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AÇÕES AFIRMATIVAS E FORMAS DE ACESSO NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO: O caso das comissões de heteroidentificação

Affirmative Actions and Forms of Access in Public Higher Education: The Case of Verification Commissions

RESUMO

Após quinze anos de debate nacional sobre a implementação das ações afirmativas para negros e indígenas, sua efetividade ainda conta com grandes desafios. Um deles é sua eficácia no que toca à inclusão dos grupos beneficiários. Este artigo situa o debate nacional a partir de seus agentes e argumentos e toma o estudo de caso da comissão de heteroidentificação da Universidade Federal Fluminense, experiência pioneira no estado do Rio de Janeiro.

PALAVRAS-CHAVE:
comissão de heteroidentificação; cotas raciais; fenótipo; fraude nas cotas raciais

ABSTRACT

After fifteen years of national discussion about implementing affirmative action policies for Black and Indigenous peoples, the policy’s effectivity faces challenges. One challenge is the efficacy of policies to include groups that should be beneficiaries. This article analyzes this national debate, policy actors and arguments, and takes the Universidade Federal Fluminense’s heteroidentification commission as a case study.

KEYWORDS:
heteroidentification commission; racial quotas; phenotype; racial frauds

INTRODUÇÃO

Nos últimos três anos reacendeu-se o debate sobre as ações afirmativas no Brasil. Não foi a primeira vez que essa temática dividiu fervorosamente as opiniões. No contexto de implementação das cotas, a polêmica sobre a vigência dessa política cindiu lados na opinião pública e na academia. Centenas de artigos e reportagens veiculados nos grandes meios de comunicação e nas mídias alternativas dão mostras da vivacidade com que o tema foi debatido pela opinião pública. Do mesmo modo, o aumento da produção científica sobre o assunto - em livros, artigos, teses e dissertações - é outro indicador de sua importância na produção universitária. Recentemente, vemos crescer de novo o interesse no assunto. Porém, agora, o debate gira em torno das “comissões de verificação da autodeclaração racial” ou de “heteroidentificação”, isto é, as formas de controle das ações afirmativas nas universidades públicas baseadas na heteroidentificação, termo que utilizaremos no presente trabalho.

É fato que a polêmica acerca da reserva de vagas estava longe de ter fim, mas a legitimidade conquistada com o parecer do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, ratificando a constitucionalidade das cotas raciais, e a assinatura da lei n. 12.711 pela então mandatária Dilma Rousseff, instituindo as cotas nas universidades federais no mesmo ano, arrefeceram os ânimos divergentes nos espaços públicos. Trata-se de dois marcos institucionais da legalidade e da legitimidade da aplicação das ações afirmativas.

Contudo, o tema voltou a ganhar as páginas dos jornais e aquecer o debate sobre cotas. Se antes a discussão era sobre os benefícios e malefícios das ações afirmativas para as universidades e para o país, agora a controvérsia é sobre a efetividade da lei de reserva de vagas, isto é, o oferecimento de garantias de que a política atingirá concretamente os grupos aos quais se destina em termos legais: pretos, pardos e indígenas.

A nova onda do debate colocou em cena os mesmos atores políticos do início do século XXI. Porém, uma novidade não pode passar despercebida: a presença de coletivos negros universitários em todas as regiões do Brasil. Eles se tornaram atores decisivos na nova etapa da implementação da política de reserva de vagas, caracterizada pela expansão para diferentes níveis da carreira universitária, especialmente nos programas de pós-graduação (Venturini, 2017Venturini, Anna. “Ações afirmativas na pós-graduação: desenho e desafios da política pública”. Anais do 41-º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/spg-4/spg27-1/11080-acoes-afirmativas-para-pos-graduacao-desenho-e-desafios-da-politica-publica-1/file >. Acesso em: 30/08/2018.
https://www.anpocs.com/index.php/papers-...
), e pelo controle dos mecanismos de acesso, realizado por meio de comissões de heteroidentificação.

Se no primeiro grande debate público sobre o assunto podemos destacar cinco eixos argumentativos de objeção às ações afirmativas, neste identificamos o mesmo número, dos quais dois seriam semelhantes ou argumentos da mesma natureza da retórica anterior. No início dos anos 2000, quando a política era apenas um ideal, e não realidade, argumentava-se que: 1) a grande miscigenação do país impede a identificação de quem é negro; 2) cotas opõem-se ao mérito; 3) a má formação de egressos de escolas públicas pode comprometer a qualidade da universidade; 4) cotas podem acirrar as relações raciais, criando ou aumentando o racismo; 5) o sistema de cotas é inconstitucional. Esses argumentos estavam presentes tanto nas mídias como entre gestores públicos, intelectuais ou movimentos contrários à política (Feres Júnior et al., 2018Feres Junior, João et al. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018.).

Na atualidade, quando a consolidação das ações afirmativas se tornou fenômeno incontornável, o debate sobre possíveis falhas procedimentais em sua aplicação - conhecidas nos meios de comunicação como “fraudes das cotas” - fez com que novos argumentos aparecessem. Coletados especialmente nos principais meios de comunicação, nos parcos artigos acadêmicos sobre o assunto e, principalmente, nos comentários dos gestores e ativistas envolvidos com essa mobilização em eventos públicos,1 1 Os autores deste trabalho promoveram e/ou estiveram em sete eventos ocorridos no estado do Rio de Janeiro ao longo de 2017 e 2018, entre audiências públicas, mesas e debates. no atual estágio do debate temos as seguintes retóricas de oposição às comissões de controle das ações afirmativas: a) como as categorias raciais no Brasil são fluidas, seria arbitrário estabelecer quem é negro, especialmente no caso dos autoclassificados como pardos; b) as comissões se constituiriam como verdadeiros tribunais raciais, já que fixariam critérios fenotípicos, inibindo as expressões livres dos indivíduos; c) a autoclassificação é um direito universal e não poderia ser contestada, sob pena de violentar a identidade autoatribuída; d) as comissões de controle seriam um ônus econômico para a universidade; e) o impacto das fraudes não seria relevante, por isso melhor seria fazer vistas grossas e não reacender o debate das cotas e abrir margem para sua contestação por parte de atores contrários.

Enquanto os argumentos (a) e (b) constituem-se retórica típica dos grandes meios de comunicação opositores às cotas; os argumentos (c) e (d) foram observados nas falas e comentários de agentes públicos, defensores e opositores das ações afirmativas; e os argumentos (c) e (e) são base para a fundamentação dos ativistas de dentro e fora da universidade, além de acadêmicos favoráveis às ações afirmativas, mas contrários à implementação das comissões de heteroidentificação. Por razões diversas, uma década atrás a realidade em discussão era distinta da que vivemos no contexto atual. Neste momento, parte dos defensores e opositores das ações afirmativas encontra-se em posições análogas quanto às formas de implementação de comissões de controle. Por sua vez, atores oriundos das instituições universitárias, muitos deles beneficiários das políticas de cotas - organizados em coletivos de estudantes negros - tornaram-se protagonistas, ao lado de agentes públicos do Judiciário, organizações civis historicamente defensoras das ações afirmativas, bem como acadêmicos e gestores públicos universitários, que passaram a formar uma rede política e técnica disposta a fundamentar e a desenhar formas de controle que garantam a eficiência das ações afirmativas.

A pesquisa que resultou neste trabalho contou com procedimentos metodológicos distintos e mistos: 1) reflexões geradas das experiências de participação dos autores deste artigo nas comissões de heteroidentificação da UFF em 2017;2 2 A análise deste artigo se restringe a 2017 em função de dois fatores: todos os autores participaram das comissões de heteroidentificação nesse ano, e não em 2018, quando houve mudanças no procedimento. 2) participação e observação participante em eventos relacionados ao tema; 3) pesquisa documental (editais dos processos seletivos nos sites das Instituições de Ensino Superior - IES), manifestos e cartas públicas em favor das comissões, resultados dos processos seletivos, notícias de jornais, legislações, portarias e manifestações referentes ao tema emitidos pelo Ministério Público Federal - MPF).

