Acessibilidade / Reportar erro

ORDEM E PROGRESSO: Expansão do mundo do crime e projetos de mobilidade

Order and Progress: Expansion of the Criminal World and Mobility Projects

RESUMO

A literatura sobre facções e sua expansão reforça majoritariamente os pressupostos jornalístico-policiais de que o “crime organizado” se expande disputando à força “rotas” de drogas e outros mercados ilegais. Em contraponto a essa perspectiva, deslocamos o olhar para o cotidiano de populações marginalizadas, entre as quais o mundo do crime se expande há décadas como alternativa de mobilidade social.

PALAVRAS-CHAVE:
expansão faccional; mundo do crime; mobilidade social

ABSTRACT

The literature about prison gangs and their expansion mostly reinforces police-journalistic assumptions that “organized crime” expands itself by forcibly disputing drug “routes” and other illegal markets. As a counterpoint to this perspective, we look at the daily lives of marginalized populations, among whom the criminal world has been expanding for decades as an alternative for social mobility.

KEYWORDS:
prison gangs expansion; criminal world; social mobility

INTRODUÇÃO

Biu nasceu em 1973 na Zona da Mata alagoana. Migrou para São Paulo em 1991 e, trinta anos depois, nós nos encontramos em um churrasco na pequena garagem da casa de seus pais em Teotônio Vilela, cidade a 101 quilômetros da capital, Maceió. Aos 49 anos, Biu brincava às gargalhadas com os sobrinhos, dizendo ter 29. Estatura média, pele “parda”, magro e com corte de cabelo militar, vestia uma bermuda jeans, camiseta de um time de várzea da cidade e tênis Nike. Biu trazia ainda no peito uma corrente de prata com um pingente do Corinthians. Sentado em uma cadeira plástica, ele parecia montar guarda no acesso à casa dos pais. À sua frente, havia duas mesas quase totalmente ocupadas por pratos descartáveis, latas de cerveja, um recipiente com cubos de suco de maracujá congelado, uma garrafa de uísque e uma caneca grande com outro escudo do time do povo. Como tantos de sua geração, Biu cursou apenas o ensino primário, em Teotônio. O compromisso de ajudar os pais nas despesas domésticas se converteu, ainda na adolescência, na necessidade de ter um dinheiro próprio para tocar sua vida. Começou a trabalhar clandestinamente numa usina de cana. Antes dos dezoito anos, “já era homem”. Sendo homem em Teotônio Vilela, engravidou uma vizinha mais nova, e o pai da moça os obrigou a se casar. O casamento acabou dois anos depois, quando Biu descobriu uma traição. Seu mundo ruiu. “Homem decente”, Biu não buscou vingança. O episódio, no entanto, mudaria sua vida radicalmente.1 1 Todos os nomes próprios foram alterados para preservar a identidade dos interlocutores.

Raiane é uma jovem de 22 anos. É pequena e magra, tem cabelos cacheados e olhos pretos muito expressivos. Calçando tênis Fila, de calça jeans e blusinha branca de alça, ela carrega no colo a filha de dois anos de idade. Raiane tem a pele bem clara e tatuagens nos dedos da mão, uma letra em cada falange proximal, exceto a do polegar. Quando aproxima os dedos, forma-se o nome de sua mãe: “Lena”. No antebraço, é o nome da filha que carrega tatuado: “Laura”. Nós nos conhecemos em um ônibus clandestino que partiu de um galpão do Brás, no centro de São Paulo, com destino a Caruaru (Pernambuco). Raiane saltaria do ônibus em Teotônio Vilela, quatro dias depois da partida em São Paulo. Nós seguiríamos ainda até Maceió. Nesses dias de convívio intenso, a jovem mãe nos tomou como confidentes e refletiu sobre o momento radical que vivia.2 2 Agradecemos a Vera Telles, Felipe Rangel, Deborah Fromm e Brodwyn Fischer pelos comentários à proposta inicial deste texto e aos membros da equipe do projeto “Conexões Marginais” pelos diálogos estabelecidos. Agradecemos em especial a Isabela Vianna Pinho e Gregório Zambon. A companhia e a presença de Isabela no intenso trabalho de campo durante esse deslocamento possibilitaram, sem dúvida alguma, acesso decisivo ao mundo feminino e jovem que Raiane trazia à tona em suas reflexões constantes durante a viagem. Gregório foi fundamental na elaboração da proposta inicial deste texto. Num híbrido de expressões do interior de Alagoas e das quebradas de São Paulo, a sucessão de cenas trágicas da vida de Raiane era narrada por vezes de modo cômico, por vezes em tom agressivo e, noutras, de forma emocionada. A história era interrompida diversas vezes, quando Laura chorava. Raiane nos contou que engravidou aos dezessete anos de um rapaz de apenas catorze anos, Junin, em São Paulo. Depois que a filha nasceu, e eles já vivendo juntos, Junin começou a beber e um dia bateu em Raiane. Na briga desse mesmo dia, ela soube que Junin estava saindo com uma “novinha” da mesma favela em que vivem, na Zona Sul de São Paulo. Por isso Raiane estava no ônibus, indo para Alagoas. A polícia foi acionada por vizinhos, mas Raiane não quis registrar ocorrência. Dias mais tarde, recorreria a outra justiça, a do Primeiro Comando da Capital (PCC). Convocou sua rival para “uma ideia, uma conversa sem maldade”.3 3 Ideia ou debate é como se chama a instância de justiça informal da principal facção criminal paulista, o PCC, nos territórios em que exerce sua hegemonia política (Marques, 2010; Feltran, 2018; 2020).

Este ensaio parte das experiências de mobilidade e migração de Biu e Raiane, dois alagoanos radicados em São Paulo, para compreender a expansão faccional do Sudeste para o Nordeste brasileiro. Interessa-nos demonstrar como a narrativa faccional se legitima como alternativa plausível nas últimas décadas para a mobilidade social almejada pelos setores mais pobres da população. Nosso problema não é normativo, é sociológico: inscritas em duas gerações, e deslocando-se em idas e vindas entre os mais de 2 mil quilômetros que separam Alagoas e São Paulo, as histórias de Biu e Raiane4 4 Ao longo do texto, as trajetórias de Biu e Raiane se confundirão com as trajetórias da urbanização e do conflito urbano brasileiros. Por esse motivo, elegemos como estratégia expositiva uma ordem, em certa medida cronológica, que explicita o acúmulo social do conflito urbano (Misse, 2006; Machado da Silva, 2016). Possíveis disparidades no volume de informações sobre as duas trajetórias decorrem certamente da diferença de idade entre nossos interlocutores e o acúmulo de experiências que foi compartilhado conosco. vão nos levar às formas cotidianas e capilares pelas quais grupos criminais do Sudeste, como o Comando Vermelho (CV) e o PCC, chegaram aos demais estados brasileiros.

Nossa perspectiva se contrapõe à narrativa jornalístico-policial sobre os modos como esses grupos se expandem. Para jornalistas e policiais, “bandidos” fazem acordos instrumentais em “rotas de drogas” e “dominam” territórios e populações de modo progressivo e à força. Sabemos da importância das instâncias mercantis para a expansão das facções e das consequências bélicas desse movimento. Nossas interlocuções, entretanto, apontam para a necessidade de compreender seu fundamento cotidiano e a dimensão política dessa expansão. Não se trata, portanto, de negar a validade epistemológica da narrativa corriqueira, que encontra sentido na separação dicotômica entre Estado e Crime, “trabalhador” e “bandido”. Trata-se, sobretudo, de fornecer uma alternativa, deslocando o olhar para as perspectivas dos grupos entre os quais o Crime se expande como normatividade, em uma dinâmica correlata à própria expansão do Estado nacional.

