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“BACURAU”: No futuro, só resistência?

“Bacurau”: in the Future, Only Resistance?

RESUMO

O artigo discute Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, enfocando, sob a perspectiva da crítica materialista-dialética em um país de capitalismo dependente, o tratamento do binômio moderno-arcaico e da melancolia, no qual comparecem, como alegorias no filme, obras artísticas brasileiras. Debate ainda as figurações em torno do projeto de nação, transformação social e resistência das classes populares no Brasil contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE:
cinema pernambucano; cinema brasileiro; Tropicalismo; melancolia; resistência

ABSTRACT

The paper discusses Bacurau, by Kleber Mendonça Filho and Juliano Dornelles, focusing, from the perspective of materialist-dialectical criticism in a country of dependent capitalism, the treatment of the modern-archaic binomial and melancholy, in which appear, as allegories, Brazilian artistic works. The paper also debates the figurations around the nation project, social transformation, and the resistance of the popular classes in contemporary Brazil.

KEYWORDS:
movies from Pernambuco; Brazilian movies; Tropicalism; melancholy; resistance

INTRODUÇÃO

A filmografia do cineasta Kleber Mendonça Filho, até Bacurau, não estava voltada para o espaço rural ou, mais propriamente, para o interior do Brasil. Na verdade, podemos afirmar que o artista dirigia seu olhar, de forma privilegiada, para a urbanidade e suas classes e frações de classe, fato que pode ser atestado em curtas (como Recife frio) e longas (como O som ao redor e Aquarius).

Bacurau, dirigido em parceria com Juliano Dornelles, constitui, assim, uma espécie de giro temático. Em linhas gerais, o filme narra o ataque de uma milícia formada por estrangeiros a uma pequena comunidade no interior do estado de Pernambuco, e cujo propósito é a diversão proporcionada pela atividade de caça e abate de seres humanos. A violência contra o povoado é possibilitada, de saída, por seu apagamento e pelo corte dos sinais de internet e celular. As cenas iniciais do filme apresentam um panorama dos personagens, assim como do caráter solidário das relações sociais locais, que tolera até mesmo os atos de banditismo de alguns. O enredo se desenrola com a resistência aos ataques: a comunidade mata seus algozes e enterra um deles vivo numa cela subterrânea, sob a praça principal da cidade.

O filme suscitou um conjunto de críticas na mídia especializada, desde as mais negativas - que interpretam o filme como um elogio vazio à violência ou mero apanhado de linguagens e gêneros - até as mais elogiosas. Vale observar que as avaliações midiáticas sobre a obra não passaram despercebidas na academia (Sena; Gusman, 2020Sena, Ercio; Gusman, Juliana. “Polêmicas nas reverberações críticas de Bacurau”. Animus: Revista Interamericana de Comunicação Mediática, v. 19, n. 40, 2020, pp. 161-78. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/animus/article/view/42337/pdf >. Acesso em: 23/4/ 2021.
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), o que atesta sua relevância para a produção cultural nacional.

Comecemos nossa trajetória pela abertura, que é composta por uma sequência de duas cenas. A primeira se inicia com o enquadramento do espaço sideral, em paralelo à apresentação dos créditos. A câmera se aproxima do planeta Terra - um satélite se move no espaço e passa diante da câmera - e focaliza o território brasileiro (sem iluminação, por contraposição ao que parece ser o restante do continente). A lentidão dos movimentos marca a cena e define a entrada do satélite no enquadramento. Por uma aproximação paulatina, a câmara enfoca o lugar geográfico que denominamos Nordeste brasileiro.

A segunda cena, por fusão, nos coloca dentro de um caminhão, numa estrada acidentada do oeste de Pernambuco. Uma legenda nos informa que a história não se passa no tempo presente e, sim, em um futuro próximo. No plano seguinte, ainda na segunda cena, aparecem na boleia o motorista e uma mulher adormecida, de nome Teresa. Ela é acordada quando o veículo começa a bater em caixões espalhados na estrada. Os movimentos são bruscos, a estrada é esburacada, os caixões atingidos fazem barulho. Os caixões caíram de um caminhão que se envolveu em um sério acidente com uma moto - o motoqueiro jaz à beira da estrada. A cena é ruidosa, em contraste com a mansidão da cena anterior.

O fundo musical da cena inicial é a canção “Não identificado”, de Caetano Veloso (na voz de Gal Costa)1 1 A música foi lançada em dois discos: Gal Costa e Caetano Veloso, ambos de 1969. O fim do Tropicalismo enquanto movimento pode ser situado precisamente naquele mesmo ano e foi marcado simbolicamente pelo exílio de duas figuras centrais, Caetano Veloso e Gilberto Gil, depois de terem sido presos no fim de 1968. Mais adiante, seremos informados, por diálogo, que a privatização da água causou escassez desse recurso na região e que Teresa se dirige à cidade de Bacurau para o funeral da avó, Carmelita, matriarca do povoado.

Sobre esse início do filme, cabe nos referirmos a uma obra anterior de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor (2012Mendonça Filho, Kleber; Dornelles, Juliano. Bacurau. [Filme]. Produção de Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd e Michel Merkt. Direção de Keber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Pernambuco: sbs Productions/Cinemascópio, 2019, 2h11min.). Para Ivone Daré Rabello, o primeiro longa do diretor é uma:

investigação artística sobre as razões pelas quais o Brasil urbano do século XXI convive com formas de mando (ainda que decadentes) do velho Brasil agrário, bem como as consequências dessa mescla num momento em que perspectivas de transformação pareciam rifadas - ao menos até junho de 2013. (Rabello, 2015Rabello, Ivone Daré. “O som ao redor: sem futuro, só revanche?”. Novos Estudos Cebrap, n. 101, 2015, pp. 157-73., p. 158)2 2 Observe-se que o artigo de Ivone Daré Rabello é de 2015, quando os desdobramentos dos movimentos populares de 2013 eram recentes e não havia ainda ocorrido o impeachment de Dilma Rousseff. A análise mais alargada desse período escapa ao presente texto, mas apontamos que Marcos Nobre (2022), quando discute a reprodução e a emergência de distintos espectros políticos, toma precisamente 2013 como um marco político relevante por sua potência transformadora e inovadora não realizada.

O som ao redor coloca as personagens em situação de servilismo e, ao mesmo tempo, de pequenas revanches ou burlas, com ganhos de difícil precisão e alcance nulo. A rigor, podemos deduzir que O som ao redor mostra o não enfrentamento direto dos conflitos de classe, vividos, portanto, de forma surda e sub-reptícia como mera desforra.

