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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: A obra de um scholar, um scholar como obra

Fernando Henrique Cardoso in the United States of America: The Work of a Scholar, a Scholar as Work

RESUMO

São escassas as chances de sucesso transnacional de um scholar periférico, por isso os casos que fogem a essa regra, como Fernando Henrique Cardoso, dão o que pensar. Contrariando uma visão irênica de sua trajetória, demonstramos que seus esforços para ser traduzido e lido, em meio à acirrada disputa pela recepção do dependentismo nos Estados Unidos, foram fulcrais para esse culminar apoteótico.

PALAVRAS-CHAVE:
latino-americanismo; dependentismo; Fernando Henrique Cardoso; consagração

ABSTRACT

The chances of transnational success for a peripheral scholar are slim, so the cases that escape this trend, such as Fernando Henrique Cardoso, give food for thought. Contrary to a naive view of his trajectory, this article adresses his efforts to be translated and read, amidst the dispute over the reception of dependentism in us, were central to his apotheotic culmination.

KEYWORDS:
Latin Americanism; dependentismo; Fernando Henrique Cardoso; consecration

Tento […] não perder-me em mágoas sobre o que poderia ter sido e não fui.

Fernando Henrique Cardoso,

Nova York, 1964

A sociologia histórica das ciências sociais converge em afirmar que, a despeito da irredutibilidade do universo simbólico às determinações econômicas e políticas, é incontornável constatar que a dinâmica de seus intercâmbios em escala transnacional reproduz as assimetrias geopolíticas entre os países. Os mais diversos indicadores - traduções, prêmios, citometria - confirmam essa constatação (Sapiro, 2008______; Popa, Iona. “Traduire les sciences humaines et sociales: logiques éditoriales et enjeux scientifiques”. In: Sapiro, Gisèle. Translatio. Le marché et la traduction en France à l’heure de la mondialisation. Paris: CNRS Éditions, 2008.; De Swaan, 2001De Swaan, Abram. Words of the World. Cambridge: Polity, 2001.; Heilbron, 2001______. “Exchanges Culturels Transnationaux et mondialisation: quelques réflexions”. Regards Sociologiques, v. 22, 2001, pp. 141-54., Gingras, 2002Gingras, Yves. “Les formes spécifiques de l’internationalité du champ scientifique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , v. 141, 2002.). Supondo-se corretas essas análises, são escassas as chances de sucesso de um scholar periférico no espaço transnacional, em particular no centro dele, os Estados Unidos da América. As raras trajetórias que contrariaram essa tendência, como é o caso da de Fernando Henrique Cardoso, dão ensejo para se auscultar as possibilidades de um feito sociologicamente improvável. Por isso, este artigo se ocupa dele.

O coroamento estadunidense da carreira de Fernando Henrique Cardoso situa-se entre 1978 e 1983. Nesse quinquênio, ele foi agraciado com insígnias institucionalizadas de reconhecimento, e esteve ao lado de pares de um restrito circuito de colégios invisíveis: tornou-se membro do Comitê Latino-Americano do Social Science Research Council (SSRC), sediado em Nova York; do Wilson Center, em Washington, onde também estava o Inter-American Dialogue, ao qual ele também pertencia. Além disso, foi introduzido no Comitê Internacional de Consultores do Helen Kellogg Institute for International Studies, sediado em Indiana. Entre 1978 e 1982, foi vice-presidente da International Sociological Association (ISA) e, no quadriênio seguinte (1983-86), seu presidente. A Universidade Estadual de New Jersey lhe conferiu, em 1978, o título de doutor honoris causa. A saudação da investidura do título consiste num modo econômico de apresentar os princípios de identificação e de apreciação de sua figura no país:

Como escritor e atento estudioso da realidade da América Latina, suas obras abrangem o campo da economia, política, história e ciências sociais. Seus livros sobre Dependência e desenvolvimento […] e Empreendedorismo industrial e economia abriram novos caminhos para a compreensão da relação entre as nações industriais avançadas e o Terceiro Mundo. Para além da sua formação acadêmica, você incorporou as bandeiras políticas das pessoas oprimidas do seu país, o Brasil. Numa era de incerteza e de cepticismo, você mostrou clareza de propósito e percepção; ameaçado pela perseguição política, você mostrou coragem e convicção. (“Speech”, 1978“Speech”. Cerimônia de honraria concedida a Fernando Henrique Cardoso, 8/6/1978 (data presumida). Rutgers: Universidade Estadual de Nova Jersey, 1978.)

A incorreção das informações acima interessa pelo que revelam. A menção a um livro inexistente (Industrial Entrepreneurship and Economics) e a outro que ainda não havia sido lançado em língua inglesa (Dependency and Development) é indício primoroso de que, àquela altura de seu percurso, interessava nos Estados Unidos não somente a obra do scholar, mas também o scholar como obra. São discerníveis: a) os atributos pelos quais ele é conhecido: “escritor”, “estudioso da realidade da América Latina”; b) os atributos pelos quais ele é reconhecido, isto é, distinguem-no de modo hierarquicamente superior: “clareza de propósito e percepção”, “coragem e convicção”; c) os atributos de suas obras que dão substrato ao mérito: “abrangem o campo da economia, política, história e ciências sociais”, “abriram novos caminhos para a compreensão da relação entre as nações industriais avançadas e o Terceiro Mundo”.

Este artigo caracteriza essa modalidade peculiar de conhecimento, reconhecimento e desconhecimento (Bourdieu, 2002______. “Les conditions sociales de la circulation internationale des idées”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 145, n. 1, 2002, pp. 3-8.). Para tanto, sua carreira é reconstituída, a equação entre seu enraizamento nacional e suas estratégias de integração transnacional é realçada. Em seguida, contraintuitivamente, é reconstituído o cenário estadunidense no qual o livro Dependência e desenvolvimento na América Latina (DDAL) passou de despercebido, mais um grão de areia numa cascata de escritos “dependentistas”, a central. Em seguida, é recuperado o meticuloso gerenciamento triangulado do sociólogo disputando os princípios de percepção do “dependentismo”, do livro DDAL e de sua personalidade intelectual. E, finalmente, são oferecidos indícios de época que atestam o sucesso desse empenho. Propomos, a título de conclusão, uma sumária sistematização de fatores estruturais e singulares do caso em questão.

