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DESCENTRALIZAÇÃO DOSEADA: facetas estruturantes das iniquidades em saúde em Moçambique

Decentralization in Small Doses: Structuring Aspects of Health Inequities in Mozambique

RESUMO

A partir de minietnografias realizadas em duas cidades municipais - Maputo, tomado como modelo de “descentralização municipal em saúde”, e Quelimane, onde o processo de descentralização de serviços de saúde foi adiado -, este artigo argumenta que o gradualismo na transferência de competências do governo central aos municípios, sem roteiro claro, contribui para a diluição das responsabilidades do Estado ante os cidadãos e fragiliza os mecanismo de prestação de contas.

PALAVRAS-CHAVE:
descentralização municipal; iniquidades; saúde; Moçambique

ABSTRACT

Through the use of mini-ethnographies in two municipalities: Maputo, considered a model for “municipal health decentralization”, and Quelimane, where the health decentralization process has been delayed, this article argues that the gradualism in the transfer of responsibilities from the central government to the municipalities, without a clear road map, contributes to the dilution of state responsibilities towards its own citizens and weakening of accountability mechanisms.

KEYWORDS:
municipal decentralization; inequities; health; Mozambique

NOTA METODOLÓGICA

Este artigo foi elaborado com base em minietnografias, realizadas em um período de sessenta dias, entre fevereiro e maio de 2018, na cidade e município de Maputo, capital de Moçambique, situada na região sul do país e com 1.101.170 habitantes, e no município de Quelimane, capital da província da Zambézia, situado na região central e com 349.842 habitantes (INE, 2017Instituto Nacional de Estatística - INE. Resultados preliminares do recenseamento geral da população e habitação. Maputo: INE, 2017.). Nos dois locais da pesquisa, cumulativamente, foram realizadas cerca de cinquenta entrevistas individuais com diferentes perfis de atores e provedores de serviços que, por questões éticas e de preservação das identidades, são referidos pelas designações genéricas de suas funções. Entre os entrevistados, constam gestores de saúde de nível central-ministerial (2), presidente de município (1), vereadores municipais (2), diretores provinciais da saúde (2), médicos-chefes (2), diretores distritais de saúde (2), gestores de hospitais (2), gestores de centros de saúde (6), enfermeiros (10), gestores de ongs (4), ativistas sociais (6) e usuários de serviços de saúde (11). A literatura com enfoque em assuntos relacionados com a prestação de contas (accountability) e descentralização informou a elaboração deste artigo, pari passu com a análise da dimensão estruturante da história sociopolítica do país. O resultado das minietnografias gerou material e conteúdo passível de ser desdobrado em múltiplas vertentes, sendo este o primeiro de uma série de três artigos que deverão englobar temas sobre participação do cidadão e arquitetura de financiamento dos serviços de saúde.1 1 Como produto adicional da pesquisa, ver também: Namburete (2018).

INTRODUÇÃO

Desde a independência, em 1975, o Estado moçambicano desempenha papel normativo em saúde, englobando a definição de políticas e gestão setorial, por meio de uma estrutura hierarquizada que parte do nível central, cobrindo os níveis provincial e distrital. A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder, nacionalizou, por meio do decreto-lei n. 5/1975, de 19 de agosto de 1975, os serviços de saúde e decretou que “todas as atividades em matéria de prevenção e tratamento de doenças, assim como a preparação de quadros técnicos de saúde são exclusivos do Estado” (Moçambique, 1975_____. “Decreto-lei n. 5/1975. Dispõe sobre a nacionalização das clínicas privadas”. Boletim da República, Série 1, n. 24, 19/08/1975.).

Na década 1990, Moçambique passou por importantes transformações políticas, com a transição democrática e a adoção de uma nova Constituição, que abriu caminho para a criação do Sistema Nacional de Saúde (sns) e para o multipartidarismo, restabelecendo as condições para provisão de serviços de saúde em um quadro mais complexo, que inclui o processo de descentralização atrelado ao reordenamento territorial e à introdução das Autarquias Municipais.

Apesar das consideráveis transformações históricas e estruturais que vêm ocorrendo no contexto geral do país e no sns, de modo particular, e do início formal do processo de descentralização, a estrutura de gestão de saúde, principalmente em termos de planificação e prestação de contas, permanece consideravelmente centralizada, e o acesso à saúde fortemente desigual.

Partindo do pressuposto de que a centralização inibe a oferta de respostas locais a problemas de saúde contextualmente circunscritos, neste artigo analisamos a relação entre os inacabados processos de descentralização político-administrativa e suas implicações na responsabilização estatal pela redução das iniquidades na provisão de serviços, com particular enfoque para os de saúde. A partir dos resultados da pesquisa nos municípios de Maputo e Quelimane, analisamos como fatores político-ideológicos interferem na priorização e articulação de uma agenda nacional de saúde atenta às iniquidades e de que forma o centralismo estrutural afeta o campo de prestação de contas (accountability) e de responsabilização em vários níveis: político, social e administrativo.

Os resultados da pesquisa corroboram a tese de que o decreto n. 33/2006, de 30 de agosto daquele ano, que preconiza a transferência de competências dos cuidados de saúde primária para os municípios, não está sendo implementado na maior parte dos municípios do país, e, nos casos em que o processo de implementação está em curso, como no município de Maputo, sua adoção é parcial. O gradualismo de conveniência, sem roteiros e sem metas claras, na transferência de competências para os municípios, bem como o persistente indeferimento dos requerimentos dos municípios sob a gestão dos partidos de oposição, que aspiram a um papel mais proeminente na gestão de cuidados de saúde primários, são política e administrativamente cerceados pela cadeia de poder político centralizado, que continua a assumir uma postura de monopolização das funções e instituições do Estado. Na sequência dessa constatação, argumentamos que a perpetuação da indefinição no processo de transferência de competências de gestão concorre para a diluição de linhas de responsabilização e prestação de contas em saúde e reproduz uma cultura de descompromisso com os serviços prestados.