Ivone Daré Rabello (2015Rabello, Ivone Daré. “O som ao redor: sem futuro, só revanche?”. Novos Estudos Cebrap, n. 101, 2015, pp. 157-73.) dedica especial atenção à abertura do filme: as cenas, congeladas na forma de fotos, indicam os limites de uma possibilidade histórica de transformação - prometida pela modernização nacional-desenvolvimentista - que, na verdade, só aprofundou a desigualdade. Para a autora, a relação entre passado (mal resolvido), presente (sem solução) e futuro (sem perspectiva), embora se apresente explicitamente na cena quase final do confronto entre o proprietário rural e os filhos do agricultor assassinado, já desponta na abertura do filme. Para Rabello, as cenas iniciais prenunciam uma ameaça imprecisa, porém onipresente, prestes a transbordar em violência brutal: trata-se de algo indefinido, da ordem do fantasmático, indicando um desejo, mesmo que de algo passado, e uma ameaça velada.

Na leitura da ensaísta, O som ao redor apresenta um sentimento pós-luta de classes e pós-nacional resultante da derrota dos projetos de nação e organização popular. A abertura do filme, longe de constituir matéria acessória ao debate, vincula-se organicamente à expressão da permanência da desigualdade - traduzida na chave da sustentação da dialética entre arcaico e moderno - e aos seus efeitos sobre a luta de classes - ou sua ausência - no filme. A abertura de Bacurau, assim como a de O som ao redor, nos remete ao contraste entre moderno e arcaico registrado na já mencionada canção tropicalista de 1969. Trata-se de um filme de 2019, produzido, portanto, em um país cuja modernização conservadora se completara havia pelo menos quatro décadas. Qual o sentido dessa canção em Bacurau? Nossa hipótese é que não se trata de uma mera referência cultural a décadas passadas, plastificada e embalada para uso contemporâneo, como uma espécie de fetichização (alienante) de manifestações artísticas e políticas de outro momento histórico do Brasil. O que desejamos saber é como Bacurau, a partir dessa e de outras referências a obras artísticas do passado, repõe os embates sociais brasileiros glosados na dicotomia arcaico-moderno e representa formas da luta de classes.

Nosso artigo objetiva explorar, a partir da abertura de Bacurau, os sentidos da referência alegórica a elementos da cultura brasileira dos anos 1960, como tratamento de uma permanência do binômio arcaico-moderno e da necessidade de uma transformação social efetiva. Inscrevendo-nos na tradição crítica materialista e dialética brasileira (conforme Arantes, 2021Arantes, Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021 [1992] .), nosso foco é, portanto, os gestos estéticos de Bacurau para figurar projetos de nação e formas da luta de classes - no caso, em termos de resistência - sob o capitalismo contemporâneo dependente e periférico brasileiro.

Instigado pela trilha tropicalista da abertura do filme, o artigo apresenta, no primeiro item, uma discussão sobre o Tropicalismo e focaliza o tratamento das contradições da formação brasileira que esse movimento reverbera e repõe, assim como seus desdobramentos políticos e estéticos após 1960. No segundo item, analisa a abertura do filme enquanto operação alegórica de referência às contradições da sociabilidade brasileira, traduzidas na dialética arcaico-moderno. No terceiro e último item, a partir do ambiente e das personagens do tecido fílmico, amplia as considerações sobre o tratamento dessas contradições na obra, mirando sobretudo algumas representações e (re)interpretações do cangaço, para aprofundar a discussão sobre as figurações do projeto de nação, transformação social e resistência popular em Bacurau.

AINDA SOBRE O TROPICALISMO E SEUS DESDOBRAMENTOS

Conforme expusemos na introdução deste texto, mergulhar em Bacurau implica retornarmos ao tratamento estético da oposição entre arcaico e moderno e sua relação com a dinâmica social do país, particularmente por intermédio do Tropicalismo. Cumpre observar que a fortuna crítica sobre esse movimento é vasta. Este é considerado por muitos uma relevante manifestação tardia dos modernismos brasileiros (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo”. In: Schwarz, Roberto. Martinha versus Lucrecia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110.). Nossa discussão buscará apresentar, de forma breve, a dimensão não só debochada, mas também melancólica do movimento, operada por meio da forma estética da alegoria, vis-à-vis as contradições de arcaico e moderno em um país periférico e a perspectiva de construção de nação brasileira naquele momento.

Nessa direção, Roberto Schwarz apresenta-se como uma referência incontornável: no conhecido ensaio “Cultura e política (1964-1969)” (1978), ele mapeia e analisa as contradições das formas estéticas do período como projetos de transformação social, sejam revolucionários, reformistas ou simplesmente críticos às particularidades da sociabilidade capitalista-burguesa no Brasil.3 3 Escrito no calor do momento e publicado na França ainda em 1970, o ensaio analisa as distintas propostas estéticas e sua relação com a política no período entre o golpe empresarial-militar e o fechamento total do regime com o AI-5. Nesse contexto, emergem no teatro, no cinema, nas artes plásticas, na literatura e na canção popular duas grandes direções culturais inovadoras de esquerda: de um lado, as manifestações do movimento tropicalista (que inclui a canção popular e outras manifestações culturais, como a do Teatro Oficina); e, de outro, as formas artísticas produzidas no diálogo com as organizações e os grupos de estudantes e trabalhadores, pautadas por uma construção, mais ou menos conturbada, do denominado nacional-popular. Não é nosso objetivo explorar todos os desdobramentos desse importante ensaio. Para nossos propósitos, destacamos a identificação, pelo crítico, de um processo paulatino de substituição, na esquerda, do anticapitalismo pelo anti-imperialismo e pela tentativa de superar as dimensões arcaicas opressivas na sociedade brasileira. Por sua vez, esses processos resultam na constituição - ou recuperação - de “uma noção de ‘povo’ apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpenzinato, a intelligentsia, os magnatas nacionais e o exército” (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., p. 65); no estabelecimento da díade modernização e democratização como principais objetivos da luta política; e, por fim e para além das esquerdas, na ativação, sobretudo no pós-golpe, dos “sentimentos arcaicos da pequena burguesia”, pela qual “tesouros de bestice rural e urbana saíram à rua”, produzindo “uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado” como “revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei etc.” (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., pp. 70-71).

Ainda segundo o autor, a incorporação ou a recusa, parcial ou total, desses elementos marca a divisão entre os grupos políticos e artísticos de esquerda, assim como a matéria sobre a qual se debruça o Tropicalismo. Observa-se, entre os tropicalistas, uma negação da perspectiva nacionalista-romântica de povo e, ao mesmo tempo, uma adesão ao sombreamento das distinções de classes e frações de classe. Na verdade, a tradição, nos termos do nacional-popular, será substância central na composição alegórica do Tropicalismo, assim como as “relíquias do Brasil” burguês e as formas de modernização características de uma nação dependente. Todos esses aspectos são monumentalizados pela arte tropicalista e lhe imprimem originalidade.

