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FINANCIAMENTO DA SAÚDE E DESPESAS MUNICIPAIS COM RECEITAS PRÓPRIAS: Fazendo a diferença?

Health Financing and Municipal Expenses with Own Revenues: Making a Difference?

RESUMO

Este trabalho analisa a evolução das despesas em saúde realizadas com receitas próprias pelos municípios brasileiros após a vigência da Emenda Constitucional 29/2000, com o intuito de verificar se cresceram de forma homogênea nas diferentes regiões do país e se eventuais desigualdades regionais diminuíram, se mantiveram ou aumentaram com o tempo. Utiliza o Índice Global e Local de Moran, buscando padrões de correlação espacial e formação de clusters.

PALAVRAS-CHAVE:
federalismo fiscal; desigualdades regionais; políticas de saúde; descentralização

ABSTRACT

This paper analyzes the evolution of health expenditures using own revenues by Brazilian municipalities after the promulgation of Constitutional Amendment 29/2000, in order to verify if they grew homogeneously in different regions of the country and if regional inequalities decreased, maintained or increased with time. It uses Moran’s Global and Local Index to look for patterns of spatial correlation and clusters formation.

KEYWORDS:
fiscal federalism; regional inequalities; health policies; decentralization

INTRODUÇÃO

O presente trabalho1 1 Este trabalho é produto da pesquisa “Estudo dos determinantes e impactos do gasto municipal em saúde”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). aborda a alocação das despesas em saúde realizadas com receitas próprias pelos municípios brasileiros após a vigência da Emenda Constitucional - EC 29 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm). Nele, partindo da constatação do aumento gradativo das proporções de receitas próprias alocadas em saúde pelos municípios desde então, busca-se responder a duas questões: (1) Despesas municipais com receitas próprias em saúde cresceram de forma homogênea nas diferentes regiões do país? (2) Eventuais desigualdades regionais entre elas diminuíram, mantiveram-se em patamares semelhantes ou aumentaram ao longo do tempo? Para responder a essas questões, mobilizamos duas técnicas de análise espacial: o Índice Global de Moran e o Índice Local de Moran. Nossa expectativa a partir dessa escolha foi viabilizar a identificação de eventuais padrões de correlação espacial e formação de clusters para despesas municipais, aspectos importantes para o tratamento das questões levantadas.

Após a adoção de medidas emergenciais visando sanar a crise de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) nos anos 1990, a aprovação da EC 29/2000 se apresentou como solução duradoura, uma vez que definiu fontes permanentes de recursos que lhe dariam sustentação (Lazzari, 2003Lazzari, J. B. “Fontes de financiamento do Sistema Único de Saúde”. Revista de Direito Sanitário, v. 4, n. 1, 2003, pp 75-84.; Scatena; Viana; Tanaka, 2009Scatena, J. H. G; Viana, A. L. D; Tanaka, O. Y. “Sustentabilidade financeira e econômica do gasto público em saúde no nível municipal: reflexões a partir de dados de municípios mato-grossenses”. Cadernos de Saúde Pública, v. 25, 2009, pp. 2.433-45.; Câmara dos Deputados, 2012Câmara dos Deputados. Nota técnica n. 14, de 2012. Disponível em: <Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2012/nt14.pdf >. Acesso em: 28/10/2012.
https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-...
). De acordo com a EC 29/2000, foram definidas as participações mínimas dos entes governamentais vinculadas a cada nível de governo para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Ficou estabelecido no artigo 77 da Constituição Federal que a União deveria destinar, a partir do ano 2000, o equivalente ao montante de 1999 acrescido de 5% e que, a partir daí, o valor apurado deveria ser corrigido pela variação do Produto Interno Bruto (PIB). No mesmo artigo, ficou determinada a alocação de 12% das receitas próprias dos estados e 15% das receitas próprias dos municípios com ações e serviços de saúde.

Os efeitos da EC 29/2000 foram inequívocos quanto ao incremento da despesa pública per capita agregada com ações e serviços de saúde (Paiva; Gonzalez; Leandro, 2017Paiva, A. B.; Gonzalez, R. H. S.; Leandro, J. G. “Coordenação federativa e financiamento da política de saúde: mecanismos vigentes, mudanças sinalizadas e perspectivas para o futuro”. Novos Estudos Cebrap 108, v. 36, n. 2, jul. 2017, pp. 55-81.), a qual apresentou uma variação de 89% entre 2000 e 2010 (Piola; França; Nunes, 2016Piola, S. F.; França, J. R. M.; Nunes, A. “Os efeitos da Emenda Constitucional 29 na alocação regional dos gastos públicos no Sistema Único de Saúde no Brasil”. Ciência e Saúde Coletiva , v. 21, n. 2, 2016, pp. 411-22.). Entretanto, as contribuições relativas de cada nível de governo foram bem distintas, recaindo o ônus dessa variação positiva sobre os estados e, principalmente, sobre os municípios. Piola et al. (2018)Piola, S. F.; Benevides, R. P. S.; Vieira, F. S. “Consolidação do gasto com ações e serviços públicos de saúde: trajetória e percalços no período de 2003 a 2017”. Texto para discussão/Ipea. Rio de Janeiro: Ipea, 2018. mostram que, entre 2003 e 2017, a participação relativa dos diferentes níveis de governo no financiamento público foi substancialmente alterada no período: enquanto a União viu reduzida a sua parte de 50,1% para 43,2%, os estados tiveram sua participação aumentada de 24,5% para 25,7%, e os municípios de 25,4% para 31,1%.