Na introdução de seu clássico Sociedade de esquinaWhyte, William F. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Zahar, 2005., William F. Whyte propõe um movimento analítico similar. Ele nos conta que, visto de fora, o bairro no qual fez pesquisa de campo era caracterizado por altas taxas de criminalidade, muitas pessoas na assistência social, ausência de banheiros e presença de crianças que, longe da escola, brincavam pelas ruas. Convivendo no bairro, entretanto, Whyte enxerga outras coisas: aquele era um bairro de italianos e a família era a base da sociabilidade; também nota que as pessoas valorizavam tanto a formação escolar que diferenciavam claramente a sociabilidade local entre “rapazes formados” e “rapazes da esquina”.

Em suma, Whyte nos diz que a visão externa sobre o bairro não estava necessariamente “errada” (talvez pudesse até ser comprovada empiricamente, se contássemos o número de banheiros e inscritos no serviço social). O problema é que, na visão externa, “não há seres humanos”. A proposta do autor é, então, a de recuperar as experiências de seus sujeitos para compreender o bairro sob outra perspectiva. Em nosso caso, o problema analítico é similar. Mas a pergunta a responder a partir das experiências de Biu e Raiane é a seguinte: como foi possível que as facções criminais se expandissem de maneira tão rápida e eficiente, do Sudeste para o Nordeste, ao longo das últimas décadas?

Nossos interlocutores, embora tenham integrado o universo criminal na juventude, veem-se como trabalhadores, não como bandidos. Ambos convivem diariamente com seus pares na “vida do crime” e não os consideram “bandidos”, mas pessoas em busca de ordem e progresso. Assim, a história faccional de Biu e Raiane nos ajuda a compreender a legitimidade social que as facções ganharam, nas últimas décadas, entre os setores mais pobres da força de trabalho. Legitimidade que está, seguramente, na base de sua expansão rápida e consistente pelo país.5 5 A partir dessa perspectiva, a narrativa jornalístico-policial se mostra etnocêntrica e, muitas vezes por isso mesmo, eivada de equívocos empíricos que reproduzem o universo criminal que pretendem debelar. É o que notamos, por exemplo, quando o Estado e os jornais descobrem os “líderes da facção” e os descrevem como chefes de uma massa de indivíduos “dominados” por eles. Nada mais distante da visão êmica sobre estar no crime, sempre amparada pela ideia de autonomia e liberdade dos sujeitos. Dessa visão equivocada, deduz-se, por exemplo, que a transferência desses “líderes” poria fim ao controle local de uma prisão ou favela, por deixar uma massa acéfala de indivíduos antes “dominados”. Como o pressuposto é equivocado, o efeito prático da ação também o é: ao invés de desativar o poder faccional, as transferências de presos propiciam a expansão da narrativa faccional pelos presídios e favelas de outros estados (Manso; Nunes, 2018; Duarte; Araújo, 2020).

Como Biu e Raiane deslocam-se com alguma frequência entre São Paulo e Alagoas, foi assim que decidimos pesquisá-los. Metodologicamente, a construção deste ensaio se pauta em registro etnográfico de cenas vividas contemporaneamente pelos pesquisadores entre Alagoas e São Paulo, além de conversas e entrevistas registradas em diários de campo que nos possibilitaram desenhar as jornadas ou trajetórias de vida de nossos interlocutores (Bourdieu, 2006Bourdieu, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Figueiredo, Janaina P. Amado Baptista de; Ferreira, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.; Cabanes, 2002Cabanes, Robert. Travail, famille, mondialisation. Récits de la vie ouvrière, São Paulo, Brésil. Paris: Karthala/IRD, 2002.; Knowles, 2014Knowles, Caroline. Flip-Flop: A Journey through Globalisation’s Backroads. Londres: Pluto, 2014.). Essas experiências são ainda cotejadas com dados secundários e nossas experiências etnográficas anteriores, vividas nas periferias de Maceió e São Paulo durante as últimas duas décadas.

Além desta introdução e das notas finais, o texto está dividido em duas partes. Na primeira, retomamos a trajetória de Biu desde os anos 1970 até os anos 2000, quando nasce Raiane. Na segunda, estudamos as últimas duas décadas de nosso conflito urbano, nas quais a expansão faccional se processa de modo mais evidente. Nas notas finais, expomos nosso quadro analítico para pensar sobre o conflito contemporâneo no Brasil a partir da expansão do CV e do PCC pelos cotidianos populares.

PARTE 1

“Tudo fizeram para me derrotar” 6 6 Faixa do álbum O ídolo negro, v. 2 (1972), de Evaldo Braga.

No churrasco em Teotônio Vilela, no final de 2021, Biu se apresentou como morador de Paraisópolis, “a maior favela de São Paulo”.7 7 As definições de favela variam, mas órgãos oficiais consideram que a maior favela de São Paulo é a de Heliópolis, também na Zona Sul da metrópole. Paraisópolis é uma das mais famosas, até por estar situada em um bairro nobre da cidade, o Morumbi. Quando perguntamos se fazia tempo que morava por lá, ele riu e falou que na verdade morava no Jardim Colombo, perto da favela, mas dizia morar em Paraisópolis “para intimidar”. Levantando o copo de uísque, falava alto sobre os fluxos que frequenta na favela. Fluxos são bailes funk abertos ao público, realizados nas ruas, e o mais famoso, o Baile da DZ7, acontece de quinta a domingo em Paraisópolis.

Essa é a imagem que Biu quer que seus parentes tenham dele. Ele produz um movimento pendular entre o testemunho do trabalhador que lutou muito para “progredir na vida” e as projeções hedonistas típicas do bandido mais velho, um homem já cansado do combate que agora pode curtir a vida. Depois do sacrifício, a redenção. Em sua imagem de lutador, a vida figura como uma guerra, na qual se deve sobreviver em meio à adversidade (Hirata, 2018Hirata, Daniel V. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: Edufscar, 2018.). Parentes e amigos parecem gostar da imagem assim projetada por Biu: todos se sentam ao seu redor e as conversas gravitam em torno dele.

Ideais de progresso há muito ocupam o imaginário popular e o debate público brasileiro. Na violenta busca pela construção de uma comunidade nacional, tais ideais foram mobilizados como uma espécie de destino histórico inescapável que faria a integração das vidas populares relegadas ao atraso à ordem moderna, industrial e urbana. Era preciso avançar sobre o “passado” escravocrata e rural, pavimentando os caminhos para o progresso que seria obtido com a migração para as cidades (Durham, 1973Durham, Eunice R. A caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1973.; Kowarick, 1979Kowarick, Lucio. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.). A capital de cada estado materializava esse progresso a alcançar e, no plano nacional, os principais destinos dos migrantes foram primeiro o Rio de Janeiro e depois São Paulo.

Do ponto de vista das famílias e comunidades pobres em busca de integração, esses ideais se transformaram em projetos de mobilidade social, sobretudo em parcelas da população que viam plausibilidade de integração à ordem dominante (Durham, 1973Durham, Eunice R. A caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1973.; Feltran, 2020Feltran, Gabriel. The Entangled City: Crime as Urban Fabric in São Paulo. Manchester: Manchester University Press, 2020.). O fenômeno da urbanização industrial configurou-se paulatinamente como um centro gravitacional dessa teleologia, impulsionando fluxos migratórios que, entre os anos 1940 e 1980, redesenharam o território nacional e as dinâmicas produtivas (Machado da Silva, 2016Machado da Silva, Luiz A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.; Cavalcanti, 2007Cavalcanti, M. Of Shacks, Houses and Fortresses: An Ethnography of Favela Consolidation in Rio de Janeiro. Tese (doutorado em antropologia). Chicago: University of Chicago, 2007.; Caldeira, 1984Caldeira, Teresa. A política dos outros. São Paulo: Brasiliense, 1984.).