ENRAIZAMENTO NACIONAL E INTEGRAÇÃO TRANSNACIONAL

A aquisição e a manutenção do capital de relações internacionais de Cardoso são tributárias da reconfiguração das instituições de pesquisa nos países centrais, dinamizada pela guerra fria científica e cultural (Rodrigues, 2020______. “Brazilian Political Scientists and the Cold War: Soviet Hearts, North-American Minds (1966-1968)”. Science in Context, v. 33, n. 2, 2020, pp. 145-69.; Ridenti, 2022Ridenti, Marcelo. O segredo das senhoras americanas. São Paulo: Unesp, 2022.; Solovey; Dayé, 2021Solovey, Mark; Dayé, Christhian. Cold War Social Sciences: Transnational Entaglements. Londres: Palgrave Macmillan, 2021.; Calandra, 2019Calandra, Benedetta. “Cultural Philanthropy and Political Exile: The Ford Foundation between Argentina and The United States (1959-1979)”. Tempo, v. 25, n. 2, 2019, pp. 453-69.; Iber, 2015Iber, Patrick. Neither Peace nor Freedom: Cultural Cold War in Latin America. Cambridge: Harvard University Press, 2015.; Holmes, 2013Holmes, Jacqueline. From Modernization and Development to Neoliberal Democracy: A History of the Ford Foundation in Latin America (1959-2000). Bates College, Honors Theses, 2013. Disponível em: Disponível em: https://scarab.bates.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1084&context=honorstheses . Acesso em: 21/7/2022.
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; Guilhot, 2005Guilhot, Nicolas. Democracy Makers. Nova York: Columbia University Press, 2005.). Nacionalmente, elas se ligam às vantagens competitivas e às propriedades posicionais de sua atuação - como primeiro assistente de Florestan Fernandes (1920-1995), regente da cadeira de Sociologia I na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP) desde 1954 (Arruda, 1995Arruda, Maria Arminda do Nascimento. “A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a ‘escola paulista’”. In: Miceli, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil, v. 2. São Paulo: Sumaré, 1995.). Esta seção se dedica a episódios que poderiam ser anedóticos, não fosse o fato de articularem a dimensão nacional e a transnacional.

Georges Friedmann (1902-1977) e Alain Touraine (1925) vieram ao Brasil, respectivamente, em 1958 e 1959. Friedmann desempenhou papel decisivo na reconfiguração da sociologia francesa no pós-guerra, enquanto mentor do Laboratoire de Sociologie Industrielle, abrigado na VIe Section de l’École Pratique des Hautes Études, assim como do grupo mais dinâmico e numeroso no interior do Centre d’Études Sociologiques (Heilbron, 1991Heilbron, Johan. “Pionniers par défaut? ‘Les débuts de la recherche au Centre d’Études Sociologiques (1946-1960)”. Revue Française de Sociologie, v. 32, n. 3, 1991, pp. 365-79., pp. 374-6). Ele visitou o Brasil e outros países da América Latina na qualidade de presidente da ISA, fundada em 1950, e às vésperas de assumir a direção da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), fundada em 1957 - duas instituições impulsionadas pelos organismos estabelecidos no pós-guerra: a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) (Kalter, 2016Kalter, Christoph. The Discovery of the Third World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.). Ele delegou a seu principal parceiro de trabalho, Alain Touraine (1925), o estreitamento de vínculos com equipes de diversos países latino-americanos, tendo em vista replicar o modelo de investigação empírica desenvolvido por eles na França e, com isso, viabilizar estudos comparativos.

Cardoso os ciceroneou, pois possuía fluência em francês e um automóvel, o que facilitou a recepção e a hospitalidade. Ademais, receber bem era uma das tarefas a ele designadas pela cátedra de Sociologia i. Por quê?

Nascido em 1931, no Rio de Janeiro, em uma histórica família de militares,1 1 Todas as informações pessoais de Cardoso foram extraídas do material disponibilizado pela Fundação FHC: https://fundacaofhc.org.br/files/curriculo_fernando.henrique.cardoso.pdf. Cardoso teve uma educação doméstica que o predispunha ao desempenho de funções políticas (Garcia Jr., 2004Garcia Jr., Afranio. “A dependência da política: Fernando Henrique Cardoso e a sociologia no Brasil”. Tempo Social, v. 16, n. 1, 2004, pp. 285-300., p. 289). Na FFCL-USP, essa inclinação assumiu contornos específicos: na divisão social do trabalho na cátedra de Sociologia I, o regente, Florestan Fernandes, reservava para si o papel de mentor intelectual dos projetos da equipe e delegava a Cardoso o papel de articulador político das condições de viabilização institucional desses projetos (Rodrigues, 2012Rodrigues, Lidiane Soares. A produção social do marxismo em São Paulo: mestres, discípulos e ‘um seminário’ (1958-1978). Tese (doutorado em história). São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2012., p. 172). Além disso, acessar com facilidade e habilidade empresários e elites dirigentes, próximos de seus familiares, tornava-o o agente ideal para Friedmann e Touraine. Não surpreende que, a partir dessa viagem, Touraine e Cardoso travassem uma amizade estreita e longeva. Sendo este o primeiro vínculo decisivo para a integração transnacional de que se trata neste trabalho, já se destaca o nexo dela com o enraizamento de Cardoso nas elites dirigentes nacionais.

Como o modelo de formação sociológica defendido por Florestan Fernandes era inteiramente nacional, a primeira viagem de Cardoso ao estrangeiro, como sociólogo, foi realizada após seu doutoramento, em 1962. Introduzido por Touraine em seu circuito, ele investiu na manutenção de vínculos antigos e no estabelecimento de novos. Nesta confissão, o entusiasmo trai a condição do novato em circulação: “não é fácil assim expor numa língua que não é a da gente, mas com a cara e a coragem tenho interferido sempre nos seminários” (Cardoso, 1963b______. Correspondência para Florestan Fernandes. Paris, 11 jan. 1963b; Santiago do Chile, 26 abr. 1967a; Nova York, 29 jun. 1964a; São Paulo, 9 nov. 1970a.). A preocupação com o avanço na sucessão de titulações - na época, a livre-docência - intensificou-se durante essa viagem. Tratava-se de compatibilizar sua posição no Brasil e os cargos que a ampliação dos possíveis, promovida pela inserção no espaço estrangeiro, atiçava-lhe disputar: “seria bom conversarmos sobre este texto logo que eu volte para que o assunto ‘livre-docência’ possa resolver-se com a brevidade que a situação nos impõe” (idem). E, em seguida, informa que tem varrido a bibliografia francesa, italiana, remexido no material que levou copiado, porém, “escrever que é bom é muito difícil em terra estranha e sem livros da gente” (idem).

Em seu retorno, estabeleceu o Centro de Sociologia do Trabalho (Cesit), com as dotações iniciais da recém-criada Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Confederação Nacional das Indústrias (CNI). À frente de cada uma delas, ele tinha laços estreitos que o apoiavam: Antonio Barros de Ulhôa Cintra, com quem teceu vínculos por sua atuação no Conselho Universitário, era presidente do conselho superior da Fapesp; Fernando Gasparian, filho de industrial do ramo têxtil e amigo de adolescência, estava à frente da CNI (Romão, 2006Romão, Wagner. A experiência do Cesit. São Paulo: Humanitas, 2006.).