Com base nesses recursos metodológicos, o presente artigo faz uma reflexão sobre as referidas formas de acesso, exposta na seguinte estrutura: além desta breve introdução, uma seção sobre o histórico e o quadro atual das comissões de heteroidentificação existentes no Brasil e uma terceira parte em que é apresentado um minucioso estudo de caso sobre a concepção e o desenho da comissão, assim como seus desdobramentos, na UFF, a primeira no estado do Rio de Janeiro a desenvolver uma política de controle ininterrupta desde 2017. Ao fim, são discutidos os limites e as vantagens dos fundamentos e do desenho de comissão de controle. O artigo se detém particularmente no exame da dualidade entre marca (fenótipo) e ascendência (origem) atualizada no debate sobre as concepções que sustentam os critérios utilizados no interior dessas comissões. Ao que tudo indica, os conflitos entre essas diferentes concepções parecem recolocar o problema do padrão de relações raciais brasileiro e revelar suas transformações em curso.

COMISSÕES: OCORRÊNCIA, COMPOSIÇÃO E METODOLOGIAS

As comissões de heteroidentificação não são um fenômeno novo nas universidades brasileiras, pois existem desde que os primeiros sistemas de ação afirmativa foram implementados no início dos anos 2000. A constituição ou não dessas comissões esteve ligada a processos que envolveram concepções específicas sobre a forma e a aplicação dessas políticas em cada instituição. O parecer sobre a constitucionalidade do sistema de cotas emitido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, e a aprovação da lei n. 12.711 (denominada como a “Lei de Cotas”), em 29 de agosto de 2012, consolidaram e deram legitimidade para que fosse estabelecida a padronização da política pública de cunho nacional de reserva de vagas para estudantes de escola pública e para pretos, pardos e indígenas em todo o sistema de Educação Superior e nos Ensinos Médio e Técnico Federal. Ambas as medidas são marcos distintivos de dois períodos da implementação das ações afirmativas no Brasil, consequentemente, para a constituição das comissões como mecanismo de regulação e avaliação da política.

Até a promulgação da lei n. 12.711/2012, as políticas de ações afirmativas eram aplicadas de forma heterogênea nas instituições de ensino. Eram constituídas principalmente a partir de iniciativas locais, como a promulgação de leis estaduais e a deliberação de conselhos universitários (Daflon et al., 2013Daflon, Verônica Toste et al. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, 2013, pp. 302-27. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742013000100015&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 21/02/2018.
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; Santos, 2012Santos, Jocélio T. dos (org.). Cotas nas universidades: análises dos processos de decisão. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 2012.). Assim, algo que marcou o período de 2003 a 2012, momento em que não havia parâmetros jurídicos e experiências de referência, foi a diversidade de critérios, modalidades e metodologias para a implementação da política. Motivada pelos debates iniciados com a implementação de cotas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade de Brasília (UnB), grande parte das instituições universitárias incorporou a ideia de uma universidade mais inclusiva e buscou adotar algum tipo de política de ação afirmativa. O principal impasse, como ressalta Santos (2012Santos, Jocélio T. dos (org.). Cotas nas universidades: análises dos processos de decisão. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 2012.), envolveu justamente a adoção dessas políticas para a população negra, sobretudo em sua modalidade cotas. De qualquer forma, cumprindo o princípio da autonomia universitária, as burocracias político-administrativas estabeleceram as metodologias de implementação das políticas de acordo com suas demandas, disputas internas e contexto regional (em especial no que se refere aos percentuais dos grupos étnico-raciais na região). Apesar disso, de modo geral, o modelo predominante foi o que combinava as desigualdades étnico-raciais e as desvantagens socioeconômicas.

Nessa primeira fase das ações afirmativas, poucas instituições estabeleceram comissões ou formas de verificação das candidaturas dos cotistas. De acordo com Daflon et al. (2013Daflon, Verônica Toste et al. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, 2013, pp. 302-27. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742013000100015&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 21/02/2018.
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, p. 312), no conjunto das instituições que optaram por formas de acesso diferenciado até 2012, 80% delas adotaram apenas o procedimento de autodeclaração. Das quarenta instituições públicas que implementaram reservas com corte étnico e racial, apenas sete constituíram comissões de verificação. São elas: UnB, Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual do Piauí (Uespi), Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e Universidade Federal de Goiás (UFG).

Essas comissões variaram tanto na composição como na metodologia de trabalho. Quanto à primeira, em muitos casos não foi divulgada nos editais a forma como foram constituídas. No geral, percebemos que os sujeitos participantes das comissões envolveram professores, funcionários técnico-administrativos, juristas, estudantes e representantes do movimento negro. No que se refere à metodologia de trabalho, instituições como UnB, UFG, UEPG e UFPR estabeleceram bancas para averiguação presencial dos candidatos; Uespi e UEMS adotaram a análise por fotografia; e a UFMA combinou os critérios de análise por fotografia e averiguação presencial dos candidatos (Daflon et al., 2013Daflon, Verônica Toste et al. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, 2013, pp. 302-27. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742013000100015&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 21/02/2018.
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).

É importante destacar aqui a UnB, que, com sua metodologia de aferição por comissão, tornou-se um caso paradigmático na primeira fase de implementação das ações afirmativas no Brasil. Sua posição pioneira, tendo sido a primeira instituição federal a adotar um sistema de cotas exclusivamente para negros, tornou-a referência e parâmetro para as discussões de implementação da política em outras universidades. Essa condição “modelo” da instituição foi balizada pela repercussão do fato apresentado na imprensa como “caso dos gêmeos da UnB”, em 2007 (Zakabi; Camargo, 2007Zakabi, Rosana; Camargo, Leoleli. “Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é branco e este é negro”. Revista Veja, v. 40, n. 22, 06/06/2007, pp. 82-8.). A polêmica em torno dos gêmeos univitelinos - um dos quais foi considerado apto e outro foi indeferido pela comissão que analisava a fotografia dos candidatos às cotas - criou reservas à aplicação de políticas de ação afirmativa no cenário nacional. Diante da crítica por parte da mídia e dos embates gerados pelo caso (Fry et al., 2007Fry, Peter et al. Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007.), além de muitas universidades terem declinado da adoção de reserva de vagas (cotas), a metodologia de aferição passou a ser desqualificada e rejeitada por ser considerada falha.

Com a aprovação da lei n. 12.711 em 2012, além da legitimidade jurídica, estabeleceram-se diretrizes e parâmetros para implementar as cotas nos sistemas de ensino. Esse dispositivo de lei determinou no artigo 3-º que parte das vagas seriam “preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas”. Mas a lei não previa sistemas de verificação e ainda não havia portarias normativas que determinassem a realização do procedimento. Tal lacuna jurídica possibilitou que reitores e pró-reitores interpretassem que a autodeclaração seria o único critério para acessar as vagas reservadas a pretos, pardos e indígenas. Assim, muitas das instituições que antes da Lei de Cotas adotavam comissões de aferição para fiscalizar as vagas com corte étnico ou racial, como as citadas acima, abortaram medidas de heteroidentificação no processo de seleção.