Mais do que isso, porém, a marcha espoliativa da urbanização brasileira trouxe elementos novos à equação da ordem e do progresso, sobretudo a clivagem da vida popular entre diferentes regimes normativos (Maldonado, 2020Maldonado, J. Jogando meu corpo no mundo: relações entre “conflito urbano” e “acumulação social da diferença”. Dissertação (mestrado em sociologia). São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2020.; Beraldo, 2022Beraldo, Ana. Negociando a vida e a morte: estado, igreja e crime nas margens urbanas. São Carlos: Edufscar, 2022.; Arias; Barnes, 2017Arias, Enrique D.; Barnes, Nicholas. “Crime and Plural Orders in Rio de Janeiro, Brazil”. Current Sociology, v. 65, n. 3, 2017, pp. 448-65.). Das prisões do Rio de Janeiro, ainda nos anos 1980, e depois, nos anos 1990, de São Paulo, emergiram as principais facções criminais: o CV e o PCC, que aos poucos se tornaram nacionais. Esses coletivos regularam mercados ilegais crescentes em um período de forte privação, crise econômica e desemprego nas periferias urbanas. Tornaram-se, assim, ordenadores de uma justiça popular mais brutal, porém mais efetiva que a estatal (Biondi, 2018Biondi, Karina. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome/Gramma, 2018.; Dias, 2009Dias, Camila C. “Ocupando as brechas do direito formal: O PCC como instância alternativa de resolução de conflitos”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, n. 4, 2009, pp. 83-106.), e reivindicavam para si o monopólio da força em territórios populares, periferias e favelas (Zaluar, 1985Zaluar, Alba. “Trabalhadores e bandidos”. In: Zaluar, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985.; Misse, 2006Misse, Michel. “Sobre uma sociabilidade violenta”. In: Misse, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos da violência do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmem Juris, 2006.; Feltran, 2013Feltran, Gabriel. “Sobre anjos e irmãos: cinquenta anos de expressão política do ‘crime’ numa tradição musical das periferias”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 56, 2013, pp. 43-52.).

Quando já estavam estruturadas as ordens faccionais nas periferias do Sudeste, o país todo viveu uma expansão importante das economias populares, impulsionada pela ampliação do salário mínimo, do crédito e do consumo popular, numa estratégia bottom up de crescimento econômico do período lulista. Evidentemente, com os mercados legais floresceram também os mercados ilegais transnacionais: drogas ilícitas, mas também armas de fogo, veículos roubados e produtos contrabandeados (Feltran, 2014Feltran, Gabriel. “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Caderno CRH, v. 27, n. 72, 2014, pp. 492-512.).

Nesses mercados, progressivamente, instalaram-se formas sofisticadas de lavagem de dinheiro, que começaram com lava-rápidos e postos de gasolina nas quebradas e hoje constroem prédios na city de Londres (Atkinson, 2021Atkinson, Rowland. Alpha City: How London Was Captured by the Super-Rich. Londres: Verso, 2021.; Knowles, 2022Knowles, Caroline. Serious Money: Walking Plutocratic London. Londres: Allen Lane, 2022.). Além disso, houve uma enorme transferência de dinheiro ilegal para os mercados legais via consumo (Feltran, 2014Feltran, Gabriel. “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Caderno CRH, v. 27, n. 72, 2014, pp. 492-512.). No plano local, em resposta a essa expansão do mundo do crime nas periferias urbanas (Feltran, 2011Feltran, Gabriel. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. Unesp/Cem, 2011.), houve reação política de grupos de policiais que integravam grupos de extermínio, além de milícias (Cortado, 2018Cortado, Thomas J. À beira da cidade: política e poética da urbanização do Jardim Maravilha, “loteamento proletário” da Zona Oeste carioca. Tese (doutorado em antropologia social). Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2018.), e que se tornaram a base de sustentação política de figuras marcantes da cena pública brasileira da última década.

Passado já quase um século da intensificação da urbanização brasileira, em sua lógica da desordem (Kowarick, 1979Kowarick, Lucio. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.), e apesar de a Crítica à razão dualista, de Francisco de Oliveira (2003Oliveira, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.) já ter completado duas décadas de aclamação acadêmica, o paradigma dicotômico dos dois Brasis (moderno x arcaico; rural x urbano; legal x ilegal) parece ainda ecoar nas representações do conflito urbano brasileiro. Quando se fala em criminalidade, violência e mercados ilegais, ainda predomina a lógica bipolar e normativa que ficcionaliza um mundo no qual o Estado de direito procura se firmar contra as das investidas do “crime organizado” e suas facções. Como demonstraremos a seguir, essa ficção de lei e ordem construindo o Estado nacional parece não fazer mais nenhum sentido no quadro contemporâneo.

“Nasci no interior” 8 8 Faixa do álbum Coisas do Norte (1963), de Marinês.

Biu é o terceiro de sete filhos de um casal de trabalhadores rurais de Teotônio Vilela. Seu pai organizou a vida da família em torno das atividades extrativistas que caracterizariam a região: primeiro o corte e o transporte da madeira retirada das matas que dariam lugar às plantações de cana-de-açúcar e à usina instalada na cidade em 1972; depois o trabalho na mesma usina. Biu é, portanto, filho de um agente direto do progresso alagoano. Crescendo as usinas, principais representantes do “desenvolvimento” em Alagoas, a família cresceria com elas. Não foi o que aconteceu. A integração pelo trabalho não passou de uma pálida promessa em solo alagoano.

Biu, um homem traído, alimentava um ímpeto ambivalente de construir uma nova família ou, dada a frustração vivida, tentar ser um cara independente. Cogitou mudar-se para Maceió, que na virada para os anos 1990 passava por intensa urbanização e recebia dezenas de milhares de famílias expulsas do campo, em consequência da quebra do sistema de morada e da crise no setor sucroalcooleiro (Heredia, 1989Heredia, Beatriz A. Formas de dominação e espaço social: a modernização da agroindústria canavieira em Alagoas. São Paulo/Brasília: Marco Zero/MCT/CNPq, 1989.; Lima, 2020Lima, Weldja M. S. Do conflito à re-volta: o deslocamento campo-cidade-campo entre camponeses em Alagoas. Dissertação (mestrado em sociologia). Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2020.). O rompimento trágico do projeto de vida familiar, que acabava com a idealização do respeitável “pai de família”, arrastou Biu para uma vida de aventuras em bares e festas com outros trabalhadores da pequena cidade.

Em 1991, durante uma dessas festas, Biu conheceu Rosa, uma mulher que “chamava a atenção por onde passava”. Ela morava em São Paulo, e apenas visitava parentes em Alagoas. Tudo em Rosa, Biu nos contou em entrevistas sequenciais, era diferente do que existia em Teotônio. Com ela, aprendeu coisas que não sabia que existiam, da performance no sexo até uma atitude diferente perante a vida. O mundo de Biu se alargava. Depois de alguns encontros, foi convidado para morar com ela em São Paulo. Não perdeu a oportunidade.

O fluxo migratório para São Paulo estava em franco declínio. A crise econômica e o desemprego crescente já empurravam levas de migrantes de volta às suas cidades de origem, mas a paixão de Biu se nutria dos ideais de progresso que Rosa representava. As frustrações, contudo, não demorariam a chegar. Ao desembarcar em São Paulo, Biu nem sequer foi viver na “cidade grande”. Rosa era casada e morava com o marido na Região Metropolitana. Cedeu a Biu um pequeno sítio, desocupado, em outra cidade dos arredores. Distante do suporte familiar, e sem qualificação profissional compatível com o universo fabril emergente no período pós-reestruturação produtiva, Biu amargou tempos difíceis.

Sem dinheiro e “duplamente envergonhado”, não podia voltar para Teotônio. Pegava escondido legumes e galinhas dos sítios vizinhos. Sua estranha presença no lugar, coincidente com o sumiço de animais e parte das hortas, gerou desconfianças. Policiais e justiceiros apareceram fazendo perguntas. Temendo por sua vida, e sem dinheiro, Biu passou a comer restos de comida que conseguia no lixão da região. Ali percebeu que, como outros, poderia recolher sucata ou jogar partidas de futebol amador para garantir um ou outro dia de comida. Três anos se passaram assim.