Ao longo das seções subsequentes, evidenciamos a complexidade da arquitetura de administração dos serviços de saúde, realçando a persistência de um quadro institucional e operacional centralizador, não obstante a legislação e as promessas políticas que advogam pela descentralização, ainda que gradual, da estrutura de administração dos serviços de saúde. Destacamos a implicação dessa situação na reprodução das iniquidades conforme os atores locais não detêm pleno controle da planificação, orçamentação e dispõem de limitada capacidade de resposta a eventuais demandas de prestação de contas e responsabilização.

CENTRALISMO SISTÊMICO E ENSAIOS DE DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE EM MOÇAMBIQUE

A concepção da saúde como constituinte das prioridades das narrativas políticas tem atravessado o tempo e sobrevivido a mudanças ideológicas de regime, do socialismo à democracia liberal. Nos discursos dos partidos que entram nas corridas eleitorais, o campo da saúde permanece como lugar cativo no esgrimir de argumentos para a sedução de eleitores, ainda que a conversão dessas prioridades em programas e intervenções tenha se revelado consideravelmente defasada.

Embora a autarquização da provisão de serviços primários de saúde não deva ser tomada, por si só, como garantia de melhor enquadramento e resposta às iniquidades de saúde, é amplamente reconhecido na literatura que a responsabilização de nível local contribui para uma melhor interface entre provedores e usuários de serviços de saúde, dando visibilidade à cadeia de responsabilização, administrativa, programática e política (O’Laughlin, 2010O’Laughlin, Bridget. “Questions of Health and Inequality in Mozambique”. Cadernos IESE, n. 4, Maputo, 2010.).2 2 Para argumentos em defesa do centralismo e provisão de serviços de saúde, ver: Collins e Green (1994) e Booth (2010). Estudos anteriores, realizados em países em desenvolvimento, apontam para casos em que a descentralização resultou na identificação dos cuidados primários de saúde com o foco para a provisão de serviços básicos de saúde para populações rurais (Madon et al., 2010Madon, Shirin et al. “Health Information Systems, Decentralisation and Democratic Accountability”. Public Administration and Development, v. 30, n. 4, jun. 2010, pp. 247-60.). Autores como Mitchell e Bossert (2010Mitchell, Andrew; Bossert, Thomas J. “Decentralisation, Governance and Health-System Performance: ‘Where You Stand Depends on Where You Sit’”. Development Policy Review, v. 28, n. 6, nov. 2010, pp. 669-91.) argumentam ainda que, quando é acompanhada por mecanismos adequados de responsabilização (accountability), que possam responder a preferências locais, a descentralização resulta na melhoria da provisão de serviços. A literatura é, no entanto, inconclusiva sobre o nível de autonomia que deve ser atribuída a agências locais na implementação de programas, particularmente no setor da saúde. No caso de Moçambique, apesar das sucessivas ações que conferem algum grau de desconcentração,3 3 As direções provinciais da saúde foram criadas em 1975, e a indicação do distrito como plataforma de planificação ocorreu em 1978. Para uma discussão sobre as noções de descentralização e desconcentração, ver: Mello (2000). a gestão e a provisão da saúde permanecem centralizadas, em termos políticos e de hierarquia de prestação de contas.

Em termos legais e normativos, o artigo 89 da Constituição da República de 1990 estabeleceu a todos os cidadãos o direito à assistência médica. A lei n. 25/1991 criou o Sistema Nacional de Saúde (SNS) e abriu possibilidades para o estabelecimento da Política Nacional de Saúde (PNS, 1995), que determinou a divisão da área da saúde em três subsetores (público, privado e comunitário) e destacou a introdução de taxas de serviço pagas pelos usuários, como forma de ampliar a base de recursos do setor. O processo de autarquização iniciado em 1994 com a aprovação da lei n. 3/1994, referente aos distritos municipais, e, posteriormente, da lei n. 2/1997, referente às autarquias locais, a serem implementadas sob o princípio de gradualismo, advoga pela transferência gradual de competências e funções do Estado/governo para autarquias locais. Em 1997-98 foi aprovada a descentralização da gestão de recursos humanos dos níveis médio, inferior e básico, foram criados os orçamentos provinciais e foi adotado o Sistema de Administração Financeira do Estado (Sistafe).

A sucessão de reformas legais e normativas não alterou o centralismo sistêmico observado na gestão da saúde, herdado do modelo de organização soviético (Weimer, 2012Weimer, Bernhard. “Saúde para o povo? Para um entendimento da economia política e das dinâmicas da descentralização no sector”. In: Moçambique: descentralizar o centralismo? Economia política, recursos e resultados. Maputo: IESE, 2012, pp. 423-51.), o qual se expressa não apenas em termos de estruturas formais e linhas hierárquicas verticais de autoridade institucional, mas também por meio de práticas sutis de engajamento, discursos e narrativas que, aparentemente, privilegiam, incorporam ou consideram as perspectivas e preocupações descentralizadas (Veigas, 2007, apud Weimer, 2012; Uandela, 2012Uandela, André. “Mecanismos e instrumentos de planificação e orçamentação no sector de águas em Moçambique”. Folheto Informativo Moç. M03, WASHCost, Moçambique. 2012., apudN’weti, 2016N’weti - Comunicação para a Saúde. Rastreio da despesa pública na Saúde 2015: Distritos de Angoche, Bilene, Magude e Xai-Xaii, Hospitais Gerais do Chamanculo e José Macamo. Maputo: N’weti, 2016.). Um exemplo dessa ambiguidade reflete-se no modelo de planificação que, formalmente, deve ter início na base, procurando responder às necessidades de saúde locais, mas que na prática é centralizado. O descompasso entre planificação e orçamentação, bem como a falta de autonomia de programação acabam por desvirtuar a premissa de que a planificação se inicia na base, uma vez que, em última instância, a construção das prioridades setoriais e a alocação do orçamento ocorrem em nível central (Weimer, 2012Weimer, Bernhard. “Saúde para o povo? Para um entendimento da economia política e das dinâmicas da descentralização no sector”. In: Moçambique: descentralizar o centralismo? Economia política, recursos e resultados. Maputo: IESE, 2012, pp. 423-51.; Selemane et al., 2015Selemane, Thomas et al. Status of the Decentralization Process in the Health Sector in Mozambique. An update of the 2010 Report. Maputo: Royal Danish Embassy in Maputo. MB Consulting, 2015.; MAP Consult, 2016MAP Consult. Political Economy of Decentralisation in Mozambique: Dynamics, Outcomes, Challenges. Final Report. Maputo: Swiss Cooperation Office, 2016.).

