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A PRESENÇA DO ESTADO NAS ORGANIZAÇÕES DE MOVIMENTOS SOCIAIS: Notas sobre a porosidade bilateral1 1 Agradecemos ao Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento (GPACE) e ao Grupo de Trabalho Social Movement/Social Justice, coordenado pelo prof. David S. Meyer, da Universidade da Califórnia (Irvine), pelas preciosas contribuições a este artigo.

The Presence of the State in Social Movement Organizations: Notes on Bilateral Porosity

RESUMO

Argumentamos que a influência dos movimentos sociais sobre as políticas públicas é marcada por uma porosidade bilateral, na qual os movimentos tanto buscam penetrar nos poros do Estado quanto se abrem para que este permeie suas organizações. Por meio de dois estudos de caso, o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) e Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR), mostramos como tais movimentos organizam seus espaços incluindo o Estado, que, nesse contato, legitima pautas, qualifica-se nelas e presta contas.

PALAVRAS-CHAVE:
porosidade bilateral; interações socioestatais; movimentos sociais; organizações; Estado

ABSTRACT

We argue that the influence of social movements on public policies is marked by a bilateral porosity, in which movements seek to access the pores of the State and open themselves up for the State to permeate their organizations. Through two case studies, the MIEIB and the MSTTR, we show how such movements organize their spaces and events to include representatives of the State, who, in this contact, legitimize movement agendas, qualify themselves in the guidelines defended by the movements, and render accounts.

KEYWORDS:
bilateral porosity; civil society-state interactions; social movements; organizations; State

INTRODUÇÃO

Quando os estudos dos movimentos sociais no Brasil começaram a explicitar de que maneira as fronteiras entre movimentos sociais e Estado se tornaram cada vez menos nítidas, o principal vetor de análise voltou-se para as interações socioestatais (Abers; Bulow, 2011Abers, Rebecca; Bulow, Marisa. “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre estado e sociedade?”. Sociologias, v. 13, n. 28, 2011, pp. 52-84.; Carlos, 2012Carlos, Euzeneia. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos organizacionais, relacionais e discursivos. Tese (doutorado em ciência política). São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2012.; Dowbor, 2012Dowbor, Monika. A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006). Tese (doutorado em ciência política). São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2012.; Teixeira, 2013Teixeira, Ana Claudia Chaves. Para além do voto: uma narrativa sobre a democracia participativa no Brasil (1975-2010). Tese (doutorado em ciências sociais). Campinas: PPGCS/Universidade Estadual de Campinas, 2013.; Silva; Oliveira, 2011Silva, Marcelo K.; Oliveira, Gerson L. “A face oculta(da) dos movimentos sociais: trânsito institucional e intersecção Estado-Movimento - uma análise do movimento de economia solidária no Rio Grande do Sul”. Sociologias, n. 13, n. 28, 2011, pp. 86-124.; Blikstad, 2012Blikstad, Karin. O agir coletivo nas interfaces da sociedade civil e do sistema político: o caso da atuação do movimento de moradia de São Paulo sobre a política pública de habitação. Dissertação (mestrado em ciências sociais). Campinas: PPGCS/Universidade Estadual de Campinas, 2012.; Gutierres, 2018Gutierres, Kellen. “Estudos de trajetória e interações socioestatais: mútua constituição entre movimento social e a política pública de assistência social”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 105, 2018, pp. 81-114.). Conceitos como repertório de interação (Abers; Serafim; Tatagiba, 2014Abers, Rebecca; Serafim, Lizandra; Tatagiba, Luciana. “Repertórios de interação Estado-sociedade em um Estado heterogêneo: a experiência na era Lula”. Dados, v. 57, n. 2, 2014, pp. 325-57.), encaixes (Gurza Lavalle et al., 2019Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUerj, 2019.), ativistas institucionais (Abers, 2021Abers, Rebecca. Ativismo institucional: criatividade e luta na burocracia brasileira. Brasília: Ed. UnB, 2021.), programas associativos (Tatagiba; Teixeira, 2022Tatagiba, Luciana; Teixeira, Ana Claudia Chaves (orgs.). Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Ed. Unesp, 2022.) e outros foram concebidos para dar conta dos processos por meio dos quais os movimentos sociais, seus ativistas e suas organizações penetram no Estado. Essa porosidade do Estado, aproveitada, construída e/ou conquistada pelos movimentos sociais, foi aproveitada para explicar de que maneira os projetos políticos (Dagnino; Panfichi; Rivera, 2006Dagnino, Evelina; Panfichi, Aldo; Rivera, Alberto Olvera (orgs.). A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo/Campinas: Paz e Terra/Unicamp, 2006.), as tecnologias sociais (Dagnino, 2011Dagnino, Renato Peixoto. “Tecnologia social: base conceitual”. Ciência & Tecnologia Social, v. 1, n. 1, 2011, pp. 1-12.) e as categorias simbólicas defendidas pelos movimentos moldam as políticas públicas (Dowbor; Carlos; Albuquerque, 2018Dowbor, Monika; Carlos, Euzeneia; Albuquerque, Maria do Carmo. “As origens movimentistas de políticas públicas: proposta analítica aplicada às áreas de criança e adolescente, direitos humanos e saúde”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 105, 2018, pp. 47-80.), alimentam os instrumentos das políticas e mudam as categorias estatais (Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2021Carlos, Euzeneia; Dowbor, Monika; Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Efeitos de movimentos sociais no ciclo de políticas públicas”. Caderno CRH, v. 34, 2021, pp. 1-24. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/33276 >. Acesso em: 20/3/2023.
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). Neste artigo, gostaríamos de complementar esse ângulo de análise com a outra face da porosidade, a das organizações de movimentos, apontando de que maneira, nesses espaços, também os movimentos buscam influenciar2 2 Ao usar aqui o verbo “influenciar”, remetemo-nos mais à intenção dos atores do movimento do que à ideia de causalidade ou correlação, na medida em que os próprios estudos de consequências de movimentos sociais nas políticas públicas mostram que se trata de modelos explicativos indiretos e multivariáveis (Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017). as políticas públicas.