A monumentalização - do popular, do burguês e da modernização brasileira - nos leva à estética particular do movimento: reunidas essas dimensões do Brasil, compõe-se a forma tropicalista da alegoria. Para Roberto Schwarz, o Tropicalismo se define precisamente pela submissão de anacronismos de toda ordem “à luz branca do ultramoderno, transformando o resultado em alegoria do Brasil” (1978, p. 74; grifo nosso). Nessa forma estética, ao contrário do símbolo, os elementos “não são transfigurados artisticamente: persistem na sua materialidade documental, são como que escolhos da história real, que é a sua profundidade” (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., p. 78).

A noção de alegoria como definidora da forma estética da canção tropicalista renderá frutos na crítica cultural sobre o período, na qual destacamos o também conhecido estudo de Celso Favaretto (2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.). A alegoria, conforme assinala o autor, coloca o significante em primeiro plano, aproximando-se do sonho na chave freudiana. Composta por fragmentação e elementos aparentemente díspares, apresenta-se como enigma - no caso, do passado e do futuro nacional. Assim, o tropicalista “articula os ready mades do mundo patriarcal e do consumo revivenciando, como numa experiência alucinatória, os traços de uma história que não chegou a se realizar” (Favaretto, 2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., p. 125).

Como no sonho, o todo não se presentifica. Contudo, essa característica não desqualifica a alegoria como forma estética: Favaretto afirma, a partir de Walter Benjamin, que as alegorias não revelam uma imagem convencional ou estática, mas “temporalizam a imagem abstrata que salta das ruínas da história” (Favaretto, 2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., p. 126). Nesse sentido, as alegorias podem constituir um recurso estético para representar a ausência de um projeto coletivo que produza uma narrativa sobre o tempo e os valores éticos. Como modo de produzir sentido para determinadas experiências sociais, o alegorista ressuscita o passado no tempo-espaço, como uma homenagem aos esquecidos; as ruínas compiladas têm significado no presente, mas também marcam a passagem dinâmica do tempo.

Portanto, a monumentalização alegórica, ao “representar o emperramento da história, […] não o faz em nome da saudade de um paraíso perdido”, pois “permite reconstruir a formação da história, desmitificando o processo de seu ocultamento” (Favaretto, 2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., pp. 126-27; grifo nosso). Por essa razão, para Favaretto, o Tropicalismo não coloca o absurdo como um destino inelutável brasileiro; a identidade como tesouro situado no passado a ser recuperado; e o caráter nacional como algo determinado. A rigor, para os tropicalistas, o Brasil não se completou (ainda), mas suas versões se apresentam como uma composição absurda e grotesca. O Tropicalismo é, portanto, “interpretação de interpretação”, feita aos estilhaços, com a “alegria de destruir” (Favaretto, 2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., pp. 128-29).

Assim, a forma alegórica tropicalista, embora não apresente proposta de superação, joga luz sobre o conjunto de contradições do Brasil como nação capitalista dependente. Lembremos que, para Roberto Schwarz, o movimento constitui uma representação, pelo absurdo, de “um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista” (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., p. 74).

Aqui, cabe a crítica do ensaísta às teorias da dualidade (ou à razão dualista),4 4 Para uma crítica às teorias dua- listas e seus efeitos políticos, ver Francisco de Oliveira (2003). Para uma discussão sobre a dialética e a inserção da obra de Roberto Schwarz nos embates no interior das teorias sociais brasileiras, inclusive no que diz respeito a sua contribuição para a superação das teorias dualistas, ver Paulo Arantes (2021). que apagam a ideia de que a modernização em países de capitalismo dependente constitui, na verdade, um processo histórico pelo qual a “ligação ao novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso social, que se reproduz no lugar de se extinguir” (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., p. 74; grifo no original). Uma contradição funcional, porém insolúvel nos limites do capitalismo. Cabe enfatizar ainda que tal contradição não se esgota na dimensão econômico-social, mas determina a dimensão propriamente cultural. Nas palavras de Schwarz, “de obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa a instrumento intencional da opressão mais moderna, como aliás a modernização, de libertadora e nacional, passa a forma de submissão” (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., p. 74).5 5 São dimensões paradoxais da forma tropicalista, por exemplo, músicas com guitarras e letras com remissões a arcaísmos; reprodução de tradições musicais e conteúdos verbais modernizantes; estilização irônica de figuras retrógradas e deboche da industrialização dependente; por fim, admiração pelo alcance da TV e crítica à cafonice da indústria cultural.

Cabe destacar que a aberração resultante gera um misto de melancolia e humor (Schwarz, 1978Schwarz, Roberto. “Cultura e política (1964-1969)”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1978, pp. 61-92., p. 76), captado e formalizado pelos tropicalistas. Marcos Napolitano (2010Napolitano, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010 [2001] . Versão digital disponível em: < Versão digital disponível em: https://www.academia.edu/3821530/SEGUINDO_A_CANCAO_digital >. Acesso em: 23/4/2021.
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) encaminha sua análise na mesma direção: a crítica tropicalista ao nacional-popular, projeto de outras manifestações artísticas do período, enseja uma combinação paradoxal entre, de um lado, paródia, grotesco ou simples pastiche e, de outro lado, melancolia. A melancolia tropicalista é pautada pelos efeitos provincianos da modernização industrial, heterodeterminada pelos movimentos do capital, mas operada “por dentro” em parceria com a burguesia nacional, gerando um made in Brazil. Inevitável reiterar, neste ponto, a indiscutível derrota das esquerdas no período e o fracasso na constituição de um projeto popular de nação. Como a ditadura militar dá posteriormente continuidade a um projeto modernizador nacional, embora já em outras bases, recria-se uma combinação particular da relação entre moderno e arcaico e um aprofundamento da cisão de classe no país.

A melancolia da derrota se estende ao pós-1960. Enquanto movimento tout court, o Tropicalismo finda em 1968, mas sua experiência estética e política, assim como as das demais expressões artísticas do período, impacta o contemporâneo. Isso será revisitado por Roberto Schwarz (2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo”. In: Schwarz, Roberto. Martinha versus Lucrecia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110.) em outro longo e relevante ensaio cujo objeto é o livro de memórias Verdade tropical, de Caetano Veloso. O crítico volta a inscrever o Tropicalismo na história brasileira, desta feita considerando o período pós-1970 e tendo como contexto o pleno desenvolvimento de uma indústria cultural no país.