Cansado de ouvir histórias sobre pessoas que prosperaram em São Paulo, e vivendo uma nova situação que considerava humilhante, Biu aceitou o convite que recebeu nos campos de várzea próximos ao lixão. Três parceiros conseguiram uma arma e disseram que tinham um bom negócio, “fita” garantida. Apesar de recear por sua vida, Biu tinha chegado ao limite e não tinha mais nada a perder. Virou ladrão.

O ano era 1994, o PCC apenas nascia no sistema prisional paulista. Durante quase todo aquele ano, Biu e seus parceiros receberam pagamento fixo para roubar carros em diferentes regiões de São Paulo. Biu não sabia dirigir, mas tinha disposição. Ficou responsável por “escalar” a vítima, ou seja, abordar os motoristas à mão armada, durante os assaltos. Ocupava, portanto, os postos mais baixos da economia de veículos roubados em São Paulo (Feltran, 2022Feltran, Gabriel (org.). Stolen Cars: A Journey through São Paulo’s Urban Conflict. New Jersey: Wiley, SUSC Series, 2022.). O grupo recebia R$ 500,00 por carro,9 9 Segundo artigo publicado no portal Uol Economia, o Gol 1000 da Volkswagen, carro mais vendido no país no ano de 1994, custava R$ 7.243,00. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2014/07/15/veja-quanto-valiam-os-carros-em-1994-tinha-uno-saindo-por-mais-de-r-100-mil.htm>. Acesso em: 27/4/2023. numa época em que o salário mínimo era de R$ 70,00 em São Paulo.10 10 Vale destacar que em 1º de julho de 1994 entrava em vigor o Plano Real, que instituiu uma nova moeda nacional com o objetivo de controlar a hiperinflação e produzir estabilidade econômica.

Se a literatura jornalístico-policial comumente subestima a importância do sentimento de pertencimento produzido pelas relações internas do mundo criminal, que mais tarde seriam institucionalizadas pelo PCC e seu funcionamento à maneira de uma irmandade (Feltran, 2018Feltran, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das letras, 2018.), Biu nos conta que, com os assaltos, finalmente conseguia “comer como gente”, ter algum dinheiro e, sobretudo, esquecer as humilhações. Era respeitado por sua disposição, por algo em que era bom. Ampliou sua rede de relações. Considerado um cara confiável, discreto e de atitude, ganhou o respeito de “criminosos” da Região Metropolitana. O reconhecimento obtido como ladrão, contudo, não ficou restrito aos seus pares. Como comumente acontece, sua fama cresceu também em delegacias da região.

As oportunidades que encontrou para sobreviver, após nova frustração com a vida de pai de família e homem urbano, tinham virado de cabeça para baixo sua existência e seus valores. Seus primeiros momentos de progresso em São Paulo haviam lhe rendido uma foto estampada em delegacias; uma guarnição específica já sabia de seu envolvimento nos assaltos e apenas esperavam a hora de agir. Não teriam dó.

“A vida é desafio” 11 11 Faixa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s.

Fugindo da polícia, ainda em 1995, Biu chegou a Paraisópolis, onde um amigo do futebol lhe deu abrigo. Os dois passaram a vender, informalmente, vale-transporte e vale-alimentação no centro da cidade. João Batista Pamplona (2004Pamplona, João Batista. “A atividade informal do comércio de rua e a região central de São Paulo”. In: Emurb (Empresa Municipal de Urbanização). Caminhos para o centro: estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Paulo: PMSP/Emurb/Cebrap, 2004.), ao tratar da crescente informalidade na Região Metropolitana de São Paulo, aponta que entre 1998 e 1999 os trabalhadores informais representavam 33% do total de ocupados na região. Para Biu, estava dando certo. O negócio, em seu entendimento, era como uma bolsa de valores: pegava uma cartela por um preço aqui, revendia com uma pequena margem de lucro ali; conseguia comprar outra cartela por um preço mais baixo e aumentava o lucro do dia. O fluxo intenso das movimentações garantia algum rendimento, que, mesmo instável, atendia às urgências cotidianas.

Raiane, nesse mesmo período, nascia em Teotônio Vilela de uma mãe evangélica, que trabalhava como doméstica num lar de classe média da cidade. Depois do nascimento de Raiane, Lena deixou de morar na casa dos patrões e foi viver com o marido, conhecido na cidade como Pedro Rasta. Pedro encontrava muitas dificuldades para cumprir o papel de provedor e protetor que Lena esperava dele. O casamento durou seis anos, durante os quais Raiane testemunhou muitas brigas até a separação. Ela cresceu tendo como referência a mãe, que procurou inserir a filha nas redes da igreja, pensando que assim ela teria um futuro melhor.

Em São Paulo, com o declínio do vale-transporte e o crescimento da indústria de CDS e DVDS piratas no fim da década de 1990, Biu se juntou a outros ambulantes e passou a investir nesse ramo. Conta que foi uma das atividades que mais lhe rendeu dinheiro em São Paulo. Tratava direto com os fornecedores, conseguindo muitos lançamentos. O público era grande na virada para os anos 2000. O rap fazia a cabeça de toda uma geração nas periferias e o pagode romântico embalava os corações.

Com a nova atividade, conseguiu comprar uma casa de dois cômodos em Paraisópolis. Não se sentia mais humilhado, mas nutria uma amargura em seu peito. A não realização do projeto familiar em São Paulo ainda tinha efeitos negativos em sua autopercepção. Enquanto seus sócios diversificavam os investimentos informais e ilegais e buscavam espaço no mercado legal de bancas de jornal, Biu passou a ter problemas com álcool e cocaína e perdeu muito dinheiro. Os parceiros o mantiveram de pé.

Em 2003, Biu conheceu e começou a se relacionar com outra mulher, com quem teve uma filha, a terceira dele. Dessa vez, o projeto familiar parecia encaminhado. A nova companheira e a filha foram morar com ele na casa adquirida em Paraisópolis. Chegou a ser contemplado num consórcio, coisa de trabalhador. Vendeu a carta do consórcio e comprou um cômodo em uma avenida mais movimentada da favela. A vida parecia dar sinais de melhora, mas a repressão ao comércio popular no centro de São Paulo se intensificou e os negócios começaram a render menos.

O aumento da fiscalização aumentava também as despesas com proteção e negociação para retomar mercadorias confiscadas (Misse, 2010Misse, Michel. “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2, 2010, pp. 89-107.; Hirata, 2018Hirata, Daniel V. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: Edufscar, 2018.). Em 2006, ano em que se consolida a hegemonia do PCC nas favelas de São Paulo, Biu tentou investir num bar. Passaria de trabalhador informal a proprietário de comércio popular. Nas estatísticas estatais, estava ainda na faixa do autoemprego. Da perspectiva de quem vivia o cotidiano agonístico da guerra, dava um passo importante para a vitória.

Conseguiu algumas máquinas de caça-níqueis e uma mesa de sinuca. Comprava bebida consignada e sua esposa cozinhava. O bar não chegou a durar um ano, porque a polícia estava sempre à espreita. As forças da ordem estatal se impuseram novamente como obstáculo ao progresso de Biu, estimulado por outra ordem cada vez mais presente, a faccional.

“Sem proceder, não para em pé” 12 12 Trecho da música “O trem" (1999), do RZO.