Contudo, embora estados e municípios tenham aumentado sua participação no financiamento governamental em saúde, foram distintas suas trajetórias em termos de adequação ao piso mínimo exigido pela EC 29/2000. Enquanto os estados partiram, em 2000, de um patamar de 7,2% das receitas próprias com saúde, os municípios já alocavam naquele mesmo ano 13,7%. Em 2008, enquanto os estados na média ainda não haviam atingido o mínimo constitucional de 12%, os municípios já ultrapassavam 17% de suas receitas próprias com saúde (Piola; França; Nunes, 2016Piola, S. F.; França, J. R. M.; Nunes, A. “Os efeitos da Emenda Constitucional 29 na alocação regional dos gastos públicos no Sistema Único de Saúde no Brasil”. Ciência e Saúde Coletiva , v. 21, n. 2, 2016, pp. 411-22.). Se para os estados, na média, a proporção das receitas próprias alocadas em saúde se manteve levemente superior ao piso constitucional nos anos seguintes, no caso dos municípios ela continuou crescendo de forma consistente, chegando a uma média nacional de 24,2% em 2017, segundo dados do Siops. Considerando o período entre 2003 e 2017, o gasto federal apresentou um aumento de 89%, o estadual de 130% e o municipal de 169% (Piola et al., 2018Piola, S. F.; Benevides, R. P. S.; Vieira, F. S. “Consolidação do gasto com ações e serviços públicos de saúde: trajetória e percalços no período de 2003 a 2017”. Texto para discussão/Ipea. Rio de Janeiro: Ipea, 2018.).

Dois aspectos chamam atenção ao lado desse crescimento médio. Primeiro, houve ao longo do tempo um aumento do grau de convergência entre percentuais de receitas próprias municipais alocadas em saúde, fenômeno também verificado no caso da educação, ao contrário do que ocorreu em outras políticas públicas que não são objeto de vinculação constitucional dos patamares mínimos de alocação, como as políticas de habitação e transporte (Arretche, 2012Arretche, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV/Fiocruz, 2012.). Segundo, as despesas municipais per capita em saúde com receitas próprias no Brasil cresceram em termos reais de R$ 205,77 em 2005 (primeiro ano após transição para implementação da EC 29/2000) para R$ 287,51 em 2010 e R$ 358,29 em 2015 (Siops, 2019Siops. Indicadores Municipais. Disponível em <Disponível em http://siops-asp.datasus.gov.br/CGI/deftohtm.exe?SIOPS/serhist/municipio/mIndicadores.def >. Acesso em 12/12/2019.
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), ou seja, 74,1% em dez anos, já deflacionados os valores pelo IGPM-FGV. Não obstante, nesse período, tal crescimento apresentou intensidades distintas ao longo do tempo: entre 2005 e 2010, foi de 39,7%, e entre 2010 e 2015, de 24,6%, numa tendência de desaceleração.

Por outro lado, a despeito do crescimento do volume de recursos governamentais agregados, alocados pelos três níveis de governo para a saúde, há indicações de persistência de inequidades assistenciais entre as macrorregiões e unidades federativas, tanto no que se refere às condições de saúde quanto no acesso aos meios de diagnóstico e tratamento, notadamente àqueles que incorporam maior densidade tecnológica e cuja concentração se dá nas regiões mais desenvolvidas socioeconomicamente (Albuquerque et al., 2017Albuquerque, M. V.; Viana, A. L. A.; Lima, L. D.; Ferreira, M. P.; Fusaro, E. R.; Iozzi, F. L. “Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016”. Ciência e Saúde Coletiva, v. 22, n. 4, 2017, pp. 1.055-64.; Ribeiro et al., 2018Ribeiro, J. M.; Moreira, M. R.; Ouverney, A. M.; Pinto, L. F.; Silva, C. M. F. P. “Federalism and Health Policy in Brazil: Institutional Features and Regional Inequalities”. Ciência e Saúde Coletiva v. 23, n. 6, 2018, pp. 1.777-89.). Na mesma direção, considerada a distribuição dos valores despendidos pelos três níveis de governo com ações e serviços públicos de saúde, a região Sudeste detém a maior despesa per capita total com saúde, enquanto o Nordeste apresenta a menor, alocando cerca de 30% a menos que a primeira (Piola; França; Nunes, 2016Piola, S. F.; França, J. R. M.; Nunes, A. “Os efeitos da Emenda Constitucional 29 na alocação regional dos gastos públicos no Sistema Único de Saúde no Brasil”. Ciência e Saúde Coletiva , v. 21, n. 2, 2016, pp. 411-22.). Enquanto em 2005 e 2008 a despesa pública total com saúde no Sudeste se posicionou em 14,28% e 13,31% acima da média nacional, respectivamente, no Nordeste esses percentuais foram de 21% e 20% abaixo daquela média (Piola et al., 2013Piola, S. F.; Servo, L. M. S; Sá, E. B.; Paiva, A. B. “Estruturas de financiamento e gasto do sistema público de saúde”. In: Gadelha, P.; Noronha, J. C. D.; Pereira, T. R. (orgs.). A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: estrutura do financiamento e do gasto setorial. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, v. 4, 2013, pp. 19-70.). De acordo com os mesmos autores, “nem o aumento das transferências federais para as esferas subnacionais nem a eleição de novas prioridades foram suficientes para reduzir, de forma significativa, as desigualdades existentes na alocação regional de recursos para as ações e serviços públicos de saúde” (idem, p. 62).

As desigualdades na alocação da despesa governamental em saúde entre diferentes regiões ou localidades do país desafiam a realização das garantias sociais nacionais relativas à saúde, que estendem o direito ao acesso universal, igualitário e integral aos serviços para todos os cidadãos brasileiros independentemente de residência. E nesse particular, suspeitamos que a EC 29/2000 não tenha apresentado efeitos de reversão importantes, nem mesmo no caso da alocação de despesas por parte daqueles entes governamentais que mais ampliaram a participação da saúde em suas receitas próprias desde então e que, não por acaso, constituem os principais agentes implementadores da política de saúde: os municípios. Antes, porém, de apresentar a estratégia proposta para responder a essa suspeita no presente estudo, examinaremos mais de perto como mecanismos de coordenação federativa nessa área governamental têm afetado a formação das receitas municipais em saúde.

