunal Federal sob escrutínio. A conjuntura inaugurada com a Lava Jato e com o impeachment contribuiu para aguçar diversos problemas do funcionamento do STF; problemas que, no entanto, não vêm de hoje.

A corte estaria fragmentada, não atua como um colegiado que delibera conjuntamente para firmar uma jurisprudência que sirva de parâmetro geral (Silva, 2013Silva, Virgílio Afonso da Silva. “Deciding without Deliberating”. International Journal of Constitutional Law, v. 11, n. 3, pp. 557-584, 2013.; Rodriguez, 2013Rodriguez, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013.). As evidências disso são muitas. Mais e mais os ministros decidem sozinhos (monocraticamente). Pedidos de vista sem maiores justificativas suspendem os julgamentos do colegiado, mesmo para aqueles casos que já têm maioria para serem concluídos. Cada ministro tem ampla margem para priorizar o que vai julgar. Não por último, ministros decidem liminarmente contra a orientação fixada pelo colegiado. Tudo se passa como se cada ministro gozasse de um poder de veto que limita a atuação do STF enquanto corte. Nos julgamentos do plenário, a fragmentação se revela na dispersão das razões de decidir apresentadas pelos magistrados, levando ao paroxismo de ementas em desacordo com os votos individuais (Vojvodic; Machado; Cardoso, 2009Vojvodic, Adriana de Moraes; Machado, Ana Mara França; Cardoso, Evorah Lusci Costa. “Escrevendo um romance, primeiro capítulo: precedentes e processo decisório no STF”. Revista Direito GV, v. 5, n. 1. pp. 21-55, 2009.). Luís Roberto Barroso, na sabatina que aprovou sua ida ao STF, declarou aos senadores que o julgamento do mensalão havia sido um “ponto fora da curva”. A curva era a jurisprudência anterior do STF, e o julgamento significava o ponto imprevisto. Essa declaração foi recuperada por Marcos Nobre (2016Nobre, Marcos. “De pontos e de curvas”. Valor Econômico, 9 maio 2016.) para analisar as decisões do STF na conjuntura da crise política recente, em especial as relativas às prisões e ao afastamento de parlamentares.1 1 O prognóstico de então foi certeiro: “A unanimidade no caso da decisão sobre o mandato de Cunha foi apenas aparente. Para que seja efetiva, a maioria dos ministros precisa chegar a um acordo de base inédito e duradouro. Se isso não acontecer, todos os anos até 2018 vão repetir 2015” (Nobre, 2016). Os pontos fora da curva se multiplicaram. Como se sabe, o STF não foi capaz de firmar uma jurisprudência coerente, não desenhou outra curva. Ao contrário, deu respostas desencontradas aos casos envolvendo Delcídio do Amaral, Eduardo Cunha, Renan Calheiros e Aécio Neves (Almeida, 2017Almeida, Eloísa Machado de. “Inovações do STF geram série de incertezas”. Folha de S. Paulo, 8 dez. 2017. “Cada um por si”. Folha de S. Paulo , 24 dez. 2017.).2 2 Sobre as decisões do STF sobre imunidades parlamentares, ver Almeida (2017).

A Lava Jato e outras operações de combate à corrupção passaram a pautar o STF com pedidos e recursos de mandados de prisão, validação de delações premiadas, inquéritos e ações penais. Também é provocado reiteradamente para arbitrar a disputa partidária que se tornou cada vez mais enredada com o direito penal. Sem uma jurisprudência coerente para temas sensíveis como esses, a corte expõe suas fragilidades e alimenta o mal-estar sobre sua atuação.

Uma metáfora, que sintetizaria o mal-estar, vem se impondo no debate público. Os onze ministros do STF são onze ilhas cada uma por si (Mendes, 2010Mendes, Conrado Hübner. “Onze ilhas”. Folha de S. Paulo , 1º fev. 2010.).3 3 A metáfora chegou aos editoriais da grande imprensa, como em “Cada um por si” (2017), na Folha de S. Paulo. Sepúlveda Pertence reivindicou a autoria da comparação: “Cheguei a dizer-o ministro Jobim gosta muito de repetir esta frase minha-que éramos onze ilhas incomunicáveis, um arquipélago de onze ilhas incomunicáveis” (Fontainha; Silva; Nuñez, 2015Fontainha, Fernando de Castro; Silva, Angela Moreira Domingues da; Nuñez, Izabel Saenger (orgs.). História oral do Supremo (1988-2013), v.3: Sepúlveda Pertence. Rio de Janeiro: Direito FGV Rio, 2015., p. 116; Klafkel; Pretzel, 2014Klafke, Guilherme Forma; Pretzel, Bruna Romano. “Processo decisório no Supremo Tribunal Federal: aprofundando o diagnóstico das onze ilhas”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, pp. 89-104, 2014.).