Após o ano de 2014, houve uma série de denúncias de “fraude” das cotas raciais - feitas principalmente por estudantes, muitos deles beneficiários do sistema de cotas: pessoas brancas estariam acessando as vagas destinadas a estudantes pretos, pardos e indígenas ao “falsearem suas autodeclarações”. A pressão de grupos do movimento negro universitário, organizados em coletivos estudantis, a divulgação de notícias sobre as “fraudes” na mídia e, em alguns casos, a atuação do Ministério Público levaram várias instituições a reativar os trabalhos das comissões ou a constituí-las para a verificação das cotas com critérios étnico-raciais. Some-se a essas iniciativas a promulgação da lei n. 12.990/2014, que diz respeito às cotas raciais para o ingresso no serviço público e que prevê, em seu próprio texto, no parágrafo único do artigo 2-º, punição ao candidato cuja declaração for considerada falsa, o que deu suporte jurídico para a recomendação da formação das comissões de heteroidentificação, confirmada posteriormente pela Orientação Normativa n. 3, de 1-º de agosto de 2016Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. “Orientação normativa n. 3, de 1-º de agosto de 2016”. Diário Oficial da União, ed. 147, seção 1, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/23376081/do1-2016-08-02-orientacao-normativa-n-3-de-1-de-agosto-de-2016-23375906 >. Acesso em: 26/06/2020.
http://www.in.gov.br/materia/-/asset_pub...
, e pela Portaria n. 4, de 6 de abril de 2018_______. “Portaria normativa n. 4, de 6 de abril de 2018”. Brasília, 2018. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/igualdade-racial/portaria-normativa-no-4-2018-regulamenta-o-procedimento-de-heteroidentificacao-complementar-a-autodeclaracao-dos-candidatos-negros-em-concursos-publicos/view>. Acesso em: 26/06/2020.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de...
, ambas do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

Ainda são poucos os dados sobre a existência e a atuação das comissões pós-2012, tendo em vista a dificuldade para acessar as informações junto às universidades.3 3 Uma visão panorâmica sobre as comissões de heteroidentificação pode ser acessada no dossiê temático “A importância das comissões de heteroidentificação para a garantia das ações afirmativas destinadas aos negros e negras nas universidades públicas brasileiras”, publicado na Revista da ABPN (Vários, 2019). Neste estudo, cujo levantamento se restringe ao início de 2018, encontramos parcas informações sobre os processos e as metodologias que adotam, sobretudo acerca dos critérios para identificar o sujeito da política (ver Quadro I). Tal prática ocorre devido às polêmicas aventadas pela grande mídia e ao alto grau de conflitividade que envolve a aplicação ou não de mecanismos de controle das ações afirmativas. Tais conflitos, deve-se mencionar, ocorrem tanto no interior das instituições universitárias como em sua interação com agentes organizados da sociedade civil.

Quadro I
Composição das comissões de heteroidentificação nas universidades brasileiras

A ausência de previsão legal estabelecendo metodologias de referência para regular ou avaliar a candidatura à cota étnico-racial, somada aos complexos processos de identidade racial da realidade brasileira, propiciou uma série de questões práticas para operacionalizar a política de ações afirmativas, especialmente no que se refere ao monitoramento.

Em resposta às denúncias de “fraude”, controvérsias e debates referentes às problemáticas sobre o suposto sujeito das políticas de ação afirmativa, é elaborada a Recomendação n. 41 (2016) pelo MPF, que visa estabelecer parâmetros para “a correta implementação da política de cotas étnico-raciais em vestibulares e concursos públicos” (Barros, 2016Barros, Rodrigo Janot Monteiro de. “Recomendação n. 41 de 9 de agosto de 2016”. Diário Eletrônico do Conselho Nacional do Ministério Público, n. 166, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www2.cnmp.mp.br/portal/images/Ed.166_-2.09.20162.pdf >. Acesso em: 10/07/2020.
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, p. 1). Desse modo, enfatiza que “a autodeclaração não é critério absoluto de definição da pertença étnico-racial de um indivíduo” e que tal procedimento deve “ser complementado por mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas” (idem, p. 3).

Assim, para além da pressão de estudantes e dos movimentos sociais, essa recomendação influenciou o crescente número de universidades que instauraram comissões de verificação, especialmente a partir de 2017. Constatamos que vinte universidades 4 4 Em levantamento realizado entre janeiro e março de 2018, foram consultados os documentos e editais de ingresso divulgados pelas seguintes instituições: Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Instituto Federal do Amazonas (IFAM), Universidade Federal de Lavras (UFLA), Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Instituto Federal do Maranhão (IFMA) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IFSPE). estavam, naquele momento, trabalhando com algum tipo de comissão para verificação das candidaturas às cotas étnico-raciais. A referência ao documento do Ministério Público aparece em todos os editais pesquisados, o que demonstra seu impacto na legitimação jurídica e técnica das comissões.

Do ponto de vista da metodologia da política, todas as instituições estabelecem “sistemas mistos de identificação racial”, como recomendado pelo Ministério Público, e complementam a autoidentificação dos candidatos com mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas. Assim, por meio das comissões de heteroidentificação, praticamente todas as instituições pesquisadas estabelecem entrevistas presenciais com os candidatos - exceto uma, em que a análise é feita com base na fotografia e o candidato pode ser convocado para entrevista presencial.

A grande maioria das instituições adota como referência para a heteroidentificação o caráter “fenotípico” dos candidatos pretos e pardos. No que se refere à população indígena, algumas também usam somente o fenótipo; porém, várias universidades exigem, além da verificação fenotípica, a apresentação do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani) ou a declaração emitida pelo grupo indígena ao qual o candidato pertence.

Quanto à composição das comissões, há grande variedade entre os membros. Das poucas instituições pesquisadas que informam nos editais os componentes das comissões, encontramos a preocupação de registrar a diversidade de gênero e de cor/raça dos membros da comissão, considerando-se, em alguns casos, também a naturalidade. No geral, podemos dividir em três grupos os integrantes dessas comissões: servidores das instituições, representantes do corpo estudantil e membros externos.

ESTUDO DE CASO: A UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF) 5 5 A Universidade Federal Fluminense foi criada em 1960 com o nome de Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uferj) e passou a ter o nome atual em 1965. Sua criação se deu quando Niterói, onde a instituição nasceu e onde se situa sua sede, era a capital do estado do Rio de Janeiro, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro foi o estado da Guanabara entre 1960 e 1975.

A UFF é uma das maiores instituições de ensino superior do Brasil.6 6 A UFF é a primeira das universidades federais em oferta de vagas para a graduação, ficando somente atrás da Universidade Federal do Rio de Janeiro em oferta para a graduação presencial e atrás da Universidade Federal do Piauí para a graduação à distância (EAD). Esse crescimento se deu especialmente entre o segundo governo Lula (2007-2010) e o primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014), sendo uma das universidades de maior adesão ao Reuni - Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais brasileiras. Atualmente, a UFF conta com 129 cursos presenciais e 6 de educação à distância, distribuídos em 41 unidades de ensino, inclusive um colégio de aplicação, as quais estão localizadas em nove municípios do estado do Rio de Janeiro (Niterói, Angra dos Reis, Volta Redonda, Petrópolis, Nova Friburgo, Rio das Ostras, Macaé, Campos dos Goytacazes e Santo Antônio de Pádua), além de uma Unidade Avançada no município de Oriximiná, no Pará, atuando na região desde 1972 especialmente com atividades de extensão. Em 2018, a UFF tem 3.467 docentes, 4.320 técnicos administrativos e 65.110 alunos ativos, sendo 46.345 em cursos presenciais. Disponível em: <http://www.uff.br/?q=uff-entre-outras-ifes>. Acesso em: 14/04/2018. Foi a primeira no estado do Rio de Janeiro a adotar uma comissão de heteroidentificação e uma das primeiras no Brasil a utilizá-la para todos os alunos ingressantes que optaram pela política de ações afirmativas, uma vez que todas as suas vagas de ingresso estão vinculadas ao Sistema de Seleção Unificada (SiSU).

Embora já fossem realidade há alguns anos em outras universidades, as ações afirmativas de caráter étnico-racial foram adotadas tardiamente na UFF, tendo sido instituídas apenas depois de promulgada a lei n. 12.711/2012. Essa adoção foi gradativa, conforme se vê no quadro a seguir.