Em 1964, com o estabelecimento do regime militar, começaram os Inquéritos Policial-Militares (IPM) na USP. Cardoso foi convocado a depor por subversão, recusou-se a fazê-lo, escondeu-se na casa de amigos e optou pelo autoexílio. Ao chegar à Argentina, foi acolhido por José Nun, que havia conhecido dois anos antes em Paris, e encontrou Nuno Fidelino de Figueiredo, que trabalhava na Cepal desde 1957, havia participado da criação do Cesit e era próximo de sua família. Figueiredo lhe comunicou a intenção do sociólogo espanhol José Medina Echevarría (1903-1977), exilado pelo regime franquista e então à frente do Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social (Ilpes), de incrementar a discussão sociológica nessa instituição, para a qual o convidava (Franco, 2013Franco, Rolando. La invención del Ilpes. Santiago: Publicación de las Naciones Unidas, 2013.). Ele aceitou, transferiu-se para o Chile e engajou-se na acirrada competição disciplinar que marcou os pesquisadores-funcionários dos organismos internacionais: a que aproximava e opunha economia, sociologia e, posteriormente, ciência política (Furtado, 2014Furtado, Celso. Obra autobiográfica. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.; Fourcade, 2009Fourcade, Marion. Economists and Societies. Princeton: Princeton University Press, 2009.). O livro DDAL situava-se nessa configuração intelectual. A estada no Ilpes o converteu à agenda temática e às indagações de pesquisa da fase de autocrítica da Cepal, isto é, aquela em que se coloca em suspenso as apostas no Estado nacional como demiurgo da industrialização, e desta, como trilha preferencial do desenvolvimento (Bielschowsky, 2000Bielschowsky, Ricardo. “Cinquenta anos de pensamento na Cepal”. In: Cepal (org.). Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Record, 2000.). Por isso, não apenas a dimensão política do livro, mas também os lances disciplinares competitivos encontram-se em trechos como este:

Como o objetivo deste ensaio é explicar os processos econômicos enquanto processos sociais, requer-se buscar um ponto de interseção teórico, onde o poder econômico se expresse como dominação social, isto é, como política; pois é através do processo político que uma classe ou grupo econômico tenta estabelecer um sistema de relações sociais que lhe permita impor ao conjunto da sociedade um modo de produção próprio, ou pelo menos tenta estabelecer alianças ou subordinar os demais grupos ou classes com o fim de desenvolver uma forma econômica compatível com seus interesses e objetivos. Os modos de relação econômica, por sua vez, delimitam os marcos em que se dá a ação política. (Cardoso; Faletto, 1971______. Política e desenvolvimento em sociedades dependentes: ideologias do empresariado industrial argentino e brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1971a., p. 23)

A fisionomia das obras do sociólogo se modificou, na medida em que procurou articular um viés marxista à sociologia empírica de inspiração estadunidense e ao interesse pelas classes empresarial e operária - tal como praticada na França e nos organismos transnacionais situados em Santiago do Chile (Heilbron, 1991Heilbron, Johan. “Pionniers par défaut? ‘Les débuts de la recherche au Centre d’Études Sociologiques (1946-1960)”. Revue Française de Sociologie, v. 32, n. 3, 1991, pp. 365-79., p. 369).

O circuito em que Friedmann e Touraine o haviam introduzido informalmente assumia estatuto oficial em Santiago do Chile, então “capital mundial da esquerda” (Beigel, 2014Beigel, Fernanda. “Vida, muerte y resurrección de las ‘teorías de la dependencia’”. In: Clacso (org.). Crítica y teoría en el pensamiento social latinoamericano. Buenos Aires: Clacso, 2014, pp. 287-326. Disponível em: <Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/becas/20140227054137/C05FBeigel.pdf >. Acesso em: 21/7/2022.
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, p. 361; CáceresCáceres, Gonzalo. “Santigo de Chile. La capital de la izquierda”. In. Gorelik, Adrián; Peixoto, Fernanda. Cidades sul-americanas como arenas culturais. São Paulo: Sesc, 2019., p. 363). Echevarría lhe confiou a direção do Ilpes, onde trabalhou até 1967, quando Touraine o convidou para lecionar na Universidade de Nanterre. Em 1968, voltou ao Brasil para concorrer à cátedra de política na USP. Venceu o concurso e, em seguida, foi aposentado compulsoriamente. Diferentemente de 1964, permaneceu no Brasil. Porém, de modo similar, a decisão foi possível graças a uma meticulosa equação dos recursos disponíveis para sustentá-la. Vejamos.

Em 1964, a opção pelo autoexílio foi viabilizada por uma rede de relações transnacionais consistentes, notável numa confissão involuntária: “não é nada fácil […] mudar de planos, de hábitos, de interesses e até de amigos de um dia para o outro” (Cardoso, 1964a______. Correspondência para Florestan Fernandes. Paris, 11 jan. 1963b; Santiago do Chile, 26 abr. 1967a; Nova York, 29 jun. 1964a; São Paulo, 9 nov. 1970a.). A essas mudanças soma-se a adequação a novas modalidades de trabalho, como deixa patente o contraste entre o comentário a respeito de seu doutorado e da tese com a qual concorreria à cátedra:

Meus planos […]: penso escrever a tese [para concorrer à cátedra de política, meses depois] aqui em Santiago até novembro. Não decidi ainda como fazê-la. Tenho a seguinte alternativa: aproveitar as investigações […] e junto com uma elaboração ad hoc das hipóteses […] que estou reelaborando […] “costuro” uma tese. Ou então, escrevo um ensaio […]. E, como sempre (…é possível uma terceira hipótese…) combinar os três trabalhos. (Cardoso, 1967a______. Correspondência para Florestan Fernandes. Paris, 11 jan. 1963b; Santiago do Chile, 26 abr. 1967a; Nova York, 29 jun. 1964a; São Paulo, 9 nov. 1970a.; grifos meus)

eu ainda gosto deste livro [Capitalismo e escravidão no Brasil meridional]. Escrevê-lo custou-me enorme trabalho e eu o fiz quando vivia totalmente dedicado às atividades da Universidade de São Paulo. Não havia saído do país e meu horizonte intelectual limitava-se à antiga rua Maria Antônia […]. Nela, o debate intenso, especialmente o de um pequeno grupo […] tentava acompanhar o debate cultural contemporâneo a duras penas. […] A busca contínua de um “padrão de trabalho científico”, a disciplina da pesquisa histórica e de campo […] haviam criado um modelo para a carreira universitária e para a produção intelectual […] transmitiam um sentido de responsabilidade intelectual que impunha trabalho árduo para a feitura das teses de mestrado e de doutoramento. (Cardoso, 2003______. “Prefácio à 2ª edição”. In: Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 16; grifos meus)

Além dessa brutal alteração no regime da produção intelectual, o saldo do autoexílio consistiu no aumento do volume, da variedade e da área geopolítica coberta por seu capital de relações. A leitura de sua correspondência atesta que ele explorou ao máximo suas viagens aos Estados Unidos como funcionário da Cepal, e a presença de acadêmicos estadunidenses ligados à ONU em Santiago, estreitando vínculos já existentes e adquirindo novos (de caráter pessoal e profissional).2 2 A correspondência citada neste artigo encontra-se em dois arquivos: o Fundo Florestan Fernandes, abrigado na Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e o Acervo Fernando Henrique Cardoso, localizado na Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível online: <https://fundaca ofhc.org.br/>. Em 1969, por ocasião de sua aposentadoria compulsória, acionou esse capital, obteve financiamento da Fundação Ford (FF) e criou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) (Cardoso, 2009______. “Entrevista”. In. Montero, Paula; Moura, Flávio (orgs.). Retrato de grupo: 40 anos do Cebrap. São Paulo: Cosac Naify, 2009.).

