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As caixas-pretas de Amós Oz

Amos Oz’s Black Boxes

RESUMO

Obra-prima de Amós Oz, A caixa-preta é um romance epistolar que conta a história de Alex, Ilana e Michel, um triângulo amoroso repleto de ressentimentos. O objetivo do presente artigo é entender como Oz explica, através da história, a conturbada sociedade israelense dos anos 1960. Trazendo alegorias para temas como religião, fanatismo, memória e questões étnicas, deciframos como Oz enxerga uma nação à beira do colapso social.

PALAVRAS-CHAVE:
Israel; literatura israelense; Amós Oz

ABSTRACT

Amos Oz’s masterpiece, The Black Box is an epistolary novel that tells the story of Alex, Ilana and Michel, in a love triangle filled with resentments. The purpose of this article is to understand how Oz explains the troubled Israeli society of the 1960s, with his book. Bringing allegories to themes such as religion, fanaticism, memory and ethnic issues, we decipher how Oz interprets the ruptures of a nation on the brink of social collapse.

KEYWORDS:
Israel; Israeli literature; Amos Oz

INTRODUÇÃO

Iniciamos este artigo com a análise do título da obra sobre a qual escreveremos. A caixa-preta (1986), de Amós Oz, parece situar-se entre dois importantes elementos constitutivos do próprio texto apresentados já no título, quais sejam, o mistério e a tragédia. Nesse contexto, propomos que Oz estabelece a tentativa de diálogo entre essas duas características que marcam, em perspectivas históricas e sociológicas, a memória judaica, a sociedade israelense e o próprio Oriente Médio.

A ideia de caixa-preta permite caminhar entre essas linhas, a tragédia e o mistério, que eventualmente vão se tocar. Tanto na ciência como em certas tradições filosóficas, a noção de caixa-preta estrutura uma espécie de processo de acúmulo de conhecimento, que acaba por produzir cultura científica e epistemológica. O pesquisador, o cientista e o pensador vão atribuir-se a função de criar sistemas complexos e quase ininteligíveis. São eles e seus pares que dominam a linguagem, tanto da ciência como da pesquisa. Estas, por sua vez, permanecem como um mistério, ininteligível para a maioria do público. Os leigos aguardam a tradução ser efetivada por especialistas que supostamente têm as chaves para que a caixa-preta seja aberta.

Temos, por exemplo, o debate sobre imagem na obra de Vilém Flusser ([1983] 2013)Flusser, Vilém. Towards a Philosophy of Photography. Londres: Reaktion Books, [1983] 2013 [ed. bras.: Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002].. O filósofo se propõe a pensar a criação de uma nova linguagem no mundo contemporâneo: a linguagem fotografia, pois é o próprio fotógrafo que vai produzir, com sua perspectiva, o ambiente que o cerca. Em um complexo processo de mediações e reflexões, o resultado final da obra surge como se fosse, efetivamente, uma cópia da realidade, e não a produção deliberada de um mediador. A imagem do fotógrafo produz, nas palavras de Flusser, uma “pós-história”, que é criada a partir de duas “caixas-pretas”: a da tecnologia e a da percepção.

Os processos aqui envolvidos são misteriosos e difíceis de ser compreendidos pelos homens e mulheres que servem de modelos dessas obras. Tanto no funcionamento da máquina fotográfica, na maneira como aquele objeto é capaz de aprisionar imagens, como na intermediação do fotógrafo, que escolhe como as imagens serão capturadas.

A princípio, aquilo que parece um exercício de representação objetiva da realidade para um observador comum é permeado por subjetividades que irão influenciar diretamente a maneira como essas imagens serão capturadas e imobilizadas. E essas subjetividades não são percebidas por aquelas que estão retratadas nas fotografias. Em outras palavras, o desconhecimento dessas caixas-pretas transforma a percepção da fotografia em representação fiel da realidade sem qualquer tipo de mediação, seja tecnológica, seja de percepção humana do fotógrafo.

Nesse sentido, comparando-se com o que o fotógrafo produz, Amós Oz apresenta no seu livro A caixa-preta uma Israel cercada por realidades e símbolos aparentemente perenes, fixos e imutáveis. São referências tidas como definitivas e naturais as que atravessam as páginas do texto sobre o qual aqui refletimos.

De fato, no início da obra, somos apresentados a uma imagem e a uma realidade de Israel difícil de ser desafiada. Trata-se de um país vitorioso, estabelecido a partir de um judaísmo virtuoso e moralmente superior (Sand, 2014Sand, Shlomo. A invenção da Terra de Israel. São Paulo: Benvirá, 2014.). A dimensão secular, nacional e coletivista desse país aparenta estar livre de contradições. Israel e o sionismo representados no início do livro parecem ser os únicos futuros possíveis para um passado recheado de tragédias e de dores.

Essa identidade teria surgido das cinzas dos que decidiram permanecer ali até o final na diáspora, especificamente na diáspora europeia. No início de A caixa-preta, Amós Oz parece apresentar um judeu novo, hierarquicamente diferenciado e forte. Alguém que seria invencível, perfeito e heroico.

Nem Deus nem a história submeteriam esse novo judeu. Livre e desimpedido da memória que o cerceara por séculos, o judeu de Eretz Israel surge no princípio do texto como um monumento que desafiava os sofrimentos e dores do exílio. Escravizados pela diáspora e por memórias de dor e escravização, eles eram um povo sem criatividade ou força. Ou, como diz sobre a necessidade do divórcio com a história judaica Yudka, personagem do romance O sermão e outras histórias do escritor Haim Hazaz:

Eu simplesmente proibiria o ensino de história judaica às nossas crianças. Por que diabos ensinar-lhes sobre a vergonha de nossos antepassados? Eu apenas lhes diria: meninos, desde o dia em que fomos exilados de nossa terra nós temos sido um povo sem história. Acabou a aula. Saiam daqui e vão jogar futebol. (apudYerushalmi, 2011Yerushalmi, Yosef Hayim. Zakhor: Jewish History and Jewish Memory. Seattle: University of Washington Press, 2011., pp. 152-3)

Ocorre que a narrativa do livro se inicia justamente em meio a fases de profunda desconstrução dessa nova “época nacional judaica”. Se as contradições do judaísmo secular e de Israel eram, no surgimento do Estado, invisibilizadas pela ideologia sionista, Oz nos apresenta no texto o momento em que essas referências são desafiadas. Quando a perenidade desse “novo judeu secular” se mostra frágil, superável e passível de ser derrotada, Oz tenta explicitar as estratégias e dinâmicas dos grupos que se estabeleceram, no decorrer da primeira metade do século XX, como “criadores do sionismo”, de uma nova cultura judaica e do próprio Estado de Israel.

