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A “MEMÓRIA TÉCNICA” DAS GRANDES BARRAGENS: Considerações sobre a aplicação da noção de memória a fatos técnicos1 1 O presente trabalho é parte do projeto de pesquisa “As lutas dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí”, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), juntamente com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGSA/UFPA), o Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (PDTSA/UNIFESSPA) e o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED/UEPA), e apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no quadro do edital Memórias Brasileiras — Conflitos Sociais.

“Technical Memory” in Large Infrastructure Projects: Considerations on the Application of the Notion of Memory to Technical Facts

RESUMO

O artigo discute a associação problemática entre as noções de memória e de técnica nos relatórios produzidos por instituições promotoras de grandes barragens. Analisando a documentação do setor elétrico relativa à construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, o trabalho ressalta o modo como o esquecimento - metodologicamente construído - da memória dos grupos sociais atingidos contribui para o entendimento do “social” pelos promotores dos grandes projetos como um simples problema instrumental “a resolver”.

PALAVRAS-CHAVE:
memória; técnica; grande projeto; Tucuruí

ABSTRACT

The text discusses the problematic association between the notions of memory and technique in reports done by institutions responsible for big dams. By analising electric sector documents related to the Tucuruí hydroelectric dam construction, the text stresses the way that the methodological oblivion of the memory of social groups affected by the dam impacts leads to the (mis)understanding of social issues raised by huge infrastructure projects as simple instrumental problems to be “solved”.

KEYWORDS:
memory; technique; huge project; Tucuruí

A noção de grande projeto de investimento é correntemente empregada para designar obras de infraestrutura que movimentam grandes quantidades de capital, força de trabalho, recursos naturais, energia e território. Esses megaprojetos são definidos por sua capacidade de “transformar paisagens rapidamente, intencionalmente e profundamente de maneira muito visível, requerendo aplicações coordenadas de poder do capital e do Estado […] usando equipamentos pesados e tecnologias sofisticadas, […] exigindo fluxos coordenados de capital financeiro internacional” (Gellert; Lynch, 2003Gellert, Paul K.; Lynch, Barbara D. “Mega-projects as Displacements”. International Social Science Journal, Hoboken, v. 55, n. 175, pp. 15-25, mar. 2003., p. 16). Através deles, além de alterações patrimoniais e geomorfológicas, instauram-se também novas dinâmicas socioeconômicas. Novos grupos sociais emergem na região de implantação; novos interesses e problemas se manifestam (Vainer; Araújo, 2008Vainer, Carlos B.; Araújo, Frederico. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro: Cedi, 2008., pp. 44-5). Com suas características de gigantismo, isolamento e temporariedade (Ribeiro, 1987Ribeiro, Gustavo Lins. “Cuanto más grande mejor? Proyectos de Gran Escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos”. Desarrollo Económico, Buenos Aires: Ediciones del IDES, n. 27 (105), 1987, pp. 3-27.),2 2 De acordo com Ribeiro, “há três dimensões estruturais que são centrais para a caracterização dos grandes projetos: 1) gigantismo — eles causam enormes fluxos de capital e trabalho, que são planejados por grandes corporações; 2) isolamento — a localização dos projetos implica problemas logísticos específicos e a criação de uma organização social diretamente ajustada às necessidades do processo produtivo; 3) caráter temporário do empreendimento — os projetos são realizados em períodos relativamente curtos; a inauguração é a marca da desmobilização dessa forma de produção” (1987, p. 27). esses projetos deslocam montanhas, rios, flora e fauna, bem como humanos e suas comunidades. Seus promotores, ideólogos e responsáveis fazem parte de “comunidades epistêmicas” constituídas por grupos de elite de agências estatais, instituições internacionais de empréstimos e doa­dores, empreiteiras da construção civil, consultores e produtores de avaliações de impacto (Gellert; Lynch, 2003Gellert, Paul K.; Lynch, Barbara D. “Mega-projects as Displacements”. International Social Science Journal, Hoboken, v. 55, n. 175, pp. 15-25, mar. 2003., p. 20). No interior dessas comunidades é que são concebidas as categorias de análise e legitimação que embasam e buscam justificar as transformações socioecológicas operadas pelas técnicas de construção e instalação de infraestruturas. É também na perspectiva desse lugar epistêmico que serão produzidas as chamadas “memórias técnicas” dos grandes projetos,3 3 Interpretando as ideias de Aris­tóteles, o filósofo escolástico Alberto Magno (2002) sustentou que lugares mentais servem a um propósito prático para a mente e facilitam a retenção das lembranças. Nesses lugares não se espelha a realidade, mas sim sua concepção interna. documentos que serão problematizados, no presente texto, a partir do caso da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE-Tucuruí), resultante do barramento do rio Tocantins, na Amazônia paraense.

Os estudos técnicos elaborados com vistas à implantação de grandes projetos de investimento caracterizam-se por conter diretrizes que se pretendem capazes de auxiliar um determinado plano a se tornar realidade. Esses estudos operam esquemas de entendimento movidos pela intenção de conhecer e resolver problemas. A noção de “memória técnica” é, em geral, aplicada a estudos realizados algum tempo após a conclusão das obras, tendo por fim estabelecer uma cadeia de comunicação interna ao corpo técnico envolvido com os projetos, assim como buscar legitimar tais projetos para o conjunto da sociedade. Essa “memória” é vista correntemente como uma ferramenta de disseminação de informações geradas a partir de experiências de processos técnicos passados - no caso aqui em pauta, relativos à implantação de grandes projetos -, visando à transferência de tecnologias, à resolução de problemas técnicos e à produção de maior previsibilidade.4 4 Entre os promotores dos grandes projetos, percebe-se uma pretensão a racionalizar as imprevisibilidades: um dos representantes da Comissão Mundial de Barragens justificou os estudos de caso encomendados por aquela comissão, entre os quais figurou o caso da UHE-Tucuruí, pela necessidade de “levantar os principais impactos ocorridos e inesperados” (Comissão Mundial de Barragens, 2000, p. 1). Parte dos problemas a resolver, tanto na concepção como na implantação desses projetos de investimento, decorre do fato de que o projeto é sempre uma aproximação:

Sua determinação técnica por completo é, a priori, praticamente impossível, já que diversas características do trabalho estão sujeitas a mudanças causadas, por exemplo, [tanto] por qualidades imprevistas do solo, que podem alterar as especificações das fundações, quanto por desastres naturais, fatores econômicos, sociais e políticos que interferem na programação ou no traçado da obra. (Ribeiro, 1991______. Empresas transnacionais: um grande projeto por dentro. São Paulo: Anpocs/Marco Zero, 1991., p. 43)

No caso da UHE -Tucuruí, por exemplo, o estudo de viabilidade previa dois tipos de vertedouro (um de superfície e outro de descarga de fundo), enquanto o projeto básico posterior alterou essa diretriz, prevendo apenas um vertedouro com comportas de superfície.5 5 As indeterminações e incertezas são parte do processo de implantação das obras, como mostra o documento de avaliação de certas dimensões técnicas da barragem de Tucuruí apresentado em um seminário promovido por entidades do setor elétrico: “Além das dimensões do rio, com vazões elevadas para o padrão brasileiro, havia poucos dados hidrometeorológicos disponíveis para subsidiar o projeto sendo as características hidrológicas mais um elemento a causar preocupação aos projetistas. Para corroborar esse sentimento, durante a obra da 1ª Etapa (1976 a 1984) ocorreram três das cinco maiores cheias do histórico incluindo a maior de todas (68.400 m³/s em março de 1980), o que obrigou a revisão das condições de projeto do vertedouro” (Araújo; Lopes, 2015, p. 13). Como no exemplo acima, os imprevistos tendem a ser registrados nas memórias técnicas quando eles se tornam fator de ajuste na concepção dos respectivos projetos. Aqueles imprevistos que não foram integrados com sucesso sob a forma de ajustes do projeto — e estes não são raros — tendem a não ser registrados por essa memória. É que, em razão de uma pré-escavação inicialmente imprevista, considerou-se que a convivência dos dois tipos de vertedouro geraria fenômenos erosivos que poderiam ameaçar as estruturas da barragem (Pinto, 2011Pinto, Lucio Flavio. Tucuruí: a barragem da ditadura. Belém: Jornal Pessoal, 2011., pp. 116-7). Por outro lado, enquanto o estudo de viabilidade estabelecera a necessidade de desmatar 27% da área onde seria formado o reservatório, o projeto básico elevou esse percentual a 55% e o desmatamento efetivamente realizado restringiu-se a 7% dessa área (idem, p. 95). A área prevista para o reservatório, calculada a princípio em 1.616 hectares, em seguida em 2.340 hectares, efetivou-se em 2.850 hectares. Por fim, o custo da obra inicialmente orçado em 1,2 bilhão de dólares foi, segundo o estudo da Comissão Mundial de Barragens, multiplicado por 3,8 (World Commission on Dams, 1999World Commission on Dams. Case Study Tucuruí Hydropower Complex, Brazil -Review of the Performance and Development Effectiveness - Final Report - Scoping Phase. Cidade do Cabo: WCD, 1999., p. 12). O que procuraremos discutir no presente trabalho é a associação problemática entre as noções de memória e de técnica, quando os exercícios de rememoração, em analogia aos estudos prévios à construção das obras, subestimam a imprevidência demonstrada na consideração das mudanças socioecológicas resultantes da implantação de grandes projetos de investimento e desconsideram a complexidade do tecido socioterritorial das áreas atingidas. O que se ressalta, em particular, é o modo como o esquecimento metodológico da memória dos grupos sociais atingidos pelos impactos das obras e subsequente operação da barragem contribui para reproduzir o entendimento do “social” dos grandes projetos como um simples problema instrumental a resolver.6 6 Como já sustentava Sigaud (1988b, p. 104), “na medida em que o ‘social’ não interfere na tomada de decisões, ele só pode vir a se constituir em ‘problema’, para o qual deverá ser buscada uma solução qualquer e a qualquer preço, dentro do cronograma apertado das obras civis. E é exatamente porque o ‘social’ ocupa essa posição subordinada que as soluções encontradas são sempre desfavoráveis à população”.