Quadro II
Desenvolvimento da política de ações afirmativas, por ano e por público beneficiário

Desde 2008, em todas as formas de ações afirmativas adotadas pela UFF em seus vestibulares, exigia-se que o candidato comprovasse que se enquadrava na política pretendida, exceto para as vagas de cunho étnico-racial implementadas pela lei n. 12.711. Mesmo a autodeclaração só foi exigida no segundo semestre de 2016, quando a universidade foi questionada pelo Ministério Público Federal de Niterói sobre as medidas que tomava para verificar se o candidato teria ou não direito à vaga reivindicada. Em sua argumentação, o mp se baseou na lei n. 12.990/2014, que trata das cotas raciais para ingresso no serviço público, entendendo que a veracidade da autodeclaração deve ser verificada.

Além do Ministério Público, outro ator social foi central para deflagrar o processo: os coletivos de estudantes negros da UFF. Eles apresentaram denúncias ao MPF e à Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) de alunos socialmente identificados como brancos que teriam se beneficiado das cotas étnico-raciais para ingresso na UFF, divulgaram essas informações em outros espaços internos à universidade e realizaram campanhas nas redes sociais estimulando as denúncias. Elas foram embasadas em fotos publicadas nas redes sociais e, principalmente, em fotos de turmas de primeiro período de alguns dos cursos mais disputados da universidade, como medicina e direito,8 8 A título de amostra, entre os candidatos entrevistados nas três primeiras chamadas do SiSU 2017/2, o curso de medicina teve o maior número de candidatos (seis) considerados não aptos às vagas destinadas às cotas étnico-raciais. formadas apenas por pessoas socialmente brancas.

A partir das denúncias, o MPF consultou a universidade quanto à existência de “mecanismos que visem à comprovação da autodeclaração da cor de pele, por candidatos no processo de seleção dos cursos de graduação”.9 9 Ofício PRM/NIT/AA/ n. 477/16, de 30 de março de 2016. Em resposta, a UFF declarou não dispor de tais mecanismos, 10 10 Ofício DAE/GRAD n. 18/2016, de 20 de abril de 2016. considerando “única e exclusivamente o critério da autodeclaração para efeito de comprovação de raça/cor/etnia”. O mp, então, requisitou que a UFF passasse “a adotar em seus editais de seleção expressa previsão de mecanismos de fiscalização e controle, constituindo comissão destinada a atestar o enquadramento dos candidatos [...]”.11 11 Ofício PRM/NIT/AA/ n. 1.039/16, de 9 de junho de 2016.

Assim, instada pelos coletivos de estudantes negros e pelo MPF, a Prograd criou um grupo de trabalho denominado “Comissão de Estudo do Acompanhamento e da Aferição da Autodeclaração de Raça e Etnia nos Concursos para Ingresso de Estudantes e Servidores na UFF”, formado por: docentes estudiosos da temática, servidores envolvidos com a questão (seja por militância, seja pelo cargo ocupado), discentes de coletivos negros da UFF e representantes da Prograd (pró-reitor e servidoras).12 12 Ao longo do segundo semestre de 2016, o GT se reuniu em oito ocasiões para examinar procedimentos adotados em outras Instituições de Ensino Superior; para conhecer e analisar aspectos jurídicos da questão; para discutir o modelo de autodeclaração a ser adotado na UFF, a dinâmica do processo e os documentos a serem divulgados.

Alguns dos argumentos levantados por pessoas contrárias à criação da comissão de aferição no interior do GT da UFF foram os seguintes: i) a defesa de que a identidade étnico-racial é válida exclusivamente pela autodeclaração; ii) a validade da ascendência para a determinação identitária; iii) a premissa de que o processo de aferição privilegiaria as pessoas pretas em detrimento das pardas; e iv) a condenação à subjetividade da avaliação, uma vez que não haveria - e em nenhum momento houve essa intenção - uma tabela biométrica de classificações13 13 Como no polêmico edital do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), de 2016, em que constava uma tabela chamada “padrões avaliativos”. Após uma grande repercussão, a tabela foi retirada do edital. Ver, entre outros, <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2016/09/apos-polemica-ifpa-retira-trecho-de-edital-sobre-aparencia-para-cotistas.html>. Acesso em: 18/03/2018. nem se levaria em conta a cor da pele segundo laudos dermatológicos.14 14 Trata-se da classificação de Fitzpatrick, cujo objetivo é definir a propensão da pele à reação quando exposta aos raios ultravioleta. De acordo com essa classificação, um mesmo corpo pode apresentar diferentes fototipos de pele, dependendo da exposição constante ou não ao sol e a outros fatores, como queimaduras, por exemplo. Informações retiradas do site <https://www.mundoestetica.com.br/dicas/fototipos-de-pele>. Acesso em: 18/03/2018.

Apesar das divergências, venceu a posição do uso do critério fenotípico como premissa para a efetividade da Lei de Cotas. Ao optar pelo fenótipo e não exclusivamente pela identidade autoatribuída, entendia-se que as cotas são destinadas às pessoas cuja aparência foi ou pode vir a ser alvo de racismo, seja diretamente ou por mecanismos institucionais, posto que a discriminação racial no Brasil se dá pela aparência física da pessoa, conforme indicado por Oracy Nogueira (2007Nogueira, Oracy. “Preconceito de marca e preconceito de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. Tempo Social, v. 19, n. 1, 2007, pp. 287-308. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf >. Acesso em: 30/08/2018.
http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19...
) em seu clássico trabalho sobre o padrão de relações raciais brasileiro.

O terceiro argumento pode ser resumido em uma frase ouvida inúmeras vezes nas reuniões do GT: “O problema é o pardo”. Ela sintetiza o receio de que as comissões de heteroidentificação Brasil afora fossem tomadas por pessoas - negras ou brancas - que não aceitassem os matizes de cor existentes especialmente entre o grupo populacional negro. Quanto a esse ponto, deve-se observar que a lei n. 12.711/2012 regulamenta a reserva de vagas étnico-raciais para pretos, pardos e indígenas, utilizando, assim, os critérios de classificação populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge). E é do próprio ibge o entendimento de que em termos socioeconômicos não há grandes diferenças entre os grupos populacionais preto e pardo, o que permite e torna mais produtiva essa análise em conjunto sob a rubrica de população negra. A reflexão de Osório (2003Osório, Rafael Guerreiro. “O sistema classificatório de ‘cor ou raça’ do IBGE”. Texto para discussão, n. 996, Ipea, nov. 2003. Disponível em: <Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf >. Acesso em: 14/03/2018.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
) sobre o fenótipo pardo indica que suas chances de sofrer discriminação aumentam à medida que se distancia dos brancos e se aproxima dos pretos:

De um ponto de vista estritamente estatístico, apenas as semelhanças socioeconômicas entre os pretos e os pardos justificariam tal agregação. [...] Pretos e pardos distinguem-se bastante dos brancos, mas virtualmente diferem pouco entre si em qualquer indicador de situação ou posição social que se possa imaginar. A agregação de pretos e pardos tem a vantagem de dissolver o problema do tipo limítrofe entre essas duas categorias, mas acentua o problema da fronteira entre pardos e brancos. A representação do negro, ainda que varie circunstancialmente, aponta para o extremo preto das gradações de cor. Assim, fica difícil conceber o pardo na fronteira do branco com o negro, pois os traços que o relacionam ao “fenótipo” negro estão extremamente diluídos. Todavia, deve-se lembrar que o propósito da classificação racial não é estabelecer com precisão um tipo “biológico”, mas se aproximar de uma caracterização sociocultural local. O que interessa, onde vige o preconceito de marca, é a carga de traços nos indivíduos do que se imagina, em cada local, ser a aparência do negro. Pardos têm menos traços, mas estes existem, pois se não fosse assim não seriam pardos, e sim brancos; e é a presença desses traços que os elegerá vítimas potenciais de discriminações. Portanto, a agregação de pretos e pardos e sua designação como negros justificam-se duplamente. Estatisticamente, pela uniformidade de características socioeconômicas dos dois grupos. Teoricamente, pelo fato de as discriminações, potenciais ou efetivas, sofridas por ambos os grupos, serem da mesma natureza. Ou seja, é pela sua parcela preta que os pardos são discriminados. A justificativa teórica é obviamente mais importante, pois, ao fornecer uma explicação para a origem comum das desigualdades dos pretos e dos pardos em relação aos brancos, coloca os dois grupos como beneficiários legítimos de quaisquer ações que venham a ser tomadas no sentido de reverter o quadro histórico e vigente dessas desigualdades. (pp. 23 ss.)