Tais dinâmicas foram produzidas pelos que imaginaram e arquitetaram a sociedade israelense. Aqui, o autor propõe abrir a caixa-preta de A caixa-preta, expondo as fraquezas e as finitudes de um projeto que se mostrava forte, perene e eterno. Nesse contexto, Amós Oz nos leva a uma visita reveladora e perturbadora às descontinuidades e às rachaduras do Estado judeu. Ele faz isso através da apresentação de lugares de instabilidade e angústia típicos dessa sociedade israelense. Esses lugares são inimagináveis nas lentes e nas penas dos criadores do sionismo. Oz nos conduzirá, em sua obra, a abrir caixas-pretas de uma sociedade que começa a produzir questões radicais sobre seu passado e suas possibilidades de futuro.

Para além das caixas-pretas misteriosas de Flusser, Amós Oz quer apresentar outra dimensão desse termo que dá título à obra. Nas páginas do livro há certo sentimento de excepcionalidade e urgência que nos remete a outra caixa-preta - aquela que está dentro dos aviões e que é aberta somente em caso de desastres, para que se possam saber os motivos que levaram o avião a cair.

Através dessas caixas-pretas podemos conhecer as últimas palavras do piloto e do copiloto. Em certo sentido, Oz parece trazer para a narrativa um objeto que só se abre quando não há mais ninguém que possa contar a história, quando a morte silenciou a todos que podiam explicar o que houve, porque a viagem deu errado, porque o que parecia um voo tranquilo acabou em tragédia.

Apenas quando refletimos sobre os seus resultados ou quando encaramos uma tragédia é que corremos a abri-la. Somente nesses momentos elas parecem fazer sentido. Em A caixa-preta, Oz nos leva do mistério à tragédia, ao desmontar uma sociedade que parece rígida e fixa. Uma sociedade que funcionava, a partir da metáfora flusseriana, como que de forma mágica e que se transforma, seguindo a narrativa do acidente, em algo que tem as contradições e as quebras expostas.

É sobre isso o livro de Oz: sobre uma sociedade que se constitui em acidente; sobre uma perspectiva harmônica que desaparece; sobre um país que tenta juntar cacos em um processo de implosão social, cultural e política. Desconstruindo os tijolos e expondo as dores antes indizíveis, o livro de Amós Oz nos fala sobre processos longos e lentos, justamente quando estão se acelerando.

Vendo transformações ocorrerem rapidamente, como em falhas geológicas antes dos terremotos, o autor nos conta as histórias de Alex, Ilana e Michel como se estivesse narrando, ao mesmo tempo, a história de uma família, de uma tribo e de uma nação. Nada parece ficar em pé nesse processo, nem sequer a tragédia e o mistério, elementos que parecem tão caros ao autor no início do texto.

O ROMANCE EPISTOLAR E A COMUNIDADE DE AFETOS

A noção de que pertencemos a uma “comunidade humana” (Baumann, 2003Bauman, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.), filosoficamente irmanada, que compartilha dores e angústias, amores e perdas, sucessos e alegrias, é relativamente recente na história da cultura do Ocidente. Trata-se de uma “invenção”1 1 Utilizamos aqui o conceito de invenção das tradições, do trabalho homônimo de Hobsbawm e Ranger. “Tradições são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória” (Hobsbawm; Ranger, 1984, pp. 12-3). que tem, na melhor das hipóteses, 250 anos, já que a ideia da existência de afetos universais remonta aos idos do XVIII. O afeto como valor positivo constituiu-se, pois, ainda como uma espécie de excentricidade do início da modernidade, que surge como produto de um mundo iluminista, estabelecido somente após o advento da Revolução Francesa a partir de seus processos, produtos e consequências políticas, culturais e sociais.

Em A caixa-preta, publicada originalmente em 1986, Amós Oz decide produzir uma obra baseada em trocas de cartas, o chamado romance epistolar. Os romances epistolares são característicos justamente de um mundo que descobre similaridades entre diferentes pessoas, seus amores e suas dores. Como aponta Lyn Hunt (2009Hunt, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras , 2009., p. 179), “os romances de trocas de cartas possibilitam a percepção de alteridade em um mundo em que os direitos humanos e a própria percepção do outro já estavam no horizonte”. Como exemplo, a autora traz o livro de Rousseau Júlia ou a nova Heloísa, publicado em 1771. Para Hunt, a obra estabelecia uma espécie de início do conceito de “comunidade de afetos” para seus leitores. Estes acabavam por se formar política e ideologicamente em um mundo novo onde era possível constituir valores, ideias e sentimentos morais. Gentes distantes pareciam se observar e se compreender a partir da noção de pertencimento a uma nova gramática moral, uma comunidade forjada na leitura de textos que contavam sobre sentimentos profundamente conhecidos e compartilhados por quem os lia:

Romances como Júlia levavam os leitores a se identificar com personagens comuns, que lhes eram por definição pessoalmente desconhecidos. Os leitores sentiam empatia pelos personagens, especialmente pela heroína ou pelo herói, graças aos mecanismos da própria forma narrativa. Por meio da troca fictícia de cartas, em outras palavras, os romances epistolares ensinavam a seus leitores nada menos que uma nova psicologia e nesse processo estabeleciam os fundamentos para uma nova ordem política e social. Os romances tornavam a Júlia da classe média e até criados […] [pessoas] iguais e mesmo superiores a homens ricos. (Hunt, 2009Hunt, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras , 2009., pp. 38-9)

Os romances epistolares eram, portanto, parte fundamental na construção da ideia de “comunidade de afetos”, o que permitirá que o processo para se estabelecer a percepção da “igualdade entre os homens” ocorra de maneira mais consolidada, sentida e perene, tal qual Lyn Hunt defende:

Meu argumento fará grande uso da influência de novos tipos de experiência, desde ver imagens em exposições públicas até ler romances epistolares imensamente populares sobre o amor e o casamento. Essas experiências ajudaram a difundir as práticas da autonomia e da empatia. (Hunt, 2009Hunt, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras , 2009., p. 43)