FEDERALISMO FISCAL EM SAÚDE E FORMAÇÃO DAS RECEITAS MUNICIPAIS

Desde a institucionalização do sus, o desiderato de combinar acesso universal e igualitário aos serviços públicos de saúde em âmbito nacional e descentralização da gestão do sistema, atribuindo papel essencial aos municípios para sua organização, demandou a construção de mecanismos de coordenação federativa. Esses mecanismos incluíram constrangimentos legais adicionais à Constituição Federal, indução financeira mediante transferências condicionadas para estados e municípios e, inclusive, institucionalização de arenas de pactuação federativa (Machado; Palotti, 2015Machado, J. A., Palotti, P. L. M. “Entre cooperação e centralização: federalismo e políticas sociais no Brasil Pós-1988”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, n. 88, 2015, pp. 61-82.) por meio das comissões intergestores tripartite e bipartites. Constituiu-se assim um padrão também encontrado em outras políticas sociais, caracterizado pela centralização do policy decision making e pela descentralização do policy making (Arretche, 2012Arretche, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV/Fiocruz, 2012.), sob o qual se obteve sucesso em fazer convergir escolhas locais para objetivos nacionais (Abrucio, 2005Abrucio, F. L. A. “Coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, 2005, pp. 31-67.; Almeida, 2005Almeida, M. H. T. “Recentralizando a federação?”. Revista de. Sociologia e Política, v. 24, 2005, pp. 29-40.). Sob esse padrão foram disseminados modelos para organização e prestação dos serviços públicos em todo o país, ainda que sob resultados limitados em termos de superação das desigualdades herdadas (Albuquerque et al., 2017Albuquerque, M. V.; Viana, A. L. A.; Lima, L. D.; Ferreira, M. P.; Fusaro, E. R.; Iozzi, F. L. “Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016”. Ciência e Saúde Coletiva, v. 22, n. 4, 2017, pp. 1.055-64.).

Enquanto principais implementadores, os municípios constituem a base da organização do sistema de saúde, tendo sido a eles destinados os esforços prioritários no sentido de apoiar a difusão de modelos organizacionais - fundos e conselhos de saúde, entre outros - e serviços articulados em rede a partir da atenção primária em saúde. Esse movimento de difusão, embora não exclusivamente, foi apoiado sobre dois mecanismos fiscais comumente presentes em países federativos: a vinculação de parte das receitas locais a determinadas políticas públicas e as transferências condicionadas de recursos.

Ambos os mecanismos fiscais afetaram a formação das receitas municipais em saúde, ainda que de forma distinta. Inicialmente, a vinculação setorial de parte das receitas municipais incide sobre o montante formado pela arrecadação de tributos municipais e transferências federais ou estaduais obrigatórias, constituindo as chamadas receitas próprias. Embora tenha sido responsável por efeitos notáveis, como a manutenção de fontes estáveis de recursos para a saúde e, no caso dos municípios, de um acentuado grau de convergência entre as proporções dos orçamentos municipais destinados à saúde, restringindo discordâncias alocativas (Arretche, 2012Arretche, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV/Fiocruz, 2012.), na prática essa vinculação resultou na alocação de valores per capita bastante distintos, a depender da região de inserção e porte do município. Machado e Guim (2017Machado, J. A.; Guim, A. L. S. “Descentralização e igualdade no acesso aos serviços de saúde: o caso do Brasil”. Revista do Serviço Público , v. 68, n. 1, 2017, pp. 37-64.), ao estratificarem o volume de receitas próprias a partir do cruzamento das variáveis macrorregião e porte populacional, identificaram significativas desigualdades entre valores per capita municipais destinados à saúde: se no Sudeste, em 2010, a média per capita das receitas próprias municipais era R$ 1.274,05, nas regiões Norte e Nordeste essas médias eram, respectivamente, R$ 730,03 e R$ 687,97.

De outro lado, com efeito oposto, as transferências condicionadas do sus, aquelas realizadas regularmente fundo a fundo mediante adesão dos entes federados às normativas fixadas pelo Ministério da Saúde, estão entre as mais redistributivas (Baião; Cunha; Souza, 2017Baião, A.; Cunha, A.; Souza, F. “Papel das transferências intergovernamentais na equalização fiscal dos municípios brasileiros”. Revista do Serviço Público, v. 68, n. 3, 2017, pp. 583-610.). Machado e Guim (2017Machado, J. A.; Guim, A. L. S. “Descentralização e igualdade no acesso aos serviços de saúde: o caso do Brasil”. Revista do Serviço Público , v. 68, n. 1, 2017, pp. 37-64.) também encontraram evidências nesse sentido, para 2010, ao registrarem que as transferências per capita do sus para o Nordeste - R$ 169,09 - superaram as do Sudeste e do Sul - respectivamente R$ 147,08 e R$ 152,66. Nesse mesmo estudo, a decomposição das transferências sus permitiu notar que não foi apenas na atenção primária que os valores transferidos a municípios do Nordeste foram superiores aos das regiões mais desenvolvidas, uma vez que isso também ocorreu em relação a municípios do Sudeste, para diversas faixas populacionais, no caso de procedimentos de média e alta complexidade. Esses dados, entretanto, se tornam fonte de preocupação, se considerarmos que a região Nordeste é aquela em que as receitas federais têm maior peso (Piola et al., 2018Piola, S. F.; Benevides, R. P. S.; Vieira, F. S. “Consolidação do gasto com ações e serviços públicos de saúde: trajetória e percalços no período de 2003 a 2017”. Texto para discussão/Ipea. Rio de Janeiro: Ipea, 2018.), receitas estas que, como dito anteriormente, reduziram sua participação relativa no financiamento público da saúde.