Daí até sua conversão a político profissional por volta de 1983 (Garcia Jr., 2004Garcia Jr., Afranio. “A dependência da política: Fernando Henrique Cardoso e a sociologia no Brasil”. Tempo Social, v. 16, n. 1, 2004, pp. 285-300.), foi pesquisador sênior do Cebrap e seu presidente (1980-82), tomou parte em pesquisas oferecidas à FF e encomendadas por entidades civis, deu emprego a amigos perseguidos e negociou com segmentos das elites dirigentes a fim de proteger a instituição de interferências político-policiais. Com outros “cebrapianos”, engajou-se na oposição ao regime autoritário, publicando em jornais alternativos (tais como Movimento e Opinião). O Cebrap chamou a atenção de Ulysses Guimarães, líder do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que procurou Cardoso para que trabalhassem coletivamente no programa da campanha de 1974. Gradativamente, essa aproximação redundaria no ingresso do sociólogo na política profissional: foi candidato à suplência de Franco Montoro no Senado em 1978 e, em 1983, quando Montoro se tornou governador de São Paulo, assumiu sua cadeira. Portanto, do ângulo de sua carreira nacional, esse foi o período de estabilidade institucional mais longevo, além de único, em termos de satisfação simbólica. Do ângulo estrangeiro a ela, também.

O período se caracteriza por breves, mas constantes viagens a convite. Na Inglaterra, foi professor da cátedra Simón Bolívar na Universidade de Cambridge (1976). Na França, foi professor visitante do Institut d’Études sur le Développement Économique et Social (Iedes) (1977) e diretor associado de estudos na Maison des Sciences de l’Homme, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (1980). Nos Estados Unidos, foi professor visitante em três ocasiões: em 1972 (Institute of Political Sciences, University of California, Stanford); em 1975 (Institute for Advanced Study, Princeton, New Jersey); e em 1981 (Department of Sociology, University of California, Berkeley). É notável que os Estados Unidos sejam o país para o qual ele é convidado mais vezes e que esses convites sejam mais esparsos no tempo, demonstrando a longevidade de suas conexões e do interesse por sua obra e sua figura. A densidade dos vínculos deve-se a três fatores: a) a posição do latino-americanismo nos Estados Unidos; b) a habilidade de Cardoso para transitar no interior dos grupos rivais desse espaço; c) o cultivo de vínculos com o staff acadêmico da FF e da Latin American Studies Association (Lasa), criada em 1966. Tais elementos merecem um comentário.

O latino-americanismo assumiu relevância sem precedentes nos Estados Unidos em razão do incremento dos area studies, após o alinhamento da Revolução Cubana à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1961 (Wallerstein, 1997Wallerstein, Immanuel. “The Unintended Consequences of the Cold War in Area Studies”. In: Chomsky, Noam (org.). The Cold War and the University: Toward an Intellectual History of the Postwar Years. Nova York: The New Press, 1997, pp. 195-232.; Delpar, 2008Delpar, Helen. Looking South: The Evolution of Latin Americanist Scholarship in the United States, 1850-1975. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2008., p. 208). O adensamento morfológico dos pesquisadores favoreceu o surgimento de segmentos rivais, cuja precipitação se constata na divisão geracional no interior da instituição federativa da área, a Lasa. Assim, os jovens autodesignados West Coast Intellectuals opunham-se à direção da instituição, consideravam-na conivente com o imperialismo estadunidense na América Latina, além de elitista e autoritária. No segundo encontro dela, em 1970, eles se articularam na Union of Radical Latin Americanists (Urla), lançando um periódico - o Latin American Perspectives (LAP) - a fim de se contrapor ao Latin American Research Review (LARR), da Lasa.

Os West Coast valeram-se da “teoria da dependência” como um recurso contra seus adversários. Tratou-se de efeito notável de uma homologia posicional estrutural. Enquanto se contrapunham ao staff da Lasa, equivalente acadêmico do establishment estadunidense, os “dependentistas” opunham-se à “teoria da modernização”, segundo a qual os países seguiam fases pretéritas de uma evolução pela qual já teriam passado os Estados Unidos, ideia sustentada por quadros acadêmicos e dirigentes desse país (Feres, 2005Feres, João. A história do conceito de América Latina nos Estados Unidos. Bauru: USC, 2005.). Sob a liderança de Ronald Chilcote, a LAP tornou-se o primeiro e principal canal das discussões em torno da “teoria da dependência” em geral - e da obra de André Gunder Frank, em particular - no espaço intelectual estadunidense (Delpar, 2008Delpar, Helen. Looking South: The Evolution of Latin Americanist Scholarship in the United States, 1850-1975. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2008.).

O primeiro número propôs uma sessão, intitulada “Debate”, que tinha a “preocupação central de levantar novas questões sobre a teoria da dependência, elaborar e aperfeiçoar ideias, e gerar um novo pensamento sobre o assunto” (LAP, 1974Latin American Perspectives . “Debate”. Latin American Perspectives , n. 1, 1974., p. 30). Ela se abria com um extenso balanço bibliográfico de Chilcote e Joel Edelstein. A LARR não tardou em responder à LAP.

Em 1976, reagindo à classificação dos autores e das ideias dependentistas propostas por Chilcote e Edelstein, o periódico diagnosticava: eles haviam contribuído menos para o discernimento e mais para a confusão de uma bibliografia cujo volume se aproximava do ingerenciável (Bath; James, 1976Bath, Richard; James, Dilmus. “Dependency Analysis of Latin America: Some Criticisms, Some Suggestions”. Latin American Research Review, v. 11, n. 3, 1976, pp. 3-54., p. 15). Tratava-se, evidentemente, de uma disputa em torno da categorização legítima dos autores “dependentistas” - algo típico da dinâmica de subespaços disciplinares (e transdisciplinares, como é o caso) nas fases instáveis de sua constituição (Bourdieu, 2001b______. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d’Agir, 2001b.). Além disso, a exemplo de outros “ismos” - estruturalismo, marxismo, pós-modernismo, feminismo -, o “dependentismo” ia se tornando um label que: a) facilitava a circulação dos nomes de seus autores, por conta de mínimos denominadores comuns associados à corrente; b) sendo esses denominadores comuns um modo de apagar nuanças autorais, ele também favorecia a difusão das ideias, pois engendrava os “comentadores” das diferenças entre os autores e os “críticos” que criavam outras categorias classificatórias; c) suscitava o constante decreto de que a categoria não é operacional para, em seguida, reforçá-la (Boschetti, 2014Boschetti, Anna. Ismes. Du réalisme au postmodernisme. Paris: CNRS Éditions, 2014.).