Nesse ponto, Lyn Hunt dialoga com Benedict Anderson (2008Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), que percebe que os nacionalismos modernos se constituem a partir de um processo complexo de formação dessas “comunidades imaginadas”. Lyn Hunt, por sua vez, observa um processo semelhante e paralelo de formação de “comunidades imaginadas”, não como comunidade nacional, mas como “comunidade de afetos”, que estabelecerá condições para a formação de um caldo de cultura que construirá a ideia de que é possível que todos os homens desfrutem e gozem de direitos universais, ou seja, a ideia dos direitos humanos:

O cientista político Benedict Anderson argumenta que os jornais e os romances criaram a “comunidade imaginada” que o nacionalismo requer para florescer. O que poderia ser denominado “empatia imaginada” antes serve como fundamento dos direitos humanos. É imaginada não no sentido de inventada, mas no sentido de que a empatia requer um salto de fé, de imaginar que alguma outra pessoa é como você. (Hunt, 2009Hunt, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras , 2009., p. 30)

Em A caixa-preta, Oz opta por produzir um complexo cenário familiar, onde as cartas se apresentam como metáfora da vida do Estado de Israel no período imediatamente depois da Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. No texto, personagens tecem suas relações primordialmente a partir das missivas enviadas. Dentre eles, há os que já tinham tido relacionamentos pessoais anteriores e os que iniciam relações na distância da letra escrita. Esses são desconhecidos e estabelecem diá­logos, por vezes doloridos, desafiadores e ameaçadores, a partir de longas trocas de cartas.

Nota-se que é justamente quando o tecido social israelense parece dar sinais de esgarçamento e rupturas que o autor opta pelo retorno do que Lyn Hunt chama de construção da “empatia imaginada”. Mexendo em fios e trilhas típicas da sociedade e os percorrendo, de forma cuidadosa, Oz estabelece relações entre estranhos e conhecidos, amigos e inimigos, amantes e ex-amantes, em que ele busca compreender como, apesar de todas as diferenças e quebras, essas pessoas podem ainda compartilhar algum sentimento de “pertencimento e comunidade”.

Nos anos 1980, quando sai A caixa-preta, as tensões entre mizrachim2 2 Termo usado para se referir a judeus vindos dos países árabes. e ashkenazim,3 3 Termo usado para se referir a judeus provenientes da Europa central e oriental. seculares e tradicionalistas, entre direitistas e esquerdistas, árabes e judeus, chegam a níveis próximos da explosão social. Israel, depois de quase vinte anos ocupando os territórios palestinos conquistados em 1967,4 4 Faixa de Gaza e Cisjordânia, conquistadas em 1967, com população árabe palestina e que gradativamente são ocupadas por militares e por colonos religiosos e nacionalistas. Ver: Zerthal; Eldar (2007). parece estar dividida, definitivamente, em dois campos distintos e frontalmente adversários. Dois campos que se percebem de forma radicalmente distinta e que imaginam Israel e o judaísmo a partir de perspectivas contraditórias e, ao que tudo indicava, irreconciliáveis (Zerthal; Eldar, 2007Zerthal, Idith; Eldar, Akiva. Lords of the Land. The War Over Israel’s Settlements in the Occupied Territories, 1967-2007. Nova York: Nation Books, 2007.). O quadro político apresentava, na Israel da década de 1980, dois mundos que pareciam definitivamente pretender excluir o outro para sobreviver. Em uma espécie de sinalização literária e política, Amós Oz retorna justamente para os textos epistolares, o que não parece ser uma opção casual.

Em A caixa-preta quase não há encontros e, quando os há, eles são periféricos e muito simbólicos. Encontros físicos parecem funcionar quase como sombras da realidade. São como fantasmas que reproduzem, em caricatura, uma realidade mais complexa e plural, difícil de ser vista e entendida. As cartas, os diálogos a distância, muitas vezes curtos e diretos, parecem ser, no texto de Amós Oz, a luz principal, o âmago e a alma dessas contradições perenes típicas da então sociedade israelense.

Em uma inversão aguda da alegoria do mito da caverna de Platão,5 5 A ideia platônica das luzes e da consciência a serem buscadas pela saída da caverna parece invertida no texto de Amós Oz, no qual a “caverna” das letras liberta o homem. Ver: Kothe (1986). a luz na obra em questão está nas cartas. A realidade, por outro lado, produz apenas sombras. No texto, a realidade concreta parece produzir apenas trevas e rompimentos. As cartas revelam, enquanto as outras relações mais escondem e criam obstáculos. É a leitura do outro que nos faz conhecer as verdadeiras relações e angústias dos personagens dos livros e, por consequência, da própria sociedade israelense de então. É a partir das cartas, da leitura das cartas, que conhecemos as histórias de cada personagem: seus amores e suas dores, suas paixões e suas perdas.

Oz fala sobre pessoas, as finas relações interpessoais e individuais, ao mesmo tempo que analisa perspectivas políticas, sociais e coletivas que acabam por condicionar e influenciar as relações dessas pessoas com o mundo que as cerca, com a sociedade construída por elas, com o país em que vivem ou viveram.

CAIXA-PRETA DE PERSONAGENS

Há três personagens centrais em A caixa-preta. Os dois primeiros são Alex, um militar, e Ilana, uma mulher (o terceiro será Michel, futuro marido de Ilana, que aparecerá em breve na história). O militar acaba, na trama, por se apaixonar por Ilana. Ele é apresentado no texto quase como um nazir,6 6 O voto de nazireado foi regulamentado na Torá, no Livro de Números 6:1. O nazireu devia abster-se de tomar certos alimentos e bebidas fermentadas, de cortar o cabelo e tocar em cadáveres, além de não comer carne em muitas circunstâncias. um ascético na concepção judaica da palavra. Sua relação com o mundo é, nesse sentido, perpassada por missões e obrigações de ordem quase religiosa. No caso de Alex, e isto é fundamental que se note, trata-se de “uma religião civil” (Traverso, 2012Traverso, Enzo. O passado, modos de usar. História, memória e política. Trad. de Tiago Avó. Lisboa: Unipop, 2012.), necessariamente desconectada de referências de uma sacralidade deísta ou mesmo metafísica. A religião de Alex estava fortemente vinculada às culturas sionista e israelense.

Em sua percepção de mundo, há ordens e hierarquias muito bem estabelecidas, que devem ser estritamente seguidas e respeitadas. Já os prazeres carnais e mundanos devem ser evitados. Nessa perspectiva “quase religiosa”, tais prazeres acabam por desvirtuar missões e deveres do “novo homem judeu”, produzido nas hostes da ideologia sionista, criado na terra de Israel e que estaria, a partir de agora, a serviço do povo judeu e do Estado de Israel.