Em 2017, a comissão de heteroidentificação da UFF trabalhou com a concepção de que a pessoa autodeclarada parda com direito à vaga pelas cotas étnico-raciais é aquela que possua traços fenotípicos que podem ser percebidos como pertencentes aos negros, causando-lhe, ou podendo lhe causar, situações de discriminação racial - as quais o candidato poderia descrever no questionário ou narrar na entrevista. Para a comissão, a concepção era de que o racismo é socialmente compartilhado e de que nossas relações sociais são relações também racialmente orientadas. Por isso, a subjetividade é inerente ao processo de avaliação. Entende-se que a subjetividade é produzida pelas relações sociais em que vivemos e que as experiências individuais provocam nuances, as quais, porém, não são tão díspares a ponto de impedir convergências no âmbito de uma comissão de heteroidentificação. Ainda assim, a metodologia de trabalho adotada garantia que as diferentes experiências individuais dos integrantes das comissões, as quais podem divergir sobre quem pode ter sofrido racismo ou possa vir a sofrer, sejam consideradas em favor do candidato, como se verá a seguir.

Metodologias empregadas nas comissões de heteroidentificação da UFF em 2017

A formação das comissões de heteroidentificação na UFF em 2017 tiveram procedimentos distintos, em suas duas edições. Orientada pelas resoluções do GT, a comissão do primeiro semestre daquele ano - formada por uma docente negra, uma docente branca, um docente negro, um servidor negro e dois servidores brancos15 15 Na primeira edição do vestibular de 2017 não houve participação discente em função de dúvidas jurídico-administrativas quanto à sua regularidade. - reuniu-se, primeiramente, para analisar as fotos anexas às autodeclarações entregues no ato da pré-matrícula16 16 Em termos administrativos, o momento de entrega de documentos pelo candidato selecionado para a vaga é chamado de pré-matrícula. A matrícula só é efetivada quando o candidato a aluno realiza a inscrição em disciplinas já na coordenação de seu curso. e, assim, selecionar os candidatos cuja aparência poderia não corresponder aos fenótipos negro ou indígena, os quais seriam então chamados para uma entrevista.

Em relação ao modelo de autodeclaração utilizado nos vestibulares anteriores,17 17 O modelo de 2016 não incluía fotografia tampouco informações sobre as consequências penais no caso de fraude. Disponível em: <http://www.coseac.uff.br/2016/arquivos/SISU2016-2Edicao-ComunicadoOficialN17-AnexoIV-Autodeclara%C3%A7%C3%A3o% 20de%20Etnia.pdf>. Acesso em: 18/03/2018. houve algumas modificações para o de 2017/1: passou a ser exigida uma foto de tamanho 5 × 7 (tipo passaporte) e foi inserido um pequeno texto para que o candidato tivesse ciência de que estaria sujeito a penalidades legais ou à perda da matrícula, a qualquer momento, caso se identificasse falsidade em sua autodeclaração. Texto semelhante constou do edital do referido processo seletivo.18 18 Comunicado Oficial n. 2. Disponível em: <http://www.coseac.uff.br/2017/arquivos/SISU2017-1Edicao-ComunicadoOficial02.pdf>. Acesso em: 18/03/2018.

Em uma dinâmica que previa, a princípio, a análise individual das autodeclarações, as quais seguiam também para outros membros da comissão, as autodeclarações dos chamados para a entrevista foram avaliadas e confirmadas por quatro pessoas do grupo. Após essa etapa, foram convocados para a entrevista 198 candidatos, em dias e horários previamente agendados.

Na segunda etapa do processo, o candidato respondia a um formulário contendo três perguntas e depois seguia por uma entrevista com a comissão. O objetivo do formulário era contribuir com - e dessa forma complementá-la - a avaliação baseada na aparência física do candidato. As perguntas eram: 1) Você já sofreu preconceito?; 2) Por que você se considera preto(a), pardo(a) ou indígena?; 3) Você tem algo a acrescentar em relação aos documentos preenchidos?

Com o formulário já preenchido, cada um dos candidatos era convidado a entrar na sala onde a comissão estava reunida para a entrevista, que seria filmada. Ao candidato era, então, solicitado que dissesse seu nome completo e o curso ao qual estava se candidatando. Em seguida, era-lhe perguntado se teria algo a acrescentar em relação ao formulário preenchido. Em caso negativo, o candidato era dispensado da entrevista. Se manifestasse vontade de dizer algo, a comissão o ouvia sem fazer novas questões nem retrucar sua fala, respondendo apenas a perguntas de ordem prática, como “Quando sai o resultado?”.

Tendo o candidato deixado a sala, a comissão lia o formulário e avaliava se ele poderia ser considerado “apto” ou “não apto” à vaga destinada à política de ações afirmativas étnico-raciais. Importante dizer que nas reuniões do GT foi deliberado que alguém seria considerado “não apto” apenas se a decisão fosse por unanimidade.19 19 A Portaria Normativa n. 4 de 6 de abril de 2018, seção II, art. 12 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (publicada após a realização do procedimento citado) regulamenta que a não confirmação da autodeclaração do candidato deve ser feita por maioria, e não por unanimidade. Em caso de entendimentos divergentes ou dúvidas entre os membros, o postulante seria considerado “apto”. Dessa forma, como afirmado antes, as experiências individuais dos membros da comissão quanto ao entendimento do racismo foram levadas em conta, pois o candidato teria direito à vaga mesmo que apenas um dos membros considerasse que ele possuísse traços fenotípicos que poderiam ter lhe causado o sofrimento do racismo em algum momento de sua vida.

Também seriam considerados “aptos”, independentemente de seu fenótipo, todos os que apresentassem cópia e original de um dos seguintes documentos: cadastro de alistamento militar; certidão de nascimento/casamento, desde que constasse a cor; cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário (incluindo boletins de ocorrência e inquéritos policiais); cadastro geral de empregados e desempregados (Caged); cadastro de identificação civil (RG); e formulário de adoção das varas de infância e adolescência.20 20 Comunicado Oficial n. 2, disponível em: <http://www.coseac.uff.br/2017/arquivos/SISU2017-1Edicao-ComunicadoOficial02.pdf>. Acesso em: 18/03/2018. Note-se que os documentos pouco interferiram no processo, uma vez que o número de candidatos que pôde apresentá-los foi baixo.21 21 A possibilidade dada aos candidatos de apresentar documentos visando à confirmação da autodeclaração racial foi um ponto de bastante divergência entre alguns servidores e coletivos negros, já que essas organizações entendiam que o uso desse critério contribuiria para fragilizar os fins da comissão de heteroidentificação. A inclusão do quesito cor nos documentos listados no edital leva em consideração inúmeros fatores que não estão necessariamente relacionados com o fenótipo, como a autodeclaração ou a cor do familiar que solicitou o registro. Posteriormente, a Portaria Normativa n. 4 (6 de abril de 2018) do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão deu fim à questão ao regulamentar que a aferição deve adotar exclusivamente o critério fenotípico e que não devem ser considerados registros ou documentos pretéritos. Por ter como orientação a aferição da veracidade da autodeclaração do candidato por critérios fenotípicos, a comissão não aceitou como comprovação documentos de genitores e/ou fotos de família, além de ter indeferido os candidatos que falsificavam a documentação exigida.