Um primeiro elemento de acréscimo trazido pelo ensaio, em função desse novo contexto, está na constatação de que, em países periféricos, de plena indústria cultural, há uma sobreposição de acepções distintas do conceito de popular, condicionadas pela incorporação eficiente do popular ao mercado cultural nacional: “exclusão social - o passado? - e mercantilização geral - o progresso? - não são incompatíveis” (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo”. In: Schwarz, Roberto. Martinha versus Lucrecia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110., p. 54).

Um segundo ponto merece destaque. Roberto Schwarz (2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo”. In: Schwarz, Roberto. Martinha versus Lucrecia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110.) afirma que o paradoxo tropicalista - entre, de um lado, o conformismo e o kitsch e, de outro, a denúncia pelo absurdo das contradições nacionais - opera com o apagamento do povo como protagonista de um novo projeto de nação. Nesse sentido, os horizontes de transformação social se amesquinham e “o mundo cheio de diferenças e sem antagonismo toma a feição de um grande mercado” (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo”. In: Schwarz, Roberto. Martinha versus Lucrecia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110., p. 99).

Celso Favaretto (2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.) e Francisco Alambert (2011) adensam essa crítica nessas duas direções. Do ponto de vista estético, apesar da operação inovadora e crítica da alegoria tropicalista, o movimento não propõe nenhuma forma estética que supere a cafonice do arcaico ou a superficialidade da indústria cultural. Nas palavras de Celso Favaretto, “vista à luz da utopia, é certo que a crítica tropicalista pode ser considerada inócua, pois suas manifestações se esgotam no próprio momento da ocorrência sem propor nenhum modelo que preenchesse o vazio resultante” (Favaretto, 2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., p. 124). Francisco Alambert (2011), em crítica ainda mais contundente, define o Tropicalismo hoje como uma espécie vitoriosa de “razão” dualista a respeito da cultura brasileira. Segundo o autor, o Tropicalismo se tornou a figura hegemônica na cultura brasileira, inclusive para consumo externo. Nesse processo, sua dimensão contestadora da vida burguesa na periferia do capitalismo desapareceu e um niilismo se instalou, ao mesmo tempo que sua faceta apologética da indústria cultural se afirmou. Entender a dinâmica dessa indústria cultural, assim como a da modernidade, é central para a recriação de uma “cultura de ‘resistência’” (Alambert, 2011, p. 150).

Em suma, os tropicalistas pós-1960 parecem oferecer uma eternização das contradições históricas, numa espécie de manutenção das tensões culturais e sociais do país. Em certo sentido, colocam-se ainda mais pessimistas que a chave dualista mencionada por Francisco Alambert (2011), já que o dualismo aponta para uma redenção futura pela modernização. Também são mais pessimistas que as teorias da dependência, que indicavam como caminho ora uma superação do capitalismo, ora uma inserção mais favorecedora, dependendo do espectro político dos proponentes. Resta, nos estertores do Tropicalismo, a articulação entre uma melancolia e uma espécie de carnavalização debochada - pós-moderna? - da tragédia nacional.

Concordando com os autores elencados, observamos que a força crítica do Tropicalismo se apaziguou de fato, na medida em que não se desdobrou em perspectivas de transformação dos impasses nacionais e aprofundamento de seu teor negativo, aclimatando-se às demandas da indústria cultural. No entanto, podemos afirmar que o Tropicalismo parece permanecer como memória do tratamento da relação dialética entre arcaico e moderno: a forma tropicalista é revisitada e reformulada em Bacurau, é ponto de partida da abordagem da sociabilidade brasileira e seus impasses, como veremos nos próximos itens.

ESPAÇO SIDERAL, ESTRADA DE TERRA, CIDADE DO INTERIOR

Gravada por Gal Costa em disco homônimo lançado em 1969Costa, Gal. Gal Costa. [ Disco-CD.] Rio de Janeiro/São Paulo: Philips/Scatena e Reunidos, 1969. CD, 39'28''., a canção “Não identificado”, composta por Caetano Veloso, apresenta a forma alegórica característica do Tropicalismo nos termos acima discutidos. Trata-se de uma referência ao modelo de composição amorosa popular brasileira, no qual o eu lírico coloca-se em posição de valorização do cânone e de distanciamento. O distanciamento é produzido pelo metalinguístico operado pela música: a composição amorosa (brasileira) é seu próprio objeto, em detrimento da descrição da amada ou dos sentimentos em relação a ela. A relação com a modernidade também é ambígua, já que a canção referida se define como um “anticomputador” e, concomitantemente, como um objeto amoroso cujo veículo será um disco voador a ser lançado no espaço sideral. Essa estranha formação de arcaico - figurado na canção popular amorosa e na “cidade do interior” - e moderno - indústria fonográfica, computadores e discos voadores - cria um “objeto não identificado” que remete, em termos literais, aos OVNIs e, em sentido simbólico, à própria criação artística brasileira, ou ainda, em sentido alegórico, à própria brasilidade.

A atmosfera é melancólica pela ausência do objeto amoroso; ademais, a canção foi lançada após o Carnaval, o que a vincula a um período de descenso da alegria. Ainda a compõe um conjunto de gemidos, gritos e ruídos característico da estética ready made tropicalista, numa espécie de referência ao espaço sideral: meio etéreo, meio desconhecido, mas que estabelece um tom obscuro e fantasmático.

Assim, a “cidade do interior” de “Não identificado” se afasta da representação em chave romântica, como se pode deduzir pelo que discutimos no item anterior. Ela é cantada pelo eu lírico na forma de um distanciamento paradoxal do moderno, mas também do gênero canção popular romântico-sentimental. Os mundos arcaico e moderno são apresentados lado a lado na canção, sem uma síntese, o que produz um “objeto não identificado” diante do qual o eu lírico se coloca sem se confundir com ele. Temos aqui uma crítica não só da interpretação romantizada de um “velho” Brasil interior intocado, mas também da interpretação ufanista do “novo” Brasil moderno, gigante e industrial.

Retornemos a Bacurau. Em termos de forma estética, podemos afirmar que a canção tropicalista figura na abertura do filme como uma alegoria ou, mais precisamente, como uma alegoria das alegorias tropicalistas.6 6 Cláudio Duarte, Thiago Canettieri e Raphael Alvarenga (2020) também analisam, em Bacurau, a abertura e a canção tropicalista aqui em foco, porém com propósitos distintos. Os autores consideram o próprio filme um objeto não identificado “pós-catastrófico”, cuja negatividade radical explica o incômodo suscitado, sobretudo, na “boa gente cidadã" (ibidem, p. 250); tal questão, embora relevante, não é central na nossa discussão. No filme, ela faz uma referência monumentalizada a um momento histórico de impasse no Brasil, recolhendo e ressignificando tanto os escombros da memória tropicalista quanto os da memória cifrada pelo Tropicalismo. Não nos parece aleatório que a canção termine no momento em que Teresa acorda: na cena do espaço sideral, estamos no âmbito do sonho, das significações não literais e não codificadas a priori, na dimensão da alegoria. A própria canção é uma espécie de alucinação: uma das “relíquias do Brasil”, se o leitor nos permitir a ironia com os tropicalistas.