A falta de sincronia entre planificação e orçamentação na tomada de decisão e alocação de recursos concorre para um enquadramento deficiente das necessidades e prioridades de nível local, onde mais se expressam as iniquidades em saúde, e contribui para a perpetuação da ineficiência administrava e de prestação de contas, limitando uma efetiva resposta na lide com uma diversidade de iniquidades que caraterizam a saúde em escala nacional. Para além dos constrangimentos na gestão das unidades sanitárias, com destaque para os atrasos no desembolso de fundos para atividades rotineiras (Fernandes et al., 2012Fernandes, Quinhas et al. Relatório da Revisão do Sector da Saúde. Maputo: MISAU, 2012.), as implicações dessa complexa arquitetura podem ser pensadas com enfoque para um espectro mais amplo de reprodução das ineficiências administrativas e, concomitantemente, das iniquidades em saúde.

DESCENTRALIZAÇÃO DOSEADA E IMPLICAÇÕES PARA A GESTÃO DA SAÚDE

As leis n. 9/1996 e 2/1997 instauram as autarquias locais e estabelecem as condições essenciais para a promoção do desenvolvimento municipal e melhoria das condições de vida das comunidades locais, incluindo a garantia da participação dos cidadãos na solução dos problemas de suas comunidades.

Uma das premissas subjacentes a esse processo é a tácita aceitação de que a descentralização é um viés ideal para o reforço da capacidade do Estado em prover, com eficiência e eficácia, um conjunto de bens e serviços aos seus cidadãos (Canhanga, 2009Canhanga, Nobre de Jesus Varela. Descentralização fiscal, transferências intergovernamentais e dinâmicas da pobreza nas autarquias locais. Maputo: IESE, 2009.). Da concepção à prática, nos últimos trinta anos, Moçambique tornou-se um campo de vívido debate sobre formas e possibilidades de descentralização territorial, administrativa, em vários domínios de gestão da esfera pública, não obstante a lentidão, os avanços e recuos na materialização dessa aspiração. A reflexão sobre o processo de transferência de competências na provisão de serviços de saúde primários para os municípios é ilustrativa do quadro que classificamos como de descentralização doseada, dadas as hesitações e parcimônias governamentais na dinamização e implementação dos dispositivos legais que legitimam o investimento na descentralização.

No que se refere aos municípios, está legalmente consagrada a sua responsabilidade pelos cuidados primários de saúde e foram aprovados regulamentos para que lhes fossem transferidos recursos humanos e financeiros (decretos n. 33/2006 e 46/2011). O decreto n. 33/2006 preconiza que, para ocorrer a transferência de competências, “as autarquias devem indicar as suas capacidades técnicas para assumir as funções e competências a serem transferidas” e que “a transferência de competências dos órgãos do Estado para as autarquias municipais é acompanhada pela correspondente transferência dos recursos financeiros e, se necessário, humanos e patrimoniais”, para suportar encargos com as novas atribuições. Preconiza-se, igualmente, que “a transferência de funções e competências dos órgãos do Estado para as autarquias locais deve operar-se de forma gradual, de modo a permitir a criação e consolidação dos necessários requisitos de capacitação técnica, humana e financeira dos órgãos autárquicos”. Conforme estipulado em lei, a transferência de competências dos órgãos do Estado para as autarquias locais deve ser efetuada mediante a celebração de Acordo de Transferência de Funções e Competências entre o governo provincial e a autarquia local (lei n. 1/2008).

A questão de transferência de competências é também apresentada sob o ponto de vista financeiro nos Planos Estratégicos do Setor da Saúde (PESS), enfatizando que, para além das diferentes áreas já apresentadas, o investimento nas autarquias locais é direcionado às unidades de cuidados primários de saúde e que tal investimento compreende “a identificação, elaboração e a aprovação de projetos; o financiamento e execução dos empreendimentos; a gestão, manutenção e financiamento de projetos e de equipamento” (Ombe; Catique, 2017Ombe, José Carlos; Catique, Lucas Eugénio. “As implicações da descentralização na gestão das Unidades Sanitárias: um olhar para o caso do município de Maputo”. Conferência Desafios da investigação social e económica em tempos de crise, IESE, 2017.; MISAU, 2007MISAU. Plano Estratégico do Sector da Saúde 2007-2012. Maputo, 2007.; 2014_____. Plano Estratégico do Sector da Saúde 2014-2019. Maputo, 2014.).

Todavia, da concepção dos instrumentos legais à materialização efetiva da agenda de descentralização e transferência de competências de gestão de serviços de saúde primários para os municípios, destaca-se a persistência de vazios operacionais e hesitações, conforme demonstram os resultados da pesquisa realizada nos municípios de Maputo e de Quelimane.