Cardoso colaborou com os West Coast, porém não deixou de estabelecer vínculos estreitos com o polo oposto. Se aliar-se a polos rivais consiste em estratégia arriscada - e, por vezes, impraticável em espaços nacionais -, a lógica de certas configurações transnacionais não apenas a autoriza como a encoraja. É esse o caso.

A manutenção do suporte econômico da FF requeria o cumprimento de uma performance institucional do Cebrap. Portanto, a prudência recomendava o esmero no trato com acadêmicos estadunidenses, responsáveis por essa avaliação: como Kalman Silvert (1921-1976), um dos principais conselheiros do programa da FF para a América Latina e presidente da Lasa. A dinâmica das trocas materiais e simbólicas em questão se evidencia na correspondência trocada com ele. Por exemplo, na missiva abaixo, Silvert avisava Cardoso de que, por intermédio de sua recomendação, o Banco Mundial, a Rockfeller e a FF estavam interessados nele:

A ideia dos organizadores da conferência é ter cerca de três pessoas de fora da Europa e dos Estados Unidos para fazer diagnósticos, prescrições […]. Eles não querem especialistas estreitos em educação, mas pessoas que se dirijam às relações entre educação e desenvolvimento geral, mobilidade educacional e ocupacional, e assim por diante […] eles querem pessoas com cabeça arejada, que estejam dispostas e sejam capazes de se expressar livremente. Confesso ter sugerido seu nome, e é por isso que estou sendo solicitado a escrever-lhe […]. (Silvert, nov. 1971Silvert, Kalman. Correspondência para Fernando Henrique Cardoso. Nova York, 1971.; grifos meus)

Silvert e outros trabalharam junto à comunidade acadêmica estadunidense a seu alcance não apenas em favor da recepção positiva da obra desse scholar, mas também contribuindo para a produção desse scholar como obra. Aos poucos vai se delineando uma fisionomia com nítidos critérios de apreciação de ambos: latino-americano, capaz de transcender especializações disciplinares, de se expressar livremente, bem-informado e com “cabeça arejada”. Além disso, infere-se, pelo conjunto de menções cruzadas, que Cardoso e o centro não eram recomendados por Silvert apenas à elite filantrópica global (Parmar, 2015Parmar, Inderjeet. Foundations of the American Century: The Ford, Carnegie, and Rockefeller Foundations in the Rise of American Power. Nova York: Columbia University Press , 2015.; Tournès, 2010Tournès, Ludovic. “Introduction. Carnegie, Rockefeller, Ford, Soros: généalogie de la toile philanthropique”. In: L’Argent de l’influence. Les fondations américaines et leurs réseaux européens. Paris: Éditions Autremen, 2010, col. Mémoires/Culture, pp. 5-23.), mas também a ativistas e acadêmicos de universidades menos centrais. Por exemplo:

Eu encontrei Kalman Silvert, da Ford, aqui em ny e ele sugeriu que eu entrasse em contato com você para pedir sua ajuda, como pessoa bem-informada e em posição ideal para me aconselhar […] pela descrição de você e de seu trabalho [que me deu o sr. Silvert], sentimos que, de fato, uma sessão com você seria de grande valor e intensificaria em grande medida a experiência de viajar no Brasil. (Ellen Stoepel, coordenadora da American Civil Liberties Union Foundation, 1970Stoepel, Ellen K. Correspondência para Fernando Henrique Cardoso. Nova York, 23/4/1970.; grifos meus)

O Cebrap se tornou uma instituição de referência para “latino-americanistas” e “brasilianistas” não apenas pela qualidade ou correção de suas pesquisas, e o mesmo pode se dizer do sociólogo. Os esforços propriamente intelectuais contavam com o apoio de parceiros “invisíveis”, que trabalharam para a difusão do nome e da obra de Cardoso. Sem tais parceiros, eles ficariam encerrados num circuito destituído dos recursos mais legítimos e institucionalizados de reconhecimento. Com efeito, sem o capital social, os capitais especificamente científicos não se realizam no mercado das trocas simbólicas - o caso confirma essa regra, em operação numa superfície social de dinâmica transnacional (Bourdieu, 2001b______. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d’Agir, 2001b.).

À PARTE E ACIMA DOS MUNDANOS: PERTENCER, DISTINGUIR-SE, IMPOR PRINCÍPIOS DE APRECIAÇÃO (DE SI)

No interior do “dependentismo”, em 1974, o autor de maior renome era André Gunder Frank (1929-2005): seus textos circulavam em inglês, alcançavam leitores externos ao universo acadêmico, interpelavam as inquietações políticas radicais nos Estados Unidos (Ruvituso, 2020Ruvituso, Clara. “Southern Theories in Northern Circulation: Analyzing the Translation of Latin American Dependency Theories into German”. Tapuya, v. 3, n. 1, 2020, pp. 92-106.; Delpar, 2008Delpar, Helen. Looking South: The Evolution of Latin Americanist Scholarship in the United States, 1850-1975. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2008.; Kay, 2010Kay, Cristóbal. Latin American Theories of Development and Underdevelopment. Abingdon: Routledge, 2010.; Blomström, Hettne, 1984). Tinha-se ideia da opacidade da obra de Cardoso, em contraste com a dele, observando-se a participação de ambos nesse “Debate”. Enquanto Frank era citado em inglês, discutido por todos os autores e acumulava rejeições suficientes para conceber um artigo inteiramente dedicado a respondê-las (Frank, 1974______. “Dependency is Dead, Long Live Dependency”. Latin American Perspectives, n. 1, 1974.), o brasileiro, que havia publicado DDAL havia sete anos, lamuriava-se que não fosse lido pelos autores que se via obrigado a comentar, caso quisesse participar do número da revista: “não fosse pelos nomes hispânicos dos autores, eu pensaria que eles não leem castelhano e português”, afinal, a bibliografia “é quase inteiramente citada em inglês”, “com a exceção do livro que escrevi com Faletto, que é mencionado na bibliografia, mas na verdade não foi analisado” (Cardoso, 1974a______. “As contradições do desenvolvimento associado”. Estudos Cebrap, v. 8, 1974a, pp. 41-75., p. 66).

Fernando Henrique Cardoso reivindicava a tradução de seu próprio livro para o inglês. Pode-se afirmar que sua campanha vingou, não só porque o livro foi traduzido (ainda que doze anos depois da primeira edição, em espanhol), mas porque “muitos lamentavam a ausência de uma edição em inglês desse livro” (Packenham, 1982Packenham, Robert A. “Plus ça change…: The English Edition of Cardoso and Faletto’s Dependencia y desarrollo en América Latina”. Latin American Research Review , v. 17, n. 1, 1982, pp. 131-51., p. 131). Em outras palavras, ele havia produzido, previamente, os quadros sociais de demanda e adiantava-se, preparando uma recepção da obra favorável a ele.