O TEMPO HISTÓRICO E O “CÓDIGO TÉCNICO”

Entre as metáforas-chave evocadas para exprimir os trabalhos de rememoração, Peixoto (2014Peixoto, Fernanda Arêas. “Derivas urbanas, memória e composição literária”. Redobra, Salvador, ano 5, n. 13, pp. 29-34, 2014.) destaca a arquitetura, como aquela que descreve a memória como construção, e a arqueologia, que vê a memória como escavação. Quanto ao primeiro caso, que privilegia o processo composicional e construtivo, podemos nos perguntar quais seriam seus distintos elementos e os modos de articulação das partes; quais seriam os procedimentos de seleção, encaixe e composição das lembranças. Quanto às dimensões do esforço rememorativo despendido em sua montagem, podemos nos perguntar se haveria memórias em demasia ou “de menos”. Haveria relatos lacunares ou superdimensionados? Em que medida tais narrativas parecem constituir-se, ao mesmo tempo, por inventários e por invenções, por fantasia e verossimilhança? No segundo caso, o da metáfora arqueológica, podemos nos interrogar qual teria sido a profundidade das camadas que foram afloradas pelas sondas da rememoração; ou sobre o modo como se articularam os vestígios encontrados, assim como os sentidos a eles associados. De toda forma, em ambos os casos, há que se considerar que, seja como processo de composição seja como processo de escavação, as memórias se apresentam sempre como fragmentárias e em permanente movimento - ou seja, elas são constituídas por narrativas feitas de pedaços que são compostos e recompostos (Peixoto, 2014Peixoto, Fernanda Arêas. “Derivas urbanas, memória e composição literária”. Redobra, Salvador, ano 5, n. 13, pp. 29-34, 2014.). Isto posto, como pensar tais processos de composição e recomposição de narrativas quando eles são aplicados a experiências de produção de objetos técnicos, na elaboração daquilo que instituições e empresas chamam de “memória técnica”, instrumento de organização de informação sobre o passado na perspectiva de transferi-la para o futuro (Jardim, 1995Jardim, José Maria. “A invenção da memória nos arquivos públicos”. Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 2, pp. 1-13, 1995. Disponível em: Disponível em: http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/viewPDFInterstitial/439/397 . Acesso em: abr. 2018.
http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/...
)? A que tipo de estratégias corresponderia a organização de informações sobre experiências técnicas passadas e a pretensão de legá-las ao futuro? Que critérios são utilizados para selecionar o que deverá fazer parte da memória como composição? E que camadas de vestígios são trazidas à luz pelos esforços de escavação?

A técnica é um meio pelo qual conhecimentos práticos são produzidos, difundidos através de circuitos especializados e incorporados em processos físico-químico-biológicos, instalações, equipamentos e mercadorias (Coriat, 1976Coriat, Benjamin. Ciencia, técnica y capital. Madri: H. Blumer, 1976.). A ideia de “memória técnica” poderia ser vista, assim, como elo de uma cadeia de comunicação especializada através do qual se transfere conhecimento prático entre diferentes momentos do tempo. Esse elo funcionaria como um reservatório de informações de cujo tratamento os agentes promotores dos grandes projetos esperam poder gerar e transmitir competências. Do aprendizado obtido através desse conhecimento, acredita-se que ele possa desempenhar o papel de regulador, capaz de “reagir às perturbações em proveniência do exterior dos sistemas técnicos, contribuindo para conservar seu equilíbrio” (Millier, 1987Millier, Paul. “Le Système technique”. In: Silem, Ahmed. La Diffusion des nouvelles technologies. Paris: CNRS, 1987, pp. 15-31., p. 30).

Ora, em sua origem, nas ciências biológicas do século xix, o conceito de regulação designava a função capaz de impor ao devir de cada parte de um organismo uma regra de conformidade à estrutura de um todo (Canguilhem, 1977Canguilhem, Georges. “La Formation du concept de régulation biologique aux XVIIIè et XIXè siècles”. In: Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie. Paris: J. Vrin, 1977, pp. 81-99.). Nas ciências da sociedade, entretanto, os mecanismos de estabilização das perturbações só podem ser vistos como “reguladores”, desde que entendidos como produtos de uma construção histórica, configurados politicamente através de instituições e práticas. Assim sendo, o conhecimento sobre a técnica e o controle sobre os contextos sobre os quais ela age não podem ser entendidos como simples insumos de uma engrenagem capaz de promover sua autocorreção, mas sim como parte de um processo social de avaliação das práticas. Por mais planejados e racionalizados que sejam os sistemas técnicos, eles nunca deixam de fazer parte de processos sociais. As próprias escolhas técnicas e os modos operatórios que resultam dessas escolhas também se materializam, por sua vez, através de relações sociais. Há que se considerar, portanto, que se trata de relações atravessadas por incertezas e indeterminações não compatíveis, desde logo, com a ideia de um equilíbrio auto-organizado. Os estudos técnicos dos grandes projetos deveriam ser vistos, pois, como produtos sociais ligados a um determinado tempo histórico, com sua abertura para diferentes trajetórias possíveis:

O projeto final é tanto resultado de uma dinâmica política quanto de considerações técnicas. Uma estrutura de engenharia reflete não apenas o conhecimento técnico como abstração, mas também, e de maneira mais importante, a combinação particular de pessoas e instituições que são responsáveis por sua elaboração e seu desenvolvimento. (Ribeiro, 1991______. Empresas transnacionais: um grande projeto por dentro. São Paulo: Anpocs/Marco Zero, 1991., pp. 43-4)

Assim, sendo o domínio das técnicas fortemente atravessado por forças e contextos sociais e políticos, em lugar de equilíbrio, o que temos são processos de ajuste. E tais ajustes não resultam simplesmente de cálculos matemáticos, mas sim de exercícios sociotécnicos que incidem sobre tramas de relações em que tanto os aspectos sociais como os técnicos encontram-se imbricados nas organizações, evidenciando a pertinência de se tomar a mediação sociotécnica7 7 Entendemos aqui a mediação sociotécnica como a cadeia de passos, momentos de definição de objetivos e intenções que constituem os processos de resolução de problemas por parte do conjunto dos atores sociais envolvidos e atingidos por processos técnicos. como unidade de análise.

Se a memória técnica se propõe a construir, sobre a experiência técnica passada, um conhecimento ele próprio considerado técnico, é para que a aprendizagem que se pretende através dela registrar possa ajudar na “padronização de soluções e na redução do esforço despendido em buscá-las” (Brockmann; Girmscheid, 2007Brockmann, Christian; Girmscheid, Gerhard. “Complexity of Megaprojects”. CIB World Building Congress: Construction for Development. Cidade do Cabo: CIB, 2007, pp. 219-30., p. 223). Mas qual é a especificidade do “conhecimento técnico”? O conhecimento técnico é aquele produzido com relação a um objetivo - o de conceber e construir um artefato material ou imaterial (Perrin, 1991Perrin, Jacques. “Méthodologie d’analyse des systèmes techniques”. In: Boyer, Robert; Chavance, Bernard; Godard, Olivier (orgs.). Les Figures de l’irréversibilité en économie. Paris: Editions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales , 1991, pp. 151-72., p. 151). É para atingir tal objetivo que se buscam soluções instrumentais para problemas práticos, identificando obstáculos para o alcance do resultado esperado. Numa ação definida por sua instrumentalidade, trata-se, pois, de adquirir os meios para intervir em, e controlar, algum objeto ou processo.8 8 As análises realizadas nessa perspectiva são ditas “consequencialistas”, no sentido de que fazem depender as avaliações apenas de suas consequências (Centemeri; Caldas, 2016, p. 14), tendendo a desconhecer dimensões relacionais das experiências. Dessa perspectiva, o conhecimento instrumental mobilizado limita-se ao campo de um saber instituído, de um repertório de problemas e obstáculos recenseados do ponto de vista do alcance do fim preestabelecido. Esse tipo de saber distingue-se, é claro, de esforços de pensamento e análise que, em contraste, se enfrentariam à opacidade de uma experiência nova; ou seja, cujo sentido não estaria já completamente formulado ex ante. Tal conhecimento não estaria, consequentemente, dado em parte alguma, mas precisaria ser produzido pelo próprio trabalho reflexivo exercido sobre as experiências.

Ora, no caso de se pretender produzir um conhecimento técnico sobre experiências técnicas passadas, é de supor que a seleção de eventos tenda a se dar a partir de critérios técnicos. Mas, se considerarmos que as técnicas são a expressão de projetos histórico-sociais, perceberemos os limites da produção de um conhecimento instrumental sobre experiências de construção de objetos técnicos. É que a própria concepção dos artefatos tecnológicos, tal como sugere Feenberg, se dá já a partir de um determinado “código”9 9 O código técnico expressa o “ponto de vista” dos grupos sociais dominantes em nível da concepção e da engenharia. É, pois, relativo a uma posição social sem ser uma mera ideologia ou disposição psicológica. Como argumenta Feenberg (1992), a luta por mudanças sociotécnicas pode emergir dos pontos de vista de atores não dominantes. que estabelece as normas e os valores que traduzem projetos e interesses em especificações técnicas (Feenberg, 2009______. Entrevista. Scientiae Studia, São Paulo, v. 7, n. 1, pp. 165-71, 2009., p. 168). Sendo a ação técnica um exercício de poder, a racionalidade técnica situa-se numa interseção entre a ideologia e a tecnologia, de modo que ambas se juntem no esforço de controlar seres humanos e recursos em conformidade com o dito “código técnico”. Os valores contidos em tal código encontram-se, via de regra, implícitos, portanto, na tecnologia, ganhando expressão por meio das interpretações que são feitas ao longo do desenvolvimento de tais tecnologias (Feenberg, 2010______. “Teoria crítica da tecnologia: um panorama”. In: Neder, Ricardo T. (org.). A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia. Brasília: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/cds/UnB/Capes, 2010.).

A noção de “memória técnica” exprime um momento do processo de construção de conhecimentos próprios ao código técnico do artefato que lhe corresponde; ou seja, é parte de um processo de aprendizagem pelo qual as especificações técnicas são progressivamente ajustadas à funcionalidade desejada dos artefatos tecnológicos. As chamadas “memórias técnicas” podem ser entendidas como parte dos processos de interpretação que interagem com o que Jasanoff e Kim chamaram de imaginários sociotécnicos10 10 Aristóteles acreditava que a memória pertence à mesma parte da alma que a imaginação, uma coleção selecionada — uma espécie de pesquisa deliberada de imagens dotadas de uma referência temporal (Rossi, 2010, p. 16). - visões sobre formas da vida social que justificam a concepção das tecnologias, orientam gastos públicos e definem a inclusão ou exclusão de cidadãos nos benefícios do progresso técnico (Jasanoff; Kim, 2009Jasanoff, Sheila; Kim, Sang-Hyun. “Containing the Atom: Sociotechnical Imaginaries and Nuclear Power in the United States and South Korea”. Minerva, Bielefeld, v. 47, n. 2, pp. 119-46, 2009.). Elas não são, portanto, apenas uma composição de discursos e representações, mas sim momentos de “exercício ativo de poder” com implicações na alocação de fundos, na supressão de dissensos e no investimento em infraestruturas, além de exercerem influência sobre os próprios rumos do desenvolvimento tecnológico11 11 Estudos da história das tecnologias já haviam assinalado como “sociedades culturais, que foram um produto precoce do movimento científico, exerceram certa influência direta sobre a tecnologia ao organizar a compilação e a publicação sistemática de dados para ilustrar as condições existentes em seus distintos ramos, assim como as ‘histórias exatas’ — para citar uma declaração de suas intenções feita pela Royal Society em 1718 — de toda classe de ofícios curiosos e benéficos de todos os países” (Derry; Williams, 1981, p. 1.036). e incidirem sobre o campo das práticas técnicas preexistentes.