O processo de transferência de competências para o nível municipal ocorre a passos lentos e inconclusivos, tendo se convertido num dos fatores de tensão entre municípios e demais órgãos do Estado. Formalmente, uma das atitudes do governo face à lentidão do processo de transferência de funções e competências do Estado para as autarquias locais é atribuir a responsabilidade para o “reduzido número de municípios que teriam manifestado interesse e demonstrado capacidade técnica e organizacional para assumir essas tarefas”. Nesse diapasão, o artifício argumentativo adotado pelas autoridades centrais é o de que existe uma “má interpretação” do decreto n. 33/2006, que não preconiza transferência incondicional, senão uma transferência condicionada ao cumprimento dos requisitos de disponibilidade de pessoal treinado e qualificado para realizar essas funções. Somente quando reunidas as condições técnicas e materiais requeridas seria possível autorizar a transferência de competências.4 4 Carmelita Namashulua, ministra da Administração Estatal e Função Pública. Comunicação à Assembleia da República, publicada no Jornal Notícias em 1º/12/2015.

O crítico nesse tipo de argumento é que se presume que os municípios tenham que criar novas estruturas de gestão e provisão de serviços de saúde, como se, quando uma unidade sanitária fosse transferida para a gestão municipal, os provedores de serviços aí adstritos deixassem de sê-lo e os municípios tivessem que recrutar novos funcionários (aliados à sua cor político-partidária). Esse tipo de artifício argumentativo e contra-argumentativo concorre para a perpetuação dos impasses e das negações no cumprimento do estabelecido em decreto legal, em alguns casos exacerbando as disputas e o aproveitamento político das fragilidades do sistema de provisão de saúde em nível municipal. Além disso, a invocação do argumento de que os municípios devem dispor de plena capacidade de recursos humanos para assumir as responsabilidades de gestão em saúde não impediu que a transferência de competências fosse realizada no município de Maputo, onde, em larga medida, se incluiu a transferência de pessoal. Desde a aprovação do decreto, a legalmente preconizada transferência de competências para a gestão dos cuidados de saúde primários foi materializada somente no município de Maputo em 2009 e, mais recentemente, no município de Pemba, ambos geridos pelo partido no poder.

Entretanto, até junho de 2018, 19 das 53 autarquias locais existentes já tinham manifestado ao Ministério da Administração Estatal interesse em gerir os serviços primários de saúde. Os municípios de Quelimane, Beira (na província de Sofala) e Nampula (na província de Nampula), sob a gestão de partidos da oposição, indicaram que vêm manifestando interesse em assumir tais funções, tendo encetado diligências junto aos canais competentes sem nenhuma resposta satisfatória. Igualmente, manifestaram a intenção de assumir a gestão dos serviços primários de saúde outros municípios sob a gestão do partido no poder: Matola, Xai-Xai, Inhambane, Maxixe, Massinga, Vilankulo, Dondo, Marromeu, Gorongosa, Chimoio, Gondola, Manica, Catandica, Lichinga e Cuamba. A resposta dada aos pedidos foi a de que os processos estão em análise pelos respectivos governos provinciais, em coordenação com o Ministério da Saúde (MISAU).

Como veremos nas próximas seções, a lentidão e a falta de roteiro sistemático de implementação da agenda de descentralização assumem diversos contornos, traduzidos em tensões entre atores e instituições envolvidos nos processos de descentralização iniciados (Maputo) e os que têm aspirações a verem materializada a agenda de descentralização.

MAPUTO: DESCENTRALIZAÇÃO SINUOSA E RESPONSABILIZAÇÃO DILUÍDA

No contexto da implementação do decreto n. 33/2006, o Conselho Municipal de Maputo criou a Vereação de Saúde e Ação Social em 2009 (Resolução 001/AM/2009), tendo sido rubricado, em dezembro do mesmo ano, pela governadora de Maputo e pelo presidente do Conselho Municipal da mesma cidade, o Acordo de Transferência de Funções e Competências do Setor da Saúde para a autarquia local de Maputo. No entanto, somente em 15 de fevereiro de 2013 foi assinado o memorando de entendimento sobre os procedimentos de execução do acordo de transferência de competências, que culminou com a mudança da gestão técnica de 26 centros de saúde e 856 funcionários para a gestão municipal (Ombe; Catique, 2017Ombe, José Carlos; Catique, Lucas Eugénio. “As implicações da descentralização na gestão das Unidades Sanitárias: um olhar para o caso do município de Maputo”. Conferência Desafios da investigação social e económica em tempos de crise, IESE, 2017.). A transferência de recursos financeiros, entretanto, não ocorreu, e os pagamentos são feitos pela Direção de Saúde da Cidade de Maputo (DSCM).5 5 Códigos de entrevistas: DSCM Direção de Saúde da Cidade de Maputo GHGM Gestor de Hospital Geral em Maputo GCSC Gestor de Centro de Saúde da Cidade GMSM Gestor do Municipal de Saúde em Maputo

Apesar de reiterar a disponibilidade de capacidade para uma plena absorção das competências a serem transferidas do nível provincial para o municipal e assegurar que dispõe de condições para realização do mandato de gestão municipal dos cuidados primários de saúde, o município de Maputo é constantemente confrontado com a alegação de falta de recursos humanos para uma efetiva implementação do decreto n. 33/2006. Gestores municipais acreditam que tal argumento é, no entanto, um subterfúgio discursivo para retardar a efetiva transferência de competências e funções estipuladas no decreto. A título de exemplo, desde 2009 o município de Maputo vem reforçando suas capacidades em termos de pessoal para a gestão dos cuidados primários de saúde, tendo, inclusive, incorporado o pessoal transferido pela DSCM, incluída toda a Direção de Saúde Pública.