Estamos em 2007. Raiane tem sete anos e passa a maior parte do tempo com a mãe, mas em algumas tardes, depois da escola, vai para a casa do seu pai, que tem uma nova esposa. No escuro do ônibus em que estamos, em janeiro de 2022, ela nos conta que em uma dessas tardes o pai a chamou para tomar um sorvete - o que era incomum. Raiane parece se lembrar com clareza de cada detalhe desse dia. Conta que, com o sorvete na mão, feliz e acompanhada do pai, ele a levou à casa de sua avó paterna, que estava vazia. Na sala dessa casa, ele lhe disse que aquele poderia ser um espaço só para eles, que eles poderiam ir lá sempre que ela quisesse. Em seguida, teria tocado suas partes íntimas, o que ela não entendeu de imediato, mas, mesmo assim, saiu correndo, chorando e gritando pela rua, com o pai atrás dela. Uma tia, que morava na casa vizinha, a acolheu ainda na rua. O pai disse que a menina havia tido um surto, que nada acontecera. Até hoje ele nega o abuso e diz que foi um sonho de Raiane, fantasia de sua cabeça. Ela nos diz: “Eu sei que aconteceu, eu tenho certeza”.

No mesmo ano, Biu recebeu notícias de Alagoas. Sua filha mais velha, então com dezesseis anos, estava namorando um pequeno ladrão. O rapaz foi acusado de ter delatado seus parceiros quando foi torturado por um guarda municipal. Sua morte foi encomendada e, na noite em que os colegas o encurralaram, a filha de Biu levou um tiro na mão e outro na cabeça. O namorado morreu, ela permanecia internada em Maceió.

Biu, depois de dezesseis anos, foi a Alagoas. Precisava ajudar no tratamento da filha. Depois de dois meses internada, a garota faleceu. Esse episódio expressa em alguma medida as transformações no conflito urbano em Alagoas. Nesse período, o estado - que produzia maconha no sertão e no agreste13 13 Ainda está por ser escrita a história social da maconha e de seu mercado em Alagoas. No entanto, a intensa presença da maconha no mundo popular e sua criminalização no debate público são evidentes, desde o imaginário popular condensado na produção literária, musical e nos registros de folcloristas até os jornais de maior circulação no estado. Parte dos dados primários produzidos pela equipe alagoana ao longo da pesquisa que gestou este dossiê está sendo trabalhada nessa direção. e cujo mercado estava majoritariamente ligado a fraternidades de policiais14 14 Grupos de policiais de baixa patente comprometidos com lideranças políticas, como o Sindicato do Crime e a Gangue Fardada, ficaram conhecidos em Alagoas na década de 1960, executando “crimes de mando” e controlando roubos de bancos e cargas, bem como o tráfico de drogas. - passou a contar com relações comerciais mais intensas entre pequenos empreendimentos criminais e os comandos do Sudeste. A difusão do crack foi crucial nessa transformação (Rodrigues, 2020Rodrigues, Fernando de J. “‘Corro com o PCC’, ‘Corro com o CV’, ‘Sou do crime’: facções, sistema socioeducativo e governos do ilícito em Alagoas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020, pp. 120-48.). As disputas entre os diferentes grupos e contra os policiais produziram uma escalada de homicídios no estado. Teotônio Vilela, em 2007, por exemplo, registrou uma taxa de 80,39 homicídios por 100 mil habitantes.15 15 Dados obtidos a partir do Atlas da Violência. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/20>. Acesso em: 27/4/2023.

As estreitas relações comerciais entre os empreendimentos criminais alagoanos e os comandos do Sudeste não haviam conduzido ainda à adoção dos regimes de ação destes últimos. O namorado da filha de Biu foi assassinado sem averiguação, numa trama que envolvia as forças da ordem estatal, rivais e parceiros que se sentiam traídos. Alguns familiares queriam vingança. Biu, que viu de perto as guerras nas periferias paulistanas e acompanhou a construção do Crime como ordenamento legítimo, recusou-se a agir daquela maneira. Era preciso “botar uma pedra” sobre o ocorrido.

O assassinato de sua filha o fez temer por sua família em São Paulo. Estava decidido que precisava ter um ofício que lhe garantisse maior estabilidade. Investiu num supletivo e num curso de jardinagem. Passou a trabalhar em casas, shoppings e condomínios no Morumbi. Vivia agora o projeto profissional e familiar mais estável e duradouro de sua vida. O casamento só viria a acabar em 2014, em razão da insistência da esposa para que se afastasse dos amigos “traficantes”, o que ele nunca levou em conta.

PARTE 2

“O crime vai, o crime vem” 16 16 Faixa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s.

Em 2014, Raiane era uma adolescente muito pobre e em busca de “liberdade”. Sabia que, para ter o que queria, teria de se virar. Tinha sérios problemas de relacionamento com a mãe, que ela considerava “careta”, autoritária e violenta. Estava afastada do pai, mas mantinha algum contato. Raiane, um irmão e duas irmãs, uma delas “adotada”, moravam em um sítio com a mãe e a avó materna. O início da vida sexual de Raiane a aproximou de uma rede de meninas que, nos fins de semana, eram convidadas para “churrascos” em sítios da elite local.

Nessas festas, as adolescentes descobriam um mundo novo: comiam muita carne, tinham acesso a bebidas alcoólicas, piscina e diversão. Também se relacionavam com os convidados, todos homens. No fim das festas, uma senhora dava algum dinheiro a elas. Era ela quem as convidava, levava e buscava dos churrascos. Como não eram eventos muito frequentes, o tempo passou e Raiane foi se dando conta da ambiguidade e também de que eram uma possibilidade de conhecer coisas e pessoas novas e de ganhar algum dinheiro.

Num domingo de 2016, essa senhora pediu que Raiane e outra menina saíssem de uma festa às 16 horas para ir a outra, em uma cidade vizinha. Raiane achou estranho. Se naquele momento já entendia que participava de um circuito de trabalho sexual adolescente, ainda não tinha consciência de que devia obedecer à senhora como se fosse sua patroa.

Quando, por pressão da senhora, chegou ao novo endereço, viu na piscina cerca de trinta homens que as esperavam avidamente. Raiane se desesperou e começou a chorar, pensando no que podia acontecer. A cafetina perdeu a cabeça e foi ríspida, mandando que fossem até eles com um sorriso no rosto. Raiane se revoltou: decidiu enfrentar a senhora fisicamente e, depois de uma luta corporal da qual se lembra com orgulho, saiu correndo, deixando “a velha toda descabelada lá”. A amiga ficou na chácara. Raiane não conseguiu salvá-la, mas não se culpa por isso. O episódio traria consequências para a vida de Raiane.

A 2 mil quilômetros de Alagoas, Biu manteve contato com o mundo do crime de sua quebrada, que desde o início dos anos 2000 andava no ritmo PCC: “Tenho ‘mó’ consideração pelos irmãos, pela minha caminhada. Agora é eu na minha e eles na deles”. Com o fim do casamento, Biu trocou Paraisópolis pela Vila Colombo. Foi morar com uma das irmãs, que no início de 2010 se mudou para São Paulo para trabalhar como doméstica. Com o dinheiro da jardinagem, Biu comprou um carro e o alugou para um vizinho, motorista de aplicativo. Como morava com a irmã, também alugava sua casa e os pontos comerciais. Disse que finalmente se sentia realizado. Se, quan-do chegou a São Paulo, ninguém em Alagoas sabia se ele estava vivo ou morto, agora podia viajar para visitar a família duas vezes por ano.

“Andar por esse país” 17 17 Trecho da música “A vida do viajante” (1953), de Luiz Gonzaga.

A viagem que fizemos com Raiane, de São Paulo a Maceió, teve diversos contratempos. No norte da Bahia, uma ponte quebrada obrigou o ônibus a fazer um desvio que nos atrasaria mais de quatro horas. O tempo passou rápido. Raiane falava conosco sobre sua vida, trazendo para a conversa uma amiga que acabara de fazer no ônibus, uma moça que esperava um filho de um sujeito que já havia desaparecido. Falava como quem estava num divã, com a poltrona reclinada, sem que víssemos seu rosto.