Assim, ainda que o componente das receitas próprias municipais alocadas em saúde desde a vigência da EC 29/2000 tenha levado a um aporte significativo de recursos pelos municípios brasileiros, ele não parece estar contribuindo para a redução das desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Mais preocupante ainda tem sido o fato de esse componente superar, nos orçamentos municipais, as receitas oriundas de transferências sus. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), no período de 2005 a 2015, as receitas próprias municipais corresponderam a cerca de 60% dos recursos disponíveis para os municípios brasileiros para a saúde (Siops, 2019Siops. Indicadores Municipais. Disponível em <Disponível em http://siops-asp.datasus.gov.br/CGI/deftohtm.exe?SIOPS/serhist/municipio/mIndicadores.def >. Acesso em 12/12/2019.
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).

Postos esses elementos, propõe-se neste trabalho a análise da distribuição territorial das receitas próprias com saúde entre os municípios brasileiros, de modo a esclarecer: (1) se o crescimento gradativo das despesas municipais per capita em saúde desde a EC 29/2000 tem ocorrido de forma homogênea, entre as diferentes regiões do país; (2) se eventuais desigualdades regionais entre tais despesas estão diminuindo, mantendo-se ou aumentando ao longo do tempo. Esse objetivo, ainda que exploratório, se mostra relevante, uma vez que são poucos os estudos que analisam as desigualdades regionais na alocação de recursos públicos para a saúde, quase todos eles circunscritos ao uso de indicadores médios relativos à distribuição nas macrorregiões, estados ou municípios, o que limita sobremaneira a identificação mais precisa da formação de padrões espaciais e diferenças regionais nesse caso. Na próxima seção será apresentada a estratégia metodológica que orienta este trabalho.

MÉTODOS

O presente artigo insere-se entre os estudos quantitativos dedicados à investigação de fenômenos posicionados no espaço, buscando identificar associações de base territorial entre os níveis de despesa municipal com receitas municipais próprias em saúde, bem como padrões de correlação espacial que sugiram a formação (ou não) de clusters para tal despesa (Anselin, 1995Anselin, L. “Local Indicators of Spatial Association - Lisa”. Geographical Analysis, v. 27, n. 2, 1995, pp. 93-115.). Assumindo perspectiva exploratória, adota-se a premissa da interdependência do fenômeno estudado entre as unidades de análise, no caso, os municípios brasileiros.

Objeto deste estudo, o componente da despesa municipal com saúde executado com receitas próprias expressa desigualdades entre capacidades locais e, ao mesmo tempo, possível divergência decisória quanto a prioridades decorrentes das distintas realidades locais. Para capturar, comparativamente, as variações nesse tipo de despesa em perspectiva regional, optou-se por sua mensuração per capita, e não enquanto porcentagens de despesa no orçamento municipal.

O trabalho foi realizado em duas etapas, ao abrigo de técnicas distintas, embora complementares, de estatísticas espaciais: o Índice Global de Moran e o Índice Local de Moran. O Índice Global de Moran analisa o nível, a natureza e o grau da interdependência geográfica entre unidades de análise para determinadas variáveis de interesse. Ele pode ser definido a partir da equação 1, em que w ij é a matriz de vizinhança, n o número de áreas vizinhas, z i o valor do atributo z na área i, z j o valor do atributo z no vizinho j, e z¯ o valor médio do atributo na região (Câmara et al., 2004Câmara, G.; Carvalho, M. S.; Cruz, O. G; Correia, V. “Análise espacial de áreas”. In: Druck, S.; Carvalho, M. S.; Câmara, G.; Monteiro, A. M. V. (orgs.). Análise espacial de dados geográficos. Planaltina: Embrapa; 2004.). No caso deste trabalho, z¯ seria o valor médio da despesa municipal per capita com receitas próprias em saúde no Brasil.

I i = i n = 1 i n = 1 w i j z i - z ¯ z j - z ¯ i n = 1 z i - z ¯ 2 (1)

De acordo com a equação, quanto mais próximo o vizinho, maior será o seu peso na matriz de vizinhança sobre o valor I. A hipótese nula desse primeiro teste é de que os dados estejam distribuídos aleatoriamente no espaço, ou seja, que haja independência espacial (Câmara et al., 2004Câmara, G.; Carvalho, M. S.; Cruz, O. G; Correia, V. “Análise espacial de áreas”. In: Druck, S.; Carvalho, M. S.; Câmara, G.; Monteiro, A. M. V. (orgs.). Análise espacial de dados geográficos. Planaltina: Embrapa; 2004.). Se o teste apresenta significância estatística, pode-se rejeitar a hipótese nula e, portanto, afirmar que as despesas municipais com saúde apresentam associação ou dependência espacial. Valores positivos entre zero e +1 indicam correlação direta entre o município e seus vizinhos, e valores negativos entre -1 e zero, uma correlação negativa ou associação inversa.