Denominamos de porosidade bilateral esse processo interacional que se caracteriza pela interpenetração de Estado e sociedade civil. Ela compreende os pontos de acesso ao Estado, já disponíveis ou arquitetados pelos atores sociais por intermédio de pressões oriundas de ações de confronto e dinâmicas colaborativas de movimentos sociais, e pontos de acesso aos movimentos (suas organizações e eventos), quando, no decurso de interação socioestatal, os atores estatais adentram seus espaços. Nosso argumento é que a influência do movimento não se dá apenas pelos pontos de acesso encontrados no Estado e/ou pelos protestos. O Estado também aprende, é influenciado e pode transformar suas políticas ao interagir com as organizações de movimentos, na medida em que elas se abrem para ele, criando espaços de interlocução e aprendizagem. Assim, propomos aqui a categoria da porosidade bilateral, que permite analisar a mútua influência entre organizações de movimentos e Estado.3 3 Nesta análise, as instituições participativas como conselhos gestores de políticas públicas são consideradas parte da porosidade do Estado. Sem dúvida, a porosidade do Estado é bem mais potente em termos de influência, na medida em que os ativistas podem assumir cargos dotados de poder e recursos e, com isso, tomar decisões por meio das quais os ideais dos movimentos ganham materialidade. Mas a porosidade das organizações e dos eventos de movimentos estimula a aprendizagem, a difusão de ideias e os conhecimentos que são importantes para as mudanças em políticas (Faria, 2003Faria, Carlos Aurélio Pimenta de. “Ideias, conhecimento e políticas públicas: um inventário sucinto das principais vertentes analíticas recentes”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 18, n. 51, 2003, pp. 21-30.; Coêlho; Cavalcante; Turgeon, 2016Coêlho, Denilson Bandeira; Cavalcante, Pedro; Turgeon, Mathieu. “Mecanismos de difusão de políticas sociais no Brasil: uma análise do Programa Saúde da Família”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, 2016, pp. 145-65.).