Para o comandante ascético, as guerras, as memórias de missões e as hierarquias estruturam um mundo praticamente sem contradições ou quebras internas. A terra, a pátria e o Estado são percebidos a partir de uma lógica linear que é ao mesmo tempo totalmente secular e, como vimos acima, estruturalmente religiosa. Em uma espécie de “contrato com o passado” (Yerushalmi, 2011Yerushalmi, Yosef Hayim. Zakhor: Jewish History and Jewish Memory. Seattle: University of Washington Press, 2011.), os méritos das gerações futuras eram relacionados aos acertos das gerações passadas. Nessa perspectiva, há um vínculo atávico entre gerações no Estado Judeu (Sternhell, 1998Sternhell, Zeev. The Founding Myths of Israel. Nova Jersey: Princeton University Press, 1998.), em que acertos garantem méritos futuros, enquanto erros levarão a uma consequente degeneração.

Essa lógica de méritos e prêmios, desvios e desgraças, acabava colocando o comandante como líder de uma espécie de “comunidade imaginada” (Anderson, 2008Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), que substituía as tradicionais lógicas de cumprimento de mitzvot e averot (mandamentos e pecados) do judaís­mo tradicional. Tal comunidade (ishuv), imaginada por gente como Alex, se arvora em ser a garantidora da continuidade e da existência do povo judeu em sua terra ancestral, no caso, na Terra de Israel.

Dessa forma, havia uma relação a ser construída com os mais novos, tanto com os recém-chegados (novos imigrantes, olim chadashim) quanto com aquelas populações não educadas nas hostes das elites sionistas (escolas específicas e movimentos juvenis). Esses judeus de origens diferentes (religiosos, sobreviventes do Holocausto ou mizrachim) também estavam no alvo dos grupos de pioneiros (chalutzim). Esses grupos deveriam, pois, ser reeducados agora pelo exército.

Em De amor e trevas, sua obra autobiográfica, Amós Oz escancara as diferenças entre o que chama de “comunidade organizada”, aqueles sionistas pioneiros, dotados de potência, organizados em uma hierarquia social muito bem definida, e outros grupos de judeus que, nos primeiros anos do Estado de Israel, não fazem parte desta. Interessante perceber como se dá a construção do lugar social dos “judeus orientais”, dos “sobreviventes da Shoá” e dos dissidentes políticos no ishuv, a comunidade imaginada e liderada por pioneiros como Alex, de A caixa-preta:

Em contraste com essa comunidade organizada, do outro lado da cerca estavam os dissidentes terroristas, e também os ultrarreligiosos de Mea Shearim, os comunistas “inimigos de Sião”, e ainda um emaranhado de intelectualoides, carreiristas, artistas egocêntricos do tipo cosmopolita decadente e com eles todo tipo de excêntricos, os individualistas que se safavam de toda responsabilidade, e niilistas indecisos, e iekes que ainda não tinham conseguido curar do seu “iekismo”, e esnobes anglófilos de todos os calibres, e sefaraditas ricos e afrancesados que nos pareciam um tanto maneirosos demais como maitres, e iemenitas, e magrebinos, e curdos, e os que vieram de Salonica e da Georgia, todos eles nossos irmãos, de verdade, todos eles extremamente promissores, material humano de primeira linha, verdade mesmo, mas não tem jeito, ainda vamos precisar investir neles muito esforço e muita paciência. Afora todos esses, havia ainda os refugiados e ma’apilim, os salvos por milagre, os sobreviventes, trapos humanos, e para esses geralmente eram reservadas compaixão e certa repulsa: pobres coitados, refugos do mundo, com toda a sua cultura e inteligência, quem mandou ficarem esperando por Hitler e não virem logo para cá? (Oz, 2016_______. De amor e trevas. Trad. de Milton Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 230, grifos nossos)

Segundo o trecho acima, grupos mais ou menos legítimos ingressam numa sociedade israelense em formação ou a lideram. Desde os judeus europeus dos grupos da esquerda sionista até os sobreviventes do Holocausto, Amós Oz apresenta uma Israel funcionalmente construída. Populações específicas serão a ela integradas de acordo com etapas e processos cuidadosamente construídos, em que as estruturas migratórias, a escola e o exército servem como entidades preparadoras para uma inserção menos conflituosa e extremamente autoritária na sociedade hebraica a surgir na Palestina.

Nessa realidade, é importante notar que Ilana, a mulher por quem o comandante Alex se apaixona, é uma soldada. Ela serve justamente no batalhão que recebe ordens dele. Essa mulher se encontra em uma situação de múltiplas opressões. A primeira tem relação com a citada hierarquia militar: ela está sob o comando do homem pelo qual se interessa. Em carta para Alex, ela relembra: “A maldade gélida que emana de você como um brilho polar azulado e que o tornou odioso a ponto da histeria para as outras moças do batalhão - foi isso que prendeu o meu coração. Seu ar de domínio indiferente” (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., p. 152).

Uma segunda opressão tem a ver com a relação de Ilana com sua história familiar. Aqui, podem ser vistas as diferenças fundamentais entre ambos a partir dos respectivos passados, de suas respectivas origens. O militar nazir tem a história contada de maneira mais detalhada no livro. Sobre ele é possível saber quase tudo. É filho de um homem russo, um quase-nobre que chega à Palestina em meados dos anos 1920. Sua chegada a Eretz Israel se dá por um misto de necessidades materiais e objetivos ideológicos. Aqui, o sionismo é uma referência importante. Ao mesmo tempo, busca um lar nacional e a conquista do Oriente, típica do discurso “aventureiro colonialista”.

Entretanto, há de se notar que existem também outras motivações. A Revolução Russa está no horizonte, e o pai de Alex não parece estar ligado às forças revolucionárias. Também se devem levar em conta questões de sobrevivência ainda mais explícitas, já que o antissemitismo russo, presente desde muito tempo, se fortalecia em momentos de crises. É importante perceber que podemos, pelo texto, seguir suas pegadas em direção ao passado do comandante. Sabemos de onde ele veio, a história de seu pai. Sabemos o que ele faz hoje e o que seu pai fazia.