No caso de uma grande barragem como a de Tucuruí, por exemplo, as transformações socioecológicas e o deslocamento compulsório de populações estão na origem de um vasto processo de desestabilização de práticas técnicas desenvolvidas até então por grupos de camponeses, extrativistas, pescadores e indígenas. Nas memórias técnicas da construção de barragens, porém, é correntemente desconsiderada a relação de forças que faz com que um determinado padrão técnico, desenvolvido no âmbito do setor elétrico, se sobreponha a outros preexistentes no território e que sejam subtraídas as bases materiais do exercício de uma grande variedade de práticas e saberes técnicos por parte dos grupos sociais atingidos pela barragem. Em sua seletividade, tais memórias encarnam, assim, uma determinada concepção unilateral da técnica como engenharia das transformações socioecológicas que visa fazer do espaço base logística para o desenvolvimento capitalista.

Na perspectiva de compreender o modus operandi desse exercício de poder, certos estudos sobre as estratégias adotadas em grandes projetos de infraestrutura discutem o modo como seus promotores buscam tomar a iniciativa e guardá-la: o que se percebe é que eles procuram assegurar para si o máximo de liberdade de movimento e, ao mesmo tempo, reduzir ao máximo a liberdade de movimento de outras partes envolvidas, em particular aquelas que podem afetar, de algum modo, os passos para a concretização do projeto. O que almejam esses promotores é, pois, “manter o controle dos fatos e a capacidade de fazer com que toda objeção chegue cedo demais ou tarde demais” (Henry, 1991Henry, Claude. “Fait accompli et normes techniques dans la conduite des projets publics”. In: Boyer, Robert; Chavance, Bernard; Godard, Olivier (orgs.). Les Figures de l’irréversibilité en économie. Paris: Editions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales , 1991, pp. 273-8., p. 275). Cedo demais porque certos procedimentos ainda não terão alcançado status legal, embora já estejam em curso, ou porque resultados de pesquisas científicas são ainda esperados, na expectativa de que elucidem melhor as condições das escolhas (mesmo que esses resultados não venham a ser efetivamente utilizados). E tarde demais “porque acordos terão sido já firmados com certos parceiros, não se considerando mais possível uma volta atrás; ou, então, simplesmente porque alega-se haver urgência em concluir e que nenhum atraso seria tolerável” (ibidem, pp. 275-6).

É para manter o controle sobre os fatos e sobre as possíveis objeções ao modus operandi do projeto que o management moderno justifica a prática empresarial de identificar os grupos sociais “que podem afetar e ser afetados pela realização dos objetivos da empresa” (Freeman, 1999Freeman, R. Edward. “Divergent Stakeholder Theory”. The Academy of Management Review, Nova York, v. 4, pp. 233-6, 1999.), classificando-os segundo seus interesses e poderes de interferência respectivos, de modo a limitar sua capacidade “de exercer coerção sobre o andamento dos negócios” (Mitchell; Agle; Wood, 1997Mitchell, Ronald; Agle, Bradley; Wood, Donna. “Toward a Theory of Stakeholder Identification and Salience: Defining the Principle of Who and What Really Counts”. The Academy of Management Review, Nova York, v. 22, n. 4, pp. 853-86, 1997. Disponível em: Disponível em: http://links.jstor.org/sici?sici=0363-7425%28199710%2922%3A4%3C853%3ATATOSI%3E2.0.CO%3B2-0 . Acesso em: 15/6/2013.
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). No caso das grandes hidrelétricas, trata-se de evitar a mobilização política dos grupos sociais atingidos, ao mesmo tempo que se busca obter a sua retirada das áreas de interesse da barragem.

Com respeito à temporalidade estrategicamente assumida pelos agentes do grande projeto, Dupuy (1991Dupuy, Jean-Pierre. “Temps du projet et temps de l’histoire”. In: Boyer, Robert; Chavance, Bernard; Godard, Olivier (orgs.). Les Figures de l’irréversibilité en économie. Paris: Editions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1991, pp. 97-136.) sustenta, por sua vez, devermos considerar a distinção entre o “tempo do projeto” e o “tempo histórico”, sem esquecer que o primeiro se encontra incrustado no segundo. Isso porque o ator racional do grande projeto se guia basicamente por seus fins e raciocina de forma regressiva, estimando o impacto das consequências de suas ações sobre os fins que persegue. Esse é o caso, por exemplo, de quando se adota o método da indução por retroação (backward induction), procedimento pelo qual o tomador de decisão parte do fim almejado e traça o caminho que cada ator deveria seguir ao longo do leque de escolhas propiciado pela representação que o agente do grande projeto faz da cadeia de decisões. Os sujei­tos que tomam decisões sobre o projeto supõem, de modo relativamente arbitrário, que o futuro - a materialização do objeto técnico almejado - está já inscrito em algum lugar, e adotam uma concepção de tempo particular, de sentido invertido, procurando ajustar o realizado ao antecipado. Ora, sabemos que os planos, quando executados, são levados pelo fluxo dos fenômenos - em seu “tempo histórico” - e que as coisas tendem a não acontecer necessariamente conforme o previsto. É por essa razão, sustenta Dupuy, que o processo de decisão racional tende a ir na contramão do fluxo dos fenômenos. E completa: embora os agentes promotores do grande projeto ajam guiados por um fim preestabelecido, “esse fim não será jamais a conclusão efetiva do processo sem fim que toda ação desencadeia na rede das relações humanas” (Dupuy, 1991Dupuy, Jean-Pierre. “Temps du projet et temps de l’histoire”. In: Boyer, Robert; Chavance, Bernard; Godard, Olivier (orgs.). Les Figures de l’irréversibilité en économie. Paris: Editions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1991, pp. 97-136., p. 99). É, a esse propósito, conhecido o modo como os conflitos associados a grandes projetos se prolongam no tempo histórico, num fluxo de fenômenos que vai muito além do momento da conclusão das obras. No caso da UHE-Tucuruí, cujos estudos de inventário e viabilidade foram iniciados em 1972, tendo a inauguração da obra ocorrido em 1984, ainda em 2016 um acordo judicial foi fechado para pagamento de indenizações a 2.343 famílias expropriadas pela Eletronorte para a construção da usina.12 12 Em 30 de novembro de 2004, a Eletronorte criou o Programa Social para os Expropriados de Tucuruí (Proset), destinando R$ 39,9 milhões para sua execução, dos quais R$ 22,8 milhões deveriam ser destinados ao pagamento da Verba de Manutenção Temporária (VMT) e R$ 17,1 milhões para aplicação na base de produção, como o funcionamento de cooperativas. O Proset surgiu para atender às constantes reivindicações dos expropriados da primeira etapa da hidrelétrica de Tucuruí, que ocorreram desde o início da década de 1980. Um dos protestos dos expropriados deu-se pela ocupação de parte da vila residencial da Eletronorte. As famílias somente deixaram o local após as tratativas que desencadearam o Proset. Antes do fechamento do acordo, que teve momentos de tensão entre as partes nele envolvidas, foram realizadas diversas reuniões com os expropriados, representantes da diretoria da Eletronorte, Ministério Público Federal e Estadual, tendo inclusive ocorrido reunião em Brasília com a participação do Ministério Público Estadual, o que culminou com a proposta de acordo. “Expropriados da Eletronorte vão receber R$ 12 milhões de indenização”, blog Ver-o-Fato, Tucuruí, 14/8/2016. Disponível em: http://www.ver-o-fa to.com.br/2016/08/expropria dos-da-eletronorte-vao-receber.html. Acesso em: 11/1/2018.

Enquanto prática social de registro de imagens e narrativas, a memória, embora seletiva, é pouco suscetível a racionalizações. A técnica não poderia, é claro, funcionar como um qualificativo para a memória, ou seja, como parte de um processo de “tecnificação da memória”. No entanto, o que os agentes dos grandes projetos parecem pretender produzir é um discurso técnico sobre práticas sociotécnicas pregressas, um conhecimento prático das soluções instrumentais que foram oferecidas para que alcançassem o objetivo de construção de artefatos materiais. Quais seriam as implicações contraditórias da constituição de uma memória instrumental dessa ordem?

AS MEMÓRIAS, O PENSAR E O FAZER

Em face da ideia grega do homem como um ser dotado de um falar-pensar - o logos -, a modernidade justapôs o homem faber, detentor de ferramentas. A voz do logos humano é que permite manifestar e pôr em discussão o justo e o injusto. O termo grego technè, por sua vez, designou inicialmente o ato de produzir/construir, ganhando, em seguida, com Homero, o sentido de fazer ser, trazer à existência. Assim, a technè procede a partir do que já é, mobilizando e transformando elementos preexistentes, efetuando o que a natureza estaria na impossibilidade de realizar de per si. O termo alimenta-se também do jogo entre duas oposições: a de uma prática profissional oposta ao aprender desinteressado; e a de um fazer consciente oposto aos efeitos do acaso. Por fim, ganhará igualmente o sentido de um fazer eficaz, resultante da habilidade, do método e da aplicação de um saber fundamentado (Castoriadis, 1987Castoriadis, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto, v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1987., pp. 235-40).

