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DESSACRAMENTALIZAÇÃO SEM DESSACRALIZAÇÃO: A regulação judicial da (homo)conjugalidade no Brasil1 1 Este trabalho é resultado do projeto temático “Pluralismo religioso e diversidades no Brasil pós-constituinte” (n. 21/14038-6), financiado pela Fapesp, cujo apoio agradecemos.

De-Sacramentalization without De-Sacralization: The Judicial Regulation of (Homo)Conjugality in Brazil

RESUMO

Este artigo analisa a decisão do STF a respeito da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O reconhecimento jurídico dessas relações como união estável reabriu a discussão sobre o lugar do tempo na definição das condições que autorizam duas pessoas a se declararem cônjuges. A decisão deslocou para o centro do debate a historicidade (o caráter mutável) do instituto jurídico da família.

PALAVRAS-CHAVE:
casamento; homossexualidade; religião; família; temporalidade

ABSTRACT

This article analyses the STF decision on same-sex union. The judicial recognition of same-sex relationships as stable union has reopened the discussion about the role of time in the definition of the conditions that authorize two people to declare themselves spouses. This decision brought to the center of public debate the historicity (the changeable feature) of the legal institution of family.

KEYWORDS:
marriage; homosexuality; religion; family; temporality

INTRODUÇÃO

Em maio de 2011, o colegiado do Supremo Tribunal Federal (STF)2 2 Dos onze ministros do colegiado, dez participaram do julgamento: Carlos Ayres Britto (relator), Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie Northfleet, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso. decidiu unanimemente aplicar a casais formados por pessoas do mesmo sexo o regime da união estável, forma jurídica que valida relações públicas e duradouras entre um homem e uma mulher com o intuito de formar família. A intercambialidade costumeira dos termos “casamento”, ato que cria um vínculo regulado pelo direito civil, e “matrimônio”, sacramento católico e ritual que cria vínculo regulado pelo direito canônico,3 3 O direito matrimonial canônico, definido no Concílio de Trento (1545-63), estabeleceu a indissolubilidade desse contrato e a obrigação da monogamia. O Código de Direito Canônico de 1983 reafirma o caráter sacramental do matrimônio. Muitas das finalidades do matrimônio indicadas pelos canonistas, tal como a procriação e a educação dos filhos, a colaboração mútua entre os cônjuges e o remédio à concupiscência, foram absorvidas pelo Código Civil brasileiro promulgado em 1916. deixa ver a dupla indexação dessa relação e o fato de que ambos os registros sempre estiveram conectados na história da normatização da conjugalidade no Brasil.

A indissolubilidade do pacto matrimonial católico esteve garantida por seu caráter sacramental, que o colocava fora do alcance revogatório das leis civis e o projetava para um tempo imaginado como o da eternidade. Essa inscrição em um tempo que transcende a história, entendida como sucessão dos acontecimentos humanos, sobrevive à indexação do matrimônio ao casamento pelo direito civil que acompanha a implantação da República no Brasil (Santos, 2018Santos, Ana Gabriela da Silva. “O código daria remédio a tudo isso”: impasses na introdução do Registro Civil brasileiro (1874-1916). 2018. Dissertação (mestrado em história). Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, Garulhos, 2018.). Até os anos 1970, a dimensão sacramental do matrimônio encontrou na indissolubilidade jurídico-civil do vínculo, transformada em preceito constitucional em 1934, uma forma não religiosa de incorporar ao casamento a dimensão transcendente e, consequentemente, sagrada atribuída ao rito do matrimônio. A possibilidade da separação de corpos, que tinha previsão no Código Civil de 1916, não abrangia a dissolução do vínculo matrimonial. Isso só mudou em 1977, com a aprovação da chamada Lei do Divórcio. Essa lei autorizou a dissolução do vínculo matrimonial formado pelo casamento civil, constituindo um passo significativo em direção à sua dessacramentalização, ou seja, sua desindexação progressiva com relação à dimensão sacramental (eterna) do matrimônio. O casamento civil começa a estabelecer sua autonomia ao inscrever-se, assim, isoladamente no tempo humano da história.

Chamamos de dessacramentalização os jogos discursivos centrados na tensão entre a noção de eternidade (implícita no matrimônio) e a noção de historicidade (implícita no casamento civil), os quais lançam luz sobre a disputa pela definição normativa e tutela desse vínculo conjugal ubiquamente chamado de casamento. Para os fins deste estudo, propomos uma distinção entre as noções de dessacramentalização e dessacralização. Sugerimos que, no Brasil, não observamos uma dessacralização do casamento, no sentido de uma desconsagração ou desmistificação desse instituto, mas, sim, o declínio do poder normativo-sacramental do matrimônio, não obstante a permanência do fascínio que sua autoridade social ainda exerce. As celebrações religiosas cristãs do matrimônio permanecem um importante fator de validação das relações no geral e, em particular, das relações erótico-afetivas entre pessoas do mesmo sexo, ou homoconjugalidade.

Vemos, em suma, que, apesar da longa trajetória do casamento civil no Brasil, sua dessacramentalização tem sido gradual e não anunciada. O debate jurídico em torno do casamento homoafetivo constitui mais um importante lance nesse jogo, por deslocar a tensão em torno da dupla indexação sacro-civil para o campo da família.

O reconhecimento jurídico das relações entre pessoas do mesmo sexo como formadora de um núcleo familiar homossexual reabriu o debate sobre o lugar do tempo, codificado como história, tradição e durabilidade das relações, na definição das condições que autorizam duas pessoas a celebrarem uma união estável. Essa decisão e o fato de a Constituição de 1988 determinar que se facilite a conversão da união estável em casamento (art. 226, §3) agudizaram a tensão em torno da homoconjugalidade ao trazer para o centro do debate a historicidade (ou seja, o caráter mutável) dessa reconhecida célula mater da sociedade que é o instituto jurídico da família.

A previsão constitucional da união estável já havia inaugurado uma importante ruptura: um reconhecimento da independência da definição de entidade familiar em relação ao instituto do casamento. Além disso, ao prever que a forma família também pode se constituir pela monoparentalidade, a Constituição confere materialidade à dissociação entre a entidade familiar e qualquer tipo de conjugalidade. Mas em 2011, ao validar relações conjugais nas quais a procriação não pode ser natural nem sua naturalidade mimetizada (Strathern, 1995Strathern, Marilyn. “Necessidade de pais, necessidade de mães”. Trad. Marcos Santarrita. Estudos Feministas, n. 2, 1995, pp. 303-29.), o STF referendou a ruptura entre conjugalidade e parentalidade.

Tais diferenciações sucessivas representaram um passo significativo no processo histórico que resultou no afastamento gradual da conjugalidade da regulação sacramental católica embutida no rito do matrimônio e regulamentada pelo código canônico. Não nos propomos, contudo, refazer a história desse processo. A análise que apresentamos nas páginas a seguir visa compreender como os ministros da mais alta corte do país agenciam uma ideia específica de tempo segundo a qual os acontecimentos se sucedem linearmente, e que costumamos chamar de história, como elemento justificador das decisões e das definições de casamento e parentalidade que as sustentam. Esperamos com essa abordagem contribuir para destrinchar mais uma camada da intrincada relação entre as dimensões jurídico-canônicas (da ordem da natureza e da moral) e jurídico-civis (da ordem da política) que organizam a percepção contemporânea da vida familiar no senso comum jurídico.