A porosidade dos movimentos sociais aqui focalizada em suas formas organizacionais leva-nos a retomar o debate conceitual sobre as organizações de movimentos sociais. Analisadas como expressões concretas de movimentos sociais, as organizações fazem parte integral do conceito de movimentos definido como uma rede informal de indivíduos, grupos e organizações engajados em conflito político e compartilhando uma identidade coletiva (Diani, 1992Diani, Mario. “The Concept of Social Movement”. The Sociological Review, v. 40, n. 1, 1992, pp. 1-25. Disponível em: <Disponível em: http://journals.sagepub.com/doi/10.1111/j.1467-954X.1992.tb02943.x >. Acesso em: 18/10/2022.
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). A discussão sobre as organizações - tanto formais quanto informais - avançou mais nos Estados Unidos, onde teve seu auge na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, sendo vistas como recurso indispensável para as mobilizações. Essa vertente, denominada “mobilização de recursos”, extinguiu-se quando as tipologias e quantificações de organizações esgotaram seu poder heurístico. Um outro debate diz respeito aos espaços coletivos de criação de vínculos identitários, bem como às formas organizacionais e seus efeitos sobre a vida dos movimentos, algo que abrange as grandes organizações formais, de um lado, e as formas anti-hierárquicas e informais, de outro. Nem todos esses debates encontram-se na fase de síntese, mas os últimos desdobramentos, especialmente os de Elisabeth Clemens, permitiram desradicalizar posições antes dicotômicas (formais versus informais; recursos versus identidade) e ampliar as possibilidades analíticas sobre o papel de organizações de movimentos sociais como ação política (Clemens; Minkoff, 2004Clemens, Elisabeth; Minkoff, Debra C. “Beyond the Iron Law: Rethinking the Place of Organizations in Social Movement Research”. In: Snow, David et al. (orgs.) The Blackwell Companion to Social Movements. Malden: Blackwell, 2004, pp. 155-70.). Elisabeth Clemens (2005Clemens, Elisabeth. “Two Kinds of Stuff: The Current Encounter of Social Movements and Organizations”. In: Davis, Gerald et al. (orgs.). Social Movements and Organization Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 351-65.) chamou a atenção para o fato de que essas organizações são escolhidas e usadas como forma de ação política per se. A forma de se organizar corresponderia em si a uma maneira de influenciar os processos decisórios no Estado. Aqui, acrescentamos uma lente adicional à concepção de Clemens, chamando a atenção para o fato de que a ação política, no sentido de exercício de influência sobre processos decisórios, pode ocorrer por dentro das organizações.

Esse registro analítico corrobora com os trabalhos inscritos no marco teórico do neoinstitucionalismo histórico, os quais vêm demonstrando que a ação política de movimentos sociais e organizações da sociedade civil no Brasil pós-transição têm conseguido abrir espaços nas instituições estatais por meio dos quais arquitetam encaixes atinentes a interesses e demandas da sociedade civil (Gurza Lavalle et al., 2019Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUerj, 2019.). Neste artigo, invertemos o foco e nos perguntamos sobre os poros abertos nos movimentos sociais que permitem o acesso do Estado aos seus espaços de legitimação, debates e decisões. Ou seja, propomos que a ideia de trânsito referente ao deslocamento de atores de movimentos sociais em direção às instituições do Estado pode ser avaliada nos termos da metáfora da via de mão dupla, na qual os atores de movimentos sociais transitam para/no Estado e atores do Estado transitam para/nos movimentos sociais.

Com base em duas pesquisas empíricas de movimentos sociais no Brasil, o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) e o Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR), mostramos que os movimentos abrem pontos de acesso ao Estado e este os procura, numa escala que vai de participações pontuais imbuídas de peso simbólico até espaços de capacitação promovidos pelo movimento dos quais participam funcionários públicos, passando pela presença de órgãos de governo na composição das diretorias de organizações de movimentos. Essa porosidade organizacional promove a difusão de projetos e reivindicações de movimentos entre os representantes do Estado, bem como contribui para sua legitimação junto às autoridades públicas. É importante destacar que chamar a atenção dos políticos para suas causas ou ter um espaço de alta visibilidade para a apresentação de suas demandas não é trivial e a pergunta sobre como os grupos desfavorecidos fazem para que suas propostas políticas sejam levadas a sério (mesmo que não sejam adotadas) diz respeito à igualdade de participação nas democracias contemporâneas (Jones, 2016Jones, Bryan D. “A Radical Idea Tamed: The Work of Roger Cobb and Charles Elder”. In: Zahariadis, Nikolaos (org.). Handbook of Public Policy Agenda Setting. Northampton: Edward Elgar, 2016, pp. 25-34.; Dalton, 2017Dalton, Russell J. The Participation Gap: Social Status and Political Inequality. Oxford University Press, 2017.). Assim, entender como os movimentos progressistas constroem arenas próprias para se fazer ouvir e, com isso, disputar a atenção dos gestores públicos contribui para esta discussão.