A associação da noção de memória a procedimentos tidos como pertinentes ao domínio das técnicas traduz-se em processos de seleção de eventos passados estimados como relevantes pelos sujeitos da rememoração - sejam eles os próprios agentes da concepção ou concretização das práticas técnicas, os observadores e analistas de sua configuração ou indivíduos ou grupos sociais que se veem como atingidos pela adoção de tais práticas. Em sua composição, as rememorações podem, eventualmente, dar destaque a processos relativos ao uso de ferramentas, à transformação de elementos preexistentes ou ao ato de produzir objetos técnicos através de métodos eficazes. Mas elas podem igualmente retomar os sentidos daquilo que se trouxe à existência e os elementos da consciência que justificaram a produção de efeitos não casuais sobre processos naturais preexistentes. Ora, conforme assinalava Leroy-Gouhan, simultaneamente “o homem fabrica ferramentas concretas e símbolos […]. A linguagem e a ferramenta […] são a expressão da mesma propriedade do homem” (1964, pp. 127, 161-3). Dessa perspectiva, caberia pensar que uma terceira via de rememoração poderia se apresentar: aquela que procura não separar a ferramenta dos atos de linguagem, o falar-pensar do saber-fazer, o logos da technè - ou seja, que busca não isolar as escolhas técnicas dos processos sociais e simbólicos que lhes são co-constitutivos.13 13 Em sua análise dos sistemas técnicos, Ellul (1977, pp. 60-1) critica a subordinação da linguagem a um meio técnico, alegando que, “quando a palavra é servil, tudo é servil”. Hannah Arendt ([1958, p. 3] 2007, p. 11), anteriormente, já havia alertado: “Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moder­no de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja”. É esse terceiro caminho que requereria considerar, tal como, nos termos de Lewis Mumford (1967Mumford, Lewis. The Myth of the Machine. Londres: Secker and Warburg, 1967.), que ao lado da “máquina material” - no caso que nos interessa, uma grande barragem - operam também “megamáquinas invisíveis” constituídas pela articulação de múltiplos agentes em função do objeto técnico que se pretende trazer à existência. Tais máquinas invisíveis podem ser vistas, por um lado, como o faz Mumford, como dinâmicas coletivas de colaboração que concorrem voluntariamente para a constituição da força produtiva - que Marx chamou de trabalhador coletivo. Porém, em tais “máquinas invisíveis”, não haveria por que não incluir igualmente as engrenagens da “participação involuntária”, ou seja, de todos aqueles agentes sociais que tiveram suas condições de vida alteradas em virtude das transformações socioecológicas através das quais a construção da barragem transformou os elementos preexistentes tanto na paisagem natural como na social.

Isso porque objetos técnicos não só se articulam com os elos e nós das redes técnicas, mas também exprimem a condensação de um conjunto amplo e variado de processos sociais.14 14 Após o trabalho crítico desenvolvido por movimentos sociais e pesquisadores, apontando as graves consequências da desconsideração dos impactos sociais e ambientais das barragens (Sigaud, 1988a; Vainer, 1993; Magalhães, 2007), a partir de certo momento pôde-se observar, no seio do próprio setor elétrico, o surgimento de efeitos dessa crítica. Um relatório do projeto de cooperação técnica para a Revisão dos Cenários do Programa de Inserção Regional no Território do Entorno do Lago da UHE-Tucuruí, de 2013, assinala, com base nos indicadores socioeconômicos dos municípios formadores do entorno da UHE-Tucuruí, como “as evidências empíricas mostram que os efeitos de difusão do modelo de desenvolvimento econômico assentado sobre o fortalecimento da infraestrutura de capital, com o crescimento econômico concentrador, produziram efeitos de desigualdades e não são mais suficientes para transpor situações de pobreza crônica em que ainda vive uma significativa parcela da população brasileira” (Seilert, 2013, p. 5). Em um trabalho apresentado no Seminário Nacional de Grandes Barragens, em 2003, uma funcionária da Eletronorte afirmava que, “após análise dos dados levantados, chegou-se à conclusão de que os empreendimentos estudados têm sido considerados, quase sempre com razão, meros enclaves, pois, além de não promoverem o esperado crescimento econômico e social da comunidade atingida, degradam, muitas vezes, o próprio ambiente natural em que estão inseridos e causam problemas sociais expressivos, como a absorção de grandes contingentes populacionais durante as obras e que tendem a permanecer no local, mesmo depois da obra concluída, causando altos níveis de subemprego, além de pressões sobre os equipamentos sociais urbanos tradicionalmente insuficientes para o atendimento” (Araújo Rocha, 2003, pp. 7-8). O dis­curso oficial do setor elétrico, porém, ainda é o de que “Tucuruí foi a obra isolada de maior impacto sobre a Amazônia; mas ela foi também a de melhor repercussão socioambiental e econômica entre todas as que foram feitas na região. Em segundo lugar, o Brasil e muitos de seus filhos — aqueles que influíram diretamente sobre a monumental empreitada da usina e os que hoje estão sob sua influência — vivem melhor do que viviam antes dela” (Mello, 2011, p. 214). As técnicas, como assinala o antropólogo Marcel Mauss, “se interpenetram: as bases econômicas, as forças de trabalho, as partes da natureza de que as sociedades se apropriam, os direitos de todos e de cada um se entrecruzam” (Mauss, 1948Mauss, Marcel. “Les Techniques et la technologie”. In: Febvre, Lucien et al. Le Travail et les techniques. Paris: PUF, 1948, pp. 71-8., p. 78). Se considerarmos, portanto, a pertinência de se levar em conta “o entrecruzamento dos direitos de todos e de cada um”, tenderemos a ver o modo como os processos de construção de artefatos tecnológicos compreendem também “negociações” entre grupos sociais, com frequência com perspectivas divergentes.15 15 Em sua pesquisa sobre a memória dos técnicos envolvidos com a construção de grandes barragens em Portugal, Pequito (2015, p. 101) destacou como “as tarefas do engenheiro eram diversas e difíceis. Não se tratava apenas de técnica, mas também de capacidade negocial para as expropriações, atenção ao meio envolvente e às suas necessidades, visão globalizante e integrada da obra a realizar desde os processos de expropriação dos terrenos necessários à construção da barragem até à gestão de afetos e emoções, tudo passava pelo engenheiro”.

Ao atravessar momentos do que Pinch e Bijker chamaram de “flexibilidade interpretativa” (1984Pinch, Trevor; Bijker, Wiebe. “The Social Construction of Facts and Artefacts: Or How the Sociology of Science and the Sociology of Technology Might Benefit Each Other”. Social Studies of Science, Londres, v. 14, n. 3, 1984.),16 16 Por flexibilidade interpretativa, Pinch e Bijker (1984) designam a ambiguidade constitutiva dos objetos técnicos, passíveis de conterem em si tecnologias diferentes com muitos elementos compartilhados, podendo adaptar-se, eventualmente, a uma variedade de demandas. esses processos passam por fases de instabilidade, de estabilização e de “fechamento” (Dagnino, 2014Dagnino, Renato. “Dimensões para a análise e desenvolvimento de tecnologia social”. In: Tecnologia social: contribuições conceituais e metodológicas. Campina Grande/Florianópolis: EDUEPB/Insular, 2014, pp. 185-206. Disponível em: Disponível em: http://books.scielo.org . Acesso em: 8/4/2019.
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, p. 195), este último exprimindo o alcance eventual de algum tipo de consenso. Ora, quando tais “negociações” são dificultadas, impossibilitadas ou truncadas por processos políticos que restringem a operação de uma esfera pública democrática - como foi o caso da construção da UHE -Tucuruí, em pleno regime autoritário -, advém uma tendência a não haver “fechamento”. Esse seria o centro do problema trazido pelo que Brockmann e Girmscheid (2007Brockmann, Christian; Girmscheid, Gerhard. “Complexity of Megaprojects”. CIB World Building Congress: Construction for Development. Cidade do Cabo: CIB, 2007, pp. 219-30.) chamam de “complexidade social e cultural dos grandes projetos” como artefatos técnicos. Tais complexidades, na perspectiva dos agentes dessas transformações socioespaciais, são objeto de esforços no sentido de sua redução, de modo a fazer com que “uma organização eficiente saia do labirinto da política”, aquela empreendida tanto pelas empresas como pelas instituições públicas promotoras dos grandes projetos (Brockmann; Girmscheid, 2007Brockmann, Christian; Girmscheid, Gerhard. “Complexity of Megaprojects”. CIB World Building Congress: Construction for Development. Cidade do Cabo: CIB, 2007, pp. 219-30., p. 228). Como ressalta Halbwachs (1997Halbwachs, Maurice. La Mémoire collective. Paris: Albin Michel, 1997.), a memória é feita de imagens, palavras e ideias que são emprestadas ao meio. No caso das memórias técnicas, no entanto, percebe-se a evocação de um vocabulário bem específico, que, por sua instrumentalidade, deixa de incorporar as falas de outros sujeitos presentes - por razões de moradia, trabalho e cultura - no meio em que se instalam as obras.

As experiências relacionadas à construção de uma grande barragem, pela natureza e dimensão de seus impactos sociais e ambientais, encontram-se indissoluvelmente ligadas à vida da polis. Uma memória pública se constitui, assim, através da coleção de traços deixados pelos eventos que afetaram o curso da história dos diferentes grupos envolvidos. Vemos, por um lado, surgir uma memória social dos atingidos pelos projetos e, por outro lado, o que podemos chamar de uma “memória desenvolvimentista”, ou seja, aquela evocada por sujeitos que pretendem fazer da experiência dos grandes projetos um momento da construção de uma memória nacional, referência para as promessas de um determinado futuro para a nação. Isso porque a ideologia do desenvolvimento exprime, a seu modo, a narrativa sobre um campo de experiência a que se pretende associar um horizonte bem específico de expectativas.

Buscando sustentar que o gigantismo dos investimentos e das transformações socioecológicas deles resultantes nos aproximam do horizonte prometido, a memória técnica de um grande projeto tende a projetar o que Mosès (1992Mosès, Stéphane. L’Ange de l’histoire: Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil, 1992.) chama de “uma eficácia retrospectiva do presente sobre o passado”, ou seja, ela recupera seletivamente a experiência passada de modo a legitimar situações presentes, associando estas últimas a determinadas promessas de futuro (Catroga, 2016Catroga, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim da história. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2016., p. 20). Esse utilitarismo, que procura justificar as ações como meio para a obtenção de um fim, deixa de pôr em discussão a natureza de seus fins, a saber, não se pergunta “em nome de quê” tais ações são empreendidas. Ou nos termos de Hannah Arendt ([1958] 2007Arendt, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1958] 2007., p. 167), quando “o ‘para que’ torna-se o conteúdo do ‘em nome de quê’”, “a utilidade, promovida a significância, gera ausência de significado”, ou, podemos acrescentar, faz valer significados ocultos sob a retórica genérica do progresso.

No entanto, a presença continuada dos conflitos sociais associados aos grandes projetos é o sinal da presença de uma memória social persistente que se propõe a fazer aflorar camadas mais profundas da experiência; que revê o passado como um presente aberto a diversas trajetórias possíveis; que não separa o falar-pensar do saber-fazer, o logos da technè; que não desconsidera, consequentemente, as imagens, palavras, ideias e técnicas dos grupos sociais atingidos pelas obras, permitindo que se ponha em questão o próprio sentido do que se entende por “desenvolvimento”.

OS GRANDES PROJETOS E A SELETIVIDADE DA MEMÓRIA

A noção de memória técnica se inspira, por certo, na prática dos ajuda-memória, registros, próprios a corpos administrativos ou empresariais, em que se anota o que se quer recordar. Embora entendido, no contexto de tais organizações, ora como registro de decisões, ora como uma espécie de guia para a ação a partir de experiências acumuladas pretéritas, o recurso ao termo memória remete inevitavelmente a processos de seleção de eventos considerados - no presente caso, tecnicamente - relevantes. É essa seleção cujos critérios discutiremos a seguir para o caso da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, procurando entender as razões pelas quais eles, ao mesmo tempo, estabelecem uma prioridade entre os eventos tidos como relevantes e definem o que deverá ser relegado ao esquecimento.