Por meio da codificação das falas dos ministros do STF que participaram do caso, examinaremos, a partir do código história, como eles empregam a noção de tempo na justificação de sua decisão de reconhecer como juridicamente válida a conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo, a despeito até mesmo de suas convicções religiosas pessoais.4 4 Dos dez ministros que participaram do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, em 2011, seis se declaram católicos, um judeu e um holista; em relação a dois não temos informação. A análise das manifestações dos ministros nos parece particularmente importante, tendo em vista que, no Brasil, não há uma lei que autorize (ou proíba) o casamento homoafetivo.

Nosso argumento é que os usos da história no julgamento deixam ver a compreensão dos atores de que sua decisão de inscrever a homoconjugalidade na ordem jurídica familiar incide nas relações do religioso com o Estado e da homossexualidade com o imaginário social brasileiro, sabidamente atravessado pela religião. Para demonstrá-lo, analisaremos os votos dos ministros do STF, tendo em consideração que direito e religião são formas de linguagem pública. Propomo-nos demonstrar que aquilo que convencionalmente chamamos de direito e de religião confere materialidade (realidade) ao casamento e à família a partir de torções das convenções jurídicas e religiosas que as metamorfoseiam, transfigurando a família em vínculo espiritual, e o casamento, em rito cerimonial.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

O tema do reconhecimento jurídico das uniões entre pessoas do mesmo sexo já foi examinado por uma vasta literatura tanto na área do direito quanto nas ciências sociais. A literatura sobre a regulação da homoconjugalidade no Brasil reconhece que, há cerca de três décadas, os estados e o Judiciário, das primeiras instâncias ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), são espaços de construção dos homossexuais como sujeitos de direitos e de sua progressiva inclusão na ordem jurídica familiar (Moreira, 2012Moreira, Adilson José. União homoafetiva: a construção da igualdade na jurisprudência brasileira. Curitiba: Juruá, 2012.; Nagamine, Natividade e Barbosa, 2016Nagamine, Renata Reverendo Vidal K.; Natividade, Marcelo; Barbosa, Olívia Alves. “Questão de família: um olhar jurídico-antropológico sobre o ‘casamento gay’ no Brasil”. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, v. 61, n. 3, set.-dez. 2016, pp. 233-57.). O Judiciário brasileiro acumula um corpo robusto de decisões sobre direitos de homossexuais, inclusive em matéria de conjugalidade e parentalidade. Essas decisões, tomadas caso a caso, foram construindo direitos ligados à orientação sexual e, gradualmente, criaram constrangimentos à negação de direitos relacionados à vida familiar aos homossexuais (Moreira, 2016Moreira, Adilson José. “Cidadania sexual: postulado interpretativo da igualdade”. Direito, Estado & Sociedade, n. 48, 2016, pp. 10-46.).

É igualmente farta a literatura sobre a regulação da homoconjugalidade nas ciências sociais. Um dos ganhos analíticos dessa literatura é evidenciar a reconfiguração do religioso no processo de politização da homossexualidade (Natividade, 2008Natividade, Marcelo. Deus me aceita como eu sou? A disputa sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no Brasil. 2008. Tese (doutorado em antropologia social). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.) e, em particular, da conjugalidade homossexual (Mello, 2005Mello, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.). Nas duas últimas décadas, novas configurações sociais ainda ganharam corpo em torno de propostas de compatibilização do cristianismo com a homossexualidade (Silva, 2016Silva, Aramis Luis. “Uma igreja em marcha”. Ponto Urbe, n. 19, 2016, pp. 1-13.), como no caso das “igrejas inclusivas” (Natividade; Oliveira, 2013Natividade, Marcelo; Oliveira, Leandro de. As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond , 2013.) e das denominações protestantes que se abriram à homossexualidade e à conjugalidade homossexual (Coelho Júnior, 2019Coelho Júnior, Carlos Lacerda. “Batizamos e aceitamos pessoas homoafetivas”: um estudo sobre a produção de discursos acerca de sexualidades não hegemônicas na Igreja Batista do Pinheiro, Maceió/AL. 2019. Tese (doutorado em sociologia). Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.).

A produção acadêmica sobre o tema sugere que religião e direito são os únicos artefatos que, no Brasil, podem aspirar a uma regulação das condutas individuais e coletivas com pretensão de validade universal. Reconhecendo a contribuição das abordagens acima citadas para uma crítica das retóricas jurídicas em sua dimensão ideológica, este trabalho se propõe oferecer uma nova perspectiva sobre o tema. Trata-se não tanto de mapear as ideologias, os valores ou as doutrinas embutidas nas normas religiosas ou jurídicas de modo a mover (ou não) o ordenamento jurídico no sentido da mudança, mas, ao contrário, adotar uma abordagem que privilegia o ponto de vista do ator para compreender como os magistrados, agenciando a noção de tempo e história, validam seu lugar e seu papel neste mundo em mudança, redefinindo, ao mesmo tempo, a noção de casamento e família.

Tendo em consideração que os atores aqui analisados - a saber, os juízes - falam a uma audiência próxima e/ou distante, particular e/ou generalizada, que pode ser tanto seus pares e demais presentes no espaço físico do tribunal quanto o público do canal televisivo tv Justiça ou de seu canal na plataforma YouTube, privilegiamos em nossa análise a dimensão comunicacional do que eles fazem. A transmissão ao vivo das sessões do STF e a circulação de seu registro em vídeo são uma peculiaridade do Judiciário brasileiro (Silva, 2018Silva, Virgílio Afonso da. “Big Brother is Watching the Court: Effects of TV Broadcasting on Judicial Deliberation”. Verfassung und Recht in Übersee, v. 51, 2018, pp. 437-55.). Em consonância com a proposta de enfocar a dimensão comunicacional do julgamento, analisaremos como os juízes usam formas convencionadas como jurídicas e religiosas ao oferecer a seus públicos diferentes narrativas sobre o casamento e a família.

Em nossa análise, examinaremos como essas formas de linguagem se orientam para conferir materialidade tanto a percepções, opiniões e ideias quanto à apresentação de si para uma audiência (Arendt, 2018Arendt, Hannah. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 2018.). Com Hannah Arendt (2018Arendt, Hannah. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 2018.), estamos supondo que, mesmo que usem formas de linguagem em função de estratégias, os atores não controlam os efeitos do que comunicam. Eles não têm como controlá-los porque interagem com uma audiência imaginada, e cada leitor ou espectador representará para si o que leu ou assistiu em sua imaginação (Arendt, 1994Arendt, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.). No julgamento, essa audiência imaginada ganha forma nos cumprimentos que os ministros reiteradamente dirigem ao presidente do tribunal, ao plenário, ao representante do Ministério Público, aos advogados, aos demais presentes. Para representá-la, os atores lançam mão de retóricas - como em suas referências à sociedade brasileira - e histórias (Young, 1996Young, Iris Marion. “Communication and the Other: Beyond Deliberative Democracy”. In: Benhabib, Seyla (org.). Democracy and Difference. Princeton: Princeton University Press, 1996, pp. 120-35.) - do país e do direito, pessoais e de outros.