O discurso da DSCM é, no entanto, outro, salientando a falta de prontidão organizativa por parte do município para acolher as responsabilidades que pendem do processo de transferência de competências. Contraditoriamente, representantes da dscm reconhecem que o município já faz a gestão programática de várias atividades, não obstante não ter a responsabilidade direta de planificação, gestão e execução orçamental. O argumento do gradualismo na transferência de competências é também evocado por gestores dos hospitais gerais, que reiteram que os municípios não dispõem de capacidades para assumir as tarefas de gestão global dos centros de saúde, especialmente no que concerne a estrutura administrativa, disponibilidade de unidades de procura e aquisições, gestão financeira e de recursos humanos. A perspectiva dos gestores hospitalares é evidenciada aqui: “Penso que o município é que tem que trabalhar neste sentido porque a estrutura de gestão dos hospitais e dos centros de saúde existe. Ele tem que crescer e desmamar um pouco” (Entrevista GHGM).

Na atual estrutura, os hospitais gerais (sob gestão central do MISAU) têm a responsabilidade de gerir os centros de saúde na sua área geográfica (aproximadamente 5 a 12 centros), o que, em termos práticos, implica que os hospitais gerais são a fonte primária de recepção e gestão de fundos alocados pelo orçamento do Estado para gestão dos centros de saúde, detendo o poder de gerir as dimensões administrativa, financeira, de recursos humanos e patrimônio. Nesse cenário, a iminente transferência de competências para o município representaria uma perda de poder administrativo e financeiro por parte dos hospitais gerais.

Já o Poder Legislativo de Maputo, a vereação municipal, defende a existência de capacidades instaladas ao nível do município nos últimos nove anos, o que teria permitido dispor de mais de sessenta profissionais com qualificações necessárias para assumir tarefas de gestão dos centros de saúde. Do ponto de vista da vereação municipal, a persistente enfâse no discurso da falta de competência deve ser lida como uma forma de expressão de resistência à mudança em um quadro político de controle de recursos mais amplo.

Mesmo na perspectiva dos provedores de saúde, no nível dos centros de saúde, é relativamente consensual que as ações de descentralização e transferência de competências para o município de Maputo permanecem em patamares simbólicos e discursivos, sem um substancial reconhecimento das ações realizadas pelo município: “[…] a introdução dos municípios não se faz sentir porque eles basicamente não fazem nada para os centros de saúde. Só se fala que o município está a gerir os centros de saúde, mas em termos de apoio, não tem muita coisa que eles estejam a fazer” (Entrevista GCSC).

Os conflitos, tensões e resistências na transferência de competências da DSCM para o município de Maputo devem, contudo, ser entendidos no marco mais amplo das negociações do pós-guerra civil entre as forças políticas da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e da Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), que ainda perduram e acabaram por consolidar uma estrutura político-administrativa centralizadora no nível mais alto, com apenas os municípios sendo objeto de eleições diretas. Assim, de acordo com diversos entrevistados, a resistência em efetivar a transferência - tanto dos municípios tutelados pelo governo quanto dos tutelados pela oposição - estaria mais associada ao “medo do desconhecido”, em termos políticos, do que à alegada falta de capacidade.

Vista sob a perspectiva política, reconhece-se que, progressivamente, os partidos de oposição, a Renamo e o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), têm ganhado proeminência e registrado consideráveis conquistas eleitorais ao longo do tempo, detendo o controle dos municípios das capitais das províncias mais populosas, que, por sua vez, representam os principais centros urbanos de Moçambique para além da capital: Nampula, Quelimane e Beira. Tais dinâmicas são percebidas como potencial risco de perda de controle por parte do partido no poder, que tem mantido sua proeminência nos municípios mais periféricos - a maioria - e na cidade de Maputo.

No caso de Maputo, a lentidão na efetivação do processo de transferência de competências concorre para a instalação de um ambiente em que os provedores ligados aos centros de saúde, em princípio transferidos para a gestão municipal, não tenham clareza sobre as linhas de responsabilização e prestação de contas, assim como os usuários permanecem sem clareza sobre a cadeia de prestação de contas, uma ambiguidade particularmente evidente quando da tramitação de expedientes por parte dos usuários.

Apesar do decreto n. 33/2006 indicar que deve haver transferência de competências de gestão dos centros de saúde para os municípios, a arquitetura dessa transferência segue multifacetada. Observa-se uma estrutura de gestão administrativa e financeira tridirecional em que aparecem, em primeira instância, o município formalmente responsável pela gestão dos centros de saúde; os hospitais gerais como responsáveis pela gestão financeira e de recursos humanos; e, em termos práticos, a DSCM com o controle das competências que deveriam ter sido transferidas para o município (planificação e prestação de contas ao MISAU).

Em última instância, a DSCM permanece como o ator sobre o qual recai a maior parte das responsabilidades de articulação dos planos da cidade, alocação de fundos ao município, supervisão e monitoramento da gestão financeira de recursos humanos e administrativa dos hospitais gerais, que, por sua vez, cuidam dos centros de saúde. Nessa arquitetura, ainda são os hospitais - e não o município - que gerem os centros de saúde. Essa estrutura esvazia a autonomia administrativa e financeira que o município deveria ter. Por outro lado, a DSCM tem também uma dupla subordinação, na medida em que presta contas ao governo da cidade de Maputo e ao MISAU, e ainda à Direção Provincial das Finanças, no que tange a matérias de gestão financeira.

Apesar de essa estrutura de prestação de contas, sobretudo gerencial-financeira, ter sido normalizada e todos os atores envolvidos na cadeia respeitarem essas linhas de subordinação, os gestores municipais entrevistados indicam que se encontram em uma situação de vulnerabilidade. O fato de a DSCM ser quem recebe e gere os fundos, até para o município, tem como implicação a ocorrência de atrasos de desembolsos que por vezes comprometem o fluxo de implementação das atividades. Nessas circunstâncias, ainda de acordo com gestores municipais, os atrasos e insucessos no cumprimento de certas metas tendem a ser interpretados como fraco desempenho do município, e a dscm não tomaria responsabilidade: “Quando os resultados são bons, a Direção de Saúde da Cidade de Maputo colhe os louros; quando os resultados são maus, a culpa é do município” (Entrevista GMSM).