No documento da memória técnica da UHE -Tucuruí (Eletronorte, 1989Eletronorte. Usina Hidrelétrica de Tucuruí: memória técnica. Brasília: Coordenadoria Técnica do Departamento de Projetos/Coordenadoria Técnica do Projeto Memória Eletronorte, 1989.),17 17 O documento da memória técnica da UHE-Tucuruí atende à orientação do DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica) contida na Portaria n. 19 de 9 de fevereiro de 1985, seguindo o roteiro básico estabelecido no Manual da Eletrobras — Memória da Eletricidade, Memória técnica de usinas hidrelétricas: roteiro básico, edição de 1988 (Eletronorte, 1989, pp. 20 e 24). o meio ambiente é incluído como “apêndice” do estudo técnico. Por sua vez, o “meio socioeconômico”, que, no corpo do referido trabalho, é parte desse mesmo apêndice, não é citado no prefácio do trabalho: ao descrever os apêndices constitutivos do capítulo 7, o prefácio refere-se apenas a “meio ambiente”, dando a supor que o chamado “meio socioeconômico” - mencionado tanto no sumário como no título do capítulo 7, dedicado aos apêndices - é parte do meio ambiente. Das 681 páginas que compõem o documento da memória técnica, apenas 9 são dedicadas ao mencionado apêndice sobre “meio ambiente e socioeconomia” (idem, pp. 429-38). Além do caráter residual das problemáticas sociais e ambientais do projeto, do ponto de vista do que os seus promotores entendem por critérios “técnicos”, observa-se no documento sobre a memória técnica da UHE -Tucuruí o esforço metodológico básico de separação entre as esferas da vida social, os campos da engenharia e do ambiente biofísico.18 18 No relatório de uma das reuniões preparatórias à elaboração do documento da Comissão Mundial de Barragens sobre o caso Tucuruí, realizada em 1999, lê-se: “A observação considerada central para a abertura às discussões subsequentes deu-se com relação à necessidade de inte­grar os impactos sobre o meio físico com os impactos socioeconômicos, privilegiando a problemática social, já que a mesma não foi incorporada ao projeto técnico da barragem — seja por estudos prévios ou mesmo quanto ao tratamento dado ao remanejamento das populações (somente numa visão judicial), e ainda porque, para cada impacto sobre o meio físico-biótico há uma correspondência de transformação sobre as condições e modos de vida das populações” (Comissão Mundial de Barragens, 1999).

O campo da engenharia é, no documento, aquele constituído pelos âmbitos da topografia, hidrometria e geotecnia, sobre cujos dados vão ser definidos os “eixos de implantação da usina”, a “divisão de quedas”, a “operação sazonal da cota” etc. O ambiente biofísico, ainda nos termos desse documento, é composto de processos geológicos (estratigrafia, sismicidade), limnológicos (parâmetros físicos, químicos e biológicos da água do reservatório) e bióticos (comportamento das macrófitas aquáticas e do material vegetal afogado; acompanhamento da fauna, em particular dos peixes). O “meio socioeconômico”, objeto de - reduzido - interesse na memória técnica é, por sua vez - com destaque -, aquele relativo à presença de recursos minerais, ao lado do chamado “meio antrópico” cujas características, segundo o relatório, “influenciam nas condições do reservatório ou são por elas influenciadas” (idem, p. 438).

A preocupação com a presença de minério nas áreas a serem inundadas ocupa espaço de relevo no capítulo sobre “meio ambiente e socioeconomia”, tanto na parte relativa a inventário e viabilidade, visando atender ao objetivo de identificar “a probabilidade de interferência do reservatório com promissoras ocorrências minerais, jazidas e minas, causando limitações à implantação das obras” (idem, p. 429), como no tópico relativo a projeto “básico/executivo/operação”, em que se dá “destaque à criação da Divisão de Levantamentos Cadastrais, Recursos Minerais e Ecologia” (idem, p. 430). O mesmo se observa no tópico dedicado ao “meio físico e biótico”, no qual se assinala que “em pesquisa e/ou lavra mineral, realizadas na região do Reservatório da UHE -Tucuruí e no seu entorno, registrou-se a ocorrência de diamante, ouro, calcário, enxofre, quartzito, titânio, volframita, arsênio, cassiterita, ilmenita, zirconita e sílica” (idem, p. 431). A perspectiva econômica de exploração de recursos minerais presentes na área inundável ocupa grande parte da “socioeconomia” da memória técnica.

A parte relativa ao meio físico e biótico relata a realização de convênios com entes públicos para “o desenvolvimento de estudos e providências mitigadoras relativas ao impacto ambiental”, análise da qualidade da água no reservatório, seleção de espécies vegetais de interesse econômico para replantio no banco de germoplasma, levantamento da proliferação de macrófitas aquáticas no reservatório e estudos ictiológicos. Por um lado, tais estudos incidem, em grande parte, sobre tópicos de interesse imediato da operação da própria barragem - tal como o risco de eutrofização do corpo d’água do reservatório pela multiplicação de macrófitas em sua superfície - ou de interesse econômico futuro, como a coleta de espécies para o banco de germoplasma. Por outro lado, não há menção ao modo como os estudos mencionados foram utilizados na adoção de medidas mitigadoras relativas ao impacto ambiental. Se considerarmos os critérios adotados, na narrativa da memória técnica, para a priorização das questões de “meio ambiente e socioeconomia”, privilegia-se o “ambiente” da barragem e não aquele do conjunto dos sujeitos que habitavam, e transitavam pelos, territórios de referência onde foi implantada a obra e onde seus efeitos se disseminaram, expressos apenas no sumariamente mencionado programa de atendimento à população ribeirinha, e nos tópicos saúde pública, educação, patrimônio cultural, relocações - constantes nas três páginas do item “meio socioeconômico e cultural” (idem, pp. 436-8).

A noção correntemente evocada de “meio antrópico” supõe, por um lado, uma relação de exterioridade da sociedade para com o ambiente biofísico, mas, por outro lado, também com relação ao próprio projeto hidrelétrico, posto que o “antropismo” comporta aquilo que a memória técnica designa como elementos que “influenciam nas condições do reservatório ou são por elas influenciadas” (idem, p. 438). Seja por serem influenciados, seja por influenciarem, esses elementos são considerados estritamente do ponto de vista do alcance do fim preestabelecido - a saber, a implantação da obra. Os efeitos das intervenções socioecológicas das obras - ditas “técnicas” no documento da memória técnica - e os sujeitos sociais previamente dispostos nos territórios afetados são objetos de esquecimento. A título de exemplo, a constatação de que “a jusante as condições eram um pouco menos satisfatórias, devido à qualidade da água turbinada e ao próprio funcionamento da usina que prevê oscilação no nível d’água” (idem, p. 436) não é devidamente considerada em suas consequências danosas sobre os modos de vida das famílias ribeirinhas que, aos milhares, se distribuem ao longo do Baixo Tocantins. Elas o foram apenas quando movimentos sociais de atingidos passaram a requerer da Eletronorte solução para as crises ecológicas produzidas a jusante da barragem (Silva, 2014Silva, Adriane dos Prazeres. “Trabalhadores rurais do Baixo Tocantins, organização e parcerias com a Igreja Progressista da prelazia de Cametá (1979-1991)”. Anais do I Encontro Estadual da ANPUH-AP, Macapá: Unifap, 2014.).

Por outro lado, na perspectiva de evitar o assoreamento do reservatório, com suas consequências negativas sobre o próprio funcionamento das turbinas da hidrelétrica, o documento da memória técnica expressa a preocupação com a ocorrência de “um incremento do desmatamento bastante acentuado na bacia, que poderá acelerar o processo de deposição de sedimentos” (Eletronorte, 1989Eletronorte. Usina Hidrelétrica de Tucuruí: memória técnica. Brasília: Coordenadoria Técnica do Departamento de Projetos/Coordenadoria Técnica do Projeto Memória Eletronorte, 1989., p. 55). Ora, o incremento das práticas de desmatamento esteve intimamente ligado ao próprio processo de implantação da obra, desde a atração de milhares de pessoas para a região, como de abertura de novas vias para viabilizar as obras e do desencadeamento de uma desordem fundiária. Assim, tanto o comprometimento da qualidade e da oscilação do nível da água a jusante como o desmatamento, embora entendidos como processos “influenciados pela obra”, apenas serão considerados pela memória técnica na medida em que, por sua vez, “influenciarão a obra”. Essa memória seletiva deixa, assim, de se debruçar reflexivamente sobre a complexidade interativa dos processos socioecológicos e, em particular, sobre a possibilidade de que, na mediação sociotécnica pela qual se pensou o projeto, tenha operado um cálculo político. Quando uma coalizão desenvolvimentista decide assumir um projeto,19 19 Ribeiro (1991, p. 44) considera que o modelo mais comum para a realização de grandes projetos baseia-se no triângulo institucional composto pelo proprietário, pela firma de consultoria e pela empreiteira principal. Roy (1999, p. 7), por sua vez, refere-se a um “triângulo de ferro”, expressão que, no jargão de certos construtores de barragem, designaria o nexo entre políticos, burocratas e empresas construtoras de barragens, ao qual o autor acrescenta os consultores internacionais e, com frequência, o Banco Mundial. a ignorância dos obstáculos futuros - no caso de grande parte dos grandes projetos, a desconsideração dos reais impactos sobre grupos sociais atingidos, que não fazem parte de tal coalizão - permite que o projeto seja desenvolvido na presunção de que, uma vez que este esteja em andamento, será tarde para abandoná-lo.

Na perspectiva do chamado “princípio da mão escondida” de Albert O. Hirschman (1967Hirschman, Albert O. “The Principle of the Hiding Hand (1967)”. The Public Interest, Washington, n. 6, pp. 10-23, 1967.), esse tipo de ignorância pode ser considerado “bom para o planejamento”, porque, se os tomadores de decisão conhecessem os custos e benefícios reais dos projetos, poucos empreendimentos teriam sido de fato iniciados. Flyvbjerg (2016Flyvbjerg, Bent. “The Fallacy of Beneficial Ignorance: A Test of Hirschman’s Hiding Hand”. World Development, Ann Arbor, v. 84, pp. 176-89, 2016.) sustenta exatamente o contrário do que sugere esse princípio: em lugar de o sucesso de um projeto ter sido assegurado por “erros criativos” e “ignorância benéfica” - com custos maiores do que os estimados sendo superados por benefícios ainda maiores do que os inicialmente estimados -, tal ignorância pode fazer com que os projetos sejam, de fato, marcados pelo duplo golpe de um excesso de custos substanciais e por déficits substanciais de benefícios, em especial, podemos acrescentar, para os grupos sociais negativamente atingidos. A hipótese da “ignorância benéfica”, criticada por Flyvbjerg como falaciosa, encontra-se implícita nas memórias técnicas que separam o “fim eficiente” dos danos sociais e ambientais verificados ao longo do processo. Os efeitos de tal “ignorância” são particularmente dramáticos quando se manifestam na desconsideração metódica da experiência dos grupos sociais atingidos.