Com essa ancoragem teórica, efetuamos, portanto, três deslocamentos: (a) do direito como gramática ao direito como forma de linguagem; (b) dos usos táticos e estratégicos da linguagem jurídica a seus usos comunicacionais; (c) da comunicação orientada para a transmissão de conteúdo à comunicação orientada para a relação. Sabemos que nossa escolha teórica tem implicações metodológicas. Primeiro, ela nos impõe olhar para categorias e regras do direito brasileiro, para o modo como essas categorias e regras se relacionam, para seus significados e os sentidos que adquirem nos usos que delas são feitos. Segundo, implica levar a sério a ideia de que atores agem por meio de falas, e que suas enunciações ganham forma em interações com sua audiência, produzindo artefatos que perduram para além do momento de sua aparição.

Nossa análise apoiou-se na transcrição e codificação dos votos de dez juízes da Suprema Corte sobre a constitucionalidade de se equiparar a união estável homoafetiva ao estatuto da união estável heteroafetiva, cujos direitos já haviam sido estabelecidos. Procuramos examinar de modo sistemático nos votos e pontualmente no julgamento registrados em vídeo como aparecem a estrutura conceitual, as referências ao mundo e às coisas, os modos de produção de sentido e de definição da família.

Analisando as formas de enunciação dos atores por meio do código história, pretendemos fazer ver a percepção que eles têm do processo social. Demonstraremos que, ao decidir e apresentar as razões com base nas quais decidem, ao mesmo tempo os juízes se autorizam, em nome da proteção da Constituição, a interpretá-la criativamente e controlam o risco de sua ação ser percebida como uma ruptura da ordem. Os agenciamentos da noção de tempo capturados por meio do código história nos permitiram demonstrar que a decisão dos juízes se apresenta não como um ponto de ruptura, mas, sim, como um desenvolvimento incremental de um processo anterior de alargamento da noção de família que já estava em curso via divórcio e monoparentalidade.

Em nossa análise, aplicamos o código história para reunir referências dos atores ao passado e ao futuro. Por meio dessa reconstituição, percebemos um padrão de enunciação no qual a história do direito, da família e da humanidade é recorrentemente recontada. Também recorremos aos vídeos do julgamento disponíveis na plataforma YouTube para incorporar as manifestações registradas em vídeo, o que nos possibilitou dar maior densidade à postulação de que as falas dos ministros do STF são atos comunicacionais no sentido explicitado acima.

Demonstraremos em nossa análise que os ministros agenciam várias noções de tempo em um esforço para apresentar a Corte como uma ponte entre o passado e o futuro, e suas decisões, como leituras corretas da contínua mutação das instituições. Observar a decisão com olhos nos agenciamentos da história nos permite perceber que os ministros procuram fazer crer que são arautos, não atores, de um processo social cujo sentido já existiria em potência antes de qualquer enunciação. Como e por que conferem à noção de tempo um papel central na validação de seus argumentos e como contribuem para o processo contínuo de dessacramentalização do casamento são as principais perguntas que nos propomos responder.

Para fazê-lo, este trabalho contextualiza o que está em debate no julgamento de 2011. Em seguida, em um interlúdio, analisa uma interação mediada entre a Procuradoria Geral da República (PGR) e o representante legal da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mostrando como os atores interagem com aquilo da vida social que sua imaginação lhes apresenta. Finalmente, analisa a apresentação feita de forma escrita pelos ministros. Essa última seção, por sua vez, será organizada em torno dos três grandes temas que, na perspectiva dos atores, apareceram em conexão com o código história. São eles: (a) a percepção de mudança (do mundo e do direito); (b) a percepção do papel da Corte na história; (c) a história como teleologia.

UNIÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL OU UNIÃO HOMOSSEXUAL ESTÁVEL?

No julgamento de 2011, solicitava-se ao STF que respondesse se a definição do Código Civil era conforme à Constituição, segundo a qual “para fins de proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” (art. 226, §3). A questão formal não era, portanto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas, sim, a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil que regula a união estável entre “um homem e uma mulher” no marco de uma Constituição que fala em “o homem e a mulher”. Já a questão de fundo era se a conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo deveria ser mantida à margem do direito e da proteção por ele conferida a relações públicas e duradouras entre homem e mulher. O acesso de casais de pessoas do mesmo sexo ao registro civil era bloqueado com base na abordagem literal da definição do termo união estável no Código Civil. A pergunta, então, era: essa interpretação do Código é constitucional, levando-se em conta não só a letra da Constituição, mas também direitos humanos constitucionalizados, como a igualdade, as liberdades e a não discriminação?

Um elemento complicador desse debate era a determinação da Constituição de que se facilitasse a conversão da união estável em casamento (art. 226, §3). De maneiras distintas, os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso esboçaram uma tentativa de reconhecer direitos familiares a casais homossexuais sem lhes dar acesso ao casamento. Sustentaram que a união estável entre pessoas do mesmo sexo seria equiparável à união estável entre pessoas de gêneros diferentes, sem constituir a mesma situação. Lewandowski esboçou uma formulação categorial dessa diferença quando propôs a união estável homossexual como outro modo de constituir família ao lado do casamento, da união estável e da monoparentalidade. A sugestão não foi admitida, tendo em vista a literalidade dos textos legais.

A tese de que havia uma lacuna legal, que só poderia ser superada por analogia, foi vencida. A tese vencedora considerou tratar-se de duas situações equivalentes, bastando fazer uso, por extensão, do regime jurídico aplicável à união estável entre heterossexuais à união entre pessoas do mesmo sexo. Subjacente à discussão técnico-jurídica está a questão de definir se as uniões entre pessoas do mesmo sexo podem ser consideradas iguais às daquelas entre pessoas de sexos diferentes.

O desígnio da minoria de não abrir caminho para o casamento ao regular a homoconjugalidade também foi vencido na vida social. Em maio de 2011, na sequência da decisão do STF, casais homossexuais cuidaram de celebrar seu casamento homoafetivo com base em seu recém-declarado direito ao mesmo regime das uniões estáveis heterossexuais. Tão logo o STF selou sua decisão, lideranças religiosas de denominações cristãs e afro-brasileiras juntaram-se a uma tabeliã e ao Centro Acadêmico XI de Agosto - órgão representativo dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - e organizaram uma cerimônia no salão nobre da instituição para oficializar gratuitamente a união de casais homossexuais.

Preparou-se o cenário de uma cerimônia tradicional e, nos dias seguintes à sua realização, jornais como a Folha de S.Paulo e portais de notícias como o G1 deram grande destaque ao “casamento coletivo gay”. Um dos oficiantes da celebração, o pastor Cristiano Valério, da Igreja da Comunidade Metropolitana, esclareceria aos veículos de imprensa que “casamentos gays” já eram celebrados havia muito tempo, mas não tinham validade jurídica (Vejapontocom, 2011Vejapontocom. “Como é o casamento entre gays” (parte 1 de 2). YouTube. 5 min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/4vRI-BN4198 >. Acesso em: 24/8/2022.
https://youtu.be/4vRI-BN4198...
). A cerimônia e as palavras do pastor mostravam que os agentes se apropriaram da regulação da homoconjugalidade pela via da união estável para a produção de um casamento coletivo homossexual. O direito tinha criado ocasião para a produção pública da conjunção espiritual, ao passo que os ritos da convenção religiosa emprestavam tangibilidade a um casamento.