Historicamente, as responsabilidades de gestão da provisão de serviços estavam concentradas na DSCM. A implementação do decreto n. 33/2006 não parece ter sido suficientemente disseminada ao público mais amplo, assim como acontece, por exemplo, com a divulgação da introdução de outros serviços, como coleta do lixo, taxas municipais, rotas e preços de transportes municipais ou gestão dos mercados. Tal lacuna contribui para que o cidadão desconheça as alterações em curso e, consequentemente, os espaços de participação, expressão de demandas e responsabilização. Essa perspectiva é reconhecida pela vereação de Saúde do município de Maputo, que realça que “ainda não prestamos contas ao cidadão porque, na cabeça de todos, quem oferece os serviços é a Direção de Saúde da Cidade de Maputo” (Entrevista GMSM).

A diluição de mandatos e obrigações concorrem para a reprodução de um campo em que não há clareza sobre as entidades responsáveis pelo enquadramento das iniquidades e desafios de acesso aos cuidados primários de saúde que caraterizam os distritos municipais. Na atual estrutura de funcionamento, apesar de existir um esforço de planificação conjunta entre a DSCM e o município, os níveis de compromisso com os problemas de saúde que afetam os cidadãos tendem a ser preteridos em função do investimento posto em discussões a respeito da distribuição de tarefas de controle e gestão.

Ao longo das entrevistas na província e no município de Maputo, foi possível constatar que, caso houvesse plena autonomia, seria possível, por exemplo, pensar as preocupações de saúde com enfoque para as particularidades do contexto urbano do município; ou seja, observando os desafios que caracterizam o espaço, planificando e implementando intervenções direcionadas para responder às iniquidades específicas do contexto urbano, em particular da cidade de Maputo e seus bairros suburbanos, e não uma mera reprodução de um padrão centralizado de planificação em que dificilmente se distinguem as necessidades de cuidados primários de saúde entre contextos urbanos e rurais. Muito além de evidenciarem as tensões constitutivas de um processo inacabado de transferência de estruturas e aparatos de gestão da saúde primária, as entrevistas realçam os espaços de permeabilidade por onde, estruturalmente, se perdem oportunidades de redimensionar, problematizar, enquadrar e investir na busca de respostas para padrões específicos de iniquidades de saúde, que caracterizam contextos urbanos e multiculturais como a cidade de Maputo, que alberga padrões mesclados de urbanização e perfis de populações, com variadas tradições de busca e utilização de serviços de saúde.

QUELIMANE: DESCENTRALIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE ADIADA

Em relação ao município de Quelimane, o que prevalece é que, cerca de doze anos após a aprovação do decreto n. 33/2006, que estatui a transferência da gestão dos serviços de cuidados primários de saúde e educação para os municípios, esta não ocorre por razões fundamentalmente políticas. O estabelecido em lei permanece letra morta, e nenhum dos órgãos, como a Assembleia da República (majoritariamente dominada pela Frelimo) ou o Ministério da Administração Estatal, demonstra interesse em promover a agenda da descentralização - salvo por periódicas invocações ao gradualismo que deve acompanhar o processo de transferência de competências de gestão dos cuidados primários de saúde - dos governos provinciais para as autarquias municipais.

No caso de Quelimane, todas as diligências relacionadas com a tramitação da transferência de competências para o município já haviam sido tomadas muito antes de 2011, quando o município passou para a gestão do terceiro maior partido na oposição, o MDM, em função de eleições intercalares realizadas na sequência de desavenças intrapartidárias que culminaram com a demissão do edil Pio Matos, da Frelimo.

Antes da demissão do edil, o dossiê de solicitação da transferência de competências para o município já havia sido elaborado e estava prestes a ser consumado. Entretanto, a vitória da oposição teria determinado os passos subsequentes. Entre 2012 e 2013, foram realizadas conversações com vistas à materialização da transferência de competências. Entretanto, já em 2013, quando se confirma a recondução de Manuel de Araújo, do MDM, à presidência do município de Quelimane, o governo provincial, liderado pela Frelimo, teria prosseguido na abordagem de protelar indefinidamente o processo, como parte da estratégia política de esvaziar o poder municipal e salvaguardar que a questão do acesso à saúde não fosse usada como objeto discursivo e de propaganda eleitoral, com potencial de ampliar vantagens competitivas no contexto das eleições subsequentes. O fato de o pedido do município de Quelimane para aceder a posição de gestão de serviços primários de saúde ter sido preterido é interpretado pelos representantes do MDM como decorrente da percepção política de que o município tem potencial para ser um município da oposição, com chances de assim permanecer por muito tempo. O partido no poder teria, portanto, adotado mecanismos para desvirtuar essa possibilidade, ainda que isso passasse pela protelação da transferência de competências de gestão de serviços de saúde para aquele nível. Essa linha de raciocínio seria reforçada pela abertura demonstrada pelos governos de Gaza (município de Xai-Xai) e Cabo Delgado (município de Pemba), províncias consideradas redutos políticos tradicionais da Frelimo, nos quais não se vislumbra chances iminentes de alteração na tendência de voto.

O município de Quelimane demonstrou ter encetado uma série de jornadas de negociação junto ao poder central, representado na província pelo governador provincial, desde 2011, quando o município passou à gestão do partido na oposição, o MDM. Após um investimento inicial de levamento de infraestruturas de saúde e educação, o município de Quelimane teria procurado articular com três diferentes governadores que se sucederam de 2011 até hoje sem êxito. Nesse ínterim, Quelimane designou um vereador para a área da saúde e de educação, posto de diretor municipal da Saúde, que tinha também como funções iniciais a preparação da antevista transferência de competências. Enquanto a transição não acontecia, o município criou para si áreas secundárias de intervenção em saúde, com investimentos em saneamento do meio (higiene, saneamento, melhoria de valas de drenagem). As entrevistas com gestores municipais de Quelimane indicam que os municípios geridos pela oposição, como Quelimane, estão cientes dos mecanismos existentes para o financiamento municipal (tais como o Fundo de Investimentos para Iniciativas Locais e o Fundo de Compensação Autárquica), que nos últimos anos não têm sido canalizados com a necessária regularidade para eles.