Raiane descreveu o contexto em que foi “vendida” para São Paulo, sem saber, logo depois do incidente com a cafetina. A senhora tinha ligações com a malandragem local, que, por sua vez, tinha conterrâneos e amigos de infância estabelecidos na maior metrópole brasileira. Em abril de 2017, um desses “caras”, conhecido também do pai de Raiane, aproximou-se dela em um bar do bairro que costumavam frequentar e lhe disse que a cafetina havia prometido matá-la, caso ela permanecesse na cidade. Como alternativa, poderia dar um tempo em outro lugar com perspectiva de emprego: ele tinha um parceiro que trabalhava numa produtora de música em São Paulo. O medo da morte, a necessidade de se ver livre da disciplina imposta pela mãe, do cotidiano monótono do sítio e da figura ambivalente do pai, misturada a um senso de aventura, fizeram que ela aceitasse o convite.

Em 2017, quando desembarcou em São Paulo, num ônibus como aquele em que estávamos, um conterrâneo realmente a esperava. Foram de carro até uma favela na Zona Sul da cidade, onde Raiane ficaria hospedada. No pequeno prédio em que passou o primeiro mês de sua estadia, ela encontrou muitos outros homens que frequentavam o lugar para trabalhar na preparação e embalagem de maconha, cocaína e crack para revenda no varejo. A produtora musical era apenas uma fachada para os negócios ilícitos. Logo, Raiane percebeu que era esperado que, em troca de sua permanência ali, prestasse serviços sexuais aos “traficantes”. Foi assim que se apaixonou por um dos trabalhadores do local.

Junin era um rapaz baixo, negro, magro, mas forte, com um sorriso bonito e cordões de ouro no pescoço. Embora tivesse apenas catorze anos, era muito considerado pelos amigos da biqueira.18 18 Biqueira ou lojinha são as principais designações dos pontos de venda de drogas em São Paulo. Junin disse aos colegas que queria namorar com Raiane e que, portanto, ela seria dele. Nesse momento houve um debate intenso com os colegas, que diziam a Junin que ela era uma puta e tinha sido comprada pela rapaziada, que então ele devia pagar a eles o que ela custou. Junin se negou a pagar. Raiane ouviu a conversa e decidiu fugir, o que conseguiria fazer apenas algumas semanas depois.

Raiane buscou no Facebook “produtora musical” e fez um amigo que, de fato, produzia música nas quebradas de Campinas. Combinou com ele que lhe faria uma visita e perguntou se poderia dormir na casa dele. Saiu escondida e pegou um ônibus até a casa do rapaz, com quem começou a ter um relacionamento afetivo-sexual. “Beijei, namorei, fiz de tudo lá com ele. Ele queria já casar comigo, foi bom”. Junin, no entanto, seguia escrevendo para Raiane e, dois dias depois, confirmou que já estava tudo acertado com seus parceiros e ela podia voltar e viver com ele. Em menos de um ano, Raiane estava na maternidade dando à luz Laura. A jovem família foi viver na casa da mãe de Junin.

“Não confio na polícia” 19 19 Trecho da música “Homem na estrada” (1993), dos Racionais MC’s

Raiane decidiu se maquiar no ônibus às 8 horas da manhã, quando acordamos. Sentou-se na poltrona de Mônica, sua amiga de ônibus, mas voltada para o corredor, para as nossas poltronas. Mônica ficou cuidando das duas crianças, sua filha e Laura. Raiane estava ainda mais animada para contar sua vida. Foi se maquiando e falando da família, da antiga escola, de nós, de maquiagem, do que aprendeu no YouTube, da infância marcada por muitas histórias de surras tomadas e dadas. Comentou que teve uma passagem pelo Conselho Tutelar depois de ter espancado uma colega de escola.

O casamento com Junin era conturbado emocionalmente, não um espaço protegido como o que ela buscava para si e para a filha. Por outro lado, a mãe de Junin adorava Raiane e ficava do seu lado nas disputas do casal. Ela sabia o que era ser mulher naquele contexto e ambas se apoiavam. A sogra também cuidava de tudo na casa, que é sustentada pelas atividades de Junin no tráfico local. Raiane nos contou que, mesmo que tenha sido traída, sua vida era boa porque ela não precisava ter renda nem cuidar da casa. Nos últimos dois anos, só cuidava da filha, contando ainda com a ajuda da sogra.

O problema maior passou a ser a polícia. Conforme Junin ganhava consideração no tráfico local, passou também a receber mais visitas de policiais em casa. Repetindo o script já conhecido e já trabalhado na literatura sobre essas interações, todos os moradores da casa passam a ser considerados bandidos (Feltran, 2011Feltran, Gabriel. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. Unesp/Cem, 2011.; 2020Feltran, Gabriel. The Entangled City: Crime as Urban Fabric in São Paulo. Manchester: Manchester University Press, 2020.). Invasões, ameaças, extorsões e tortura policial passam a fazer parte da vida de todos no domicílio. Numa madrugada, policiais invadiram a casa pelo telhado, com armas em punho, acordaram a filha com o barulho e colocaram Raiane e a sogra de joelhos na sala. Elas tinham de dizer onde Junin estava. Sabiam, mas disseram não saber. Escaparam.

Algumas semanas depois, uma viatura se aproximou rapidamente de Raiane, que estava na frente de casa e, de dentro da viatura, os policiais anunciaram que matariam a família toda se eles não sumissem dali. Ameaças como essa, recorrentes na vida de quem está no Crime, são parte do jogo de forças entre policiais corrompidos e traficantes de drogas. Esse jogo de forças cotidiano termina por definir o valor a ser pago semanalmente aos policiais, estruturando assim os mercados de proteção que eles regulam, sempre associados aos mercados ilegais (Misse, 2006Misse, Michel. “Sobre uma sociabilidade violenta”. In: Misse, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos da violência do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmem Juris, 2006.; Hirata, 2011Hirata, Daniel V. “Produção da desordem e gestão da ordem: notas para uma história recente do transporte clandestino em São Paulo”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , v. 4, 2011, pp. 441-65.). A violência é mediada pela troca financeira para arrefecer durante algum tempo (Feltran, 2014Feltran, Gabriel. “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Caderno CRH, v. 27, n. 72, 2014, pp. 492-512.). Essas interações não raro terminam em mortes, que, como sabemos, vitimizam especialmente jovens com o perfil de Junin (Feltran et al., 2022Feltran, Gabriel et al. “Variações nas taxas de homicídios no Brasil: uma explicação centrada nos conflitos faccionais”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , ed. especial, n. 4, 2022, pp. 311-48.).

Raiane nos contava essas histórias com alguma preocupação, mas preocupação muito menor do que as nossas ao escutá-la. A essa altura, sentíamo-nos próximos e com a responsabilidade de alertá-la do perigo de permanecer ali. Ela o conhecia, e até por isso estava naquele ônibus. Raiane, com apenas 21 anos, já tinha passado por tanta coisa que não parecia se abalar com nossas preocupações. Na realidade, ela sabia que viver nessa linha de tensões era seu cotidiano desde que nascera.

NOTAS FINAIS

Na sequência de privações graves que se iniciam nos anos 1970 e chegam a 2022, as trajetórias de Biu e Raiane se cruzam no universo beligerante da busca de sobrevivência de uma fatia da população brasileira, a que vive mais intensamente a falência da contrapartida social do assalariamento (Machado da Silva, 2016Machado da Silva, Luiz A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.; Misse, 2006Misse, Michel. “Sobre uma sociabilidade violenta”. In: Misse, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos da violência do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmem Juris, 2006.). São histórias infames (Foucault, 2003Foucault, Michel. “A vida dos homens infames”. In: Foucault, Michel. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.) que, diante do estreitamento de seus horizontes, se recusam a padecer e buscam respeito fora do universo da integração oficial (Bourgois, 2006Bourgois, Phillipe. “Pensando la pobreza en el gueto: resistencia y autodestrucción en el apartheid norteamericano”. Etnografías Contemporáneas, ano 2, n. 2, 2006.), revelando transformações profundas no tecido social brasileiro. Vimos que, no cotidiano dessas pessoas, ordem e progresso ganham outros significados, ainda que completamente imbricados com aqueles que mobilizam a marcha espoliativa na qual estão imersos.