INTERLÚDIO: A AUDIÊNCIA IMAGINADA E SEUS EFEITOS NA LINGUAGEM

No Brasil, algumas das forças sociais mais determinadas a pôr obstáculos ao acesso de casais homossexuais ao instituto do casamento estão associadas às organizações religiosas cristãs. No julgamento em análise não foi diferente. O representante da amicus curiae CNBB sustentou que reconhecer a união homossexual com base na reconstrução do dispositivo do Código Civil à luz de uma interpretação extensiva do artigo 226, §3, da Constituição era transgredir os limites à interpretação constitucional e à produção de lei pelo STF. Embora nossa análise esteja centrada nos juízes, uma interação do advogado da CNBB com a petição da PGR possibilita perceber como direito e religião são formas e efeitos de linguagem. Também deixa entrever, por contraste, a importância das posições dos atores nesse jogo tão complexo de enunciações e persuasões.

A atuação do representante da CNBB é regulada pelo interesse da parte que representa. Cabe-lhe apresentar juridicamente a opinião da parte a respeito da justiça ou da injustiça, da correção ou da incorreção do pedido feito ao tribunal, no intuito de convencer os juízes a se decidirem quanto ao sentido de sua interpretação. Para persuadi-los, precisa comunicar sua opinião com eficácia. Nas circunstâncias do julgamento, isso lhe empresta plausibilidade. Para tanto, recorre a artigos constitucionais e da legislação infraconstitucional, a decisões do próprio STF e internacionais, a documentos históricos de direitos humanos, a doutrinadores, a princípios hermenêuticos, fazendo ver sua distância em relação à religião e à justiça do que postula, considerando padrões e sentidos compartilhados naquele contexto comunicativo. Já na abertura de sua sustentação, interpela a audiência evocando alguns desses padrões e sensos comuns:

Excelentíssimo Senhor Presidente desta Corte, Excelentíssimo Senhor Ministro Relator, Excelentíssima Senhora Ministra, Senhores ministros e demais presentes. Começarei a minha sustentação por uma frase simples, entretanto, emblemática: a pluralidade tem limites […] não vejo nenhum tipo de risco de incorrer em atitude preconceituosa. Desde já, permissa venia, digo que foi citada de forma no mínimo incompleta, para não dizer falaciosa. Poligâmicos? Incestuosos? Alegrai-vos! Eis aqui uma excelente tese para justificar os seus comportamentos. (Brasil, 2011cBrasil. 2011c. Pleno - Discussão sobre união estável entre pessoas do mesmo sexo (3/5). Youtube. 41min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/cIliHsUqwe4 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://youtu.be/cIliHsUqwe4...
)

Com essas palavras, o representante da CNBB reafirma como valores compartilhados a pluralidade e a não discriminação, que figuram no preâmbulo da Constituição. Refuta a atribuição de preconceito à CNBB por sua posição contrária à aplicação do regime jurídico da união estável às relações entre pessoas do mesmo sexo. Ao mesmo tempo evoca a poligamia, o incesto e, subliminarmente, a homossexualidade como limites à realização dos ideais da pluralidade e não discriminação. Essas figuras não são apresentadas como limites religiosos, embora sejam reguladas apenas pelo direito canônico. Nenhuma delas tem registro civil no Brasil. Por meio de sua indexação à forma jurídica, o representante da CNBB espera justapor a imagem da união homoafetiva a essas figuras transgressoras.

Por outro lado, ele contraria as expectativas da parte de sua audiência que espera dele argumentos “de cunho religioso ou filosófico”. Responde a essa suposição realçando a juridicidade de seus argumentos e o caráter metafísico da argumentação de seus adversários:

A maior parte dos argumentos contrários bateram muito forte na questão religiosa, como se a religião fosse o amparo, o lastro de tudo que eu aqui venho defender em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. […] Aliás, filosofia, metafísica também é a religião. Há toda uma doutrina que vê no direito natural justificativa para a união estável homoafetiva. […] o Catecismo da Igreja também consegue enxergar isso, […] também vê nesse tipo de comportamento algo que deve ser combatido. […] Assim, discurso metafísico por discurso metafísico, nós temos o que nós quisermos. O direito natural admite qualquer coisa. Ocorre que essa tentativa de deslocar a discussão para o âmbito do direito natural para um discurso metafísico, ela é equivocada. Aliás, ela é mal-intencionada, porque nós temos aqui uma discussão jurídica, dogmática, de direito positivado.(Brasil, 2011cBrasil. 2011c. Pleno - Discussão sobre união estável entre pessoas do mesmo sexo (3/5). Youtube. 41min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/cIliHsUqwe4 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://youtu.be/cIliHsUqwe4...
)

O representante da CNBB reitera que o lastro de seus argumentos não é a religião. Em seguida, em uma pirueta surpreendente, vê no uso da linguagem do direito natural uma atitude “equivocada” e “mal-intencionada”, uma vez que o debate deve transcorrer no campo do direito positivo.

Para desenhar essas fronteiras, postula o que se chama, no direito, de interpretação gramatical da norma constitucional. Como a Constituição, o Código Civil e mesmo as normas internacionais de direitos humanos falam em “homem e mulher”, ele entende que sua posição está em consonância com a letra da lei. Além disso, articula e compara o caso com julgados de outros países, em particular a França, que tinha acabado de se pronunciar sobre a constitucionalidade da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.

As duas citações nos mostram como a audiência imaginada afeta a forma como a religião é apresentada. As percepções da audiência estão em disputa. Sua argumentação não faz ver a religião, contrariando um senso comum segundo o qual agentes religiosos são ontologicamente religiosos e, no fundo, só podem falar religiosamente.

Como veremos a seguir, uma dinâmica semelhante se aplica aos ministros, ainda que a percepção social da validade de suas manifestações esteja associada ao fato de eles atuarem nos limites do entendimento compartilhado de que a justiça se faz pelo contraditório e pela imparcialidade dos julgadores.

HISTÓRIA, MODO JUDICIAL DE USAR

Mudanças na concepção de família para o direito

Do primeiro ao último voto desse caso, os ministros fazem ver que a Constituição de 1988 se insere em um processo de mudança nas relações de gênero e na vida familiar. Enumeram transições em um estilo cronográfico, marcando a passagem do tempo via alterações constitucionais, infraconstitucionais, sociológicas e linguísticas referentes à família, às relações entre os gêneros e à homossexualidade. Nas palavras do ministro Marco Aurélio Mello:

A situação foi mudando gradualmente. Primeiro, com a edição da Lei n. 4.121/62 - Estatuto da Mulher Casada, que atribuiu capacidade de fato à mulher, admitindo-lhe ainda a administração dos bens reservados. Em seguida, o divórcio, implementado pela Emenda Constitucional n. 9/77 e pela Lei n. 6.515/77, modificou definitivamente o conceito de família, ficando reconhecidas a dissolução do vínculo e a formação de novas famílias. O processo evolutivo encontrou ápice na promulgação da Carta de 88. O Diploma é o marco divisor: antes dele, família era só a matrimonial, com ele, veio a democratização - o reconhecimento jurídico de outras formas familiares. (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 814)

Relacionam, assim, diferentes categorias e regulações jurídicas, deixando entrever a trama jurídica e sociológica sobre a qual a decisão incide. Ao tentarem explicitar por que concebem a Constituição como “ápice do processo evolutivo”, os ministros possibilitam perceber uma primeira dimensão no uso do código história que diz respeito à mudança na importância relativa da mulher no casamento e à redefinição do conceito de família pela dissolução do vínculo do casamento. O trecho também assinala a Carta de 1988 como um divisor temporal a partir do qual outros formatos de família, no passado concebida apenas como matrimonial, podem vir a ser reconhecidas no futuro. Essa nova concepção de família exige a produção de novos termos para conceituá-la e descrevê-la.