Para maior compreensão da dependência espacial de dados, sendo o teste anterior estatisticamente significante, o próximo passo seria estimar os Indicadores Locais de Associação Espacial (Lisa - Local Indicators of Spatial Association), sendo utilizado o Índice Local de Moran. Dada a heterogeneidade das condições locais para implementação de políticas públicas no Brasil, assume-se o pressuposto de que estas se reflitam nas despesas municipais realizadas com receitas próprias em saúde. Nesse caso, o valor médio utilizado no Índice Global de Moran (z¯) seria afetado por variações extremas nos municípios, sendo aconselhável detalhar padrões espaciais focando unidades de análise próximas, a fim de evidenciar as diferenças entre despesas locais. Para tal, foram calculados indicadores de associação espacial individuais para cada área, normalizados, conforme equação 2 (Anselin, 1995Anselin, L. “Local Indicators of Spatial Association - Lisa”. Geographical Analysis, v. 27, n. 2, 1995, pp. 93-115.; Câmara et al., 2004Câmara, G.; Carvalho, M. S.; Cruz, O. G; Correia, V. “Análise espacial de áreas”. In: Druck, S.; Carvalho, M. S.; Câmara, G.; Monteiro, A. M. V. (orgs.). Análise espacial de dados geográficos. Planaltina: Embrapa; 2004.). Foram considerados vizinhos somente os entes de primeira ordem, ou seja, aqueles que fazem fronteira física com cada município.

I i = z i - z ¯ j = 1 n w i j z j - z ¯ (2)

Esse procedimento leva a uma decomposição do indicador global em contribuições individuais de município, permitindo apontar para conglomerados significativos de valores semelhantes em torno de determinadas localizações (Bailey; Gatrell, 1995Bailey, T. C.; Gatrell, A. C. Interactive Spatial Data Analysis. Essex: Longman Scientific & Technical, 1995.). A partir desses índices foi possível realizar uma comparação gráfica entre valores normalizados dos atributos e a média dos vizinhos, produzindo quatro cenários: 1) alto-alto; 2) baixo-baixo; 3) baixo-alto; e 4) alto-baixo (idem, 1995). No caso do primeiro, foram agrupados municípios com alta despesa própria com saúde e cuja média dos vizinhos é igualmente alta; do segundo, municípios com baixa despesa, cujos vizinhos possuem média baixa; no baixo-alto há um município ou um pequeno conjunto deles com despesa baixa, porém com média alta no seu entorno; por último, há a despesa alta em um ou mais municípios, confrontada com uma média baixa entre os vizinhos. A classificação como alta ou baixa toma por referência a média global obtida, no caso deste trabalho, para o Brasil.

Foram analisados dados extraídos do Siops referentes aos anos de 2005, 2010 e 2015, tendo sido os valores para 2010 e 2015 deflacionados com base no Índice Geral de Preços ao Mercado, calculado mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas (IGPM/FGV) desde 2005. Esse período foi escolhido por cobrir uma década a partir do primeiro ano após a fase de transição da implementação da EC 29/2000 (de 2000 a 2004), deixando de fora os dados disponíveis mais recentes, para 2016 e 2017, dado o volume de pendências e ajustes nas informações pelos municípios. Além disso, a opção por eleger um ano no início do período (2005), um no meio (2010) e outro ao final (2015) se deveu a duas razões: primeira, o tratamento de cada ano, individualmente, dentro do período seria exaustivo quanto ao número de análises necessárias para a obtenção dos resultados; e segunda, não se esperariam mudanças bruscas aleatórias entre os anos do intervalo, de modo que não se perderia informação relevante em termos analíticos ao se escolher esses três anos específicos.

Com a intenção de se refinar a análise, os mesmos procedimentos foram aplicados às taxas de crescimento das despesas entre os dois períodos: 2005-2010 e 2010-2015. As taxas foram calculadas segundo a equação 3, em que DRP x é a despesa com recurso próprio no ano x, e DRP x+5 a despesa no quinquênio subsequente:

r = D R P x + 5 - D R P x D R P x * 100 (3)

Assim, a intensidade do crescimento da despesa per capita com receitas próprias pelos municípios ao longo de 2005-2010 e 2010-2015 foi aferida com o intuito de descrever, com maior precisão, a evolução da despesa municipal com receitas próprias e identificar possíveis desigualdades no aumento desse tipo de despesa nos intervalos.

RESULTADOS

O primeiro aspecto passível de visualização a partir da Figura 1 é o crescimento da despesa municipal per capita com receitas próprias ao longo de todo o período 2005-2015, confirmando o que já havia sido revelado em outros estudos sobre financiamento da saúde no Brasil (Piola et al., 2013Piola, S. F.; Servo, L. M. S; Sá, E. B.; Paiva, A. B. “Estruturas de financiamento e gasto do sistema público de saúde”. In: Gadelha, P.; Noronha, J. C. D.; Pereira, T. R. (orgs.). A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: estrutura do financiamento e do gasto setorial. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, v. 4, 2013, pp. 19-70.; Piola; França; Nunes, 2016Piola, S. F.; França, J. R. M.; Nunes, A. “Os efeitos da Emenda Constitucional 29 na alocação regional dos gastos públicos no Sistema Único de Saúde no Brasil”. Ciência e Saúde Coletiva , v. 21, n. 2, 2016, pp. 411-22.).

FIGURA 1
Despesa com recurso próprio per capita, Brasil, 2005-2015

E já tratando da primeira indagação deste trabalho - sobre a intensidade do impacto da EC 29/2000 nas diferentes regiões do país -, é também perceptível que tal crescimento não foi homogêneo, mas, pelo contrário, ocorreu sob padrões distintos quando considerados dois grupamentos de macrorregiões: de um lado, o Sul, Sudeste e Centro-Oeste e, de outro, o Norte e o Nordeste. No primeiro grupamento - Sul, Sudeste e Centro Oeste - predominaram em 2005 as faixas intermediárias de despesa per capita (R$ 97,00-R$ 133,00 e R$ 133,00-R$ 194,00), com exceção das áreas que compreendem a metade superior de Minas Gerais e a metade inferior do Rio Grande do Sul. Decorrida uma década, a despesa per capita cresceu e chegou à notável predominância na faixa superior a R$ 194,00, com exceção do norte e nordeste mineiro e sul do Rio Grande do Sul. No segundo grupamento, formado pelas regiões Norte e Nordeste, predominaram em 2005 as faixas de mais baixas despesas per capita (até R$ 71,00 e R$ 71,00-R$ 97,00), com frequência rarefeita de casos localizados nas faixas intermediária e superior. Em 2015, diferente do primeiro grupamento, em que pese a ampliação de áreas com casos na faixa intermediária de R$ 97,00-R$ 133,00, permaneceu grande a extensão das áreas com municípios cujas despesas per capita se situem em faixas inferiores. Ainda que a faixa até R$ 71,00 tenha recuado significativamente no Nordeste, no período 2005/2015, sua presença é ainda marcante no Piauí e Maranhão. Na região Norte, essa faixa ainda persistia em 2015, abrangendo grande parte dos municípios do Pará, Amapá, Rondônia e Acre, apontando baixo crescimento da despesa per capita entre 2005 e 2010 nesses estados, conforme a Figura 2, a seguir.