Os dois movimentos sociais escolhidos aqui se assemelham pela estrutura robusta das organizações que os compõem, pelo alcance nacional e pela mobilização no período da redemocratização. Ambos se engajaram em diversas campanhas ao longo de sua trajetória, evidenciando a luta por seus objetivos políticos, dando visibilidade a suas organizações, reconstruindo as identidades e engajando-se numa série de interações com o Estado (Tilly, 2006Tilly, Charles. Regime and Repertoire. Chicago: University of Chicago Press, 2006.). A diferença entre ambos consiste nas relações com o Estado antes de 1988: se o MIEIB surge apenas no início dos anos 1990, o MSTTR nasce nos anos 1960 e desde então desenvolve relações com o Estado na chave neocorporativista, o que significa que tem acesso privilegiado aos fóruns de negociação. O que se espera, portanto, é que a porosidade de organizações apresente distintas facetas. Como o objetivo deste artigo é apontar a existência da segunda faceta da porosidade e ilustrá-la com algumas evidências empíricas, sem pretender criar uma tipologia das formas, a escolha de dois casos distintos nos pareceu metodologicamente adequada para ampliar a sistematização das formas existentes, ainda que sem o intuito de fazer uma descrição exaustiva - para a qual, aliás, seria necessário ampliar o número de casos estudados.

A parte empírica do artigo foi baseada no doutorado de dois de seus coautores: Janaina Vargas de Moraes Maudonnet (2019Maudonnet, Janaina Vargas de Moraes. Movimentos sociais em defesa da infância: os fóruns de educação infantil e suas incidências nas políticas públicas no Brasil. Tese (doutorado em educação). São Paulo: FE/Universidade de São Paulo, 2019.) e José Domingos Cantanhede Silva (2023Cantanhede Silva, José Domingos. Entre o desenvolvimentismo e o pós-desenvolvimentismo: projeto alternativo de desenvolvimento rural sustentável e solidário como instrumento de ação política do MSTTR. Tese (doutorado em ciências sociais). São Leopoldo: PPGCS/Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2023.). Em ambos os trabalhos, a pesquisa foi realizada com base na literatura existente sobre tais movimentos, em análises documentais e entrevistas semiestruturadas com agentes estatais e ativistas dos dois movimentos. Programações de eventos, publicações (livros, revistas e posicionamentos públicos), estatutos e regimentos foram analisados para se compreender as mudanças e permanências em suas trajetórias e formatos organizacionais e ver como se concretizava a participação do Estado em seu interior. O MIEIB foi analisado desde o seu surgimento (meados da década de 1990) até 2018. Já a análise do MSTTR compreendeu o período de 1995 a 2019.

Este artigo convida a leitora e o leitor a percorrer a seguinte trilha: em primeiro lugar, vamos reconstruir de forma sintética os principais conceitos que conformam o argumento da porosidade estatal; em seguida, faremos um breve relato das mudanças analítico-teóricas por quais passou o conceito de organizações de movimentos sociais desde o início dos debates nos anos 1970, de modo a entendermos o que significa a organização como ação política. A parte empírica apresentará o caso do MIEIB e do MSTTR, seus formatos organizacionais, formas de adentramento do Estado nas organizações de movimentos e os significados dos atores para tal participação.

POROSIDADE BILATERAL: RECONSTRUINDO OS DOIS LADOS DO ARGUMENTO

Como já apontado em diversos artigos e coletâneas que trazem balanços do campo (Gurza Lavalle et al., 2019Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUerj, 2019.; Almeida; Dowbor, 2021Almeida, Debora; Dowbor, Monika. “Para além das fronteiras da especialização: pontes analítico-teóricas dentre movimentos sociais e instituições participativas no Brasil em contexto de mudanças”. In: Batista, Mariana et al. (orgs.). As teorias e o caso, v. 1. São Paulo: EdUFABC, 2021, pp. 15-58.; Tatagiba et al., 2022Tatagiba, Luciana et al. Participação e ativismos: entre retrocessos e resistências. Porto Alegre: Zouk, 2022.), o debate sobre os movimentos sociais ultrapassou a barreira dos protestos, metaforicamente falando, e alçou voos mais amplos no que se refere às fronteiras borradas entre Estado e movimentos, inclusive formas de ação que abrangem canais institucionalizados (proximidade com políticos, ocupação de cargos, judicialização, instituições participativas), mútua constituição entre atores sociais e instituições, transformação de demandas, projetos e categorias de movimentos em políticas públicas.