Foram entrevistadas 181 pessoas, das quais 68 foram consideradas aptas e 113 não aptas, o que correspondeu a 14% do total de vagas destinadas às cotas étnico-raciais em 2017/1. Dado que a matrícula ocorreu antes das entrevistas, os candidatos foram avaliados já na condição de alunos, o que lhes permitiu entrar com recursos administrativos. O Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (cepex) da UFF designou, então, uma nova comissão recursal, incluindo entre seus membros pessoas que haviam se colocado contrariamente à formação da comissão e ao uso do critério fenotípico. Assim, dos 86 recursos analisados por essa comissão, resultaram 38 candidatos indeferidos. Critérios não previstos no edital - como ascendência - foram considerados dessa vez.

Em 2017/2, houve alterações significativas nos procedimentos. O primeiro foi a verificação da autodeclaração no momento da pré-matrícula, quando o candidato tem seu primeiro contato presencial com a instituição e ainda não é seu aluno. Nessa ocasião, passaram pela comissão todos os candidatos que se inscreveram pelas políticas de ação afirmativa se autodeclarando pretos, pardos ou indígenas. A opção foi aplicar o mesmo procedimento a todos os candidatos no intuito de evitar qualquer ação jurídica posterior embasada em processo discriminatório. Além disso, a análise presencial de todos os candidatos ajudou a comissão a produzir critérios que, ainda que permanecessem subjetivos, foram ajustados a partir da comparação durante o processo.

Outra alteração se deu na formação da comissão. Além de contar com um número maior de docentes e servidores no grupo, garantindo mais uma vez a diversidade de gênero, cor e cargo ocupado, discentes dos coletivos negros de diversos campi da UFF também estiveram presentes.

A experiência em 2017/1 apontou também a necessidade de mudanças no questionário e na relação de documentos que poderiam ser aceitos para comprovar a autodeclaração. Foram retirados da lista aqueles que poderiam ser preenchidos pelo próprio candidato quando tomasse conhecimento das exigências da UFF, como o cadastro no Caged e boletins de ocorrência. Foram acrescentados outros documentos não previstos na primeira edição de 2017: certidão de nascido vivo emitida pela unidade hospitalar e documento escolar.22 22 Diferente de outras instituições, na UFF não foram solicitados documentos de comprovação de pertencimento a uma etnia para os candidatos autodeclarados indígenas, embora na autodeclaração constasse um campo para sua identificação. O fenótipo foi o critério utilizado.

Quanto ao questionário, a mudança se deu em duas perguntas: em vez de “Você já sofreu preconceito?”, passou a ser “Você já sofreu discriminação racial?”. Também a terceira questão foi modificada. Em 2017/1, foi questionado se o candidato teria algo a acrescentar aos documentos preenchidos e à entrevista. Em 2017/2, a pergunta passou a ser: “Você tem algo a acrescentar em relação às informações prestadas nas perguntas anteriores?”. Por fim, uma última mudança ocorreu na nomenclatura usada para o resultado da aferição. Enquanto em 2017/1 foram empregados os termos “apto” e “não apto”, em 2017/2 foram adotados “atende” e “não atende”. Estar apto poderia ser percebido como ter capacidade ao acesso, e não se trata disso. Atender ou não atender aos requisitos da política de ação afirmativa, que são fenotípicos, retira, a nosso ver, o problema do candidato e o desloca para a instituição, que deve prezar pelo bom cumprimento da legislação. Assim, reafirmava-se que a aferição da autodeclaração nada tem a ver com um desejo de interferir na identidade do candidato, mas sim de verificar se seu ingresso pela política de cotas étnico-raciais contemplava ou não o objetivo da lei n. 12.711/2012 de promover a representação das populações negra e indígena no ensino público superior na mesma proporção da composição étnico-racial da população brasileira.

Nessa edição, a comissão de heteroidentificação entrevistou 1.240 candidatos em sua sede (Niterói) e em outros sete municípios. Importante informar que um candidato poderia requerer seu ingresso por mais de uma modalidade de política de ação afirmativa e que em 2017/2, pela primeira vez, pessoas com deficiência ingressaram na uff pela política de cotas.23 23 Trata-se da lei n. 13.409/2016, que altera a lei n. 12.711/2012, nesse aspecto. Como a última lei foi aprovada em dezembro de 2016, não houve tempo hábil para incluir vagas para pessoas com deficiência no primeiro semestre de 2017.

O candidato deveria passar por comissões de verificação em todas as modalidades de política pelas quais requisitasse seu ingresso na UFF, começando por aquela que verificava a autenticidade de sua condição de aluno que cursou todo o Ensino Médio em escola pública. A partir daí seguia para outra ou outras comissões.24 24 Exceto se estivesse concorrendo apenas pela modalidade cuja exigência se restringia a ter cursado o Ensino Médio em escola pública, sem combinação com nenhuma outra modalidade (étnico-racial, econômica ou de pessoa com deficiência).

Antes de se dirigir à comissão de heteroidentificação, o candidato respondia ao questionário e entrava na sala em que ela se encontrava reunida, sempre em torno de cinco membros, portando a autodeclaração, o questionário e uma ficha na qual deveria ser informado o resultado de cada comissão, entregava todos esses documentos a um dos membros, que os passava aos demais.

No caso em que o candidato não atendia aos requisitos, acrescentava-se à ficha um pequeno texto informando isso, que o candidato não atendera aos requisitos fenotípicos necessários para o acesso à política, citando o item do edital do SiSU 2017/2 que previa a verificação da autodeclaração tendo o fenótipo como critério. A ficha, então, era entregue a um funcionário responsável pela organização da pré-matrícula a fim de que não houvesse oportunidade de discussão entre o candidato e algum membro da comissão a respeito do resultado.

Na situação descrita, era facultada ao candidato a possibilidade de escrever, naquele momento, um recurso - sem necessidade de acrescentar nenhum documento ou foto. E, em função da possibilidade do recurso, o candidato poderia continuar nas demais comissões - socioeconômica e/ou médica -, de acordo com as políticas pleiteadas. No entanto, se após o recurso seu ingresso em qualquer uma das políticas fosse indeferido, ele não teria direito à vaga, já que esta estava destinada a um candidato que atendesse a todas as modalidades previstas para ela. As vagas dos candidatos indeferidos eram imediatamente liberadas para nova chamada de candidatos na fila de espera.

A comissão de recursos era formada por integrantes que não haviam tido contato com os recorrentes. Na análise recursal, foram utilizados a autodeclaração, o recurso redigido pelo candidato e a filmagem de sua entrevista. Foram analisados duzentos recursos, dos quais quarenta (20%) foram deferidos. Assim, antes dos recursos, 16% dos candidatos analisados foram considerados não atendendo aos critérios fenotípicos necessários para o alcance do objetivo da política; após os recursos, esse percentual reduziu-se a 13%, ou seja, 160 candidatos não atenderam aos critérios das ações afirmativas de caráter étnico-racial, segundo a comissão. Trata-se de um número expressivo, em especial quando se verifica que parte desses candidatos ocuparia vagas em carreiras altamente competitivas ou de grande prestígio social.

CONCLUSÃO

O principal dilema das comissões de heteroidentificação é lidar com os autodeclarados pardos. Questão emblemática nas relações raciais brasileiras, as pessoas pardas foram reivindicadas pelo movimento negro como integrantes da categoria negros por razões que envolviam tanto justificativas de natureza socioeconômica como de ascendência e de fenótipo. O entendimento do movimento social, pelo menos desde a década de 1970, era de que a melhor estratégia política seria assumir-se como maioria demográfica, e não como minoria, assim como nos Estados Unidos. Diferentemente de lá, a regra de descendência não pesava tanto na lógica da classificação racial, importando mais a marca, isto é, a aparência, como nos ensinou Oracy Nogueira (2007Nogueira, Oracy. “Preconceito de marca e preconceito de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. Tempo Social, v. 19, n. 1, 2007, pp. 287-308. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf >. Acesso em: 30/08/2018.
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) há meio século. Por razões distintas, a academia, aí incluindo os boletins dos órgãos governamentais como o ibge e o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), passou a operar com classificação igual ou análoga ao do movimento negro, porque, na dinâmica das desigualdades e da discriminação, os pretos e os pardos eram atingidos de formas semelhantes, de modo que os dois grupos guardavam distância forte e persistente dos grupos dos brancos (Soares, 2000Soares, S. S. D. “O perfil da discriminação no mercado de trabalho - homens negros, mulheres brancas, mulheres negras”. Texto para Discussão, n. 976. Ipea, nov. 2000. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2295/1/TD_769.pdf >. Acesso em: 10/07/2020.
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; Lima et al., 2013Lima, Márcia et al. “Articulando gênero e raça: a participação de mulheres negras no mercado de trabalho (1995-2009)”. In: Marcondes, M; Pinheiro, L.; Queiroz, C.; Querino, A. ; Valverde, D. (orgs.). Dossiê mulheres negras. Brasília: Ipea, 2013, pp. 53-80.; Sotero, 2013Sotero, Edilza. “Transformações no acesso ao Ensino Superior brasileiro: algumas implicações para os grupos de cor e sexo”. In: Marcondes, M. et al. (orgs.). Dossiê Mulheres Negras. v. 1. Brasília: Ipea, 2013, pp. 35-52.).