Embora nos concentremos, neste item, na canção de abertura de Bacurau, identificamos o mesmo processo de alegorização “musical” em “Bichos da noite” (1967),7 7 Na letra dessa canção, há uma referência à palavra “bacurau”. de Sérgio Ricardo, e “Réquiem para Matraga” (1966), de Geraldo Vandré, que acompanham, respectivamente, o funeral da matriarca da cidade e os créditos finais do filme. Essas canções funcionam como ready mades, remetendo, primeiro, a um momento de perspectiva de transformação social no país e, segundo, à forma como essas obras glosam o momento em termos de resistência popular. Em sentido semelhante à canção de abertura, possuem teor onírico e reforçam cenas nas quais as personagens estão sob efeito de psicotrópicos - seja para lidar com a dor da perda de um ente querido, seja por conta da necessidade de se defender dos algozes.8 8 Contribuem para essa atmosfera ainda outros elementos, além da alusão ao devaneio das personagens. A cena do funeral, por exemplo, é marcada pela imagem da água transbordando do caixão, numa referência metonímica à possibilidade de existência e vida, obliterada pela destruição ambiental da qual a comunidade é vítima e que afeta o seu acesso à água. Em outras palavras, podemos falar aqui de uma visitação a situações vividas e obras artísticas transliteradas para a linguagem dos sonhos e das alucinações. A questão é o sentido dessa recolha formal de memória. Em nossa perspectiva, tais imagens musicais não conjugam mero passadismo ou citação apenas para o consumo pós-moderno do telespectador. Elas produzem uma inserção na passagem do tempo, monumentalizando obras da vida artística nacional, temporalizando-as e trazendo-as “de volta” para o campo da história.

Assim, as canções empregadas em Bacurau compõem um quadro não só de vivências da comunidade ou da nação, mas também dessas matérias representadas como ruínas e fragmentos de memória, cuja costura remete a uma imagem de Brasil. O que o filme nos lembra, contudo, é que tais canções podem ser figuradas no âmbito da alegoria; o projeto de nação mais igualitária não se cumpriu, tal fracasso foi monumentalizado, mas as contradições persistem e podem ser representadas em termos da figuração arcaico-moderno. Parafraseando Celso Favaretto (2000Favaretto, Celso. Tropicalia, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.), teríamos não uma representação, mas uma interpretação da interpretação da interpretação.

Em Bacurau, a distância de qualquer perspectiva “sentimentalizável” em relação ao arcaico-popular é infinitamente maior que no Tropicalismo. De forma semelhante, o mundo moderno se mostra incontornável, porém violento e sem peias, com suas necrotecnologias e milícias globalizadas.

A resistência dos moradores, em certo sentido, é surda, a despeito da trilha inscrita em um passado de perspectivas revolucionárias. Na eclosão da resistência sob a forma de brutalidade, por sua vez, o efeito será de melancolia. Mas a alegorização dessas obras musicais, assim como de outros elementos da cultura nacional, não será inócua. Aprofundaremos essa discussão no item a seguir.

Podemos dizer que as alegorias da canção tropicalista são parodiadas e ressignificadas - afinal, quem pensaria que os drones que sobrevoam determinados espaços no início do filme são OVNIs, a não ser o espectador “ingênuo” capturado pelas referências da canção tropicalista em sua suposta literalidade? Não custa muito para o filme revelar que a população de Bacurau sabe mais que o espectador. E mais: no desenrolar do enredo, as personagens revelam a percepção de que algo estranho está acontecendo e pode ser prejudicial ao bem-estar da comunidade. Estamos na estrada de terra e a brutalidade das contradições da sociabilidade capitalista se mostrará em toda sua perversidade, assim como a reação a ela.

Na abertura do filme, essa ruptura entre o passado cifrado pelas canções tropicalistas e o presente/futuro é marcada pelo aterrissar na estrada de terra. Essa aterrissagem nos joga na cena absurda dos caixões espalhados na estrada - e a violência concreta do real se revela imediatamente com a imagem do motoqueiro acidentado. Mas antecipamos que não se trata de uma perspectiva vitimizadora das classes populares. Nas palavras de Fernão Pessoa Ramos (2019Ramos, Fernão Pessoa. “Ainda Bacurau”. A Terra é Redonda, 2 nov. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/ainda-bacurau/ >. Acesso em: 23/8/2022.
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, p. 3), embora ainda sob as lentes de uma classe média progressista, o “‘coitadinho’ popular […] saiu dos eixos e agora anda com as próprias pernas”, conforme demonstraremos no próximo item.

PASSADOS, PRESENTES E FUTUROS FANTASMÁTICOS

Considerando-se esse universo de referências histórico-culturais, é possível reconhecer, na narrativa de Bacurau, uma composição tensa de um Brasil esgarçado entre a melancolia de um país que permanece violento e desigual e as forças da resistência. Essa tensão, como vimos até aqui, se expressa na trilha sonora do filme, a qual recupera de forma crítico-simbólica a tradição tropicalista e dos movimentos musicais “engajados” do período ditadura empresarial-militar (1964-1985). É relevante ampliarmos, neste item, nossa análise do binômio “melancolia-resistência” a partir de dois elementos: o espaço e as personagens.

Em uma das primeiras imagens após aterrissarmos na estrada de terra, encontramos um interessante contraponto de planos que, embora não surjam em sequência, apontam para a tensão acima aludida. O primeiro plano mostra uma placa na estrada com os dizeres: “Bacurau 17 km: se for, vá na paz”. O outro é um aviso de “Procura-se” no sistema de gps do caminhão - em antecipação narrativa da presença de Lunga, um foragido da justiça.

O contraponto semântico - compreendido apenas em uma visada a posteriori - justapõe a paz de Bacurau à imagem agressiva de Lunga, uma espécie de vingador local que, a despeito de sua ferocidade, tem o respeito e o reconhecimento dos moradores da cidadezinha. A própria Teresa, ainda no caminhão, afirma categoricamente: “Não conte comigo para entregar Lunga”. Ainda em relação a esse contraponto, observamos que, à medida que a narrativa se desdobra, a “paz” de Bacurau se confunde com uma melancolia pungente, manifestada nos olhares vazios, nos silêncios das várias personagens.