Todo esse arsenal conceitual evidenciou que muitos movimentos visavam influenciar o Estado e a produção de políticas públicas, explicitou de que maneira ocorriam esses processos e com que consequências. Tais pesquisas focavam os ativistas, as organizações de movimentos sociais, as redes ou grupos informais em forte interação com o Estado, algo que foi especialmente estudado nos governos petistas (Tatagiba; Teixeira, 2022Tatagiba, Luciana; Teixeira, Ana Claudia Chaves (orgs.). Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Ed. Unesp, 2022.; Dowbor, 2012Dowbor, Monika. A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006). Tese (doutorado em ciência política). São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2012.). À heterogeneidade do Estado (Dagnino; Panfichi; Rivera, 2006Dagnino, Evelina; Panfichi, Aldo; Rivera, Alberto Olvera (orgs.). A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo/Campinas: Paz e Terra/Unicamp, 2006.) adicionava-se a sua porosidade, nunca simplesmente à disposição dos atores, mas arquitetada ou conquistada por eles. Essa porosidade pode ser informal, na medida em que as relações pregressas entre movimentos e políticos ou burocratas viabilizam os contatos no presente e em torno de pautas importantes para os movimentos. Nesse sentido, ela se aproxima analiticamente do que Eduardo Marques denominou permeabilidade e definiu como “padrão de vínculos pessoais que estrutura as relações dentro do Estado e [entre] o Estado e os interesses privados” (Marques, 1999Marques, Eduardo. “Redes sociais e instituições na construção do Estado e da sua permeabilidade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, 1999, pp. 45-67., p. 142). A porosidade pode ser formal e institucionalizada, na medida em que o Estado oferece a atores munidos de recursos e capacidades pontos institucionalizados de acesso a seus processos decisórios (Skocpol, 1995Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1995.). A análise das interações entre Estado e movimentos sociais vem demonstrando que as ações destes últimos no Brasil pós-transição têm conseguido aproveitar pontos de acesso existentes e/ou abrir espaços nas instituições estatais por meio dos quais arquitetam encaixes atinentes a objetivos e demandas de movimentos (Gurza Lavalle et al., 2019Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUerj, 2019.).

Alojados nesse Estado poroso sob governos aliados, os ativistas e as organizações de movimentos trazem causas e soluções como material para futuras políticas públicas, propondo políticas nacionais, programas, instrumentos de políticas e categorias novas que visibilizam políticas públicas invisíveis ao Estado (Dowbor; Carlos; Albuquerque, 2018Dowbor, Monika; Carlos, Euzeneia; Albuquerque, Maria do Carmo. “As origens movimentistas de políticas públicas: proposta analítica aplicada às áreas de criança e adolescente, direitos humanos e saúde”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 105, 2018, pp. 47-80.; Szwako; Gurza Lavalle, 2019Szwako, José; Gurza Lavalle, Adrian. “Seeing Like a Social Movement: Institucionalização simbólica e capacidades estatais cognitivas”. Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 2, 2019, pp. 411-34.). A vida nos bastidores ou na latência de movimentos sociais fica fora desses radares analíticos. Esse foco restrito das análises foi assumido e criticado pela comunidade de acadêmicos dedicados a esses estudos (Tatagiba et al., 2022Tatagiba, Luciana et al. Participação e ativismos: entre retrocessos e resistências. Porto Alegre: Zouk, 2022.). Aqui também queremos ampliar as lentes, focando o que ocorre por dentro das organizações de movimentos, mantendo a pergunta sobre como os movimentos sociais buscam influenciar as políticas públicas (o que difere da pergunta correlacional sobre os efeitos dos movimentos sociais nas políticas públicas; cf. Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017Carlos, Euzeneia; Dowbor, Monika; Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Movimentos sociais e seus efeitos nas políticas públicas: balanço do debate e proposições analíticas”. Civitas, v. 17, n. 2, 2017, pp. 360-78.).

Uma forma de responder a essa pergunta, argumentamos, é olhar para as expressões de movimentos sociais que possuem certa permanência no tempo, isto é, organizações e eventos tradicionais de movimentos. Essas instâncias podem se tornar espaço de influência política sobre os representantes do Estado? Se a resposta empírica é afirmativa, de que maneira a literatura sobre movimentos sociais lidou com essa questão? Em síntese a ser detalhada abaixo, o debate vai apontar o deslocamento do foco nas organizações como recursos necessários de mobilização para as organizações como forma de ação política per se. Nessa inflexão, portanto, inclui-se a possibilidade de se pensar as organizações como arenas de influência política.