Eduardo de Oliveira e Oliveira (1974Oliveira, Eduardo de Oliveira e. “O mulato: um obstáculo epistemológico”. Revista Argumento, ano 1, n. 3, jan. 1974, pp. 65-74.), no texto “O mulato: um obstáculo epistemológico”, já havia apontado que o “mestiço” é um desafio para o entendimento das relações raciais brasileiras. O pardo, uma das faces desse mestiço de Oliveira, como nos aparece no atual momento, extrapola a dimensão epistemológica e se mostra como um problema de política pública. Mediante as ações afirmativas, que visam beneficiar a população negra e indígena, “o pardo” aparece como um nó por sua vagueza de significado como qualificante identitário. Ainda que reconheçamos que as identidades baseadas na raça são sempre contextuais, dependentes de perspectivas de interpelação, e que nossa própria experiência histórica é marcada por discursos que enfatizam a ambiguidade como base de nossas relações étnico e raciais, é bastante complexo pensar em agenciamentos do pardo como dispositivo de política pública voltado para a população negra. Isso porque, como fica patente nessa pesquisa, sujeitos que não são o alvo da política (brancos) acionam justamente o caráter ambíguo da “categoria” pardo (e os discursos de ambivalência que a atravessam) para reivindicar vagas de cotas étnico-raciais nas universidades.

Se é verdade que a burla é esperada em qualquer política pública e que a identificação de pessoas brancas usurpando o direito de pessoas negras às vagas pelas cotas étnico-raciais não seria motivo suficiente para estabelecer comissões de heteroidentificação, quando se vê o resultado na composição das turmas dos cursos de maior prestígio, percebe-se que, sobretudo nesses casos, as “fraudes” geram um desvio da finalidade da política, uma vez que impedem o ingresso de estudantes negros, perpetuando, assim, a sub-representação da população negra em cursos mais competitivos como medicina, direito e as engenharias.

A verificação das autodeclarações de candidatos a vagas étnico-raciais utilizando o critério fenotípico não tem a intenção de invalidar ou negar a autodeclaração identitária. Se uma pessoa considerada branca por sua cor tem ascendência negra e/ou se identifica com práticas que costumam ser atribuídas como próprias da população negra, seu ingresso na universidade em nada muda, estatística e visivelmente, a representatividade de negros no Ensino Superior público brasileiro. Ao negar-lhe a vaga, a comissão de heteroidentificação não está lhe impingindo uma nova identidade, mas garantindo que a vaga seja ocupada por quem tem direito a ela. Da mesma forma, uma pessoa fenotipicamente negra não precisa se identificar com práticas assim consideradas para ter garantido seu direito à vaga. O mesmo vale para candidatos indígenas, pois é preciso considerar o histórico de genocídio, etnocídio e miscigenação a que essas populações foram submetidas.

Este trabalho expôs os dilemas e desafios das comissões de heteroidentificação nas universidades públicas. Ao que tudo indica, as comissões de aferição das “autodeclarações” ou de “heteroidentificação” são uma realidade nos processos seletivos públicos do Estado brasileiro - nota-se a exigência delas não só nas admissões nas universidades, como também nos concursos públicos federais, estaduais e municipais. Nesse sentido, este artigo apresentou argumentos e um desenho de comissão de heteroidentificação que levasse em conta o pluralismo institucional e a diversidade mínima dos integrantes da comissão (como cor, gênero e categoria funcional) a fim de garantir a aplicação das ações afirmativas sem ferir as liberdades individuais dos candidatos que desejaram recorrer ao sistema de cotas. Com este trabalho, esperamos estimular novas pesquisas sobre o assunto, sobretudo aquelas que investiguem as concepções, os procedimentos e o desenho das comissões in process, bem como os resultados práticos do referido processo, apresentando abordagens comparadas e de conjunto sobre as diferentes formas pelas quais as comissões de heteroidentificação se estabeleceram no território nacional.