Na sequência do cortejo fúnebre de dona Carmelita, uma espécie de mãe espiritual da comunidade, imagens da natureza são mostradas em planos gerais, um recurso narrativo que se repete ao longo do filme. Essa intrusão da natureza como procedimento discursivo opera em duas direções: a primeira é marcar o que de natural, em oposição ao cultural, pode ser reconhecido como elemento estruturante alegórico de nossas raízes nacionais; o segundo é estabelecer uma espécie de “diálogo sub-reptício” com as relações sociais que se explicitam na superfície da trama, propondo ao espectador uma reflexão contínua acerca da intromissão violenta que essas relações comunitárias são capazes de gerar. As relações são solidárias, mas não harmônicas: Bacurau não é um paraíso perdido.

É possível reconhecer, a partir desse ponto, a referência recorrente ao fato de que a cidade de Bacurau foi apagada do mapa. Se a modernidade a põe no mapa (com os tablets na escola, por exemplo), essa mesma modernidade se volta contra ela (pelos diversos equipamentos utilizados pelos assassinos, que também “dispõem” dela). Contudo, a despeito dessas tentativas de apagamento - a invisibilidade no mapa e a comunicação cortada -, a cidade resiste. O professor Plínio tenta, sem sucesso, apontar na tela de um tablet a localização exata de Bacurau; não a encontrando, realiza a busca na tela gigante de um computador. Diante do desapontamento das crianças, Plínio lhes apresenta um mapa feito à mão: “Nesse mapa nós encontramos Bacurau”. Por necessidade, ele resgata uma técnica “arcaica”, mas que lhe permite reafirmar a memória e a existência da cidade. A frustração melancólica de Plínio e a decepção dos alunos indicam a ameaça de apagamento sempre pairando sobre a cabeça dos habitantes da cidade, fato que será reiterado mais adiante, quando a motociclista invasora diz à dona da birosca: “Bacurau não está no mapa, né? A gente encontrou por acaso”.

A permanência e a sobrevivência da cidade se dão pelos gestos silenciosos e pelo conformismo dos habitantes. Quando Tony Júnior, o cínico prefeito de Serra Verde, chega com livros velhos, remédios e mantimentos vencidos, uma travesti dá aviso da movimentação estranha. Uma sequência de planos revela as ruas desertas e as casas fechadas; um silêncio ensurdecedor é a música de fundo da chegada do político, desafeto de Bacurau. A esse silêncio, o prefeito contrapõe um chamamento à população, bradando com um megafone: “Eu sei que vocês estão aí me ouvindo!”. Pouco depois, gritos anônimos irrompem no deserto das ruas: “Bandido”, “Safado”, “Desapareça”. As poucas palavras, o silêncio e a ausência assinalam a resistência quase tímida dos moradores.

Ainda nessa cena, outro episódio envolvendo diretamente o político explicita a violência das relações humanas e sociais, revelando a tensão entre violência, apatia e resistência, elementos que atravessam toda a narrativa. Referimo-nos ao episódio em que a prostituta Sandra é levada à força pelo prefeito e seus capangas, sob os olhares atônitos dos habitantes da cidade. À voz da cafetina, que exige o pagamento adiantado pelos serviços da moça, contrapõe-se a voz de Domingas, que ameaça o prefeito: “Se ela voltar machucada, eu corto seu pau e dou para as galinhas”. Nessa passagem, justapõem-se apatia e resistência, dor e solidariedade, ou seja, as contradições de Bacurau em suas complexas redes de organização social, política e humana. A “paz” de Bacurau, portanto, é conquistada não só com a sequência catártica de valentia final, mas também com um conjunto de negociações, adaptações e confrontos.

Para os propósitos de nosso ensaio, o museu, enquanto espaço de memória, merece uma reflexão. A referência a ele ocorre, por exemplo, quando a dona da birosca pergunta aos motociclistas se eles pretendem visitar o museu da cidadezinha. A culminância é, sem dúvida, quando a responsável pelo museu de Bacurau dá ordem para que as manchas de sangue deixadas nas paredes durante o enfrentamento aos invasores americanos não sejam apagadas. Voltaremos a essa cena mais adiante.

O museu é um espaço de narratividade, em certo sentido semelhante à estruturação da forma estética do filme aqui descrita, pois constitui “narrativas sobre narrativas” ou tempos que se encontram, conforme estudo de Karla Santos (2020Santos, Karla Cristiane Rodrigues dos. Como o cinema discute o museu? Memória, resistência, patrimônio e o poder da identidade em um estudo de caso: Museu Histórico de Bacurau, do filme Bacurau (2019). Trabalho de conclusão de curso. Brasília: Faculdade de Ciência da Informação/Universidade de Brasília, 2020., p. 19) sobre esse espaço em Bacurau. Ao reconhecermos a narratividade como traço convergente entre o museu e o cinema, acionamos outras camadas simbólicas para a leitura do filme, considerando, sobretudo, a herança do cangaço em nossa história política, social e cultural. O museu é, portanto, o lugar de recolha dessas “relíquias do Brasil”; contudo, sua importância política em termos de identificação coletivo-comunitária é constantemente reiterada no filme.

O cangaço - presentificado também pelo desenrolar da história de Lunga - constitui-se como mais uma alegoria estruturante de Bacurau e faz referência a um topos tradicional do cinema brasileiro. A temática, na filmografia nacional, foi tratada em diferentes gêneros, como o nordestern, a comédia, o documentário e a estética glauberiana, e sua permanência pode ser atestada pela filmografia do período da chamada “Retomada”, como Baile perfumado (1996) (Vieira, 2007Vieira, Marcelo Dídimo Souza. O cangaço no cinema brasileiro. Tese (doutorado em multimeios). Campinas: Instituto de Artes/Universidade Estadual de Campinas, 2007.).9 9 Não custa esclarecer que nossas observações, neste ponto, dirigem-se apenas às figurações do cangaço no cinema. Referindo-se a Glauber Rocha, Marcelo Vieira (2007, p. 316) diz que “o contexto histórico do cangaço não é trabalhado conforme a veracidade dos fatos, mas na representatividade que esses fatos aglomeram”. Entretanto, cabe lembrar também a relevância do cangaço para a historiografia e sociologia nacionais. Luiz Bernardo Pericás (2010), em relevante estudo sobre o tema, reconstrói a vida concreta dos cangaceiros, as relações sociais que atravessam o fenômeno, como a mistura de arcaico e moderno, seus conflitos com a instituição de um Estado pós-1930, a criação do cangaceiro como figura revolucionária e outras mitologias (por exemplo, seu caráter supostamente popular).