Por outro lado, temos poucas informações sobre Ilana. Ela é apresentada como uma espécie de sombra, um elemento quase sem identidade e sem conexões que a expliquem de forma mais profunda. A mulher aparece desconectada de sua própria história. Não somos apresentados, de início, às suas origens familiares. Tampouco somos informados de onde ela vem, os motivos de sua chegada a Israel, e não podemos acompanhar sequer a história de sua família. Sabemos apenas que seus pais foram da Polônia para Israel e morreram quando ela era ainda muito jovem. Sua origem também pouco interessa aos outros personagens. Em dado momento, Ilana escreve uma carta a Alex: “Lembrei que você jamais pediu para ouvir sobre minha infância na Polônia e em Israel, e eu tinha vergonha de contar” (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., p. 152).

Como se fosse uma sombra, a mulher deixa poucas pegadas, sua família surge como uma entidade quase fantasmagórica. Não sabemos de onde eles vieram, não conhecemos bem seu passado. A companheira do comandante surge sozinha e “desenraizada” nas páginas do livro de Oz (Todorov, 1999).

Nesse sentido, Ilana pode ser compreendida como a metáfora da diáspora proposta pelo sionismo hegemônico de então. Ben-Gurion, primeiro-ministro israelense da fundação do Estado, chegava a dizer que “o judeu diaspórico havia se ‘mumificado’”.7 7 Ben-Gurion, 1965, pp. 48-9. Ele afirmava que na diáspora e nesses judeus não havia vida nem mesmo história. Eram um grupo sem passado, ou pior, um passado que não valia a pena ser lembrado. O passado bíblico e o presente sionista eram heroicos. Fora isso, é como se houvesse apenas silêncios crivados de sombras, perseguição e martírio (Yerushalmi, 2011Yerushalmi, Yosef Hayim. Zakhor: Jewish History and Jewish Memory. Seattle: University of Washington Press, 2011.).

Foram esses “judeus mumificados” que, em última instância, tinham caminhado pelas trevas da diáspora até seu trágico desfecho: o Holocausto. Nesse contexto, a experiência judaica do exílio (europeu) não deixa pegadas, justamente por não ter deixado história. Por caminharem entre a “história dos outros”, a experiência judaica é experiência de fantasmas, não deixando nem marcas nem sinais.

A função dos pioneiros que chegaram para construir (e se reconstruir) na terra de Israel era muito específica. Chegados antes e adaptados ao novo lar, eles deveriam educar os outros, aqueles que decidiram permanecer no exílio, na galut, esses outros que lá permaneceram, segundo a narrativa sionista, até que as portas de Auschwitz foram abertas (Eban, 1984Eban, Abba. My People: The Story of the Jews, v. 1. 7. ed. Nova York: Random House, 1984.). Acusados de não terem percebido que a terra queimava aos seus pés, foram para Eretz Israel apenas depois que o massacre havia sido concretizado.8 8 Utilizamos aqui a imagem de Zeev Jabotinsky, liderança revisionista sionista. Ele afirma que a solução étnica e nacional deveria substituir as referências diaspóricas universalistas. Referências de pessoas que, segundo Jabotinsky, não perceberam que “a terra queimava sob seus pés” e decidiram permanecer até que as coisas ficassem insuportáveis. Ver: Sand, 2014, pp. 236-300. O que sobrara da diáspora judaica deveria ganhar historicidade em Israel, pelas mãos dos que lá já estavam.9 9 Esse debate sobre os judeus europeus e a memória do Holocausto é reincidente na obra de Oz. Uma das referências é justamente a figura da mãe do autor, Fanya, que surge de maneira explícita em seu livro autobiográfico De amor e trevas. Fanya sonha em retornar a um mundo que naufragou sem deixar muitas marcas. Esse desenraizamento de alguém que sonha em voltar a um lugar que não existe mais acaba fazendo Fanya entrar em profunda depressão e, por fim, a leva ao suicídio. Ver: Oz (2016).

Somos, pois, informados apenas de que Ilana é uma soldada comandada pelo marido. A mulher, ao que o texto indica, tem uma história sexual maior do que a de Alex. Pelo menos é isso que as primeiras páginas já deixam claro. Se ele é apresentado como um quase asceta, ela aparece como mundana. O comandante e a soldada acabam se casando. Em algum momento, as supostas traições da mulher fazem com que o militar se separe de sua soldada. O nazir e a mundana se desencontram já nas primeiras páginas do livro. Ela engravida e ele não acredita (ou não aceita) que o filho seja dele.

O ex-militar promove, então, uma série de despedidas. Ele deixa a mulher, abandona seu filho antes de este nascer, larga as fileiras do exército, sai de Israel e acaba por se transformar em um escritor renomado, um intelectual, cujo tema principal de análise passa a ser - o que não chega a surpreender - o fanatismo, especificamente o fanatismo religioso. A mulher, por outro lado, permanece em Israel. Tem o filho, um dos motivos da discórdia com o comandante, e acaba por se casar novamente.

Aqui, surge o terceiro personagem, o novo marido de Ilana. De fato, trata-se de um perfil relativamente raro, até esse momento, nas obras de Amós Oz. Seu nome é Michel. Ele é um judeu vindo da França, um novo imigrante (Ole chadash) de origem oriental, um judeu sefaradita. Apesar de vir da França, sua real origem, seu passado, está no norte da África, mais especificamente na Argélia.

Michel constitui-se o pied-noir (literalmente, pé-negro) da história. Não é um francês completo, por isso um pied-noir. Ao mesmo tempo, em Israel ele não é visto como familiar, pois não se constitui, na perspectiva das elites israelenses, como um sabra10 10 Fruta do deserto espinhosa por fora e doce por dentro, termo usado para distinguir judeus nascidos em Israel daqueles da diáspora. completo.11 11 Referimo-nos aqui à mesma lógica proposta por Fanon, em seu livro Pele negra, máscaras brancas, de ser “mal olhado”, de ser percebido torto, a partir da lógica do outro, do colonialismo, do branco. Ver: Fanon (2008). Michel é visto como um homem sem lugar por franceses cristãos (por ser argelino) e por sionistas askenazitas (por ser oriental). Está em um lugar de passagem. Enfraquecido no imaginário político, é, entretanto, um personagem que guarda em si gramática cultural e política, que será muito útil no horizonte israelense que se consolida diante dos olhos de todos.

Toda a lógica produzida pelos judeus askenazitas - a liberdade, o exército, a necessidade de um país democrático e socialista - é desafiada por Michel. Ele chega a Israel com outra proposta e outra linguagem. Michel vem com outro vocabulário e outra língua. Ele é discriminado e desprestigiado, mas, ao contrário de Ilana, tem história. Tem uma história de família, tem origem, e faz questão de sinalizar que mantém sua tradição.