A tensão no campo de provisão de serviços de saúde entre o município de Quelimane - sob gestão do mdm, partido na oposição - e a DSCQ, o governo distrital de Quelimane e o governo da província da Zambézia - estas três instâncias sob a gestão da Frelimo - expressa-se de múltiplas formas, incluindo o engajamento de ativistas associados com a ideia de terem sido selecionados em função das cores político-partidárias para a realização de tarefas de suporte na promoção da saúde pública, de acordo com gestores municipais entrevistados. Na perspectiva do município (presidente do Conselho Municipal de Quelimane), trata-se da partidarização da provisão de serviços de saúde, que se materializa em momentos de campanhas de distribuição de redes mosquiteiras, em que os serviços de saúde tendem a privilegiar o recrutamento de ativistas provenientes da Frelimo e preterir ativistas ligados ao MDM ou à Renamo. Nessas circunstâncias, os serviços de saúde são capitalizados como estratégias de visibilização do papel doador do governo da Frelimo, assim como mecanismos de redistribuição de benesses aos membros, por meio de subsídios financeiros e materiais que fazem parte do pacote de incentivos ou remuneração dos ativistas, e, dessa forma, a Frelimo garantiria a manutenção de lealdades políticas e cativaria eleitores.

No caso de Quelimane, a tensão instalada entre o município e o governo provincial, no que concerne à gestão de serviços primários de saúde, vai além da protelação da implementação do decreto n. 33/2006 e assume a forma de esporádicas convulsões públicas, envolvendo a DSCQ. A administração de Quelimane e até o governo provincial de tempos em tempos disputam território e protagonismo em campanhas de saúde, como no exemplo em que eclodiu a epidemia de cólera em Quelimane em 2016, quando ocorreu uma revolta da população que era impedida de ter contato com os corpos de familiares vítimas da cólera sem observar os procedimentos adequados de assepsia. Tanto o município como a DSCQ disputaram presença e protagonismo para a mitigação do litígio. Nessas circunstâncias, o espaço para a discussão da responsabilização permanece invisível e não se materializa senão pelas formas rotineiras de gestão burocrática e hierárquica da função pública, sob controle do partido no poder.

POLARIZAÇÃO, “DISCIPLINA PARTIDÁRIA” E GRADUALISMO COMO ENTRAVES À PRESTAÇÃO DE CONTAS

As tensões políticas descritas nas seções anteriores apontam para o receio do governo central de perder controle político e a oportunidade de instrumentalização da provisão de serviços de saúde como recurso de mobilização político-eleitoral, além do fato de existir a consciência de que, nos municípios liderados por partidos da oposição, a área da saúde e da educação também podem ser capitalizadas como plataformas de interação entre gestores municipais e o cidadão, com o potencial de serem acionados como cavalo de batalha em pleitos eleitorais. Diante desse cenário, o governo moçambicano adotou uma postura - ainda que não explícita - de perpetuação da indefinição e lentidão na implementação do processo de descentralização de competências de gestão dos cuidados primários de saúde para os níveis municipais, com recurso a uma multiplicidade de argumentos e subterfúgios. A persistência do centralismo político, mesmo em conjuntura de democratização, como é o atual contexto moçambicano, fica particularmente evidente na fragilidade da implementação dos processos de descentralização nos municípios geridos pelos partidos da oposição. Essa fragilidade ocorre também nos próprios municípios onde o partido no poder tem controle político e está atrelado ao discurso gradualista, no qual transferências são tratadas como piloto, ainda que já perdurem por quase doze anos.

O peso do centralismo político é elevado e embebido em uma cultura em que provedores de serviços empregados pelo Estado não se veem e não se pensam como agentes com potencial de questionamento das decisões políticas. Nesse sentido, eximem-se de pensar e inserir em um contexto mais holístico de provisão de serviços de saúde, concentrando-se apenas nas tarefas que lhes são atribuídas naquela função específica, com limitada vocalização de reflexão crítica sobre o trabalho realizado, até em observância da lealdade partidária, comumente referida como “disciplina partidária”. O reconhecimento de que a alternância política pode trazer um olhar crítico e/ou diferentes abordagens de lidar com a prestação de serviços de saúde denota, entretanto, uma postura de dependência que pode ser associada a uma cultura política paternalista, que caracterizou o Estado socialista, geralmente percebido como pai, com a responsabilidade de cuidar dos seus “cidadãos”, pensados como filhos dependentes. Nas palavras de uma gestora de unidade sanitária em Maputo, “não temos ninguém que olhe por nós, que cuide de nós, que pode nos dar o que precisamos” (Entrevista GMSM).

A cultura de dependência, da subserviência a “ordens superiores”, persiste na esfera pública, de modo geral, e representa um empecilho ao firmamento de uma cultura de prestação de contas e de responsabilização, em que funcionários vejam e pensem a si próprios como provedores (de direito e dever) e os cidadãos como usuários (beneficiários de direito e dever), e não simplesmente sujeitos privilegiados, agraciados pela dádiva ou sorte de estar na posição de provedor ou de beneficiário de serviços oferecidos como dádiva generosa dos detentores do poder.