As transformações regionais, as alterações dos meios físico e biótico e os deslocamentos compulsórios de populações exigem dos grupos sociais atingidos que adotem estratégias sociotécnicas adaptativas e busquem novas trajetórias espaciais e sociais: caboclos ribeirinhos do Tocantins são transformados em “colonos”, beiradeiros de ilhas e margens são transformados em agricultores de terras áridas, vazanteiros dependentes da cultura periódica de vazante tornam-se agricultores submetidos a uma improdutividade compulsória etc. A construção da barragem altera as próprias trajetórias correntes pree­xistentes de deslocamento de camponeses em busca do que chamam de “melhoria”, quando perseguem “uma rede de vizinhança, uma rede de parentesco ou a abertura de uma estrada ou a safra da castanha, ou um emprego numa fazenda, ou o emprego numa construtora ou, mais diretamente, uma terra livre” (Magalhães, 2002______. “Tempo e trajetórias: reflexões sobre representações camponesas”. In: Hébette, Jean; Magalhães, Sônia Barbosa; Maneschy, Maria Cristina (orgs.). No mar, nos rios e na fronteira: faces do campesinato no Pará. Belém: Edufpa, 2002, pp. 235-74., pp. 265-6). Segundo Aida Maria da Silva, ex-assessora da Comissão Pastoral da Terra na prelazia de Cametá:

As populações tradicionais que viviam na região do Itupiranga […] no período de seca, que era no período de verão, plantavam cultura rápida: melancia, maxixe, tudo que fosse uma cultura rápida, e vendiam. No período de cheia, essas terras que eles plantavam iam para o fundo. Essa população foi tirada dessa região onde tinha essa cultura de beira de rio e foi colocado num loteamento rural em rio Moju na estrada que vai de Tucuruí pra se encontrar com a pa-150, que é essa estrada que vai pra Belém de Tucuruí. No loteamento rural Rio Moju, a terra era areia, mas, além de ser areia, era um barro branco […]. As pessoas tinham chegado na década de 1970. Mal chegaram na terra, quando começaram a plantar capim e cuidar de gado, veio a desapropriação. […] E existiam as populações indígenas, três nações indígenas na região de Tucuruí. Na terra dos Gavião da Montanha construíram a barragem; dos Parakanã, pegaram toda a terra deles; os Asurini ficavam abaixo da barragem, pegando um pouco abaixo do Tucuruí e a estrada Transcametá. 20 20 Entrevista de Aida Maria da Silva, ex-assessora da CPT na prelazia de Cametá, concedida a José Carlos de Matos, IPPUR/UFRJ, 2017.

Conforme rememoram moradores de áreas inundadas que tinham na coleta sua rotina de trabalho: “Antes a gente tirava muita castanha, juntava cupu e vendia […]. Agora não tem mais”.21 21 Entrevistas concedidas, em 2003, à professora Maria Cristina Maneschy, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA, a quem o autor agradece o acesso aos depoimentos.

Agricultores do Baixo Tocantins que pescavam para o consumo passaram a morar numa ilha, “porque o peixe passou tudo prá cá”. “Lá não tinha como sobreviver. Lá a lavra é açaí no verão. E no inverno, se a água é grande, faz tapagem […]. Tinha dia que era espinhel, malhadeira, matapi, tapagem de pari, esses tipos de mariscos.”22 22 Idem, ibidem.

O campesinato costuma adotar formas de manejo do meio biofísico que articula cosmovisões moldadas nas especificidades socioculturais e ecológicas do lugar, acionando saberes com vistas à conservação dinâmica de paisagens, da diversidade biológica e das águas requeridos para sua reprodução sociocultural (Mazzeto, 2012Mazzeto, Carlos Eduardo. “Sustentabilidade”. In: Caldart, Roseli; Pereira, Isabel Brasil; Alentejano, Paulo; Frigotto, Gaudêncio (orgs.). Dicionário da educação no campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Fiocruz/Expressão Popular, 2012, pp. 728-32.). A percepção do ambiente, da qual depende a construção da memória social desses sujeitos, é um processo em que, simultaneamente, eles adquirem conhecimento prático do ambiente e a ele atribuem significados e valores, entendendo os espaços rurais ao mesmo tempo como terra de trabalho e lugar de vida (Martins, 1980Martins, José de Souza. Expropriação e violência. São Paulo: Hucitec, 1980.). Referindo-se ao modo de utilização das terras pela agricultura familiar de várzeas na Amazônia brasileira, Noda et al. (2001Noda, Sandra et al. “Utilização e apropriação das terras por agricultura familiar amazonense de várzeas”. In: Diegues, Antonio C.; Moreira, André C. Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: Nupaub-USP, 2001, pp. 181-204., pp. 183 e 197) assinalam como “o policultivo e os consórcios praticados conferem às culturas melhor aproveitamento do solo, da luz e dos recursos, dada a racionalidade no uso dos espaços agrícolas em acordo com os ciclos de produção das espécies e os ciclos das águas”. É essa “memória sociotécnica” dos grupos sociais atingidos pela UHE -Tucuruí, conjunto de saberes cujo exercício lhes assegurara a reprodução social ao longo de suas trajetórias de vida e trabalho, que é fortemente desestabilizada pela prevalência das formas sociais e técnicas que são específicas ao grande projeto.

As experiências sociotécnicas dos grupos atingidos não deveriam ser vistas, porém, como o testemunho de um passado superado, mas de um presente que pode ajudar a pôr em perspectiva a própria concepção de desenvolvimento que hoje vigora (Carneiro da Cunha, 1989Carneiro da Cunha, Manuela. “O aporte da antropologia ao debate sobre a desordem da Amazônia”. Workshop “Amazonia Ecological Disorder: A 1989 Assessment”, Rio de Janeiro, 1989, mimeo., p. 1). A desconsideração de tais experiências, por ocasião tanto da concepção dos projetos como da elaboração de suas memórias técnicas, representa a perda de oportunidade de explorar o que os saberes e fazeres locais são capazes de provocar nas concepções de desenvolvimento inscritas nos grandes projetos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A memória, conforme sustenta Joutard (2015Joutard, Philippe. Histoire et mémoires, conflits et alliance. Paris: La Découverte, 2015.), pode precaver a história da tentação do determinismo, pois permite rever o passado como um presente que possui um futuro, ou seja, que esteja aberto a diversas soluções possíveis. O modo como se exerce a seletividade na produção de imagens e na composição da memória pode, por sua vez, caso não se considere devidamente a diversidade de trajetórias possíveis, torná-la um instrumento de dominação (Le Goff, 2003Le Goff, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. da Unicamp/Centro de Memória, 2003.; Pollak, 1989Pollak, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, pp. 3-15, 1989.; 1992______. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, pp. 1-15, 1992.). A memória técnica de grandes projetos hidrelétricos, ao desconsiderar a memória - tanto técnica como social - dos atingidos pelos projetos, tende a se construir como uma “memória desenvolvimentista” linear e determinista, que, como vimos, projeta “uma eficácia retrospectiva do presente sobre o passado” (Mosès, 1992Mosès, Stéphane. L’Ange de l’histoire: Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil, 1992.). Ao guiar-se basicamente por seus fins e raciocinar de forma regressiva, o ator racional do grande projeto aciona imaginários sociotécnicos que associam soluções técnicas a determinadas formas da vida social, fazendo, assim, da construção da obra o momento de um “exercício ativo de poder” (Jasanoff; Kim, 2009Jasanoff, Sheila; Kim, Sang-Hyun. “Containing the Atom: Sociotechnical Imaginaries and Nuclear Power in the United States and South Korea”. Minerva, Bielefeld, v. 47, n. 2, pp. 119-46, 2009.).

Ribeiro (1991______. Empresas transnacionais: um grande projeto por dentro. São Paulo: Anpocs/Marco Zero, 1991., p. 29) evoca a concentração de poder como um pré-requisito para a construção de obras hídricas, ao destacar “a relação entre poder político centralizado e a capacidade de congregar forças de trabalho para levar a cabo grandes obras”. Partindo do trabalho de Karl Wittfogel (1957Wittfogel, Karl A. Oriental Despotism: A Comparative Study of Total Power. New Haven: Yale University Press, 1957.), esse autor sublinha como, para o entendimento dos grandes projetos, é importante considerar o papel das relações entre elites administrativas, planejadores de Estado e detentores de poder político-econômico capazes de organizar e controlar grandes massas de força de trabalho. Ribeiro (1992______. “Bichos de obras: fragmentação e reconstrução de identidade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Anpocs, v. 18, 1992.) considera que, com suas características particulares de gigantismo, isolamento e temporariedade, o grande projeto é uma forma de produção vinculada à expansão de sistemas econômicos. Entretanto, se levarmos em conta devidamente a concentração de poder sobre o território de incidência das obras, poderemos considerá-lo também, nos termos de Foucault (1979Foucault, Michel. “A governamentalidade”. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, pp. 277-93., pp. 281-9), uma forma localizada de governo, por sua pretensão a conduzir homens e coisas para um futuro linear determinado: aquele prefigurado pela ideologia do desenvolvimento, benéfico para o que Roy (1999Roy, Arundhati R. “The Greater Common Good”. Blog Friends of River Narmada, abr. 1999. Disponível em: Disponível em: www.narmada.org/gcg/gcg.html . Acesso em: 8/4/2019.
www.narmada.org/gcg/gcg.html...
) chamou de “triângulo de ferro” dos interesses econômicos envolvidos nos grandes projetos e danoso para milhares de famílias atingidas pelas transformações socioecológicas que ele gera.

O documento da memória técnica da UHE -Tucuruí, caso aqui discutido, exalta o caráter pioneiro da obra por esta ter enfrentado “problemas insólitos ao se implantar na selva, distante dos grandes centros civilizados” (Eletronorte, 1989Eletronorte. Usina Hidrelétrica de Tucuruí: memória técnica. Brasília: Coordenadoria Técnica do Departamento de Projetos/Coordenadoria Técnica do Projeto Memória Eletronorte, 1989., p. 15).23 23 Citando documentos do setor elétrico sobre energia na Amazônia, Sônia Magalhães (1988, p. 113) já ha­­via ressaltado “o desconhecimento que precedeu e acompanhou a construção da uhe-Tucuruí expresso nas pré-noções que informaram os procedimentos adotados em relação à população camponesa, notadamente o pressuposto de vazio social e histórico, associado à ideia de ‘mata virgem’ que deveria ser ‘domada’”. Tal formulação ilustra o modo como a memória pode exprimir o (des)encontro entre mundos distintos; em nosso caso, o mundo do setor elétrico e o mundo dos grupos sociais atingidos, os quais são concebidos pelos promotores do grande projeto como, respectivamente, aquele civilizado, do progresso, e aquele selvagem, do atraso, que o primeiro pretende governar.24 24 Os gregos foram os primeiros a forjar uma imagem positiva de si, construindo sua identidade de modo que o diferente indica o negativo, a alteridade a ser evitada, perdida num passado de que não consegue se desvencilhar (Peschanski, 1993, pp. 56-75, apud Bignotto, 2004, p. 69). Conforme assinala Elias, “a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo” (1990, p. 23); ou, nos termos de Euclides da Cunha, cultiva a crença de que “a civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável força motriz da História” (1979, p. xxix).