FIGURA 2
Crescimento da despesa com recurso próprio per capita, Brasil, 2005-2015

Por outro lado, o crescimento da despesa municipal per capita com receitas próprias foi significativamente mais intenso entre 2005 e 2010 do que entre 2010 e 2015, embora territorialmente desigual para ambos os intervalos.

No período de 2005 a 2010, nas regiões Sul, Sudeste (exceto norte e nordeste de Minas Gerais) e metade inferior do Centro-Oeste, predominou uma intensidade de crescimento em faixas intermediárias que representaram uma expansão de 20% a 100% da despesa municipal per capita. Esse padrão se distingue da zona de continuidade entre a região Nordeste e a parte superior de Minas Gerais, que, a despeito de variações nas taxas de crescimento, incluem mais pontos na faixa de crescimento abaixo de 20% ou mesmo de crescimento negativo. Já na região Norte e na parte superior do Centro-Oeste, a presença de municípios com crescimento negativo ou abaixo de 20% é consideravelmente maior que no último caso, apesar da percepção de adensamentos de taxa de crescimento elevada, inclusive superior a 100%, como ocorreu em algumas partes do Amazonas.

Também no período que vai de 2010 a 2015, em que houve declínio geral das taxas de crescimento da despesa per capita, as variações regionais seguiram padrões distintos. Houve expansão das áreas com crescimento negativo ou baixo (até 20%) na região Norte, Mato Grosso do Sul e Goiás, que detinham taxas elevadas de crescimento no intervalo anterior. Novamente a metade superior de Minas Gerais se assemelhou ao Nordeste que, por sua vez, embora apresente casos com elevadas taxas de crescimento, incluiu áreas sem crescimento da despesa municipal per capita, como Maranhão e interior da Bahia. Mato Grosso e sudoeste do Pará apresentaram muitos casos de crescimento acima de 20%, incluindo alguns acima dos 100%, o que também ocorreu nas regiões Sul e Sudeste (metade inferior de Minas Gerais), onde predominaram faixas entre 20% e 100%. Vale destacar que, no Nordeste, à exceção das áreas aqui citadas, foi perceptível maior heterogeneidade em termos de taxas de crescimento, com vários casos em que municípios com maiores taxas de crescimento estavam próximos daqueles com crescimento de até 20%.

As Figuras 1 e 2 apresentam significativas variações regionais nos padrões de alocação da despesa municipal per capita com receitas próprias, porém, para a mensuração do grau de associação espacial, foi utilizado o Índice Global de Moran, conforme Tabela 1. Apesar da rejeição da hipótese nula, já que em todos os anos o índice foi estatisticamente significante, a correlação espacial da despesa se mostrou baixa, uma vez que inferior a 0,4. Entretanto, seu crescimento foi consistente no decênio, indicando um aumento de 27% para o papel do espaço na associação das variações e formação de padrões para despesas municipais com recursos próprios em saúde.

TABELA 1
Índice Global de Moran, Brasil, 2005-2015

Os resultados até aqui permitem afirmar que o impacto da EC 29/2000 não se deu de forma territorialmente homogênea quanto à ampliação das despesas municipais per capita com receitas próprias, mas indicam, em relação a 2005-2010, a desaceleração do crescimento entre 2010 e 2015. Para, contudo, responder à segunda questão deste trabalho, indicando projeções quanto à mitigação ou ao aprofundamento das desigualdades regionais detectadas, o teste Lisa possibilitou investigar uma eventual formação de clusters municipais, mediante associação espacial positiva entre a despesa per capita de municípios e a média de seus vizinhos de primeira ordem, seja em um nível superior à média nacional, seja em nível inferior, conforme a Figura 3.

FIGURA 3
Índice Local de Moran para a despesa com recurso próprio per capita, Brasil, 2005-2015

O primeiro cluster, formado por municípios e vizinhos convergindo para baixa despesa per capita, cobriu amplamente e de forma contínua a maior parte das regiões Norte e Nordeste, invadindo parte do norte e nordeste de Minas Gerais, mesmo com oscilações nas suas fronteiras ao longo do período. Especificamente no Nordeste, entretanto, o cluster baixo-baixo não foi percebido no extremo oeste baiano, sul do Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba. Já o cluster alto-alto apresentou aglomerados significativos, porém descontínuos e instáveis ao longo do período em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, embora também sejam percebidos de forma mais rarefeita no oeste de São Paulo, extremo oeste de Minas Gerais e em algumas áreas do Sul. Nas demais regiões do país, não foi detectada formação de clusters estatisticamente significantes, o que sugere nessas áreas maior heterogeneidade nas variações da despesa municipal per capita e menor incidência de fatores regionais.

Finalmente, foi também aferida a existência de clusters em termos do crescimento da despesa municipal per capita com receitas próprias para os períodos 2005-2010 e 2010-2015, conforme a Figura 4.