Se no socialismo nacionalista de Alex (o militar que se tornou pesquisador do fanatismo), a história judaica está completamente liberada da ideia de Deus e da providência divina, na perspectiva de Michel, Deus volta para a história e estabelece (ou restabelece) fortes vínculos com Israel e com o povo judeu. Ele diz: “enquanto as leis do país continuarem a não seguir as leis da Torá, o Messias do qual ouvimos nitidamente os passos continuará aguardando à porta. Não entrará em nossa casa” (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., p. 172).

Contudo, não é apenas Deus e o socialismo que afastam Alex e Michel, também há desencontros na geografia de ambos. Para Alex, Tel Aviv e a Israel secular são o centro da identidade judaico-israelense. Há, na perspectiva desse personagem, um divórcio, uma ruptura, com as noções bíblicas da “Israel imaginária” (Gherman; Klein, 2019Gherman, Michel; Klein, Misha. “Entre ‘conversos’ e ‘desconversos’: o caso da influência da nova direita brasileira sobre a comunidade judaica do Rio de Janeiro”. Estudios Sociales Del Estado, Buenos Aires, v. 5, n. 9, jan. 2019, pp. 101-23.), ideia esta típica dos judeus tradicionalistas e religiosos. Para Michel, por outro lado, a geografia israelense produz exatamente o caminho inverso.

Seu caminhar leva à Israel bíblica. Em vez de abandonar essa terra ou, simplesmente, adaptá-la, ele a busca. É sobre ela que sonha, a Israel bíblica que ele tem como referência de lugar e de destino. Sua geografia sai da Israel de Tel Aviv e se desloca para a Israel que tem Jerusalém como centro.

A Israel acalentada pelas preces na diáspora, pelas esperanças piedosas de retorno e pelo choro nostálgico de toda uma tradição. Em outras palavras, para Michel, Israel está para além da linha verde de 1967,12 12 Linha que marca a fronteira entre o armistício de 1949 e os territórios palestinos conquistados em 1967. e isso também é motivo de conflito entre os dois homens, o que fica explícito nas cartas de Alex para Michel:

Daí a vontade popular de destruir e exterminar o que temos, para abrir caminho até regiões de redenção que jamais existiram e não são sequer possíveis. Sacrificar alegremente nossas vidas, em proveito de algo falsamente mágico que nos parece uma “Terra Prometida”. Um tipo de miragem considerada “superior à vida”. […] Dê uma olhada em sua filha de vez em quando: esse é todo o esplendor oculto. Não há outro. É uma vergonha eu gastar minhas palavras com o senhor. O senhor a matará. Assassinará tudo o que se move à sua volta. E chamará a isso de “as dores da vinda do Messias” e dirá que é a aceitação do julgamento divino. (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., p. 217)

Os judeus askenazitas, que estavam no poder até a Guerra dos Seis Dias, acabaram por produzir a vitória sobre os inimigos árabes e a consequente ocupação dos territórios palestinos. Cidades como Belém, Nablus e Chevron não estavam na gramática política da elite cultural de Israel durante a guerra. Mas eram elas que faziam pulsar os desejos das novas elites que surgiam naquela nova época que se descortinava diante dos olhos dos personagens de A caixa-preta.

Michel e seus companheiros orientais parecem não entender bem a fixação dos judeus nacionalistas seculares e askenazitas com Tel Aviv. Para o judeu mizrahi, a Israel moderna e cosmopolita não estava completa. As cidades recentemente liberadas das mãos dos árabes em 1967 é que davam sentido à existência de Israel.

A caixa-preta mostra um desencontro civilizatório muito potente entre duas versões de Israel (Avineri, 2017Avineri, Shlomo. The Making of Modern Zionism: The Intellectual Origins of the Jewish State. Nova York: Hachette, 2017.). Esse é um processo em que Alex, figura que simboliza o judeu askenazita pós-diaspórico, começa a perder completamente o lugar dominante e socialmente hegemônico para o judeu mizrahi, que acaba por “rediasporizar” a relação de Israel com o judaísmo.

Na estratégia narrativa do autor, a noção de perda de hegemonia e de controle sobre a sociedade por eles criada está resumida na ideia de que a vida pessoal do judeu ocidental acaba sendo gradativamente tomada por Michel, o novo imigrante oriental. Ele vai ocupar todos os lugares que eram de Alex - homem, pai, provedor e construtor do Estado. Alex perde, inclusive, a sua mulher para o oriental. Simbolicamente, Ilana passa de esposa de um comandante do exército askenazi e secular a mulher de um judeu oriental, religioso, que estava ligado à imigração dos territórios para além da linha verde.

Contudo, ao mesmo tempo que é claro que há a perda de hegemonia social de um projeto sionista laico, ascético e europeu, a narrativa é totalmente atravessada por um sentimento de superioridade individual dos personagens ashkenazi sobre Michel, nem sempre dito de maneira explícita, mas sempre presente.

Alex é herói de guerra, escritor mundialmente renomado e rico. Michel é apenas um funcionário público mediano e fundamentalista religioso. Michel trazia algum conforto a Ilana, mas o fantasma da presença de Alex no relacionamento nunca os abandonou, mesmo com tantos anos de afastamento. Michel é descrito como um homem mais baixo que Ilana, a quem considera “boa demais para ele”. Até mesmo Boaz, o filho adolescente e desajustado, é apresentado como menino loiro, bonito, muito maior e mais forte que Michel, e que parece ser tutor ou pai de Michel quando eles estão juntos, não o contrário.

Assim, a figura de pai e provedor, que surge como elo central de uma família desajustada, não livra Michel em nenhum momento de um sentimento de inferioridade perante os outros personagens centrais da história. Em certo momento ele escreve a Alex: “Vocês são o sal da terra, vocês têm a propriedade e o poder, vocês têm a sabedoria e a lei, e nós somos pó sob seus pés. Vocês são os levitas e os sacerdotes, e nós somos os aguadeiros. Vocês são a glória de Israel, e nós somos uma multidão confusa” (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., p. 201).