Para o ministro Luiz Fux, a homoconjugalidade é reconhecida ao mesmo tempo como resultante de sua decisão e do fato consumado, pois “amplamente reconhecido e protegido pela ordem jurídica”. Em seu voto oral, ele afirma:

Historicamente a gradação praticamente foi a mesma da conquista emancipatória das mulheres e agora […] dos homoafetivos, como uma decorrência natural daquilo que está explícito, […] que mereceria […] interpretação literal do texto constitucional. Se isso não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, […] não fixará nenhum marco espetacular de reescrever a história da proteção das minorias no Brasil. (Brasil, 2011dBrasil. 2011d. Pleno - STF reconhece união estável homoafetiva (1/6). Youtube. 42min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/cQf8srquCWw > . Acesso em: 11/12/2022.
https://youtu.be/cQf8srquCWw...
)

Na história que os atores desfiam, a regulação da homoconjugalidade é uma “conquista emancipatória” semelhante à das mulheres. A analogia indica que a heterossexualidade remete a uma ideia de família percebida pelos juízes como largamente compartilhada na sociedade brasileira. Seus atos comunicacionais ganham forma em contraponto com essa imaginação.

Embora saibam que suas decisões promovem mudanças, justificam o modo como nela participam reconfigurando a gramática jurídica. Apropriam-se de categorias sem inscrição no direito, como “homoafetivo”, manifestam juízo de valor sobre a mudança e a apresentam como decorrência natural do texto constitucional. A seu ver, o potencial emancipatório do texto constitucional seria liberado ao receber uma forma inteligível, a da união estável. Sem grandes saltos nem rupturas, segundo Fux, como na “conquista das mulheres”, a dos homossexuais tem sido “gradual” e fixará um marco “não espetacular” nessa história.

Para Celso de Mello, a Constituição é um marco porque, com ela, o afeto passa a constituir um novo paradigma de família: “A nota essencial das entidades familiares no novo paradigma introduzido pela Constituição de 88 é a valorização do afeto”, sustenta o ministro ao reafirmar o posicionamento da PGR (Brasil, 2011dBrasil. 2011d. Pleno - STF reconhece união estável homoafetiva (1/6). Youtube. 42min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/cQf8srquCWw > . Acesso em: 11/12/2022.
https://youtu.be/cQf8srquCWw...
apudBrasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 865; grifos no original). Assim, o que a lei deveria proteger não seria o patrimônio, mas a “profundidade de sentimentos presentes nas relações estáveis entre pessoas de sexos opostos” (Brasil, 2011dBrasil. 2011d. Pleno - STF reconhece união estável homoafetiva (1/6). Youtube. 42min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/cQf8srquCWw > . Acesso em: 11/12/2022.
https://youtu.be/cQf8srquCWw...
apud Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 865). Marco Aurélio ressalta como essa nova compreensão impacta o Código Civil:

O Direito Civil, sabemos, restringia-se ao “ter”. O titular da propriedade era o grande destinatário das normas do Direito Civil e a propriedade era o direito por excelência. O direito de família oriundo do Código Bevilácqua concernia a questões patrimoniais.

O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma “virada de Copérnico”, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica, dando lugar principal à pessoa. É o direito do “ser”, da personalidade, da existência. (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 816)

A “virada de Copérnico” na história do direito civil está associada à inscrição da dignidade da pessoa humana no artigo 1º da Constituição de 1988, que enumera os fundamentos da República no Brasil. Essa expressão já figurava entre os fundamentos republicanos na ordem constitucional anterior, mas eram outros os seus usos. Segundo os ministros, a nova Constituição abriu espaço para operações sintáticas pelas quais o direito civil, codificado em 1916, foi se reconfigurando a partir da reinterpretação de regras antigas e da elaboração de novas. Nos usos dos atores, o termo adquire um caráter pré-jurídico e pré-político, tendo como efeito sua naturalização.

A precedência da proteção da pessoa em relação à propriedade transforma a família em um espaço privilegiado para o desenvolvimento da personalidade de seus membros. Essa seria a “vocação natural” da família, segundo o ministro Ayres Britto, relator do caso:

A família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal, das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Ruy Barbosa definia a família como “a Pátria amplificada”). Que termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 646)

Para Britto, a vocação amorosa da família explica que a Constituição de 1988 a consagre como “base da sociedade”. Só a família possibilitaria alcançar “uma forma superior de vida coletiva porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual de seus respectivos integrantes”. Embora construindo sua argumentação na linguagem do direito, Britto confere uma nova forma à religião como sustentáculo moral da norma. Essa forma é reconhecível, inteligível e ao mesmo tempo não religiosa. Isso porque, ao espiritualizar as relações familiares, os atores a emancipam da procriação, instituindo modos não autorizados pela norma católica de constituí-la.

Segundo o ministro Lewandowski, “ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os fins de procriação, [estão surgindo] outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valorizam […] a busca da felicidade, o bem-estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes” (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 717). Nessa passagem percebe-se que a qualidade da convivência, baseada em relações afetuosas e respeitosas, é pensada como o novo valor jurídico a ser protegido. Reconhecendo que essas mudanças estão se dando no plano dos fatos, cabe ao direito validá-las, segundo Lewandowski, dar-lhes uma forma jurídica e torná-las aptas a produzir efeitos jurídicos, ainda que os magistrados argumentem reiteradamente que não é o direito a fonte de mudanças tão significativas.

Ao se justificar perante a audiência, os atores revelam, pois, como a regulação da homoconjugalidade é também produto de mudanças gramaticais, semânticas e pragmáticas do direito.

O direito e a mudança do mundo

Os julgadores do caso têm clara percepção de que estão tomando uma decisão em um mundo em mudança e que isso põe o direito em “descompasso” com os fatos. Nas palavras do ministro Joaquim Barbosa, “estamos diante de uma situação que demonstra o descompasso entre o mundo dos fatos e o universo do direito. Nós nos confrontamos com uma situação em que o direito não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais” (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 723).

Diante dessa situação, que papel os ministros entendem caber à Corte? Citando o ex-presidente da Suprema Corte de Israel Aharon Barak, Barbosa pondera que “é precisamente nessas situações que se agiganta o papel das cortes constitucionais […], que devem fazer a ponte entre o mundo do direito e a sociedade” (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 723).

Com a metáfora da ponte, o ministro se afasta da imagem do direito como um mundo autorreferente para apresentar a produção judicial como aquilo que liga, que põe em comunicação. A ponte permite o trânsito de um ponto a outro e a reconfiguração daquilo que se liga. Quando o que é ligado tem temporalidades diferentes, como é o caso da sociedade e do direito, a metáfora ganha dimensão temporal, pois a ponte produz sincronia ao colocar o direito em sintonia com a sociedade.