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  • _______. “Portaria normativa n. 4, de 6 de abril de 2018”. Brasília, 2018. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/igualdade-racial/portaria-normativa-no-4-2018-regulamenta-o-procedimento-de-heteroidentificacao-complementar-a-autodeclaracao-dos-candidatos-negros-em-concursos-publicos/view>. Acesso em: 26/06/2020.
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  • Nogueira, Oracy. “Preconceito de marca e preconceito de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. Tempo Social, v. 19, n. 1, 2007, pp. 287-308. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf >. Acesso em: 30/08/2018.
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  • Oliveira, Eduardo de Oliveira e. “O mulato: um obstáculo epistemológico”. Revista Argumento, ano 1, n. 3, jan. 1974, pp. 65-74.
  • Osório, Rafael Guerreiro. “O sistema classificatório de ‘cor ou raça’ do IBGE”. Texto para discussão, n. 996, Ipea, nov. 2003. Disponível em: <Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf >. Acesso em: 14/03/2018.
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  • Santos, Jocélio T. dos (org.). Cotas nas universidades: análises dos processos de decisão Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 2012.
  • Soares, S. S. D. “O perfil da discriminação no mercado de trabalho - homens negros, mulheres brancas, mulheres negras”. Texto para Discussão, n. 976. Ipea, nov. 2000. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2295/1/TD_769.pdf >. Acesso em: 10/07/2020.
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  • Sotero, Edilza. “Transformações no acesso ao Ensino Superior brasileiro: algumas implicações para os grupos de cor e sexo”. In: Marcondes, M. et al (orgs.). Dossiê Mulheres Negras v. 1. Brasília: Ipea, 2013, pp. 35-52.
  • Vários. “Dossiê temático ‘A importância das comissões de heteroidentificação para a garantia das ações afirmativas destinadas aos negros e negras nas universidades públicas brasileiras’”. Revista da ABPN, v. 11, n. 29, jun.-ago. 2019. Disponível em: <Disponível em: http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/issue/view/33 >. Acesso em: 20/06/2020.
    » http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/issue/view/33
  • Venturini, Anna. “Ações afirmativas na pós-graduação: desenho e desafios da política pública”. Anais do 41-º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/spg-4/spg27-1/11080-acoes-afirmativas-para-pos-graduacao-desenho-e-desafios-da-politica-publica-1/file >. Acesso em: 30/08/2018.
    » https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/spg-4/spg27-1/11080-acoes-afirmativas-para-pos-graduacao-desenho-e-desafios-da-politica-publica-1/file
  • Zakabi, Rosana; Camargo, Leoleli. “Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é branco e este é negro”. Revista Veja, v. 40, n. 22, 06/06/2007, pp. 82-8.
  • 1
    Os autores deste trabalho promoveram e/ou estiveram em sete eventos ocorridos no estado do Rio de Janeiro ao longo de 2017 e 2018, entre audiências públicas, mesas e debates.
  • 2
    A análise deste artigo se restringe a 2017 em função de dois fatores: todos os autores participaram das comissões de heteroidentificação nesse ano, e não em 2018, quando houve mudanças no procedimento.
  • 3
    Uma visão panorâmica sobre as comissões de heteroidentificação pode ser acessada no dossiê temático “A importância das comissões de heteroidentificação para a garantia das ações afirmativas destinadas aos negros e negras nas universidades públicas brasileiras”, publicado na Revista da ABPN (Vários, 2019Vários. “Dossiê temático ‘A importância das comissões de heteroidentificação para a garantia das ações afirmativas destinadas aos negros e negras nas universidades públicas brasileiras’”. Revista da ABPN, v. 11, n. 29, jun.-ago. 2019. Disponível em: <Disponível em: http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/issue/view/33 >. Acesso em: 20/06/2020.
    http://abpnrevista.org.br/revista/index....
    ).
  • 4
    Em levantamento realizado entre janeiro e março de 2018, foram consultados os documentos e editais de ingresso divulgados pelas seguintes instituições: Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Instituto Federal do Amazonas (IFAM), Universidade Federal de Lavras (UFLA), Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Instituto Federal do Maranhão (IFMA) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IFSPE).
  • 5
    A Universidade Federal Fluminense foi criada em 1960 com o nome de Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uferj) e passou a ter o nome atual em 1965. Sua criação se deu quando Niterói, onde a instituição nasceu e onde se situa sua sede, era a capital do estado do Rio de Janeiro, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro foi o estado da Guanabara entre 1960 e 1975.
  • 6
    A UFF é a primeira das universidades federais em oferta de vagas para a graduação, ficando somente atrás da Universidade Federal do Rio de Janeiro em oferta para a graduação presencial e atrás da Universidade Federal do Piauí para a graduação à distância (EAD). Esse crescimento se deu especialmente entre o segundo governo Lula (2007-2010) e o primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014), sendo uma das universidades de maior adesão ao Reuni - Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais brasileiras. Atualmente, a UFF conta com 129 cursos presenciais e 6 de educação à distância, distribuídos em 41 unidades de ensino, inclusive um colégio de aplicação, as quais estão localizadas em nove municípios do estado do Rio de Janeiro (Niterói, Angra dos Reis, Volta Redonda, Petrópolis, Nova Friburgo, Rio das Ostras, Macaé, Campos dos Goytacazes e Santo Antônio de Pádua), além de uma Unidade Avançada no município de Oriximiná, no Pará, atuando na região desde 1972 especialmente com atividades de extensão. Em 2018, a UFF tem 3.467 docentes, 4.320 técnicos administrativos e 65.110 alunos ativos, sendo 46.345 em cursos presenciais. Disponível em: <http://www.uff.br/?q=uff-entre-outras-ifes>. Acesso em: 14/04/2018.
  • 7
    Editais disponíveis em: <http://www.coseac.uff.br>. Acesso em: 10/04/2018.
  • 8
    A título de amostra, entre os candidatos entrevistados nas três primeiras chamadas do SiSU 2017/2, o curso de medicina teve o maior número de candidatos (seis) considerados não aptos às vagas destinadas às cotas étnico-raciais.
  • 9
    Ofício PRM/NIT/AA/ n. 477/16, de 30 de março de 2016.
  • 10
    Ofício DAE/GRAD n. 18/2016, de 20 de abril de 2016.
  • 11
    Ofício PRM/NIT/AA/ n. 1.039/16, de 9 de junho de 2016.
  • 12
    Ao longo do segundo semestre de 2016, o GT se reuniu em oito ocasiões para examinar procedimentos adotados em outras Instituições de Ensino Superior; para conhecer e analisar aspectos jurídicos da questão; para discutir o modelo de autodeclaração a ser adotado na UFF, a dinâmica do processo e os documentos a serem divulgados.
  • 13
    Como no polêmico edital do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), de 2016, em que constava uma tabela chamada “padrões avaliativos”. Após uma grande repercussão, a tabela foi retirada do edital. Ver, entre outros, <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2016/09/apos-polemica-ifpa-retira-trecho-de-edital-sobre-aparencia-para-cotistas.html>. Acesso em: 18/03/2018.
  • 14
    Trata-se da classificação de Fitzpatrick, cujo objetivo é definir a propensão da pele à reação quando exposta aos raios ultravioleta. De acordo com essa classificação, um mesmo corpo pode apresentar diferentes fototipos de pele, dependendo da exposição constante ou não ao sol e a outros fatores, como queimaduras, por exemplo. Informações retiradas do site <https://www.mundoestetica.com.br/dicas/fototipos-de-pele>. Acesso em: 18/03/2018.
  • 15
    Na primeira edição do vestibular de 2017 não houve participação discente em função de dúvidas jurídico-administrativas quanto à sua regularidade.
  • 16
    Em termos administrativos, o momento de entrega de documentos pelo candidato selecionado para a vaga é chamado de pré-matrícula. A matrícula só é efetivada quando o candidato a aluno realiza a inscrição em disciplinas já na coordenação de seu curso.
  • 17
    O modelo de 2016 não incluía fotografia tampouco informações sobre as consequências penais no caso de fraude. Disponível em: <http://www.coseac.uff.br/2016/arquivos/SISU2016-2Edicao-ComunicadoOficialN17-AnexoIV-Autodeclara%C3%A7%C3%A3o% 20de%20Etnia.pdf>. Acesso em: 18/03/2018.
  • 18
    Comunicado Oficial n. 2. Disponível em: <http://www.coseac.uff.br/2017/arquivos/SISU2017-1Edicao-ComunicadoOficial02.pdf>. Acesso em: 18/03/2018.
  • 19
    A Portaria Normativa n. 4 de 6 de abril de 2018, seção II, art. 12 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (publicada após a realização do procedimento citado) regulamenta que a não confirmação da autodeclaração do candidato deve ser feita por maioria, e não por unanimidade.
  • 20
    Comunicado Oficial n. 2, disponível em: <http://www.coseac.uff.br/2017/arquivos/SISU2017-1Edicao-ComunicadoOficial02.pdf>. Acesso em: 18/03/2018.
  • 21
    A possibilidade dada aos candidatos de apresentar documentos visando à confirmação da autodeclaração racial foi um ponto de bastante divergência entre alguns servidores e coletivos negros, já que essas organizações entendiam que o uso desse critério contribuiria para fragilizar os fins da comissão de heteroidentificação. A inclusão do quesito cor nos documentos listados no edital leva em consideração inúmeros fatores que não estão necessariamente relacionados com o fenótipo, como a autodeclaração ou a cor do familiar que solicitou o registro. Posteriormente, a Portaria Normativa n. 4 (6 de abril de 2018)_______. “Portaria normativa n. 4, de 6 de abril de 2018”. Brasília, 2018. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/igualdade-racial/portaria-normativa-no-4-2018-regulamenta-o-procedimento-de-heteroidentificacao-complementar-a-autodeclaracao-dos-candidatos-negros-em-concursos-publicos/view>. Acesso em: 26/06/2020.
    https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de...
    do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão deu fim à questão ao regulamentar que a aferição deve adotar exclusivamente o critério fenotípico e que não devem ser considerados registros ou documentos pretéritos.
  • 22
    Diferente de outras instituições, na UFF não foram solicitados documentos de comprovação de pertencimento a uma etnia para os candidatos autodeclarados indígenas, embora na autodeclaração constasse um campo para sua identificação. O fenótipo foi o critério utilizado.
  • 23
    Trata-se da lei n. 13.409/2016, que altera a lei n. 12.711/2012, nesse aspecto. Como a última lei foi aprovada em dezembro de 2016, não houve tempo hábil para incluir vagas para pessoas com deficiência no primeiro semestre de 2017.
  • 24
    Exceto se estivesse concorrendo apenas pela modalidade cuja exigência se restringia a ter cursado o Ensino Médio em escola pública, sem combinação com nenhuma outra modalidade (étnico-racial, econômica ou de pessoa com deficiência).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2019
  • Aceito
    24 Abr 2020
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