ORGANIZAÇÕES DE MOVIMENTOS COMO AÇÃO POLÍTICA: SEGUNDA FACETA DA POROSIDADE

Os principais debates sobre as organizações de movimentos sociais foram travados em torno de seu perfil mais ou menos formalizado e hierárquico e suas consequências para a mobilização ao longo do tempo. Assim, a abordagem de mobilização de recursos do final dos anos 1970 guiou-se pelo desafio normativo de elaborar um protótipo de organização de pessoas comuns que fosse capaz de romper o acesso privilegiado ao Estado de atores da esfera econômica (McCarthy; Zald, 1977McCarthy, John; Zald, Mayer N. “Resource Mobilization and Social Movements: A Partial Theory”. American Journal of Sociology, v. 82, n. 6, 1977, pp. 1.212-41.). A formalização, entendida como processo de profissionalização, juntamente com a legalização do estatuto jurídico e a burocratização dos quadros, implicaria maior capacidade de agregar os recursos e, por conseguinte, maior capacidade de mobilização para os protestos, processo que ocorreu nos anos 1970 em diversos movimentos estadunidenses (Clemens; Minkoff, 2004Clemens, Elisabeth; Minkoff, Debra C. “Beyond the Iron Law: Rethinking the Place of Organizations in Social Movement Research”. In: Snow, David et al. (orgs.) The Blackwell Companion to Social Movements. Malden: Blackwell, 2004, pp. 155-70.). Esse argumento a favor da formalização entrou em tensão com outro que apontava para o risco de desmobilização do movimento, defendido por adeptos da democracia participativa da nova esquerda estadunidense (Clemens; Minkoff, 2004Clemens, Elisabeth; Minkoff, Debra C. “Beyond the Iron Law: Rethinking the Place of Organizations in Social Movement Research”. In: Snow, David et al. (orgs.) The Blackwell Companion to Social Movements. Malden: Blackwell, 2004, pp. 155-70.). Abria-se, com isso, a polarização entre os que defendiam a importância das organizações formais e profissionalizadas como as únicas capazes de levantar recursos para as mobilizações e aqueles que enxergavam nas conformações menos instituídas, como os grupos constituídos no trabalho e no bairro, o papel crítico na facilitação e na estruturação da ação coletiva de movimentos sociais (McCarthy, 2006McCarthy, John D. “Constraints and Opportunities in Adopting, Adapting, and Inventing”. In: McAdam, Doug; McCarthy, John D.; Zald, Mayer N. (orgs.). Comparative Perspectives on Social Movements: Political Opportunities, Mobilizing Structure, and Cultural Framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 141-51.).

Os defensores das organizações formais e profissionalizadas fizeram um diagnóstico e uma autocrítica vinte anos depois. Apontaram a restrição do conceito de organizações à ideia de recursos, a desconsideração do papel da cultura nos processos de movimentos sociais, a articulação insuficiente com o conceito de estrutura de oportunidades políticas e a ênfase demasiada na escolha racional como a chave interpretativa da atuação dos militantes (McCarthy, 1999McCarthy, John. “Reinvigorating ZMRM: Zald/McCarthy Resource Mobilization”. In: Zaldfest, Conference, 1999, Michigan. Center for Research on Social Organization Working Paper Series, University of Michigan, 1999. Disponível em: <Disponível em: http://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/handle/2027.42/51351/587.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 20/3/2023.
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, pp. 2-5), fatores que levaram à atrofia dessa agenda de pesquisa. A inovação foi trazida por uma nova geração de estudiosos, entre as quais Elisabeth Clemens, que ampliou consideravelmente esse campo de estudo, enfrentando a polarização entre os defensores das organizações informais e os das organizações formais, incorporando o interacionismo simbólico e demonstrando como os vínculos identitários e de pertencimento são gerados dentro das organizações e não são dados necessariamente pelas posições estruturais de seus membros (Clemens; Minkoff, 2004Clemens, Elisabeth; Minkoff, Debra C. “Beyond the Iron Law: Rethinking the Place of Organizations in Social Movement Research”. In: Snow, David et al. (orgs.) The Blackwell Companion to Social Movements. Malden: Blackwell, 2004, pp. 155-70.).