O sionismo laico e ascético ashkenazi paira sobre os personagens anemicamente como conquistas, cicatrizes e traumas passados nas guerras e na criação de Israel. Ainda assim, pertencem a Michel os triunfos nas guerras e a heroica figura do pioneiro. A ele pertence, inclusive, o financiamento desse novo sionismo que vem para tomar seu lugar. Não é casual que os empreendimentos do sionismo religioso de um empolgado Michel, apresentados em cartas, sejam feitos inteiramente com o dinheiro de Alex, conseguidos por meio de pequenas chantagens, negociatas e ameaças.

Esse lugar social incômodo de Michel é a chave para entender o lugar dos judeus mizrahim na construção desse novo sionismo. O surgimento à luz de uma memória subterrânea mizrahi13 13 Aqui utilizamos o conceito de memória subterrânea de Pollak (1989). Quando memórias subterrâneas ganham espaço a ponto de conseguirem disputar a memória nacional, hegemônica e estabelecida, esta entra em disputa em poros da sociedade — na cultura, na mídia, em projeto de país ou na história nacional. acaba por desafiar os pilares da construção nacional israelense, tornando todo o tecido social um motivo de concorrência - na política, na mídia ou na narrativa de construção nacional. Ainda assim, esses judeus orientais permanecem submissos socialmente a uma elite cultural e econômica ashkenazi.

Nessa ruptura, Michel tenta ocupar o lugar de centro da vida familiar e política, Alex e Ilana são a metáfora desse processo. Em outras palavras, a memória subterrânea dos judeus mizrahim emerge como uma força avassaladora, a ponto de disputar a sociedade israelense em todos os aspectos, até mesmo na narrativa de construção nacional que parecia tão perene, ainda que essa força coletiva não retire esse sentimento de inferioridade individual do judeu oriental.

A chave para entender essa aparente contradição está no lugar do discurso religioso e messiânico de Michel, sempre baseado em preceitos bíblicos. Pelas palavras de Aviezer Ravitzky sobre a ocupação dos territórios ocupados palestinos pelas mãos de sionistas messiânicos:

Quando você está no meio de um processo divino, e Deus está do seu lado, você perde gradualmente sua sensibilidade ao sofrimento do outro. Você se torna impermeável, vê o cenário geral, e pequenas coisas, como seres humanos, desaparecem. Uma percepção como essa é satisfeita apenas pelo todo e pelo perfeito. Tudo o que não é o todo é percebido como traição. (Zertal; Eldar, 2007, p. 4)

Essa preocupação em ser parte de um “todo” é a construção do que chamamos aqui de “Israel imaginária”, que é central para uma narrativa messiânica e as atitudes tomadas a partir de sua construção. Michel deixa muito clara a intenção de fazer parte desse “todo”, como nesta carta para Boaz, seu enteado:

Se você, como me escreveu, vive apenas para aproveitar a vida, então você é um inseto, não uma pessoa […]. É preferível você passar a vida inteira sendo um fio de cabelo ou uma unha do povo de Israel em vez de ser um inseto infeliz. (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., p. 171)

Alex interpreta que o fanatismo vem justamente da vontade de ser parte de um todo e que a sanha por ser parte do todo vem pelo apagamento da própria individualidade. Ele escreve:

Fé nascida da falta de fé: à medida que a fé em si próprio vai sendo destruída, fortalece-se a fé ardente na redenção, revigora-se a necessidade urgente de ser salvo. O redentor é tão poderoso quanto pequeno, insignificante. Henri Bergson diz: não é verdade que a fé move montanhas. Ao contrário, a essência da fé é a capacidade de não distinguir mais nada, nem mesmo montanhas movendo-se diante de nossos olhos. Uma espécie de tela hermética, totalmente imune aos fatos. […] Assimilar totalmente, portanto, o Eu dentro de Nós. Restringir-se a uma célula cega dentro de um organismo gigantesco, intertemporal, onipotente e sublime. Fundir-se até o autoesquecimento, até o limite extremo, à nação, ao movimento, à raça, como uma gota no oceano da fé. Daí os diversos tipos de uniformes. (Oz, 1995Oz, Amós. A caixa-preta. Trad. de Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras , 1995., pp. 139-40)

O apagamento de Michel como indivíduo, em uma sociedade que o marginaliza sob vários aspectos, seja pela origem argelina, seja pela formação religiosa, fortalece sua percepção de si mesmo como parte de um todo atávico, que se solidifica como memória subterrânea até emergir de sua força coletiva. Ao mesmo tempo, esse apagamento individual fortalece a percepção de grupo e de nação de Michel, que se vê como peça ínfima e imperfeita de uma construção da nação gloriosa e divina de Israel.

Enquanto isso, Alex, em meio ao sucesso profissional e financeiro, é um homem solitário e decadente. Mais do que isso: Alex é um homem ausente, que saiu de Israel, largou sua família sem dinheiro e sem dar notícias.

A melancólica Ilana, a mulher que quase não tem história própria, metáfora da diáspora, é o motivo da aproximação e do conflito entre os dois homens. Talvez essa seja a única aproximação entre os dois perfis sionistas, em que a questão de gênero é central: o imaginário do sionismo é de confronto e força, essencialmente masculino. A diáspora, portanto, para ambos “os sionismos”, seria feminina nessa concepção: frágil, submissa e impotente.

Michel e Alex disputam o amor e a política até a morte. Apenas um sobreviverá. Seus projetos de país, de nação, de povo não são apenas diferentes, são atavicamente excludentes. Na imaginação política do primeiro, o segundo deve ser substituído, superado, desconsiderado. Para o segundo, o sucesso do primeiro representa o colapso de seu projeto. A vitória dos bárbaros, dos incivilizados. No meio de um processo que aparenta ser um choque de civilizações entre tradição e modernidade, entre o Oriente e a Europa, é Ilana que reaparece dando ao livro e à história uma saída que pode ser a saída que Amós Oz sugere para uma sociedade esfacelada e dividida até a beira da Guerra Civil.

O filho renegado por Alex, e visto com desconfiança por Michel, é quem aponta uma saída no efetivo retorno ao Eretz Israel, onde árabes, judeus, sefaraditas e askenazitas, religiosos e seculares, se percebam como iguais e, sendo assim, superem os traumas do passado, tanto o diaspórico como o sionista.