Para arrematar o contraponto com Frank: um exaustivo balanço bibliográfico foi publicado na LARR em 1976, respondendo ao “Debate” de 1974 da LAP. Nele, encontra-se uma discussão da obra de dez “dependentistas”, nas categorias: “a abordagem conservadora”, “os moderados” e os “radicais” (Bath; James, 1976Bath, Richard; James, Dilmus. “Dependency Analysis of Latin America: Some Criticisms, Some Suggestions”. Latin American Research Review, v. 11, n. 3, 1976, pp. 3-54.). Nenhuma delas incluía a obra do brasileiro e o livro DDAL não recebeu nenhum comentário. Cardoso estava à sombra de Frank, porém a integração da teoria da dependência era fato consumado. Tratava-se, diante disso, de aproveitar o filão de pertencimento ao “ismo”, distinguindo-se no interior dele (Boschetti, 2014Boschetti, Anna. Ismes. Du réalisme au postmodernisme. Paris: CNRS Éditions, 2014.). E foi o que ele fez, atendendo ao convite para proferir uma conferência na Lasa - sendo atraído, portanto, para o mesmo polo do espaço (LARR) que publicou o balanço bibliográfico em que ele “inexistia”.

O texto oriundo dessa ocasião contém o conjunto das estratégias postas a serviço do gerenciamento triangulado da recepção da “teoria da dependência”, do livro DDAL e de sua personalidade intelectual. Cumpre apresentá-las.

O sociólogo se dirigiu criticamente a frações de latino-americanistas e à esquerda marxista estadunidense. Para ele, as genealogias intelectuais do “dependentismo” diminuíam as tradições latino-americanas em favor da influência neomarxista estadunidense - e esse aspecto traía o atraso, a falta de informação e o equívoco a respeito do debate fora dos Estados Unidos. Nessa, e em numerosas outras ocasiões, ao estabelecer a ignorância dos estadunidenses, Cardoso pavimentava o caminho no qual situaria seus próprios textos e de seu círculo brasileiro de interlocução mais longínquo. É comum que emparelhe às sentenças depreciativas a autocitação e a recomendação de leitura de debates nos quais ele é protagonista (Cardoso, 1974a______. “As contradições do desenvolvimento associado”. Estudos Cebrap, v. 8, 1974a, pp. 41-75., p. 66). Também é comum sentenciar que, enquanto algumas ideias eram novidade nos Estados Unidos, entre os latinos eram conclusões havia muito corriqueiras: os autores têm “pouca familiaridade com a bibliografia […] mesmo depois de tantas águas passadas”, discutem “uma visão esquemática e linear das formas de transição de uma grande etapa histórica à outra” (Cardoso, 1974a______. “As contradições do desenvolvimento associado”. Estudos Cebrap, v. 8, 1974a, pp. 41-75., p. 68). A qual bibliografia se refere ele? Àquela de sua fase de formação, notável na recomendação dada aos pares estrangeiros: Francisco Weffort, Caio Prado, Fernando Antônio Novais, Cyro Cardoso, Sérgio Buarque de Holanda (Cardoso, 1974a______. “As contradições do desenvolvimento associado”. Estudos Cebrap, v. 8, 1974a, pp. 41-75., pp. 67-72). A apreciação nominal se conjumina com a depreciação sem designação nominal, por meio de categorias classificatórias injuriosas, com efeito de diferenciação autoral - isto é, “eu os denomino, pois não me confundo com eles” -, tais como: “marxistas evolucionistas mais embrutecidos” e “corrente de marxismo vulgar” (Cardoso, 1993 [1976]______. “O consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos”. In: As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993 [1976], pp. 89-107., pp. 132 e 131).

O empenho em pertencer (ao dependentismo) para distinguir-se (dos dependentistas) foi o princípio gerador das intervenções em tela - alcançando hoje a percepção que se tem do conjunto (Flores, 2022):

um observador que desembarcasse de um “objeto não identificado” de órbita lunar e chegasse às reuniões dos latino-americanistas nos últimos anos daria razão aos antropólogos estruturalistas. Diria que se repetem versões de um mesmo mito: dependência e desenvolvimento, exploração e riqueza, atraso e alta tecnologia, desemprego e alta concentração de renda. Levemente entediado, nosso ser do outro mundo diria: “o cérebro desta gente deve limitar as imagens e o pensamento deles a oposições binárias”. É com a sensação de entrar numa discussão em que a imaginação está acorrentada […] que volto ao debate […] como se fosse um dos founding fathers da dependência […]. (Cardoso, 1993 [1976]______. “O consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos”. In: As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993 [1976], pp. 89-107., p. 125; grifos meus)

Obviamente, a posição do “observador” é a dele próprio. Ao repetir, insistentemente, que “dependentismo” consiste numa “entidade abstrata”, num “adjetivo” que lhe causa “horror” (respectivamente, Cardoso, 1974a______. “As contradições do desenvolvimento associado”. Estudos Cebrap, v. 8, 1974a, pp. 41-75., p. 66; Cardoso, 1993 [1976]______. “O consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos”. In: As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993 [1976], pp. 89-107., p. 127), criava o ensejo para a eleição de adversários. E, se a posição ocupada pelos adversários simbólicos eleitos corresponde àquela ambicionada pelos que os elegeram, percebe-se que as de Cardoso não eram diminutas. Responder, comentar, criticar, disputar o enquadramento de Frank orientava-o à disputa em espaço estadunidense, contrapor-se à Marini situava-o no espaço latino-americano e brasileiro - dada sua ascendência sobre uma fração da esquerda guerrilheira nacional. A construção de sua posição diferencial em relação a eles implicava: opor-se à esquerda, sem identificar-se com a direita, opor-se à direita, sem deixar-se subsumir nas categorias dirigidas por esta última à primeira, e desqualificar ambos os lados, seja por seu conformismo, seja por seu utopismo. No espaço estadunidense, a circunscrição dessa posição era particularmente difícil, posto que ele se situava numa categoria, o “dependentismo”, no interior da qual o marxismo era visto como predominante.

O tom irônico da conferência de Atlanta encontra-se também em seu título: “O consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos da América”. Se ele a proferiu em inglês, língua oficial do congresso, publicou-a antes em francês (Cardoso, 1976______. “Les États Unis et la théorie de la dépendance”. Revue Tiers Monde, v. 17, n. 68, 1976, pp. 805-25.). A estratégia dupla e combinada - ironizar os Estados Unidos, dirigindo-se ao público francófono - evidencia alta reflexividade. É notável o empenho em se situar na disputa pela periferia, encetada pelos polos dominantes do espaço transnacional (Estados Unidos x França). Obviamente, tirando vantagens dessa competição.

A manipulação dos títulos dos textos voltados à disputa pelo enquadramento mereceria exame à parte. Eles sentenciavam - de modo econômico e simplificado, tornando a comunicação mais ágil - tomadas de posição a respeito de complexas controvérsias. Tinham efeitos similares aos dos paratextos editoriais (Genette, 2009Genette, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.). As orelhas de livro, os prefácios, as resenhas, as peças de marketing editorial consistem em “textos menores” que enquadram “textos maiores”, pois são efetivamente vistos pelos interessados. Trata-se de molduras semânticas poderosas para a indução de categorias prévias à possível, mas não necessária, leitura dos textos, sempre mais rara. No caso dos títulos de artigos, os leitores potenciais são mais expostos e suscetíveis a eles do que ao próprio conteúdo dos textos, posto que só cheguem a estes últimos a partir dos primeiros.