Os ministros reconhecem que o Legislativo também pode conectar direito e sociedade. Alguns votos lembram que inúmeros projetos de regulação da união estável entre pessoas do mesmo sexo foram apresentados ao Congresso Nacional para produzir essa sintonia. Mas ponderam que o Congresso não foi capaz de legislar sobre o tema. A esse descompasso entre a vida social, que assistiu ao crescimento e à aceitação desse tipo de família, e a lei os ministros chamam de anomia e lacuna no sistema. Entendem ser obrigação deles preencher essa lacuna decorrente da inércia legislativa.

Ao declarar que a Corte “pode firmar posição histórica” e “tornar público e cogente que o Estado não será indiferente à discriminação”, Fux revela como vê seu próprio papel e o potencial da Corte de guiar o Estado nas ações contra a discriminação (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 669). O direito, seja confeccionado por legislação, seja forjado por decisão judicial, aparece aqui como motor da transição para um Estado “opositor do preconceito aos homossexuais”. Temos nessa imagem uma segunda dimensão do código história. Embora ainda não existente em sua inteireza, esse Estado está sendo produzido e aperfeiçoado no processo de se decidir sobre a união homoafetiva. Os ministros deixam transparecer sua consciência de que a decisão tem potencial transformador, que repercute na imagem de futuro e os torna parte da produção de um momento histórico. Por isso, preocupam-se em mostrar que agem nos limites da lei. Diz Lewandowski em seu voto:

É certo que o Judiciário não é mais, como queriam os pensadores liberais do século XVIII, mera bouche de la loi, acrítica e mecânica, admitindo-se uma certa criatividade dos juízes no processo de interpretação da lei, sobretudo quando estes se deparam com lacunas no ordenamento jurídico. Não se pode olvidar, porém, que a atuação exegética dos magistrados cessa diante de limites objetivos do direito posto. (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 712)

Lewandowski afirma o caráter previamente regulado do processo de interpretação da lei, cuja validade depende de a exercer no interior do próprio direito. Para ele, a Corte pode ler o direito criticamente e interpretá-lo criativamente, como em caso de lacuna, mas deve respeitar limites objetivos. Vemos, pois, que direito é uma linguagem que se presta à produção de artefatos, pode ser usado na fabricação do mundo e o faz disputando as regras gramaticais que o constituem.

Para indicar à sua audiência onde estão esses limites, o ministro remonta aos debates constituintes em torno do artigo 226, §3. Lembra que a primeira redação do artigo falava em “unidade familiar formada por homem e mulher”. Homossexuais, na época, perceberem nela uma oportunidade. Para atalhar-lhes o caminho, um constituinte renegocia o texto, inserindo os artigos definidos “o” e “a”. Com a digressão, ele procura demonstrar como os sentidos compartilhados de família e homossexualidade em um momento histórico moldaram a dimensão gramatical do direito.

Apesar de destacarem a mudança de percepção social da homossexualidade, os ministros sabem que a matéria permanecia sensível. Nas palavras de Gilmar Mendes, a resenha proposta por Lewandowski sobre a regulação constitucional da família oferece uma ideia clara do quão longeva é a relação entre casamento, família e heterossexualidade:

De início, cumpre fazer uma resenha da noção de família abrigada nas Constituições anteriores à presentemente em vigor, registrando, desde logo, que todas que trataram do tema vinculavam a ideia de família ao instituto do casamento. Senão vejamos:

i) Constituição de 1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado […]”.

ii) Constituição de 1946: “Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado”.

iii) Constituição de 1967: “Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”.

iv) Emenda Constitucional 1/1969: “Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”.

A vigente Carta republicana, todavia, não estabelece essa vinculação com o casamento para definir o conceito de família tal como o faziam as anteriores. (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, pp. 708-9; grifos no original)

A resenha faz ver que a Constituição de 1988 desnaturaliza a histórica relação entre casamento e família. Ao assinalar a desvinculação, o ministro anuncia, sem dizer, a magnitude da metamorfose do conceito de família implicada na decisão. Com ela dá-se não apenas uma pluralização das formas juridicamente válidas de se constituir família, mas também uma mutação no modo como se concebe o parentesco, que deixa de se constituir, exclusivamente, pela reprodução biológica de um homem com uma mulher.

Silenciando as implicações dessa decisão para a parentalidade, Lewandowski prefere enfatizar a semelhança dos vínculos afetivos na união estável “homo” e “hétero”. Ressalta ainda que, além de não serem “proibidas”, as uniões estáveis homoafetivas constituem um “dado de realidade”, devendo, portanto, “ser reconhecidas pelo direito” (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, pp. 713-4). Para ele, se a realidade muda, o direito também deve mudar. Sua preocupação é, como vimos anteriormente, com a forma da mudança. A maioria vota por afirmar a igualdade das relações erótico-afetivas duradouras e públicas entre pessoas do mesmo sexo com a união estável heterossexual. A minoria defende conceder direitos sem igualar a natureza dessas uniões.

Lewandowski sustenta que a vontade do legislador seria a de restringir a união estável às relações heteroconjugais. A intenção do legislador é um dispositivo de interpretação que funciona vinculando a gramática do direito às percepções e entendimentos do tempo de confecção da norma, sua semântica. No caso da regulação da homoconjugalidade, um dos seus efeitos imprevistos foi abrir a possibilidade de conversão futura da união estável em casamento. Para Lewandowski, a forma juridicamente mais adequada de preencher essa lacuna entre a intenção do legislador e a letra da lei seria integrar o ordenamento por analogia, isto é, agir como o constituinte, que atribuiu nomes distintos a distintos modos de se constituir família. Proceder dessa maneira, afirma o ministro, implica não incluir a homoconjugalidade na união estável, e, sim, instituir a união homossexual como uma quarta via de acesso à família.

Tal proposta, como sabemos, foi vencida. A maioria decidiu pela equiparação da homoconjugalidade à heteroconjugalidade pública e duradoura, com o propósito de se constituir família. Como demonstramos, para sustentá-la, os atores silenciaram sobre a possibilidade de conversão da união estável em casamento e enfatizaram requalificar a importância da família. Tendo em vista que o instituto da união estável já havia autonomizado o acesso à família sem passar pelo casamento, essa operação sintagmática pôde realizar-se sem muito ruído. Faltava agora qualificar a natureza das relações de parentalidade que não dependiam do intercurso entre seres sexuados. Isso foi feito avançando a ideia de afeto como elemento determinante do que cabe e do que não cabe na forma jurídica união estável.

Curiosamente, se essa decisão não sancionou um quarto gênero de família, consagrou de fato algo novo, que mereceu um novo nome: união homoafetiva. É esse o nome da ponte que o STF construiu para facilitar a comunicação entre o mundo do direito e o mundo da vida. Esse artefato fez novos nomes circularem pela vida social: além de união homoafetiva, surgiram homoafetividade, pessoa homoafetiva e casamento homoafetivo, que deslocam a indexação da homossexualidade do campo do sexo para o campo dos afetos.