Jean-Pierre Vernant (1973Vernant, Jean-Pierre. “Aspectos míticos da memória e do tempo”. In: Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Difel/Edusp, 1973.) assinalou como a memória, em seu sentido original entre os gregos, era vista como matéria menos de cronologia e mais de cosmogonia, ou seja, como modo de reconstrução dos elos com o mundo. Ora, os conflitos associados a esse tipo de (des)encontro entre mundos distintos seriam, em princípio, próprios ao exercício da política, que, nos termos de Rancière (1995Rancière, Jacques. O desentendimento, política e filosofia. São Paulo: Editora 34 , 1995., p. 67), “não é [só] feita de relações de poder, mas feita de relações entre mundos”.25 25 Tais (des)encontros de mundos são compatíveis com a descrição dos processos ditos de acumulação por espoliação, caracterizados, entre outros, por mercantilização e privatização da terra, expulsão de populações camponesas e supressão de direitos em áreas de uso comum (Harvey, 2004, p. 74). Em sua análise da recorrência da palavra “mundo” na poesia de Carlos Drummond de Andrade, José Miguel Wisnik (2018, p. 19) mostra, por sua vez, como a pequena cidade de Itabira, sede da primeira exploração mineral da Companhia Vale do Rio Doce, transformada em território mecanizado do grande projeto de exploração-exportação de minério, é vista pelo poeta como “um mundo”, que foi sendo engolido pelo “mundo, movido pe­la geoeconomia e pela tecnociência”. A dimensão política desse (des)encontro só estaria configurada, entretanto, desde que materializada “na invenção dramática de modos do reconhecimento dos outros por uns”. Ora, o não reconhecimento do mundo dos atingidos é o princípio problemático de uma memória que se quer “técnica”, pretendendo-se desvinculada da política. O que ela desconsidera é que, a despeito de sua instrumentalidade na aquisição de meios para controlar processos, as técnicas penetram a natureza da qual as sociedades se apropriam, fazendo entrecruzarem-se os direitos de todos e de cada um (Mauss, 1948Mauss, Marcel. “Les Techniques et la technologie”. In: Febvre, Lucien et al. Le Travail et les techniques. Paris: PUF, 1948, pp. 71-8., p. 78). Os trágicos episódios de rompimento de barragens de rejeitos da mineração - como os da Samarco, em 2015, e da Vale, em 2019 - são sinais do arbítrio através do qual, em nome do progresso e do desenvolvimento, destroem-se vidas e modos de vida.