Por exemplo, “Teoria da dependência ou análises concretas de situações de dependência?” (Cardoso, 1971b______. “Teoria da dependência ou análises concretas de situações de dependência?”. Estudos Cebrap, v.1, n. 1, 1971b, pp. 25-45.), título de texto publicado seis vezes entre 1970 e 1974 (três vezes em espanhol, duas em português e uma em francês), respondia a um dos tópicos controversos da discussão: trata-se ou não de uma teoria? Comentadores se posicionaram, emitindo resposta positiva ou negativa. Robert Packenham pressupunha que fosse e lhe cobrava a coerência interna, a falsificabilidade das assertivas e os correlatos testes empíricos - para que fizesse jus a esse estatuto (Packenham, 1982Packenham, Robert A. “Plus ça change…: The English Edition of Cardoso and Faletto’s Dependencia y desarrollo en América Latina”. Latin American Research Review , v. 17, n. 1, 1982, pp. 131-51., p. 137). Cardoso não se intimidava: o título com a indagação rebarbativa não apenas sumarizava sua tomada de posição (não é uma teoria) como também adiantava sua alternativa (trata-se de “análises concretas de dependência”). E, se fosse o caso de reagir, por meios dos títulos, às figuras intelectuais em detrimento das ideias, não se furtava em desqualificá-los com sentenças enfáticas no topo da página: “Um cientista do ar” é o título de sua resposta à Packenham (Cardoso, 1977b______. “Um cientista do ar”. Folha de S.Paulo, 7/01/1977b.).

O máximo rendimento dessa estratégia pode ser encontrado em “As contradições do desenvolvimento associado”. O texto foi publicado dez vezes entre 1973 e 1993 (três vezes em português, três em espanhol, duas em inglês, uma em alemão e uma em italiano). Em português, recebeu dois títulos diferentes: “As contradições do desenvolvimento associado” e “As novas teses equivocadas”. Em inglês, foi publicado com outro título: “Current Theses on Latin America Development and Dependency: A Critique”, em 1976 e 1977. As alterações não são aleatórias. Para os familiarizados com o debate, o título “As contradições do desenvolvimento associado” consiste na tomada de posição em relação a outro tópico. De um lado, havia a posição segundo a qual o desenvolvimento dos países centrais pressupõe o subdesenvolvimento dos países periféricos, sendo este último uma consequência necessária do primeiro - como advogava a tese do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, sustentada por Frank. De outro, havia a tese segundo a qual os países periféricos se desenvolvem sem deixar de serem periféricos, na medida em que esse desenvolvimento não promovia a autonomia nacional, mas aprofundava a dependência, como advogava o brasileiro, empregando o termo “desenvolvimento associado” para designá-lo. Em contrapartida, alterar o título para o leitor anglófono - “Current Theses on Latin America Development and Dependency: A Critique” - tem um propósito restrito e outro ampliado. No restrito, isto é, para os iniciados no debate, ele está citando um título homônimo, de Rodolfo Stavenhagen. No ampliado, no qual faz sucesso as teses de Frank, crescentemente associadas às alternativas políticas revolucionárias, como a de Régis Debray, a estratégia consiste em enunciar, de modo enxuto, os alvos da rejeição crítica (autor e ideia), contra os quais se constrói uma posição diferencial, simultaneamente teórica e ideológica.

PERIPÉCIA

Após a publicação em inglês de DDAL, em 1979, a LARR publicou um “Symposium” dedicado à teoria da dependência. Nele, os dois principais comentaristas se opuseram em função de suas tomadas de posição relativas à obra do sociólogo brasileiro: o cientista político Robert Packenham, autor que rejeitou as ideias de Cardoso com mais veemência em toda a recepção de sua obra, e Tulio Halperín Donghi (1926-2014), historiador argentino exilado nos Estados Unidos pela ditadura argentina desde 1966. Afirma Packenham:

[É preciso] uma precaução crucial: cuidado com a síndrome do “todo mundo sabe”. Há características da dependência em geral, e da abordagem de Cardoso mais especificamente, que “todo mundo sabe”. […] muitas pessoas, inclusive acadêmicos, estão preparadas para endossar, ou rechaçar de imediato, argumentos sobre o trabalho de Cardoso sem nem sequer considerar as evidências com base no fato de que “todos sabem” que ele apresentou ou não apresentou este ou aquele argumento. O próprio Cardoso frequentemente usa essa técnica para defender seu trabalho e atacar o trabalho de outros. Nesse tipo de situação, o melhor caminho é prestar muita atenção às evidências do que realmente foi e não foi dito e ser cético em relação às reivindicações que não são apoiadas por citações e provas. (Robert Packenham, 1982Packenham, Robert A. “Plus ça change…: The English Edition of Cardoso and Faletto’s Dependencia y desarrollo en América Latina”. Latin American Research Review , v. 17, n. 1, 1982, pp. 131-51., p. 132, grifos meus)

Atente-se que o alvo do rechaço não é somente Fernando Henrique Cardoso, como também as práticas intelectuais que estribam seu sucesso, induzindo-o ao uso delas, posto que chancelado socialmente por pares insuspeitos de descompromisso com o rigor. Raras declarações poderiam testemunhar tão precisamente a escala e o modo da difusão das obras do sociólogo, isto é, entrelaçadas ao sociólogo como obra. Tal como na investidura do primeiro - de uma coleção de 24 ao redor do mundo e de 7 nos Estados Unidos - título de doutor honoris causa recebido em New Jersey, ele é simultaneamente conhecido, desconhecido e reconhecido.

O balanço bibliográfico de Tulio Halperín Donghi, em contrapartida, reproduz ipsis litteris a tópica e os princípios de percepção (isto é, de visão e divisão, de apreciação e depreciação) introduzidos por Cardoso no espaço discursivo: a respeito do “dependentismo”, de Frank e Marini, do livro DDAL, e dele mesmo. Não bastasse isso, defende-o das críticas de Packenham. Justifica-se a apresentação de excerto que o ilustra.