FIGURA 4
Índice Local de Moran da taxa de crescimento da despesa com recurso próprio per capita, Brasil, 2005-2015

Note-se que no período que vai de 2005 a 2010 não foram grandes as áreas correspondentes a clusters com crescimento ou redução espacialmente homogênea da despesa per capita, sendo possível destacar aglomerações do tipo baixo-baixo no noroeste do Amazonas e oeste do Mato Grosso do Sul, bem como do tipo alto-alto no leste do Mato Grosso e na faixa centro-sul do Pará. Já entre 2010 e 2015, houve ampliação simultânea das áreas dos dois clusters, o que sugere intensificação de desigualdades regionais sob fatores espacialmente localizados neste último intervalo. Um cluster baixo-baixo se formou cobrindo os estados do Amazonas, do Acre e de Rondônia (de forma contínua) e formando aglomerados no norte do Pará, Amapá e Tocantins, além de outros, mais descontínuos no Maranhão, no Piauí, na Bahia e em Minas Gerais. Em sentido oposto, expandiram-se os aglomerados do tipo alto-alto, indicando crescimento espacialmente homogêneo da despesa per capita no sudoeste do Pará e norte do Mato Grosso, bem como na fronteira entre este e Mato Grosso do Sul. Chama atenção a expansão deste último cluster, se considerada a desaceleração seguida de retração econômica verificada no biênio 2014-2015. As desigualdades regionais entre despesas municipais per capita com recursos próprios em saúde sofreram um aumento, portanto, na segunda metade da década abrangida por este estudo, a despeito do fato de que tal despesa agregada tenha crescido nacionalmente.

DISCUSSÃO

A concentração do processo de modernização econômica em partes específicas do território nacional configurou distintos padrões de desenvolvimento regional, acarretando disparidades entre capacidades de arrecadação tributária, tanto em sentido vertical - entre níveis de governo - quanto horizontal - entre entes vinculados ao mesmo nível, como no caso dos municípios (Rezende, 2010Rezende, F. “Federalismo fiscal: em busca de um novo modelo”. In: Oliveira, R.; Santana, W. (orgs.). Educação e federalismo no Brasil: combater as desigualdades, garantir a diversidade. Brasília: Unesco, 2010, pp. 71-88.). As raízes das desigualdades entre padrões de desenvolvimento regional remontam à formação dos complexos exportadores e de impulso à industrialização, que colocaram a região Sudeste e, dentro dela, o estado de São Paulo, como núcleo hegemônico modernizador ao qual as demais regiões tiveram que se ajustar (Neto, 1997Neto, L.G. “Desigualdades e políticas regionais no Brasil: caminhos e descaminhos”. PPP/Ipea, v. 15, 1997, pp. 41-99.). Se, por um lado, diferenças nas relações de trabalho e condições de vida das populações decorreram dessas desigualdades econômicas regionais, também o foram as capacidades estatais para responder às necessidades e demandas.

Uma vez tomando as capacidades fiscais como componente central nesse quadro, o presente estudo analisou a evolução da alocação de despesas em saúde realizadas com receitas próprias pelos municípios brasileiros após a vigência da EC 29. Sob os parâmetros definidos por essa emenda para destinação de recursos próprios de cada nível de governo, municípios deveriam gastar pelo menos 15% das receitas próprias no setor, porém a evolução do percentual médio alocado em saúde foi bem superior a esse patamar. Daí buscou-se responder a duas questões: (1) Tal crescimento das despesas municipais per capita em saúde com receitas próprias foi homogêneo nas diferentes regiões do país? (2) Eventuais desigualdades regionais entre essas despesas têm diminuído, se mantido ou aumentado no tempo?

Os resultados encontrados confirmam o crescimento nacional da despesa municipal per capita com receitas próprias em saúde no período 2005-2015, tendo os municípios brasileiros ampliado suas despesas com saúde a partir da EC 29/2000. Porém, respondendo à primeira questão, a intensidade desse crescimento foi consideravelmente desigual entre as regiões do país, estabelecendo-se dois padrões distintos em termos de ponto de partida e chegada. Em 2005, municípios do Norte, Nordeste e parte norte de Minas Gerais se concentraram em faixas inferiores de despesa per capita, enquanto na maioria dos municípios do Sul, Sudeste e Centro-Oeste se distribuíam entre faixas médias ou superiores. Mas em 2015, enquanto municípios vinculados a estas últimas regiões evoluíram majoritariamente para a faixa superior (> R$ 194,00), a maior parte daqueles situados no Norte e Nordeste ainda se concentrava nas faixas de despesa intermediária e inferior. A análise das taxas de crescimento confirmou esse perfil: mostra que elas foram menores no Norte e Nordeste entre 2005-2010, tendo sido mais afetadas pelo impacto da desaceleração do crescimento da despesa municipal per capita entre 2010 e 2015 se comparadas àquelas apresentadas pelo Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

A análise espacial aqui empreendida trouxe evidências de dependência espacial em áreas determinadas do território nacional, onde foi identificada a formação de clusters, realçando o crescimento do papel do espaço na compreensão do fenômeno aqui estudado entre 2005 e 2015. Um primeiro cluster, sob o padrão de despesa per capita baixa para municípios e média dos seus vizinhos, cobriu amplamente as regiões Norte e Nordeste, sugerindo que nessas regiões são fundamentalmente os fatores relativos ao desenvolvimento econômico e social que respondem pelo fenômeno. Embora menos extenso e descontínuo em algumas áreas da região Centro-Oeste, com respingos em partes do Sul e Sudeste, observou-se um segundo cluster sob o padrão de despesa per capita alta para municípios e seus vizinhos.