O gradualismo na descentralização e transferência de competências aos municípios acarreta uma lenta autorização de serviços, sem um roteiro temporal específico e um plano de transferência de competências. Por essa via, sonega-se, na prática, a oportunidade de os municípios analisarem, definirem e gerirem as preocupações locais de saúde e, por essa via, buscarem respostas para iniquidades específicas em contextos locais. De acordo com um entrevistado: “Eu sinto que está escrito que esse processo tem que ser gradual, mas não está escrito em nenhum sítio como será gradual. Recuamos e avançamos em função das percepções que cada um tem e não em função de um instrumento que regule” (Entrevista DSCM).

Ao longo das discussões com os mais variados perfis de interlocutores, gestores municipais e provedores de serviços de saúde, ficou patente que a prossecução da agenda da descentralização tem o potencial de contribuir, significativamente, para a melhoria das condições de saúde dos munícipes, na medida em que haveria um investimento sistemático na planificação e implementação da componente dos cuidados de saúde primários mais próximos do cidadão, tendo em conta a atual estrutura da divisão administrativa, na qual o distrito municipal é a unidade administrativa mais próxima do cidadão, onde na prática se localizam os centros de saúde. De acordo com os gestores hospitalares, ações mais efetivas na componente de cuidados primários de saúde, que incluem educação para saúde, saneamento do meio, prevenção, cuidados preventivos e paliativos, realizados no nível dos centros de saúde localizados nos distritos municipais, poderiam contribuir para uma maior mobilização dos cidadãos para a adesão a esses serviços, contribuindo para ampliar a cobertura das ações de prevenção e reduzindo, dessa forma, a sobrecarga nos cuidados e tratamento que ocorre atualmente nos hospitais.

Além disso, a proximidade dos atores políticos nos distritos municipais e bairros, que são também territórios nos quais realizam suas campanhas em busca de voto, amplia o campo de interesse entre cidadãos e atores políticos municipais no que concerne à negociação de agendas eleitorais e, consequentemente, à prestação de contas sobre as realizações.

O valor dessa proximidade tem sido cada vez mais percebido pelos gestores municipais, que têm adotado o Citizen Report Card como ferramenta para planificação e avaliação das prioridades e do desempenho do município, a partir do qual teriam constatado que, entre 2011 e 2015, a saúde estava classificada como sétima preocupação na lista de prioridades dos munícipes e que, de 2015 a esta data, passou para o segundo lugar e, paralelamente, foi ganhando proeminência nas intervenções do presidente do município de Maputo.6 6 Entrevista com vereadora de Saúde do Conselho Municipal de Maputo.

O caso moçambicano é, portanto, um vivo retrato das tensões políticas da descentralização administrativa, consequente diluição das linhas de responsabilização e prestação de contas no âmbito da gestão do Sistema Nacional de Saúde e seus impactos na efetiva garantia de acesso universal a serviços de saúde pela população. Tanto o caso de Maputo, onde a descentralização é sinuosa, quanto o de Quelimane, onde ela foi adiada, são reveladores de desfuncionalidades: por um lado, o centralismo político e administrativo, subserviente ao investimento de reprodução e perpetuação de poder político, limitando a possibilidade de emergência de parâmetros de problematização crítica do desempenho na área e de efetiva prestação de contas na área da saúde; por outro, o processo de transferência gradualista de competências para os municípios, deixando espaços para ambiguidades na decisão de prosseguir ou não com o processo de descentralização, limitando a possibilidade de governos locais ascenderem à posição de interlocutores diretos com suas constituências em matéria de saúde. O panorama da descentralização doseada em Moçambique é também o da dupla fragilidade na responsabilização do Estado pela redução das iniquidades em saúde: para os gestores e servidores da saúde, a cadeia de prestação de contas e responsabilização está bastante diluída e porosa, não obrigando nenhuma instância a zelar pela excelência na provisão de serviços. Por seu turno, os usuários e cidadãos enfrentam múltiplas dificuldades em navegar no sistema, especialmente porque não têm clareza sobre a instância a que devem recorrer para exigir responsabilização que vá além do atendimento clínico nos centros de saúde e hospitais.

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  • 1
    Como produto adicional da pesquisa, ver também: Namburete (2018Namburete, Denise. “When a Health System Turns Into a Tower of Babel: Mozambique’s Experience”. The Impact Initiative, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.theimpactinitiative.net/blog/tower-babel-mozambique-experience >. Acesso em: 20/6/2019.
    http://www.theimpactinitiative.net/blog/...
    ).
  • 2
    Para argumentos em defesa do centralismo e provisão de serviços de saúde, ver: Collins e Green (1994Collins, Charles; Green, Andrew. “Decentralization and Primary Health Care: Some Negative Implications in Developing Countries”. International Journal of Health Services, v. 24, n. 3, 1994, pp. 459-76.) e Booth (2010Booth, David. Towards a Teory of Local Governance and Public Goods’ Provision in Sub-Saharan Africa. Working Paper n. 13. Londres: Africa Power and Politics Programme/ODI, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.institutions-africa.org/lestream/20100812-appp-working-paper-13 towards-a-theory-of-local- governance-and-public-goods-provision-in-sub-saharan-africa-david-booth-aug-2010 >. Acesso em: 20/06/2019.
    http://www.institutions-africa.org/lestr...
    ).
  • 3
    As direções provinciais da saúde foram criadas em 1975, e a indicação do distrito como plataforma de planificação ocorreu em 1978. Para uma discussão sobre as noções de descentralização e desconcentração, ver: Mello (2000Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.).
  • 4
    Carmelita Namashulua, ministra da Administração Estatal e Função Pública. Comunicação à Assembleia da República, publicada no Jornal Notícias em 1º/12/2015.
  • 5
    Códigos de entrevistas: DSCM Direção de Saúde da Cidade de Maputo GHGM Gestor de Hospital Geral em Maputo GCSC Gestor de Centro de Saúde da Cidade GMSM Gestor do Municipal de Saúde em Maputo
  • 6
    Entrevista com vereadora de Saúde do Conselho Municipal de Maputo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2019
  • Aceito
    05 Jul 2019
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