A história como teleologia

Conforme mudam os agenciamentos da história, muda o modo como os atores apresentam o que reconhecem ser uma interpretação criativa do direito. Para a maioria, sua interpretação seria um desdobramento, no tempo, de um fim que informa a ordem jurídica e ao qual eles apenas emprestariam realidade. Quando o fazem, inscrevem-se em um processo histórico no qual, segundo Celso de Mello, o Judiciário está imerso:

O elemento teleológico da interpretação constitucional também não é compatível com a leitura do art. 226, §3, da Constituição, segundo a qual do referido preceito decorreria, “a contrario sensu”, o banimento constitucional da união entre pessoas do mesmo sexo.

Com efeito, o referido preceito foi inserido no texto constitucional no afã de proteger os companheiros das uniões não matrimonializadas, coroando um processo histórico que teve início na jurisprudência cível, e que se voltava à inclusão social e à superação do preconceito. Por isso, é um contrassenso interpretar esse dispositivo constitucional, que se destina à “inclusão”, como uma cláusula de exclusão social, que tenha como efeito discriminar os homossexuais. (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 843)

O fim que os atores entendem que devem realizar o elemento teleológico é a inclusão das uniões não matrimonializadas de pessoas do mesmo sexo na ordem jurídica. Na visão de Celso de Mello, essa inclusão é tratada como o coroamento de um processo histórico, narrado como uma sequência linear de decisões escalonadas no tempo: primeiro, igualou-se a mulher ao homem no interior do casamento; em seguida, a concubina à mulher casada; mais adiante, os filhos havidos dentro do casamento aos “filhos bastardos”. E a história corre assim nos votos dos ministros, em uma espiral ascendente.

Como essa espiral vai envolver a família em relação à homossexualidade? A procuradora, na condição de representante dos interesses da sociedade no caso, afirma:

não há dúvida de que a ordem constitucional tutela a família, mas isso não significa que ela a tenha posto numa redoma jurídica, para abrigá-la diante das tendências liberais e igualitárias que ganham corpo na sociedade contemporânea, dentre as quais se insere o movimento de afirmação dos direitos dos homossexuais. Pelo contrário, a Constituição de 88 instituiu um novo paradigma para a família, assentado no afeto e na igualdade. (Brasil, 2011bBrasil. 2011b. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nº 6960, Brasília, Procuradoria Geral da República. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=398650&pgI=1&pgF=5 > . Acesso em: 12/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 18)

Vemos em sua manifestação que o devir histórico vai na direção da igualdade. No entanto, o reconhecimento e a validação da homoconjugalidade como uma união estável no julgamento exigem a publicização das relações erótico-afetivas entre pessoas do mesmo sexo que a tornam um marco na definição jurídica de família.

Para a PGR, a descontinuidade se produz com o progressivo distanciamento da sociedade em relação a um modelo de família baseado na hierarquia sexual e tem a homossexualidade em suas bordas:

Em relação à família, há de se ter em mente que o seu modelo tradicional, patriarcal e hierarquizado atravessa hoje uma crise profunda, causada por vários fatores, com destaque para a progressiva emancipação da mulher. Aquele vetusto modelo familiar, com papéis rigidamente definidos - o homem chefe de família e “provedor”; a mulher submissa e circunscrita à esfera doméstica; os filhos obedientes e sem voz - não é objeto de proteção constitucional, pois nesse ponto, como em tantos outros, quis o constituinte introduzir modificações visando a compatibilizar os tradicionais institutos jurídicos com os valores democráticos e igualitários subjacentes à Carta de 88. (Brasil, 2011bBrasil. 2011b. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nº 6960, Brasília, Procuradoria Geral da República. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=398650&pgI=1&pgF=5 > . Acesso em: 12/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 17)

Vemos que a PGR busca emprestar plausibilidade à tese da incompatibilidade do modelo de família tradicional e a proteção constitucional da família. Para ela, a incompatibilidade decorre de que, com a Constituição de 1988, a ordem só poderia se reproduzir no sentido da ampliação da igualdade.

Se o tempo corre linearmente e a mudança se dá no sentido de um horizonte igualitário em relação ao qual as diferenças se alinham, no presente estamos em um ponto de maior igualdade do que no passado. Na peça da procuradora, é rarefeita a substância do tempo presente. Ele é marcado pela marginalidade e pela desigualdade: é apenas uma ponte para a sociedade igualitária à qual a história tende em consonância com a sociedade imaginada pela Carta de 88 e com o voto dos ministros.

A PGR repõe, em suma, a teleologia impressa na concepção de história que os ministros compartilham, embora a expressem diferentemente em função de suas posições. Como a procuradora não sofre os constrangimentos da imparcialidade e das expectativas de sobriedade que costumam recair sobre o juiz, ela se permite qualificar o modelo anterior como “obsoleto e arcaico”. Os ministros não emitem semelhante juízo acerca do passado, mas tampouco encontram nele qualquer valor a ser resgatado ou protegido. Retratado pela PGR negativamente, ele é tido como um momento da história a ser superado. Já os ministros, ao depararem com formas e artefatos do passado, concentram-se em “compatibilizá-los com os valores igualitários”.

Na história que, a seu modo, os atores reconstroem, se a decisão sobre a união homoafetiva aparece como um marco, é porque a Constituição é lida como uma mudança de paradigma. Na visão de Celso de Mello, “decisões - como esta que ora é proferida pelo Supremo Tribunal Federal - que põem termo a injustas divisões, fundadas em preconceitos inaceitáveis e que não mais resistem ao espírito do tempo, possuem a virtude de congregar aqueles que reverenciam os valores da igualdade, da tolerância e da liberdade” (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, p. 835). Ao explicitar as razões dessa interpretação em diferentes passagens de suas manifestações escritas e orais, os ministros removem do transcurso histórico o fim (telos) igualitário que o informa. Trata-se de uma operação epistêmica que ganha forma discursiva na apresentação da história das minorias sexuais no Brasil como desdobramento necessário, no texto constitucional, de algo existente antes dele.

Uma passagem da manifestação oral do ministro Fux fornece algumas pistas para pensarmos o papel que a religião cumpre nessa operação de subtrair da história o telos igualitário que, paradoxalmente, os ministros fazem ver na história. Ele afirma que “a Constituição Federal brasileira, que é de uma beleza plástica ímpar, destaca no seu preâmbulo, como ideário da nossa nação, como promessa constitucional, que o Brasil, sob a inspiração de Deus, se propôs erigir uma sociedade plural, uma sociedade justa, sem preconceitos” (Brasil, 2011aBrasil. 2011a. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Brasília, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 >. Acesso em: 11/12/2022.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
, pp. 685-6). Para os atores, o preâmbulo da Constituição Federal parece ser, portanto, o texto fundamental quando se trata de reconhecer direitos iguais a minorias. Em nossa análise, demonstramos que apresentar a história das minorias no Brasil sob a ótica do direito é uma prática social que se orienta para esse mesmo fim. Um dos elementos que torna ambas importantes pode ser “a inspiração de Deus” que está inscrita no preâmbulo e é enfatizada com o dedo em riste pelo ministro. O casamento homoafetivo ganha forma na linguagem dos direitos, mas a linguagem da religião dá forma à possibilidade de o direito funcionar em prol da “emancipação”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, analisamos como os ministros do STF agenciam a história para justificar uma decisão que dá forma jurídica à homoconjugalidade e que consiste em um momento crucial no processo que chamamos de dessacramentalização do casamento no Brasil. Na análise desse processo, partimos do entendimento de que os ministros do STF e outros atores engajados no debate falam a uma audiência imaginada e compósita, que inclui dos presentes no espaço físico do STF à sociedade brasileira. Para falar a essa audiência, as convenções jurídicas e religiosas são usadas de vários modos, bem como se metamorfoseiam com o uso.