Em resposta à segunda questão que norteou este estudo, à agregação da análise das taxas de crescimento da despesa per capita somou-se a comparação da evolução desses clusters, representando padrões espaciais opostos, entre 2005 e 2010 e 2010 e 2015. Ambos os clusters apresentaram expansão no último intervalo, indicando o aprofundamento das desigualdades regionais no tempo, com destaque para a segunda metade do período estudado. Nesse caso, perderam principalmente os municípios nas regiões Norte e Nordeste, a despeito de políticas governamentais voltadas para seu desenvolvimento nas últimas décadas e da expansão econômica e crescimento no consumo das famílias a partir de medidas tomadas, sobretudo no governo Lula (Hissa-Teixeira, 2018Hissa-Teixeira, K. “Uma análise da estrutura espacial dos indicadores socioeconômicos do Nordeste brasileiro (2000-2010)”. Eure, v. 44, n. 131, 2018, pp. 101-24.). Os resultados sugerem que tal esforço não foi suficiente para impactar a alocação per capita das receitas municipais próprias com saúde.

O estudo permitiu, ainda, identificar áreas que não se comportaram tipicamente, considerando as macrorregiões em que se situam. No Nordeste, enquanto os níveis de despesa per capita foram notavelmente baixos em áreas do Maranhão e Piauí - transição entre a Amazônia e o semiárido nordestino, com baixo desenvolvimento econômico e social em relação à própria região (Hissa-Teixeira, 2018Hissa-Teixeira, K. “Uma análise da estrutura espacial dos indicadores socioeconômicos do Nordeste brasileiro (2000-2010)”. Eure, v. 44, n. 131, 2018, pp. 101-24.) -, o mesmo não ocorreu em áreas mais urbanizadas e desenvolvidas, como o litoral do Rio Grande do Norte e Paraíba, ou mesmo o extremo oeste baiano, que se beneficiou da expansão do agronegócio na década de 2000, tal como na região Centro-Oeste.

Por outro lado, percebeu-se clara correspondência entre os fenômenos detectados no semiárido do Nordeste e parte do norte e Vale do Jequitinhonha de Minas Gerais, reforçando a percepção de dependência espacial relacionada às características socioeconômicas (Romero, 2016Romero, J. A. R. “Análise espacial da pobreza municipal no estado de Minas Gerais: 1991-2000”. Anais do xiv Encontro Nacional de Estudos Populacionais da Abep. Caxambu, 2016.). Nessas áreas de Minas Gerais conservaram-se baixos níveis de despesa per capita, tendo crescido consideravelmente a frequência de municípios com dispêndio nas faixas inferiores, inclusive com crescimento negativo ou menor que 20%.

O Centro-Oeste também apresentou variações internas significativas, especialmente a partir da expansão das áreas de desenvolvimento socioeconômico ligadas à agropecuária e mineração, com vocação para a exportação e para o fortalecimento da infraestrutura logística (transporte e comunicação), o que coaduna na sua trajetória recente com a expansão da oferta de serviços de saúde (Albuquerque et al., 2017Albuquerque, M. V.; Viana, A. L. A.; Lima, L. D.; Ferreira, M. P.; Fusaro, E. R.; Iozzi, F. L. “Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016”. Ciência e Saúde Coletiva, v. 22, n. 4, 2017, pp. 1.055-64.). Nessa região foram identificadas grandes extensões com despesa pública per capita municipal na maior faixa considerada (acima de R$ 194,00), tal como em grande parte do Sudeste e Sul, com forte dependência espacial confirmada pela formação de cluster sob o padrão alto-alto.

Uma sugestão advinda dos resultados encontrados - ainda que esta escape aos objetivos do artigo - é de que a crise e a retração tenham impactado no aprofundamento das diferenças regionais quanto à despesa municipal per capita com receitas próprias em saúde, uma vez afetando as bases de transferências constitucionais e obrigatórias, e assim impactando consideravelmente os recursos à disposição dos municípios do Norte e Nordeste. Nesse sentido, ainda que tenha reduzido a divergência decisória entre as proporções das receitas próprias destinadas pelos municípios ao setor de saúde, a EC 29/2000 não produziu efeitos territorialmente equalizadores do ponto de vista dos valores per capita efetivamente alocados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As respostas construídas às questões formuladas neste trabalho deixam preocupações quanto à capacidade dos mecanismos de financiamento construídos no setor de saúde para superarem, mesmo que gradativamente, as desigualdades territoriais quanto aos níveis de oferta dos serviços. O componente responsável pela maior parte das receitas municipais para a saúde - oriundo das suas receitas próprias - não só se distribui desigualmente em dimensão territorial como seu efeito concentrador tem demonstrado resiliência nos últimos anos, constituindo mais um elemento que conspira silenciosamente contra o caráter nacional de um dos mais caros direitos conquistados com a Constituição de 1988.

Isso se torna mais preocupante considerando decisões políticas recentes que estabeleceram um Novo Regime Fiscal (EC 95/2016), com efeitos ainda mais restritivos sobre a destinação de recursos federais ao sus e que poderá aprofundar desigualdades entre capacidades locais na sua implementação. Assim, a exploração empreendida neste trabalho, no que se refere à distribuição territorial das despesas municipais executadas com receitas próprias em saúde, se revela no duplo sentido conferido pelo seu título à diferença: se, por um lado, tal distribuição territorial tem sido decisiva para a sustentação do financiamento do sus, vis-à-vis ao comportamento dos demais níveis de governo, por outro - considerando as já referidas desigualdades entre capacidades fiscais locais - tem contribuído para manter, quando não aumentar, as distâncias entre os brasileiros no exercício do direito à saúde.

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  • 1
    Este trabalho é produto da pesquisa “Estudo dos determinantes e impactos do gasto municipal em saúde”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2019
  • Aceito
    13 Nov 2020
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