O artigo de Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhano aprofunda as críticas à fragmentação do tribunal. Os autores realizam um minucioso mapa dos modos pelos quais a ação individual dos ministros pode influenciar o processo decisório do STF. Já o artigo de Jeferson Mariano Silva oferece um contraponto à tese da fragmentação ao pesquisar as ações de inconstitucionalidade entre 2012 e 2017 e estimar o grau de consenso e dissenso entre os ministros. Com isso, o trabalho permite avaliar o alcance da metáfora das “onze ilhas”. Outro achado foi mostrar que as divergências não guardam relação com a origem política das indicações.

O artigo de Juliano Zaiden Benvindo e Fernando José Gonçalves Acunha traz uma perspectiva comparada, ao aproximar o STF e a Suprema Corte de Justiça mexicana. A questão que suscita a comparação é a relação entre atuação do tribunal e a fragmentação do sistema político. A pesquisa contribui para compreender o papel do STF como um ator envolvido na disputa político-parlamentar.

Para além das questões conjunturais mais urgentes, Andrei Koerner oferece uma contribuição à história política do STF, que fez dobradinha com os militares na proposta de reforma judiciária entre 1974 e 1977 no contexto de distensão do regime militar. Um dos efeitos do processo foi a maior centralização do Judiciário, mas também o distanciamento de parte do campo jurídico em relação ao regime. A energia acumulada desaguou na Constituinte e foi determinante para, de um lado, a extensão do papel das instituições judiciais para a defesa dos direitos e, de outro, para seu insulamento burocrático e a consolidação dos interesses corporativos da justiça.

Os artigos aqui reunidos contribuem assim para compreendermos algumas das razões do mal-estar: o modo de funcionamento da corte, sua relação com o sistema político, os efeitos das escolhas na transição para democracia. O certo é que, no projeto de estado democrático de direito pactuado pela Constituição de 1988, o STF ocupa um lugar fundamental. É imprescindível, portanto, aprofundar o diagnóstico dos problemas da sua atuação.

REFERÊNCIAS

  • Almeida, Eloísa Machado de. “Inovações do STF geram série de incertezas”. Folha de S. Paulo, 8 dez. 2017. “Cada um por si”. Folha de S. Paulo , 24 dez. 2017.
  • Fontainha, Fernando de Castro; Silva, Angela Moreira Domingues da; Nuñez, Izabel Saenger (orgs.). História oral do Supremo (1988-2013), v.3: Sepúlveda Pertence. Rio de Janeiro: Direito FGV Rio, 2015.
  • Klafke, Guilherme Forma; Pretzel, Bruna Romano. “Processo decisório no Supremo Tribunal Federal: aprofundando o diagnóstico das onze ilhas”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, pp. 89-104, 2014.
  • Mendes, Conrado Hübner. “Onze ilhas”. Folha de S. Paulo , 1º fev. 2010.
  • Nobre, Marcos. “De pontos e de curvas”. Valor Econômico, 9 maio 2016.
  • Rodriguez, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013.
  • Silva, Virgílio Afonso da Silva. “Deciding without Deliberating”. International Journal of Constitutional Law, v. 11, n. 3, pp. 557-584, 2013.
  • Vojvodic, Adriana de Moraes; Machado, Ana Mara França; Cardoso, Evorah Lusci Costa. “Escrevendo um romance, primeiro capítulo: precedentes e processo decisório no STF”. Revista Direito GV, v. 5, n. 1. pp. 21-55, 2009.
  • 1
    O prognóstico de então foi certeiro: “A unanimidade no caso da decisão sobre o mandato de Cunha foi apenas aparente. Para que seja efetiva, a maioria dos ministros precisa chegar a um acordo de base inédito e duradouro. Se isso não acontecer, todos os anos até 2018 vão repetir 2015” (Nobre, 2016Nobre, Marcos. “De pontos e de curvas”. Valor Econômico, 9 maio 2016.).
  • 2
    Sobre as decisões do STF sobre imunidades parlamentares, ver Almeida (2017Almeida, Eloísa Machado de. “Inovações do STF geram série de incertezas”. Folha de S. Paulo, 8 dez. 2017. “Cada um por si”. Folha de S. Paulo , 24 dez. 2017.).
  • 3
    A metáfora chegou aos editoriais da grande imprensa, como em “Cada um por si” (2017), na Folha de S. Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018
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