Nosso ponto aqui é que Bacurau concretiza e condensa, no museu da cidade, o cangaço e suas mitologias como resistência popular, mantendo, no entanto, um distanciamento da sinonímia direta entre cangaço e revolta. Estamos na narratividade do museu, o que indica que a conexão entre cangaço e revolta está submetida à cultura, à interpretação e à reinscrição histórica. Lunga e seu bando, como figuras do banditismo, remetem não a uma reprodução, mas a uma releitura do topos, procedimento operado formalmente pela transgenia da personagem. O filme não deixa de marcar, portanto, que não estamos no campo da criação mítico-romantizada e a-histórica de, por exemplo, O cangaceiro (1953), dirigido pelo cineasta Lima Barreto. Ademais, a relação entre cangaço e valentia não está dada: é fruto da práxis que monumentaliza e atualiza esse elemento da memória no campo da história e serve de recurso social e cultural popular.

A alegorização do cangaço, evidentemente, exige breves considerações de caráter comparativo com a obra de Glauber Rocha, sobretudo Deus e o diabo na terra do sol, objeto do importante estudo de Ismail Xavier (2019Xavier, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2019 [1983] .). Se, na primeira parte do ensaio, centramos nossa discussão no Tropicalismo, cabe lembrar que esse filme de Glauber é considerado um dos marcos iniciais do movimento. Por conta de sua relativa diferença em relação ao que discutimos no primeiro item, parece-nos relevante destacar três pontos da análise de Xavier.

Um primeiro ponto é a relação entre moderno e arcaico. A estética glauberiana valoriza a representação folclórica como “resistência cultural e logos onde se engendra a identidade nacional” (Xavier, 2019Xavier, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2019 [1983] ., p. 164). Contudo, mergulhado na transformação social e inscrito em uma visão dialética da história, Deus e o diabo na terra do sol não descarta e, ao mesmo tempo, não reproduz a representação da sociedade brasileira construída pelas classes dominantes. O mundo rural não é puro arcaísmo nem superstição, assim como o mundo burguês não é puro progresso iluminista.

Um segundo ponto diz respeito à resolução do filme em termos de trajetória das personagens, e pela qual o estudioso identifica uma teleologia: “a liberação das personagens não se mostra até o fim, elo por elo […] Trata-se de […] indicar como messianismo e cangaço, na sua disposição de luta, prefiguram a revolução, télos que virá preencher o sentido deles e revelar sua verdadeira significação na ordem maior das coisas” (Xavier, 2019Xavier, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2019 [1983] ., p. 161), até porque o oprimido, mais ou menos alienado, mais ou menos consciente, “traz uma disponibilidade para a revolta, mesmo que subterrânea” (ibidem, p. 127). Por essa razão, o mar final encontra-se na chave do imaginário, uma espécie de visão do paraíso, alegorizando a ideia popular de que “o sertão vai virar mar”, no sentido de que aponta uma libertação futura.

Por fim, para Ismail Xavier, Glauber parte de processos e lutas efetivas do Nordeste, mas reproduz os fatos de forma naturalista e não os transforma em espetáculo (Xavier, 2019Xavier, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2019 [1983] ., p. 127). Elabora, assim, a partir dos condicionantes da falta de orçamento e da precariedade, as bases da estética da fome, relacionando estilo, condições de produção, diferença do cinema dominante e as determinações do “subdesenvolvimento” (ibidem, p. 128).

De forma semelhante ao tropicalismo de Glauber, descobrimos logo nas primeiras cenas de Bacurau que o moderno, de certa forma, é o oposto de um progresso efetivamente humanista-racional, assim como o mundo “arcaico” é atravessado por tecnologias, formas de existência e violências plenamente contemporâneas.

Outra aproximação é que o fim de Bacurau, assim como no filme de Glauber, não nos oferece uma alternativa resolutiva imediata. No entanto, no filme de Mendonça e Dornelles, o “futuro” se expressa aqui e agora; esse futuro pode continuar marcado pela barbárie e a libertação está longe de ser garantida pelo curso da história. Enterramos provisoriamente os ecos de violência que voltarão a nos assombrar. Um dos mercenários, ao ser conduzido à sua cela subterrânea, diz em tom de ameaça: “Outros virão”. Ou, como conclui um habitante de Bacurau na cena em que se toma a decisão de manter as manchas de sangue nas paredes do museu local: deve-se deixar as marcas como testemunho, sob o tom melancólico, porém, de um “infelizmente” da fala explícita de uma das personagens.

O futuro fantasmático em Bacurau é figurado de viés - como a necropolítica onipresente no filme, retratada tanto nas execuções em massa que aparecem em um aparelho de TV quanto no próprio conflito central da narrativa. Bacurau se encerra com o algoz sendo enterrado vivo numa cela subterrânea sob a praça principal da cidade, enquanto profere ameaças sobre a chegada de novas levas de atiradores. Renovam-se as marcas brutais da nossa sociabilidade - ou do mundo? - e a reação popular não impede que se projetem violências futuras. Entretanto, não custa lembrar, trata-se de reação popular, articulada a partir de uma organização coletiva. A “periferia” não parece ser redimida por outrem nem congelada no papel de vítima.

De forma distinta de Deus e o diabo na terra do sol, não há dúvida de que Bacurau é uma produção inserida nos processos da indústria cinematográfica contemporânea: como lembram os créditos finais, o filme gerou oitocentos empregos diretos e indiretos, pois, “além de ser a identidade de um país, a cultura é também uma indústria”. A citação de distintos gêneros do cinema globalizado, assim como a espetacularização da violência gráfica, também concorre para a sua intimidade com a forma de consumo cultural instituída.

Ainda nessa direção, contudo, não podemos deixar de chamar a atenção do leitor para a cena em que um dos habitantes da cidade - Pacote, ex-bandido famoso, cujas ações violentas do passado parecem fazer sucesso nas redes sociais - solicita ajuda a Lunga e seu bando para remover os corpos das primeiras vítimas dos forasteiros. Lunga, perguntado se está cansado, responde: “Eu tô é com fome! A gente tá igual à bicha do Che Guevara passando fome nessa merda!”. Aqui, a fome aparece numa relação alegórica e humorística com a ideia de revoluções do passado. Em Bacurau, fica claro que a fome e a precariedade são políticas, embora não faça delas um material formal, como fez Glauber.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao alegorizar um conjunto de obras e figurações nacionais relevantes, embora de forma distinta dos tropicalismos de diferentes matizes, Bacurau traz de volta a dialética entre o moderno e o arcaico em um país de capitalismo dependente. Essa retomada se mostra relevante, porém o filme não consegue expressar plenamente os impasses de um efetivo projeto popular e emancipador de nação. Se a dualidade estrutural já foi criticada e superada pelas teorias sociológicas brasileiras, concluindo que o moderno gera o arcaico e vice-versa (Arantes, 2021Arantes, Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021 [1992] .), tal compreensão sobre a forma social do capital na periferia não é suficiente para a construção de outra sociabilidade.