Clemens, ao enfrentar o debate sobre o caráter desmobilizador das organizações formais, mostrou o papel das organizações tanto formais quanto informais para proteger e sustentar os ativistas durante os períodos de hostilidade política; chamou a atenção para a importância da diversidade organizacional para a estabilidade e a inovação de movimentos e para a influência das estruturas organizacionais e dos recursos nos resultados políticos. As organizações geradoras de vínculos e espaços de participação não se restringiam, na visão de Clemens, apenas aos formatos não formalizados. As organizações formais não necessariamente suprimiam a participação engajada e sucumbiam à centralização do poder e ao distanciamento da direção do movimento em relação aos seus membros. As organizações formais têm rituais, encontros e dinâmicas que, ao persistirem no tempo, também produzem e reproduzem vínculos (Clemens, 2005Clemens, Elisabeth. “Two Kinds of Stuff: The Current Encounter of Social Movements and Organizations”. In: Davis, Gerald et al. (orgs.). Social Movements and Organization Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 351-65.).4 4 Elisabeth Clemens também cunhou o conceito de repertório organizacional, o que implica considerar as formas organizacionais existentes um conjunto histórico escolhido do ponto de vista tanto estratégico quanto identitário. Isso possibilita a análise da mútua constituição entre movimentos e Estado (Clemens, 2005).

Além de enfrentar esses debates, Clemens mostrou o potencial de ação política nas organizações, o que inclui usar modelos organizacionais não políticos para objetivos políticos. Um exemplo é o movimento de mulheres estadunidenses, que na passagem do século XIX para o XX usou seus clubes e corporações para se aproximar das instituições políticas, construindo com isso a prática do lobby popular (Clemens, 1993Clemens, Elisabeth. “Organizational Repertoires and Institutional Change: Women’s Groups and the Transformation of U.S. Politics, 1890-1920”. American Journal of Sociology, v. 98, n. 4, 1993, pp. 755-98.). Os estudos de caso relatados aqui mostram que as organizações em si e suas estruturas podem ser usadas como ação política e isso implica certa porosidade aos representantes do Estado.

As organizações de movimentos sociais constroem e oferecem às instituições públicas, aos representantes políticos, aos gestores e aos servidores públicos pontos de acesso às suas estruturas e dinâmicas. Esses acessos podem ser mais ou menos permanentes no tempo - os mais duradouros são a presença de representantes do Estado nos conselhos das organizações e os mais pontuais consistem na presença de autoridades em eventos de movimentos - e oferecem possibilidade de influência em termos de difusão de projetos políticos, conhecimentos, tecnologias sociais, valores e símbolos.

Ao destacar a porosidade das organizações ao Estado, argumentamos que é frutífero considerá-la em conjunto com a porosidade do Estado aos movimentos sociais para entendermos como os processos de produção de políticas públicas são influenciados e como os grupos desfavorecidos se fazem presentes. O conceito de porosidade bilateral possibilita ao pesquisador olhar os dois processos concomitantemente. Vale frisar que de modo algum alegamos que se trata de uma dinâmica presente em todas as organizações. Nosso argumento é de médio alcance e tem por objetivo ampliar o leque analítico, sem a pretensão de substituir outras dinâmicas em organizações de movimentos.

O MOVIMENTO INTERFÓRUNS DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO BRASIL (MIEIB)

O MIEIB é um movimento social formado por Fóruns de Educação Infantil (FEIs) estaduais, regionais e municipais espalhados por todo o país. Trata-se de um movimento resultante de múltiplas articulações, cujo objetivo é exercer pressão política e dar visibilidade a princípios e bandeiras que o constituem, tais como acesso de qualidade à educação infantil e a um currículo que considere as crianças sujeitos de direitos, contrapondo-se às políticas clientelistas e informais de atendimento. Para tal, não raramente se articula com diversos outros movimentos em campanhas coletivas, posicionamentos e mobilizações, e estabelece diversas formas de interação, conflito e cooperação com o Estado, a depender da região em que atua. Se, de um lado, os FEIs têm recorrentemente buscado inserir seus quadros em comissões e conselhos deliberativos criados no âmbito estatal como forma de influenciar políticas públicas, de outro, eles têm aberto possibilidades de inserção do Estado em seu próprio âmbito. Neste último caso, três formas têm sido comumente observadas: a inclusão de representantes do Estado nos comitês diretivos dos FEIS; a participação de representantes do Estado em assembleias periódicas; e a presença de representantes do Estado em eventos por eles organizados.