  • 1. A teoria da dependência não é uma teoria, mas uma abordagem:

o sucesso teve, desde o início, um elemento óbvio de paradoxo: para Cardoso e Faletto, dependência é - mais do que uma “teoria” ou um princípio explicativo - um fato, mais precisamente, uma característica comum de um conjunto de fatos que requer explicação (mas não necessariamente uma única explicação válida para todos eles em todas as circunstâncias). (Halperín Donghi, 1982Halperín Donghi, Tulio. “‘Dependency Theory’ and Latin American Historiography”. Latin American Research Review , v. 17, n. 1, 1982., p. 115)

  • 2. Cardoso e Faletto distinguem-se de Frank:

Cardoso e Faletto ofereceram, entre outras coisas e talvez involuntariamente, uma visão contrária a uma obra cuja ambição intelectual ilimitada ganhou a atenção de um público inesperadamente amplo, tanto nos Estados Unidos quanto na América Latina. Trata-se, naturalmente, do trabalho de André Gunder Frank, que atravessou o horizonte intelectual latino-americano como um cometa deslumbrante e fugaz. Seu livro Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina (1967) pretendia oferecer uma visão radicalmente nova da região em seu passado, presente e futuro, com base em uma rejeição violenta de toda a tradição intelectual e ideológica da América Latina. Contra esse pano de fundo […] Cardoso e Faletto levaram a cabo - com admirável tato […] - uma dupla tarefa de recuperação e destruição: reunir e descrever sistematicamente as situações de dependência e proceder à sua análise com ferramentas que deviam muito pouco às ideias de revolução de Frank e muito mais às tradições que ele descartou desdenhosamente. Essas ferramentas foram, naturalmente, marcadas pelo ecletismo que predomina no continente latino-americano, e Cardoso e Faletto evitaram com sucesso o perigo de incoerência que os analistas com menos recursos muito frequentemente são inábeis em evitar. (idem, p. 116)

  • 3. Os trabalhos do sociólogo brasileiro não endossam as conclusões políticas revolucionárias de Frank e Debray. Frank tem uma personalidade “egocêntrica” (construindo assim uma oposição nítida ao “equilíbrio laborioso” da obra e da figura de Fernando Henrique Cardoso):

O trabalho de Frank, por outro lado, reflete mais de perto o humor da época em que ele veio à luz pela primeira vez. Seu editor francês não foi o único a descobrir nela “a base econômica e política que complementou as conclusões políticas alcançadas por Régis Debray”. A atualidade do livro explica parcialmente porque seu sucesso foi ao mesmo tempo retumbante e comparativamente curto. A alegação posterior de Frank - a substituição do coro admirável que o recebeu por uma censura cada vez mais amarga é apenas um reflexo do avanço mundial da direita - é sem dúvida menos absurda do que levaria a supor o tom deliciosamente egocêntrico em que é formulada. É claro que seus críticos estão longe de ser os agentes inteligentemente disfarçados da ciência burguesa ou da ortodoxia moscovita que Frank gostaria que fossem; no entanto, eles se lembram muito bem do resultado desastroso dos empreendimentos políticos inspirados pelas “conclusões políticas alcançadas por Régis Debray” e da influência de seu fracasso em fortalecer a reação conservadora que finalmente varreu a maior parte da América Latina. (idem, p. 117)

  • 4. Finalmente, o trabalho de Frank é tão fraco que nenhum scholar à direita se dá ao trabalho de responder a ele: “além disso, o trabalho de Frank sofria de muitas fraquezas acadêmicas para forçar os historiadores conservadores a confrontar explicitamente suas posições” (idem, p. 121).

Esse “Symposium” documenta uma alteração de equilíbrio na balança das trocas simbólicas resultante da peripécia simbólica pela qual o autor trabalhou: girar o espaço a seu favor, disputando os princípios de apreciação dirigidos ao dependentismo. Nesse volume da LARR, Fernando Henrique Cardoso ocupa posição equivalente à de André Gunder Frank no “Debate” da LAP. Sua obra passou de não lida, não traduzida, não citada à detentora da posição a partir da qual se situam os debatedores: o centro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aliando esforços aos de trabalhos recentes (Flores, 2022, Ruvituso, 2020Ruvituso, Clara. “Southern Theories in Northern Circulation: Analyzing the Translation of Latin American Dependency Theories into German”. Tapuya, v. 3, n. 1, 2020, pp. 92-106.), esta análise inverteu a direção predominante nos estudos sobre a circulação transnacional dos bens simbólicos: ao invés de observar a recepção de ideias e autores dos países centrais pela periferia, tratou do oposto. Além disso, tomou distância da visão usual do sucesso de Fernando Henrique Cardoso como algo determinado pela correção de suas ideias políticas (ele apostou na via “democrática” e “não revolucionária”, a “história lhe deu razão” etc.). Ao recuperar essa experiência, contraria, portanto, um efeito típico dos casos de triunfo simbólico: a amnésia subjacente à visão de que algumas obras “nascem clássicas” (Bourdieu, 2001b______. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d’Agir, 2001b.; Baehr, 2002Baehr, Peter. Founders, classics, canons. Modern disputes over the origins and appraisal of Sociology’s heritage. New Brunswick: Rutgers University Press, 2002.). É precisamente o caso de DDAL, que não nasceu clássico, mas tornou-se um, e que não foi visto como “correto”, senão como resultado de uma produção social dessa crença - oriunda da competição reconstituída acima.

Em contraponto àquela visão ilibada da vida intelectual, sublinhou-se que, sobretudo com os franceses e na experiência chilena, os intercâmbios que o sociólogo protagonizou se processaram de modo distinto ao padrão estrutural de trocas assimétricas de outros momentos. Nesse caso, os economistas e sociólogos latino-americanos foram integrados ao circuito transnacional como interlocutores e portadores de uma autoridade científica legítima a respeito da América Latina. Portanto, trata-se de uma relação substancialmente distinta daquela encontrada em fases anteriores, nas quais o país fornecia o material empírico das pesquisas de estrangeiros.

No que tange ao ingresso no espaço estadunidense, o fator mais decisivo consistiu na integração tanto do “dependentismo” quanto de Cardoso à dinâmica competitiva estabelecida internamente, entre acadêmicos estadunidenses. Houve segmentos desse espaço intelectual que se opuseram e se recompuseram em função de tomadas de posição em relação ao “dependentismo”. Portanto, nova nuance: as obras de latino-americanos e brasileiros são o objeto das discussões; e, de novo, o padrão é distinto do de fases anteriores dos intercâmbios transnacionais nas ciências sociais.

Esses fatores não bastariam para compreender o feito em questão. Fernando Henrique Cardoso foi ativo no processo em jogo. Foi crucial sua habilidade em estabelecer laços com polos opostos do espaço estadunidense, assim como seu árduo empenho em girá-lo a seu favor, disputando o controle da recepção do “dependentismo”, geminando assim a obra do scholar e o scholar como obra. O caso em tela deu e dá o que pensar, pois simultaneamente corrobora as estruturas assimétricas transnacionais e as contraria com um desfecho possível, mas improvável, e indiscutivelmente triunfante.

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  • 1
    Todas as informações pessoais de Cardoso foram extraídas do material disponibilizado pela Fundação FHC: https://fundacaofhc.org.br/files/curriculo_fernando.henrique.cardoso.pdf.
  • 2
    A correspondência citada neste artigo encontra-se em dois arquivos: o Fundo Florestan Fernandes, abrigado na Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e o Acervo Fernando Henrique Cardoso, localizado na Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível online: <https://fundaca ofhc.org.br/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2022
  • Aceito
    20 Jul 2022
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