Em nossa intensa e curta convivência, Raiane e Biu fizeram referência a muitas tentativas de melhoria de vida, diferentes situações de deslocamento territorial e sofrimento, mas escassas fontes de proteção social. Depois de insistirmos, soubemos que agentes de saúde, assistentes sociais e escolas públicas também fizeram parte de suas vidas. Da perspectiva deles, porém, o impacto dessas instâncias sobre a construção de suas próprias trajetórias é praticamente nulo. Por outro lado, tanto Raiane quanto Biu obtiveram renda com mercados informais e ilegais, o que cedo ou tarde os aproximou de sujeitos inscritos no mundo do crime. Estes, em sua perspectiva, lhes proporcionaram redes de proteção.

Nas histórias de ambos, o mundo do crime, assim como a família e o trabalho informal, aparecem como uma alternativa na luta por alguma estabilidade (ordem) e prosperidade (progresso). Prostituição e maternidade, ser assaltante e ser provedor são papéis que convivem. Se da perspectiva jornalístico-policial esses papéis são irreconciliáveis, no cotidiano agonístico de Biu e Raiane eles não apenas coexistem, como impedem que seus atores se tornem párias sociais. O empreen-dimento criminal, então, ganha viabilidade justamente quando é articulado, e não oposto, às demais possibilidades de ordenamento social. O Crime é um ordenamento tão legítimo para eles, quanto é criminalizado pelo Estado. As facções se expandem quando sua narrativa e as vantagens mercantis que elas oferecem chegam a figuras como Biu e Raiane, oferecendo-lhes o mesmo que ofereceram a eles.

Biu e Raiane buscaram proteger suas vidas e prover sua existência pelo casamento, pelo trabalho informal, mas também pelo Crime. Essas três instituições, presentes na vida de ambos, representaram frustrações frente ao que eles idealizaram. Mas elas nos levam a conhecer duas dimensões fundamentais da expansão faccional, sobretudo dos ideais de progresso material e integração simbólica que ela promete:

  1. as facções incorporam representações de mobilidade social do mundo popular (crenças, desejos, idealizações e valores de integração), centradas no consumo de bens e serviços que signifiquem pertencimento simbólico à ordem produzida pelas camadas socialmente dominantes, e oferecem um caminho concreto - ainda que arriscado e criminalizado - para atingi-las mais rapidamente;

  2. nesse processo, as facções produzem uma relação de pertencimento radicalmente crítica ao Estado, justificada tanto pela aparição frequentemente repressiva das forças estatais, que frustram a possibilidade de integração social, quanto pela figuração de sua ausência como instrumento de proteção social no cotidiano. Elas produzem redes relacionais, arbitram conflitos e proporcionam certo senso de justiça, mesmo que distante da lei.

Essas duas dimensões nos permitem perceber, sob a ótica dos trabalhadores mais marginalizados, ávidos por mobilidade, como é que as facções criminais se expandem no Brasil. As formas como essas facções regulam mercados ilegais e reivindicam o monopólio legítimo da violência em cada território, sua guerra contra polícias, milícias e outros rivais, só adquirem sentido a partir da ordem social produtora e produto desse híbrido de regimes de ação.

Quando Raiane chegou a São Paulo, foi um debate do PCC que possibilitou o fim da exploração sexual e o casamento com Junin. Quando a filha de Biu foi assassinada em Alagoas, o proceder de seu pai - orientado pelo PCC - impediu que houvesse uma guerra com os supostos assassinos de sua filha. Se Biu e Raiane nunca fizeram uma carreira criminal que os levasse ao “topo” de uma facção, eles conhecem de perto seus códigos e contam com sua mediação nas adversidades cotidianas. Eles reconhecem nas facções, portanto, uma instância de poder legítima para aqueles que, como eles, buscam progresso na vida sem ter tido qualquer oportunidade. A ideia êmica de oportunidade, evidentemente, ofusca ao mesmo tempo a plausibilidade da noção normativa de cidadania, condição política associada à garantia de direitos. Se, por um lado, eles não são bandidos, por outro, tampouco se integraram à mão de obra protegida pela carteira de trabalho e pelos direitos simbolicamente associados a ela.