Bacurau não oferece alternativas simples nem imediatas para a figuração dessa sociabilidade além do capital. O filme não joga as saídas para o campo da libertação trazida pelo processo dialético da história ou para um cenário de pura revanche pós-luta de classes. A despeito do final catártico, a organização popular se mostra parcial e elemento de um processo contínuo.

As formas em diálogo, assim como a mistura de gêneros, não são citações vazias ou fragmentárias em torno de figuras estéticas da memória do país. Longe de produzir cinismo ou conformação, Bacurau produz um incômodo calcado nos fantasmas do passado, do presente e do futuro, e na sugestão de que a transformação da sociedade de classes pode não ser tranquila, mas será inevitável.

Assim, o filme se pauta pela ausência de respostas alentadoras para as contradições nacionais e internacionais - com isso, de certa forma, opondo-se às manifestações das plateias. Contudo, longe de se constituir um defeito da obra, esse efeito político contribui para sua espessura estética e coloca, para o cinema nacional, uma problematização sobre quem é, afinal, o sujeito que dirige as lentes do olhar cinematográfico brasileiro. Ao apontar para uma reposição tanto das contradições entre moderno e arcaico, em novos termos, quanto da melancolia, agora como efeito da resistência popular inexorável, Bacurau é uma obra efetivamente contemporânea.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Veloso, Caetano. “Não identificado”. In: Veloso, Caetano. Caetano Veloso. [Disco-CD.] Rio de Janeiro/Salvador/São Paulo: Philips/JS/Scatena, 1969. CD, 41'33''.
  • Vieira, Marcelo Dídimo Souza. O cangaço no cinema brasileiro. Tese (doutorado em multimeios). Campinas: Instituto de Artes/Universidade Estadual de Campinas, 2007.
  • Xavier, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2019 [1983] .
  • 1
    A música foi lançada em dois discos: Gal Costa e Caetano Veloso, ambos de 1969Veloso, Caetano. “Não identificado”. In: Veloso, Caetano. Caetano Veloso. [Disco-CD.] Rio de Janeiro/Salvador/São Paulo: Philips/JS/Scatena, 1969. CD, 41'33''.. O fim do Tropicalismo enquanto movimento pode ser situado precisamente naquele mesmo ano e foi marcado simbolicamente pelo exílio de duas figuras centrais, Caetano Veloso e Gilberto Gil, depois de terem sido presos no fim de 1968.
  • 2
    Observe-se que o artigo de Ivone Daré Rabello é de 2015, quando os desdobramentos dos movimentos populares de 2013 eram recentes e não havia ainda ocorrido o impeachment de Dilma Rousseff. A análise mais alargada desse período escapa ao presente texto, mas apontamos que Marcos Nobre (2022Nobre, Marcos. Os limites da democracia. São Paulo: Todavia, 2022.), quando discute a reprodução e a emergência de distintos espectros políticos, toma precisamente 2013 como um marco político relevante por sua potência transformadora e inovadora não realizada.
  • 3
    Escrito no calor do momento e publicado na França ainda em 1970, o ensaio analisa as distintas propostas estéticas e sua relação com a política no período entre o golpe empresarial-militar e o fechamento total do regime com o AI-5. Nesse contexto, emergem no teatro, no cinema, nas artes plásticas, na literatura e na canção popular duas grandes direções culturais inovadoras de esquerda: de um lado, as manifestações do movimento tropicalista (que inclui a canção popular e outras manifestações culturais, como a do Teatro Oficina); e, de outro, as formas artísticas produzidas no diálogo com as organizações e os grupos de estudantes e trabalhadores, pautadas por uma construção, mais ou menos conturbada, do denominado nacional-popular.
  • 4
    Para uma crítica às teorias dua- listas e seus efeitos políticos, ver Francisco de Oliveira (2003Oliveira, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.). Para uma discussão sobre a dialética e a inserção da obra de Roberto Schwarz nos embates no interior das teorias sociais brasileiras, inclusive no que diz respeito a sua contribuição para a superação das teorias dualistas, ver Paulo Arantes (2021Arantes, Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021 [1992] .).
  • 5
    São dimensões paradoxais da forma tropicalista, por exemplo, músicas com guitarras e letras com remissões a arcaísmos; reprodução de tradições musicais e conteúdos verbais modernizantes; estilização irônica de figuras retrógradas e deboche da industrialização dependente; por fim, admiração pelo alcance da TV e crítica à cafonice da indústria cultural.
  • 6
    Cláudio Duarte, Thiago Canettieri e Raphael Alvarenga (2020Duarte, Cláudio; Canettieri, Thiago; Alvarenga, Raphael. “Objeto não identificado. Bacurau: cenas de um mundo pós-colapsado”. Sinal de menos, v. 1, n. 14, 2020, pp. 250-89.) também analisam, em Bacurau, a abertura e a canção tropicalista aqui em foco, porém com propósitos distintos. Os autores consideram o próprio filme um objeto não identificado “pós-catastrófico”, cuja negatividade radical explica o incômodo suscitado, sobretudo, na “boa gente cidadã" (ibidem, p. 250); tal questão, embora relevante, não é central na nossa discussão.
  • 7
    Na letra dessa canção, há uma referência à palavra “bacurau”.
  • 8
    Contribuem para essa atmosfera ainda outros elementos, além da alusão ao devaneio das personagens. A cena do funeral, por exemplo, é marcada pela imagem da água transbordando do caixão, numa referência metonímica à possibilidade de existência e vida, obliterada pela destruição ambiental da qual a comunidade é vítima e que afeta o seu acesso à água.
  • 9
    Não custa esclarecer que nossas observações, neste ponto, dirigem-se apenas às figurações do cangaço no cinema. Referindo-se a Glauber Rocha, Marcelo Vieira (2007Vieira, Marcelo Dídimo Souza. O cangaço no cinema brasileiro. Tese (doutorado em multimeios). Campinas: Instituto de Artes/Universidade Estadual de Campinas, 2007., p. 316) diz que “o contexto histórico do cangaço não é trabalhado conforme a veracidade dos fatos, mas na representatividade que esses fatos aglomeram”. Entretanto, cabe lembrar também a relevância do cangaço para a historiografia e sociologia nacionais. Luiz Bernardo Pericás (2010Pericás, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo , 2010.), em relevante estudo sobre o tema, reconstrói a vida concreta dos cangaceiros, as relações sociais que atravessam o fenômeno, como a mistura de arcaico e moderno, seus conflitos com a instituição de um Estado pós-1930, a criação do cangaceiro como figura revolucionária e outras mitologias (por exemplo, seu caráter supostamente popular).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2022
  • Aceito
    04 Out 2022
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