Mostramos que, para justificar sua decisão ao que imaginam ser sua audiência, os ministros da Corte contam primeiro a história de transformações dos modos de constituir família e das próprias concepções de família. O instituto jurídico da união estável já é uma expressão desse processo, na medida em que abriu espaço para a validação de uma conjugalidade espontânea, “não matrimonializada” e previamente duradoura. Até a inscrição da união estável na ordem jurídica, o único modo de formar família para fins de direito era pelo casamento, que, ao contrário da união estável, projeta a durabilidade para o futuro. Além da história da família, os ministros do STF contam a história da participação do direito na mudança do mundo. Narram o papel do Judiciário de uma maneira geral e do STF no caso específico. Sua narração deixa ver como a Corte se percebe participante ativa da mudança.

Os ministros inserem essas duas histórias - a da transformação nos modos de se constituir família e a da atuação judicial na mudança social - numa longa história da igualdade, apresentada como a história da própria humanidade. Trata-se da história narrada como utopia moral. Prevalece em suas manifestações a ideia de que a história é informada teleologicamente, orientada para a realização progressiva de um ideal, de modo que o presente sempre contém o embrião da mudança. Essa concepção de história possibilita à Corte descrever sua participação na produção da mudança como uma simples atualização de um ideal que já se materializara no processo social. Sua decisão de validar juridicamente a homoconjugalidade pode aparecer, então, como efeito da produção da domesticidade homossexual na vida social. Apresentando a história de processos sociais distintos e entrecruzados, os ministros anunciam a mudança social e sua participação nela, mas também se empenham em moldurá-la para sua audiência. Esta passagem do voto do ministro Fux mostra como as imaginações jurídica e religiosa funcionaram no julgamento:

Mesmo que já dito antes, não é demais registrar novamente que o tema revolve preconceitos ainda muito disseminados e arraigados na sociedade brasileira. Independentemente do resultado deste julgamento, a sua repercussão social será imensa e são, em boa parte, imprevisíveis as suas consequências. Mas assim será toda vez que as liberdades essenciais dos indivíduos - em especial aquelas ligadas à sua identidade - forem alvo de ameaças do Estado ou dos particulares e o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, for convocado a assegurar a proteção dos direitos fundamentais. (Brasil, 2011dBrasil. 2011d. Pleno - STF reconhece união estável homoafetiva (1/6). Youtube. 42min. Disponível em: <Disponível em: https://youtu.be/cQf8srquCWw > . Acesso em: 11/12/2022.
https://youtu.be/cQf8srquCWw...
)

Os ministros do STF sabem que a homossexualidade, cuja domesticidade é expressa pela ideia de união homoafetiva, foi longamente associada ao pecado, à doença, ao descontrole e à promiscuidade. As duas formas jurídicas pelas quais foi manejada na história do Brasil, a saber, ofensa contra a natureza até 1830 e, depois, atentado ao pudor, são emblemáticas de como ela esteve indexada no imaginário social atravessado pela religião (católica). A categoria da homoafetividade, que a decisão consagra e põe em circulação na sociedade brasileira, seria uma espécie de nova indexação da homossexualidade. Demonstramos que essa nova indexação é produzida pelo concurso do direito e da religião, em um jogo em que o direito dessubstancializa o sexo e substancializa a conjugalidade, ao passo que a religião substancializa o sexo e dessubstancializa a conjugalidade.

Nesse jogo, o casamento homoafetivo ganha forma com a mediação do direito e da religião. Os atores em cena são os operadores autorizados (Cover, 1983Cover, Robert. “Nomos and Narrative”. Harvard Law Review, v. 97, n. 4, 1983, pp. 4-68.) dos códigos da forma de linguagem que convencionalmente chamamos de direito. Como tais, fazem-na funcionar dando sentido às suas práticas e às práticas alheias para uma audiência que eles sabem incluir largos segmentos que se autodeclaram religiosos. Seus agenciamentos do afeto servem a esse fim.

Tomamos o direito e a religião como formas de linguagem e atentamos para seus efeitos no espaço público. Um deles é a sacralização de casamentos homossexuais. Por exemplo, a campanha Livres e Iguais, da ONU, apresenta cenas de casamentos homossexuais em suas produções audiovisuais, como o da cantora Daniela Mercury com a jornalista Malu Verçosa, em 2013, em que ambas figuram vestidas de noiva, tendo os pais e outros familiares como testemunhas. Podemos tomar essas produções como peças de sacralização das uniões erótico-afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Segundo nosso argumento, sua sacralização decorreria da ritualização da cerimônia, agora em torno de uma forma jurídica, a “união homoafetiva”. Já na vida social, o rito faz a audiência ver matrimônio onde formalmente não há sequer casamento e a ministração do sacramento é implausível. Mais especificamente, a autorização moral da união homoafetiva é efeito não da ministração de um sacramento, mas, sim, da publicização da cerimônia sacralizada pela ritualização da relação conjugal.

O natural atravessa, enfim, as múltiplas histórias que os ministros desfiam no julgamento e nele se apresenta de modo ambivalente. O representante da CNBB no caso aponta para essa ambivalência quando afirma que a PGR recorreu à metafísica - isto é, à ideia de direitos inatos, de dignidade natural da pessoa humana - para fundamentar seu pedido e imaginou que atores religiosos sustentariam sua posição - contrária ao pedido - com base no direito natural. Para os ministros e para a Procuradoria, o natural é o avesso da história. Enquanto a história é a instância da mudança social e da emancipação, o natural é a instância da imutabilidade e, consequentemente, da permanência das hierarquias. Trata-se, em suma, de uma temporalidade concorrente à que sustenta a utopia moral da qual o debate sobre a regulação jurídica da homoconjugalidade é um momento: é uma ideia linear de tempo que cria condições para se conceber que a sucessão cronológica seja tendente a um fim, tal como a ampliação das possibilidades da igualdade e das diferenças a partir da ação humana.

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  • 1
    Este trabalho é resultado do projeto temático “Pluralismo religioso e diversidades no Brasil pós-constituinte” (n. 21/14038-6), financiado pela Fapesp, cujo apoio agradecemos.
  • 2
    Dos onze ministros do colegiado, dez participaram do julgamento: Carlos Ayres Britto (relator), Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie Northfleet, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso.
  • 3
    O direito matrimonial canônico, definido no Concílio de Trento (1545-63), estabeleceu a indissolubilidade desse contrato e a obrigação da monogamia. O Código de Direito Canônico de 1983 reafirma o caráter sacramental do matrimônio. Muitas das finalidades do matrimônio indicadas pelos canonistas, tal como a procriação e a educação dos filhos, a colaboração mútua entre os cônjuges e o remédio à concupiscência, foram absorvidas pelo Código Civil brasileiro promulgado em 1916.
  • 4
    Dos dez ministros que participaram do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, em 2011, seis se declaram católicos, um judeu e um holista; em relação a dois não temos informação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2022
  • Aceito
    05 Dez 2022
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