Ao tomarmos os deslocamentos territoriais e simbólicos de nossos interlocutores como objetos heurísticos, apostamos na ampliação de uma sociologia do crime por meio de uma sociologia do conflito contemporâneo. Uma sociologia capaz de nos ajudar a entender as transformações que têm redesenhado o país e suas relações inter-nacionais, também pautadas por mercados ilegais, nas últimas décadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Arias, Enrique D.; Barnes, Nicholas. “Crime and Plural Orders in Rio de Janeiro, Brazil”. Current Sociology, v. 65, n. 3, 2017, pp. 448-65.
  • Atkinson, Rowland. Alpha City: How London Was Captured by the Super-Rich. Londres: Verso, 2021.
  • Beraldo, Ana. Negociando a vida e a morte: estado, igreja e crime nas margens urbanas. São Carlos: Edufscar, 2022.
  • Biondi, Karina. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome/Gramma, 2018.
  • Bourdieu, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Figueiredo, Janaina P. Amado Baptista de; Ferreira, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.
  • Bourgois, Phillipe. “Pensando la pobreza en el gueto: resistencia y autodestrucción en el apartheid norteamericano”. Etnografías Contemporáneas, ano 2, n. 2, 2006.
  • Cabanes, Robert. Travail, famille, mondialisation. Récits de la vie ouvrière, São Paulo, Brésil. Paris: Karthala/IRD, 2002.
  • Caldeira, Teresa. A política dos outros. São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • Cavalcanti, M. Of Shacks, Houses and Fortresses: An Ethnography of Favela Consolidation in Rio de Janeiro. Tese (doutorado em antropologia). Chicago: University of Chicago, 2007.
  • Cortado, Thomas J. À beira da cidade: política e poética da urbanização do Jardim Maravilha, “loteamento proletário” da Zona Oeste carioca. Tese (doutorado em antropologia social). Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2018.
  • Dias, Camila C. “Ocupando as brechas do direito formal: O PCC como instância alternativa de resolução de conflitos”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, n. 4, 2009, pp. 83-106.
  • Duarte, Thais L.; Araújo, Isabela C. A. “PCC em pauta: narrativas jornalísticas sobre a expansão do grupo pelo Brasil”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , v. 13, n. 2, 2020, pp. 505-32.
  • Durham, Eunice R. A caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1973.
  • Feltran, Gabriel. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. Unesp/Cem, 2011.
  • Feltran, Gabriel. “Sobre anjos e irmãos: cinquenta anos de expressão política do ‘crime’ numa tradição musical das periferias”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 56, 2013, pp. 43-52.
  • Feltran, Gabriel. “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Caderno CRH, v. 27, n. 72, 2014, pp. 492-512.
  • Feltran, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das letras, 2018.
  • Feltran, Gabriel. The Entangled City: Crime as Urban Fabric in São Paulo. Manchester: Manchester University Press, 2020.
  • Feltran, Gabriel (org.). Stolen Cars: A Journey through São Paulo’s Urban Conflict. New Jersey: Wiley, SUSC Series, 2022.
  • Feltran, Gabriel et al. “Variações nas taxas de homicídios no Brasil: uma explicação centrada nos conflitos faccionais”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , ed. especial, n. 4, 2022, pp. 311-48.
  • Foucault, Michel. “A vida dos homens infames”. In: Foucault, Michel. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
  • Heredia, Beatriz A. Formas de dominação e espaço social: a modernização da agroindústria canavieira em Alagoas. São Paulo/Brasília: Marco Zero/MCT/CNPq, 1989.
  • Hirata, Daniel V. “Produção da desordem e gestão da ordem: notas para uma história recente do transporte clandestino em São Paulo”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , v. 4, 2011, pp. 441-65.
  • Hirata, Daniel V. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: Edufscar, 2018.
  • Kowarick, Lucio. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
  • Knowles, Caroline. Flip-Flop: A Journey through Globalisation’s Backroads. Londres: Pluto, 2014.
  • Knowles, Caroline. Serious Money: Walking Plutocratic London. Londres: Allen Lane, 2022.
  • Lima, Weldja M. S. Do conflito à re-volta: o deslocamento campo-cidade-campo entre camponeses em Alagoas. Dissertação (mestrado em sociologia). Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2020.
  • Machado da Silva, Luiz A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.
  • Maldonado, J. Jogando meu corpo no mundo: relações entre “conflito urbano” e “acumulação social da diferença”. Dissertação (mestrado em sociologia). São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2020.
  • Manso, Bruno P.; Dias, Camila N. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.
  • Marques, A. “‘Liderança’, ‘proceder’ e ‘igualdade’: uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital. Etnográfica, v. 14, n. 2, pp. 311-35, 2010.
  • Misse, Michel. “Sobre uma sociabilidade violenta”. In: Misse, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos da violência do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmem Juris, 2006.
  • Misse, Michel. “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2, 2010, pp. 89-107.
  • Oliveira, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
  • Pamplona, João Batista. “A atividade informal do comércio de rua e a região central de São Paulo”. In: Emurb (Empresa Municipal de Urbanização). Caminhos para o centro: estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Paulo: PMSP/Emurb/Cebrap, 2004.
  • Rodrigues, Fernando de J. “‘Corro com o PCC’, ‘Corro com o CV’, ‘Sou do crime’: facções, sistema socioeducativo e governos do ilícito em Alagoas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020, pp. 120-48.
  • Whyte, William F. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
  • Zaluar, Alba. “Trabalhadores e bandidos”. In: Zaluar, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • 1
    Todos os nomes próprios foram alterados para preservar a identidade dos interlocutores.
  • 2
    Agradecemos a Vera Telles, Felipe Rangel, Deborah Fromm e Brodwyn Fischer pelos comentários à proposta inicial deste texto e aos membros da equipe do projeto “Conexões Marginais” pelos diálogos estabelecidos. Agradecemos em especial a Isabela Vianna Pinho e Gregório Zambon. A companhia e a presença de Isabela no intenso trabalho de campo durante esse deslocamento possibilitaram, sem dúvida alguma, acesso decisivo ao mundo feminino e jovem que Raiane trazia à tona em suas reflexões constantes durante a viagem. Gregório foi fundamental na elaboração da proposta inicial deste texto.
  • 3
    Ideia ou debate é como se chama a instância de justiça informal da principal facção criminal paulista, o PCC, nos territórios em que exerce sua hegemonia política (Marques, 2010Marques, A. “‘Liderança’, ‘proceder’ e ‘igualdade’: uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital. Etnográfica, v. 14, n. 2, pp. 311-35, 2010.; Feltran, 2018Feltran, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das letras, 2018.; 2020Feltran, Gabriel. The Entangled City: Crime as Urban Fabric in São Paulo. Manchester: Manchester University Press, 2020.).
  • 4
    Ao longo do texto, as trajetórias de Biu e Raiane se confundirão com as trajetórias da urbanização e do conflito urbano brasileiros. Por esse motivo, elegemos como estratégia expositiva uma ordem, em certa medida cronológica, que explicita o acúmulo social do conflito urbano (Misse, 2006Misse, Michel. “Sobre uma sociabilidade violenta”. In: Misse, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos da violência do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmem Juris, 2006.; Machado da Silva, 2016Machado da Silva, Luiz A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.). Possíveis disparidades no volume de informações sobre as duas trajetórias decorrem certamente da diferença de idade entre nossos interlocutores e o acúmulo de experiências que foi compartilhado conosco.
  • 5
    A partir dessa perspectiva, a narrativa jornalístico-policial se mostra etnocêntrica e, muitas vezes por isso mesmo, eivada de equívocos empíricos que reproduzem o universo criminal que pretendem debelar. É o que notamos, por exemplo, quando o Estado e os jornais descobrem os “líderes da facção” e os descrevem como chefes de uma massa de indivíduos “dominados” por eles. Nada mais distante da visão êmica sobre estar no crime, sempre amparada pela ideia de autonomia e liberdade dos sujeitos. Dessa visão equivocada, deduz-se, por exemplo, que a transferência desses “líderes” poria fim ao controle local de uma prisão ou favela, por deixar uma massa acéfala de indivíduos antes “dominados”. Como o pressuposto é equivocado, o efeito prático da ação também o é: ao invés de desativar o poder faccional, as transferências de presos propiciam a expansão da narrativa faccional pelos presídios e favelas de outros estados (Manso; Nunes, 2018Manso, Bruno P.; Dias, Camila N. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.; Duarte; Araújo, 2020Duarte, Thais L.; Araújo, Isabela C. A. “PCC em pauta: narrativas jornalísticas sobre a expansão do grupo pelo Brasil”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , v. 13, n. 2, 2020, pp. 505-32.).
  • 6
    Faixa do álbum O ídolo negro, v. 2 (1972), de Evaldo Braga.
  • 7
    As definições de favela variam, mas órgãos oficiais consideram que a maior favela de São Paulo é a de Heliópolis, também na Zona Sul da metrópole. Paraisópolis é uma das mais famosas, até por estar situada em um bairro nobre da cidade, o Morumbi.
  • 8
    Faixa do álbum Coisas do Norte (1963), de Marinês.
  • 9
    Segundo artigo publicado no portal Uol Economia, o Gol 1000 da Volkswagen, carro mais vendido no país no ano de 1994, custava R$ 7.243,00. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2014/07/15/veja-quanto-valiam-os-carros-em-1994-tinha-uno-saindo-por-mais-de-r-100-mil.htm>. Acesso em: 27/4/2023.
  • 10
    Vale destacar que em 1º de julho de 1994 entrava em vigor o Plano Real, que instituiu uma nova moeda nacional com o objetivo de controlar a hiperinflação e produzir estabilidade econômica.
  • 11
    Faixa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s.
  • 12
    Trecho da música “O trem" (1999), do RZO.
  • 13
    Ainda está por ser escrita a história social da maconha e de seu mercado em Alagoas. No entanto, a intensa presença da maconha no mundo popular e sua criminalização no debate público são evidentes, desde o imaginário popular condensado na produção literária, musical e nos registros de folcloristas até os jornais de maior circulação no estado. Parte dos dados primários produzidos pela equipe alagoana ao longo da pesquisa que gestou este dossiê está sendo trabalhada nessa direção.
  • 14
    Grupos de policiais de baixa patente comprometidos com lideranças políticas, como o Sindicato do Crime e a Gangue Fardada, ficaram conhecidos em Alagoas na década de 1960, executando “crimes de mando” e controlando roubos de bancos e cargas, bem como o tráfico de drogas.
  • 15
    Dados obtidos a partir do Atlas da Violência. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/20>. Acesso em: 27/4/2023.
  • 16
    Faixa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s.
  • 17
    Trecho da música “A vida do viajante” (1953), de Luiz Gonzaga.
  • 18
    Biqueira ou lojinha são as principais designações dos pontos de venda de drogas em São Paulo.
  • 19
    Trecho da música “Homem na estrada” (1993), dos Racionais MC’s

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2022
  • Aceito
    25 Abr 2023
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br