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  • 1
    O presente trabalho é parte do projeto de pesquisa “As lutas dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí”, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), juntamente com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGSA/UFPA), o Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (PDTSA/UNIFESSPA) e o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED/UEPA), e apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no quadro do edital Memórias Brasileiras — Conflitos Sociais.
  • 2
    De acordo com Ribeiro, “há três dimensões estruturais que são centrais para a caracterização dos grandes projetos: 1) gigantismo — eles causam enormes fluxos de capital e trabalho, que são planejados por grandes corporações; 2) isolamento — a localização dos projetos implica problemas logísticos específicos e a criação de uma organização social diretamente ajustada às necessidades do processo produtivo; 3) caráter temporário do empreendimento — os projetos são realizados em períodos relativamente curtos; a inauguração é a marca da desmobilização dessa forma de produção” (1987, p. 27).
  • 3
    Interpretando as ideias de Aris­tóteles, o filósofo escolástico Alberto Magno (2002Magno, Alberto. “Commentary on Aristote”, “On memory and Recollection”. In: Carruthers, Mary; Ziolkowski, Jan M. (orgs.). The Medieval Craft of Memory: An Anthology of Texts and Pictures. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2002, pp. 153-88.) sustentou que lugares mentais servem a um propósito prático para a mente e facilitam a retenção das lembranças. Nesses lugares não se espelha a realidade, mas sim sua concepção interna.
  • 4
    Entre os promotores dos grandes projetos, percebe-se uma pretensão a racionalizar as imprevisibilidades: um dos representantes da Comissão Mundial de Barragens justificou os estudos de caso encomendados por aquela comissão, entre os quais figurou o caso da UHE-Tucuruí, pela necessidade de “levantar os principais impactos ocorridos e inesperados” (Comissão Mundial de Barragens, 2000______. “Estudo de Caso da UHE-Tucuruí (Brasil) - Relatório da 2ª Reunião de Trabalho do Grupo Consultivo”. Belém, 18-19 jan. 2000, mimeo., p. 1).
  • 5
    As indeterminações e incertezas são parte do processo de implantação das obras, como mostra o documento de avaliação de certas dimensões técnicas da barragem de Tucuruí apresentado em um seminário promovido por entidades do setor elétrico: “Além das dimensões do rio, com vazões elevadas para o padrão brasileiro, havia poucos dados hidrometeorológicos disponíveis para subsidiar o projeto sendo as características hidrológicas mais um elemento a causar preocupação aos projetistas. Para corroborar esse sentimento, durante a obra da 1ª Etapa (1976 a 1984) ocorreram três das cinco maiores cheias do histórico incluindo a maior de todas (68.400 m³/s em março de 1980), o que obrigou a revisão das condições de projeto do vertedouro” (Araújo; Lopes, 2015Araújo, Álvaro Lima; Lopes, Murilo Lustosa. “Trinta anos de operação das 23 comportas do vertedouro da UHE Tucuruí”. Anais do XXX Seminário Nacional de Grandes Barragens. Foz do Iguaçu: Comitê Brasileiro de Barragens, 2015., p. 13). Como no exemplo acima, os imprevistos tendem a ser registrados nas memórias técnicas quando eles se tornam fator de ajuste na concepção dos respectivos projetos. Aqueles imprevistos que não foram integrados com sucesso sob a forma de ajustes do projeto — e estes não são raros — tendem a não ser registrados por essa memória.
  • 6
    Como já sustentava Sigaud (1988b______. “Implicações sociais da política do setor elétrico”. In: Santos; Leinad; Andrade, Lúcia (orgs.). As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1988b, pp. 103-10., p. 104), “na medida em que o ‘social’ não interfere na tomada de decisões, ele só pode vir a se constituir em ‘problema’, para o qual deverá ser buscada uma solução qualquer e a qualquer preço, dentro do cronograma apertado das obras civis. E é exatamente porque o ‘social’ ocupa essa posição subordinada que as soluções encontradas são sempre desfavoráveis à população”.
  • 7
    Entendemos aqui a mediação sociotécnica como a cadeia de passos, momentos de definição de objetivos e intenções que constituem os processos de resolução de problemas por parte do conjunto dos atores sociais envolvidos e atingidos por processos técnicos.
  • 8
    As análises realizadas nessa perspectiva são ditas “consequencialistas”, no sentido de que fazem depender as avaliações apenas de suas consequências (Centemeri; Caldas, 2016Centemeri, Laura; Caldas, José Castro. “Megaprojetos, incomensurabilidade e decisão pública”. In: Centemeri, Laura; Caldas, José Castro (coords.). Valores em conflito: megaprojetos, ambiente e território. Coimbra: Almedina , 2016, pp. 9-23., p. 14), tendendo a desconhecer dimensões relacionais das experiências.
  • 9
    O código técnico expressa o “ponto de vista” dos grupos sociais dominantes em nível da concepção e da engenharia. É, pois, relativo a uma posição social sem ser uma mera ideologia ou disposição psicológica. Como argumenta Feenberg (1992Feenberg, Andrew. “Subversive Rationalization: Technology, Power and Democracy”. Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Oslo, v. 35, n. 3/4, 1992.), a luta por mudanças sociotécnicas pode emergir dos pontos de vista de atores não dominantes.
  • 10
    Aristóteles acreditava que a memória pertence à mesma parte da alma que a imaginação, uma coleção selecionada — uma espécie de pesquisa deliberada de imagens dotadas de uma referência temporal (Rossi, 2010Rossi, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. São Paulo: Ed. Unesp, 2010., p. 16).
  • 11
    Estudos da história das tecnologias já haviam assinalado como “sociedades culturais, que foram um produto precoce do movimento científico, exerceram certa influência direta sobre a tecnologia ao organizar a compilação e a publicação sistemática de dados para ilustrar as condições existentes em seus distintos ramos, assim como as ‘histórias exatas’ — para citar uma declaração de suas intenções feita pela Royal Society em 1718 — de toda classe de ofícios curiosos e benéficos de todos os países” (Derry; Williams, 1981Derry, Thomas Kingston; Williams, Trevor. Historia de la tecnologia: desde 1750 hasta 1900, v. 3. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 1981., p. 1.036).
  • 12
    Em 30 de novembro de 2004, a Eletronorte criou o Programa Social para os Expropriados de Tucuruí (Proset), destinando R$ 39,9 milhões para sua execução, dos quais R$ 22,8 milhões deveriam ser destinados ao pagamento da Verba de Manutenção Temporária (VMT) e R$ 17,1 milhões para aplicação na base de produção, como o funcionamento de cooperativas. O Proset surgiu para atender às constantes reivindicações dos expropriados da primeira etapa da hidrelétrica de Tucuruí, que ocorreram desde o início da década de 1980. Um dos protestos dos expropriados deu-se pela ocupação de parte da vila residencial da Eletronorte. As famílias somente deixaram o local após as tratativas que desencadearam o Proset. Antes do fechamento do acordo, que teve momentos de tensão entre as partes nele envolvidas, foram realizadas diversas reuniões com os expropriados, representantes da diretoria da Eletronorte, Ministério Público Federal e Estadual, tendo inclusive ocorrido reunião em Brasília com a participação do Ministério Público Estadual, o que culminou com a proposta de acordo. “Expropriados da Eletronorte vão receber R$ 12 milhões de indenização”, blog Ver-o-Fato, Tucuruí, 14/8/2016. Disponível em: http://www.ver-o-fa to.com.br/2016/08/expropria dos-da-eletronorte-vao-receber.html. Acesso em: 11/1/2018.
  • 13
    Em sua análise dos sistemas técnicos, Ellul (1977Ellul, Jacques. Le Système technicien. Paris: Calmann-Lévy, 1977., pp. 60-1) critica a subordinação da linguagem a um meio técnico, alegando que, “quando a palavra é servil, tudo é servil”. Hannah Arendt ([1958, p. 3] 2007Arendt, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1958] 2007., p. 11), anteriormente, já havia alertado: “Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moder­no de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja”.
  • 14
    Após o trabalho crítico desenvolvido por movimentos sociais e pesquisadores, apontando as graves consequências da desconsideração dos impactos sociais e ambientais das barragens (Sigaud, 1988aSigaud, Lygia. “Efeitos sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho”. In: Rosa, Luiz Pinguelli; Sigaud, Lygia; Mielnik, Otávio (coords.). Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares, aspectos econômicos, tecnológicos, ambientais e sociais. São Paulo: Marco Zero, 1988a, pp. 83-166.; Vainer, 1993Vainer, Carlos B. “População, meio ambiente e conflito social na construção de hidrelétricas”. In: Martine, George (org.). População, meio ambiente e desenvolvimento: verdades e contradições. Campinas: Ed. da Unicamp, 1993.; Magalhães, 2007______. Lamento e dor: uma análise sócio-antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - UFPA, Belém; Université de Paris 13, Paris, 2007.), a partir de certo momento pôde-se observar, no seio do próprio setor elétrico, o surgimento de efeitos dessa crítica. Um relatório do projeto de cooperação técnica para a Revisão dos Cenários do Programa de Inserção Regional no Território do Entorno do Lago da UHE-Tucuruí, de 2013, assinala, com base nos indicadores socioeconômicos dos municípios formadores do entorno da UHE-Tucuruí, como “as evidências empíricas mostram que os efeitos de difusão do modelo de desenvolvimento econômico assentado sobre o fortalecimento da infraestrutura de capital, com o crescimento econômico concentrador, produziram efeitos de desigualdades e não são mais suficientes para transpor situações de pobreza crônica em que ainda vive uma significativa parcela da população brasileira” (Seilert, 2013Seilert, Villi F. Fortalecimento da capacidade institucional e da gestão das ações voltadas às populações atingidas pelos empreendimentos da Eletronorte. Projeto de Cooperação Técnica BRA/IICA/09/009: Relatório de Produto - Contrato n. 113015 TR - Produto 2. Brasília: IICA; Eletrobras; Eletronorte, 2013., p. 5). Em um trabalho apresentado no Seminário Nacional de Grandes Barragens, em 2003, uma funcionária da Eletronorte afirmava que, “após análise dos dados levantados, chegou-se à conclusão de que os empreendimentos estudados têm sido considerados, quase sempre com razão, meros enclaves, pois, além de não promoverem o esperado crescimento econômico e social da comunidade atingida, degradam, muitas vezes, o próprio ambiente natural em que estão inseridos e causam problemas sociais expressivos, como a absorção de grandes contingentes populacionais durante as obras e que tendem a permanecer no local, mesmo depois da obra concluída, causando altos níveis de subemprego, além de pressões sobre os equipamentos sociais urbanos tradicionalmente insuficientes para o atendimento” (Araújo Rocha, 2003Araújo Rocha, Maria Célia. “Uma abordagem sócio-histórica da política de remanejamento das populações afetadas pelas hidrelétricas de Tucuruí/Pará e Samuel/Rondônia”. Anais do XXV Seminário Nacional de Grandes Barragens, Salvador: Comitê Brasileiro de Barragens, 2003., pp. 7-8). O dis­curso oficial do setor elétrico, porém, ainda é o de que “Tucuruí foi a obra isolada de maior impacto sobre a Amazônia; mas ela foi também a de melhor repercussão socioambiental e econômica entre todas as que foram feitas na região. Em segundo lugar, o Brasil e muitos de seus filhos — aqueles que influíram diretamente sobre a monumental empreitada da usina e os que hoje estão sob sua influência — vivem melhor do que viviam antes dela” (Mello, 2011Mello, Flavio Miguez (coord.). A história das barragens no Brasil, séculos XIX-XX-XXI: cinquenta anos do Comitê Brasileiro de Barragens. Rio de Janeiro: CBDB, 2011., p. 214).
  • 15
    Em sua pesquisa sobre a memória dos técnicos envolvidos com a construção de grandes barragens em Portugal, Pequito (2015Pequito, Maria de Lurdes Ferreira Lourenço. Hidroeletricidade e identidade social: a técnica como memória barragista (Picote, Trás-os-Montes). Tese (Doutorado em Antropologia) - Escola de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Antropologia, ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2015., p. 101) destacou como “as tarefas do engenheiro eram diversas e difíceis. Não se tratava apenas de técnica, mas também de capacidade negocial para as expropriações, atenção ao meio envolvente e às suas necessidades, visão globalizante e integrada da obra a realizar desde os processos de expropriação dos terrenos necessários à construção da barragem até à gestão de afetos e emoções, tudo passava pelo engenheiro”.
  • 16
    Por flexibilidade interpretativa, Pinch e Bijker (1984Pinch, Trevor; Bijker, Wiebe. “The Social Construction of Facts and Artefacts: Or How the Sociology of Science and the Sociology of Technology Might Benefit Each Other”. Social Studies of Science, Londres, v. 14, n. 3, 1984.) designam a ambiguidade constitutiva dos objetos técnicos, passíveis de conterem em si tecnologias diferentes com muitos elementos compartilhados, podendo adaptar-se, eventualmente, a uma variedade de demandas.
  • 17
    O documento da memória técnica da UHE-Tucuruí atende à orientação do DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica) contida na Portaria n. 19 de 9 de fevereiro de 1985, seguindo o roteiro básico estabelecido no Manual da Eletrobras — Memória da Eletricidade, Memória técnica de usinas hidrelétricas: roteiro básico, edição de 1988 (Eletronorte, 1989Eletronorte. Usina Hidrelétrica de Tucuruí: memória técnica. Brasília: Coordenadoria Técnica do Departamento de Projetos/Coordenadoria Técnica do Projeto Memória Eletronorte, 1989., pp. 20 e 24).
  • 18
    No relatório de uma das reuniões preparatórias à elaboração do documento da Comissão Mundial de Barragens sobre o caso Tucuruí, realizada em 1999, lê-se: “A observação considerada central para a abertura às discussões subsequentes deu-se com relação à necessidade de inte­grar os impactos sobre o meio físico com os impactos socioeconômicos, privilegiando a problemática social, já que a mesma não foi incorporada ao projeto técnico da barragem — seja por estudos prévios ou mesmo quanto ao tratamento dado ao remanejamento das populações (somente numa visão judicial), e ainda porque, para cada impacto sobre o meio físico-biótico há uma correspondência de transformação sobre as condições e modos de vida das populações” (Comissão Mundial de Barragens, 1999Comissão Mundial de Barragens. “Estudo de Caso da UHE-Tucuruí - Reunião Grupo de Trabalho - Relatório Síntese da Reunião”. Relatora: Marcia Gomes Ismerio. Belém, 9-10 ago. 1999, mimeo.).
  • 19
    Ribeiro (1991______. Empresas transnacionais: um grande projeto por dentro. São Paulo: Anpocs/Marco Zero, 1991., p. 44) considera que o modelo mais comum para a realização de grandes projetos baseia-se no triângulo institucional composto pelo proprietário, pela firma de consultoria e pela empreiteira principal. Roy (1999Roy, Arundhati R. “The Greater Common Good”. Blog Friends of River Narmada, abr. 1999. Disponível em: Disponível em: www.narmada.org/gcg/gcg.html . Acesso em: 8/4/2019.
    www.narmada.org/gcg/gcg.html...
    , p. 7), por sua vez, refere-se a um “triângulo de ferro”, expressão que, no jargão de certos construtores de barragem, designaria o nexo entre políticos, burocratas e empresas construtoras de barragens, ao qual o autor acrescenta os consultores internacionais e, com frequência, o Banco Mundial.
  • 20
    Entrevista de Aida Maria da Silva, ex-assessora da CPT na prelazia de Cametá, concedida a José Carlos de Matos, IPPUR/UFRJ, 2017.
  • 21
    Entrevistas concedidas, em 2003, à professora Maria Cristina Maneschy, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA, a quem o autor agradece o acesso aos depoimentos.
  • 22
    Idem, ibidem.
  • 23
    Citando documentos do setor elétrico sobre energia na Amazônia, Sônia Magalhães (1988Magalhães, Sônia Barbosa. “Exemplo Tucuruí: uma política de relocação em contexto”. In: Santos, Leynad; Andrade, Lúcia (orgs.). As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1988, pp. 111-20., p. 113) já ha­­via ressaltado “o desconhecimento que precedeu e acompanhou a construção da uhe-Tucuruí expresso nas pré-noções que informaram os procedimentos adotados em relação à população camponesa, notadamente o pressuposto de vazio social e histórico, associado à ideia de ‘mata virgem’ que deveria ser ‘domada’”.
  • 24
    Os gregos foram os primeiros a forjar uma imagem positiva de si, construindo sua identidade de modo que o diferente indica o negativo, a alteridade a ser evitada, perdida num passado de que não consegue se desvencilhar (Peschanski, 1993Peschanski, Catherine. “Os bárbaros em confronto com o tempo”. In: Cassin, Barbara et al. Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros. São Paulo: Editora 34, 1993, pp. 56-75., pp. 56-75, apud Bignotto, 2004Bignotto, Newton. “Tolerância e diferença”. In: Novaes, Adauto (org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 61-80., p. 69). Conforme assinala Elias, “a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo” (1990, p. 23); ou, nos termos de Euclides da Cunha, cultiva a crença de que “a civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável força motriz da História” (1979, p. xxix).
  • 25
    Tais (des)encontros de mundos são compatíveis com a descrição dos processos ditos de acumulação por espoliação, caracterizados, entre outros, por mercantilização e privatização da terra, expulsão de populações camponesas e supressão de direitos em áreas de uso comum (Harvey, 2004Harvey, David. “The ‘New’ Imperialism: Accumulation by Dispossession”. Socialist Register, Londres, v. 40, pp. 63-87, 2004., p. 74). Em sua análise da recorrência da palavra “mundo” na poesia de Carlos Drummond de Andrade, José Miguel Wisnik (2018Wisnik, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras , 2018., p. 19) mostra, por sua vez, como a pequena cidade de Itabira, sede da primeira exploração mineral da Companhia Vale do Rio Doce, transformada em território mecanizado do grande projeto de exploração-exportação de minério, é vista pelo poeta como “um mundo”, que foi sendo engolido pelo “mundo, movido pe­la geoeconomia e pela tecnociência”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2019
  • Aceito
    28 Mar 2019
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