AMÓS OZ E “A CAIXA-PRETA”

Amos Oz nasceu em 1939, na cidade de Jerusalém, de uma família askenazita. Em 1954, decidiu morar em um kibutz, tipo de colônia agrícola coletivista, de grande inspiração socialista e eixo central na construção da figura do pioneiro sionista. Oz, portanto, tem fortes ligações com esse sionismo socialista que construiu Israel e pôde assistir à sua derrocada a partir da Guerra dos Seis Dias, em 1967. A ascensão e a decadência desse sionismo são retratadas em várias obras do escritor ao longo de sua carreira. Em Judas (Oz, 2014_______. Judas. Trad. de Paulo Geiser. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.), por exemplo, é representado por Wald, professor de história aposentado e melancólico, também um pioneiro sionista, que vive recluso em meio a livros desde a morte de seu único filho em uma das guerras israelenses com países árabes. Aqui, é fácil encontrar uma conexão entre Wald e Alex.

No final do livro, Boaz, que mal sabe escrever e está perdido durante boa parte da história, encontra certa paz quando consegue desvincular-se das figuras problemáticas do pai, da mãe e do padrasto. Ele funda uma espécie de comuna (ou talvez um kibutz?), que prospera com a chegada de alguns jovens que não querem maiores obrigações ou preocupações com política ou religião. A construção é feita na mansão luxuosa do pai de Alex, que estava abandonada havia muitos anos. Com o dinheiro de Alex, Boaz vai dando vida ao espaço, que parece ser o único lugar de paz em toda a história. Para lá, também se muda Alex, mortalmente doente, para passar seus últimos dias em uma tranquilidade que parece ter lhe faltado durante toda a vida em Israel. Nada mais simbólico.

Amós Oz escreve A caixa-preta dando as costas para o presente e revisitando o que considera a origem do processo de esgarçamento político, social e cultural de Israel. Escrito no auge da ascensão da direita ao governo do país, o livro simbolicamente retorna ao período posterior à Guerra dos Seis Dias, ao início do governo de Likud e aos momentos de fortalecimento do messianismo político em Israel. Em paralelo à história que se desenrola, Oz tenta contar sua tragédia pessoal e política - tragédia de alguém que acreditou em outra forma de sociedade, com outros desenvolvimentos e outros resultados.

Junto a isso, o autor revisita temas constantes em suas obras, como a morte, a diáspora e o poder da mulher, mais uma vez chamada Ilana (como em outros livros), em possível referência às árvores enraizadas em Israel, contrariamente à sua mãe, judia desenraizada e sofrida, que sonhava com o retorno a uma diáspora destruída pela guerra e pelo genocídio. Ao abrir a caixa-preta do passado, Amós Oz se aventura em imaginar o que ela pode nos deixar para o futuro.

Um filho e uma filha surgem como esperança em um cenário destruído pela polarização e pelo radicalismo. Um cenário típico da Israel dos anos 1980, mas que poderia ser também contado a partir do Brasil da segunda década do século XXI.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Zerthal, Idith; Eldar, Akiva. Lords of the Land. The War Over Israel’s Settlements in the Occupied Territories, 1967-2007. Nova York: Nation Books, 2007.
  • 1
    Utilizamos aqui o conceito de invenção das tradições, do trabalho homônimo de Hobsbawm e Ranger. “Tradições são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória” (Hobsbawm; Ranger, 1984Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence. A invenção das tradições. Trad. de Celina Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984., pp. 12-3).
  • 2
    Termo usado para se referir a judeus vindos dos países árabes.
  • 3
    Termo usado para se referir a judeus provenientes da Europa central e oriental.
  • 4
    Faixa de Gaza e Cisjordânia, conquistadas em 1967, com população árabe palestina e que gradativamente são ocupadas por militares e por colonos religiosos e nacionalistas. Ver: Zerthal; Eldar (2007)Zerthal, Idith; Eldar, Akiva. Lords of the Land. The War Over Israel’s Settlements in the Occupied Territories, 1967-2007. Nova York: Nation Books, 2007..
  • 5
    A ideia platônica das luzes e da consciência a serem buscadas pela saída da caverna parece invertida no texto de Amós Oz, no qual a “caverna” das letras liberta o homem. Ver: Kothe (1986)Kothe, Flávio René. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986..
  • 6
    O voto de nazireado foi regulamentado na Torá, no Livro de Números 6:1. O nazireu devia abster-se de tomar certos alimentos e bebidas fermentadas, de cortar o cabelo e tocar em cadáveres, além de não comer carne em muitas circunstâncias.
  • 7
    Ben-Gurion, 1965Ben-Gurion, David. “The Facts of Jewish Exile”. Harper’s Magazine, set. 1965, pp. 48-9., pp. 48-9.
  • 8
    Utilizamos aqui a imagem de Zeev Jabotinsky, liderança revisionista sionista. Ele afirma que a solução étnica e nacional deveria substituir as referências diaspóricas universalistas. Referências de pessoas que, segundo Jabotinsky, não perceberam que “a terra queimava sob seus pés” e decidiram permanecer até que as coisas ficassem insuportáveis. Ver: Sand, 2014Sand, Shlomo. A invenção da Terra de Israel. São Paulo: Benvirá, 2014., pp. 236-300.
  • 9
    Esse debate sobre os judeus europeus e a memória do Holocausto é reincidente na obra de Oz. Uma das referências é justamente a figura da mãe do autor, Fanya, que surge de maneira explícita em seu livro autobiográfico De amor e trevas. Fanya sonha em retornar a um mundo que naufragou sem deixar muitas marcas. Esse desenraizamento de alguém que sonha em voltar a um lugar que não existe mais acaba fazendo Fanya entrar em profunda depressão e, por fim, a leva ao suicídio. Ver: Oz (2016)_______. De amor e trevas. Trad. de Milton Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2016..
  • 10
    Fruta do deserto espinhosa por fora e doce por dentro, termo usado para distinguir judeus nascidos em Israel daqueles da diáspora.
  • 11
    Referimo-nos aqui à mesma lógica proposta por Fanon, em seu livro Pele negra, máscaras brancas, de ser “mal olhado”, de ser percebido torto, a partir da lógica do outro, do colonialismo, do branco. Ver: Fanon (2008)Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Renato da Silveira. Salvador: EdUFBA, 2008..
  • 12
    Linha que marca a fronteira entre o armistício de 1949 e os territórios palestinos conquistados em 1967.
  • 13
    Aqui utilizamos o conceito de memória subterrânea de Pollak (1989)Pollak, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, pp. 3-15.. Quando memórias subterrâneas ganham espaço a ponto de conseguirem disputar a memória nacional, hegemônica e estabelecida, esta entra em disputa em poros da sociedade — na cultura, na mídia, em projeto de país ou na história nacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Aceito
    17 Set 2021
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