Os fóruns são espaços não institucionalizados de participação social que contam com a adesão de diferentes atores interessados no debate de demandas situacionais ou específicas, como os Fóruns de Educação de Jovens e Adultos e os Fóruns em Defesa da Escola Pública. No caso específico dos FEIs, estes se constituem como “espaços suprapartidários, articulados por diversas instituições, órgãos e entidades comprometidas com a expansão e melhoria da Educação Infantil, num determinado estado, região ou município. São espaços permanentes de discussão e atuação, não se restringindo a um ‘encontro’ ou a um ‘seminário’” (MIEIB, 2002MIEIB (Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil). Educação infantil: construindo o presente. Campo Grande: Ed. UFMS, 2002., p. 139).

Os FEIs são expressão organizacional do MIEIB, que surgiu em 1999 como resultado de uma articulação entre sete fóruns estaduais. A criação de uma rede articulada chamada MIEIB tinha como objetivo definir consensos entre tais fóruns, ampliar suas articulações e capilarizar o movimento, o que foi expresso no documento Educação infantil: construindo o presente (2002MIEIB (Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil). Educação infantil: construindo o presente. Campo Grande: Ed. UFMS, 2002.), um marco nesses propósitos. Nele, já se definiam os termos da participação, incluindo, além da sociedade civil, representantes do Estado, tais como órgãos da área de educação, assistência social, saúde, justiça e outros (MIEIB, 2002MIEIB (Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil). Educação infantil: construindo o presente. Campo Grande: Ed. UFMS, 2002., p. 197). Mais especificamente, seria possível a presença do Estado nos comitês diretivos, aos quais competiria representar o MIEIB em suas diversas ações, propor a agenda do movimento e acompanhar o planejamento e a execução das ações previstas. Na prática, os comitês consistem em um espaço de representação e articulação política. Ao analisar os vínculos profissionais dos 211 representantes dos comitês diretivos dos 26 fóruns estaduais de educação infantil e do Distrito Federal em 2018, observamos que as secretarias de Educação (municipais e estaduais) constituíam a segunda maior representação no movimento, com 15,6% do total de participantes (Maudonnet, 2019Maudonnet, Janaina Vargas de Moraes. Movimentos sociais em defesa da infância: os fóruns de educação infantil e suas incidências nas políticas públicas no Brasil. Tese (doutorado em educação). São Paulo: FE/Universidade de São Paulo, 2019.). Dos 27 FEIs, 19 contavam com a participação de tais atores.

Ao buscar na Plataforma Lattes (CNPq) o nome e a filiação dos representantes das secretarias de Educação que constam no site do MIEIB, observamos que a maior parte possui múltiplas filiações (Mische, 2003Mische, Ann. “Cross-Talk in Movements: Reconceiving the Culture-Network Link”. In: Diani, Mario; McAdam, Doug (orgs.). Social Movements and Networks: Relational Approaches to Collective Action. Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 258-80.), das quais destaca-se o vínculo com a universidade enquanto aluno(a)s e/ou membros de grupos de pesquisa. Dentro da rede MIEIB, as universidades públicas têm um papel-chave em termos de membros e lideranças. A maior parte das participantes dos comitês dos FEIs (174 de 211, ou 82,46%), independentemente da filiação, é pós-graduandas ou pós-graduadas. Destas, 69 (ou 39,65%) são professoras de universidades públicas ligadas à área de Educação Infantil. E são elas que assumem a liderança, recrutam novos membros e cuidam da sustentabilidade no tempo.

A atuação e o protagonismo das professoras universitárias constituem um mecanismo que protege os fóruns contra a cooptação. Os fóruns estaduais em geral são acolhidos por universidades federais ou estaduais pelo trânsito facilitado das lideranças em tal espaço e/ou, como relatam algumas das entrevistadas, para que o fórum não perca sua essência de articulação. Segundo uma delas: “Quando [o fórum] fica vinculado a uma Secretaria de Educação, corre o risco de ser formação. Fórum não é isso, temos uma ação política. A secretaria não pode ser mentora ou acolhedora de um fórum, que tem de nascer da sociedade civil” (Maudonnet, 2019Maudonnet, Janaina Vargas de Moraes. Movimentos sociais em defesa da infância: os fóruns de educação infantil e suas incidências nas políticas públicas no Brasil. Tese (doutorado em educação). São Paulo: FE/Universidade de São Paulo, 2019.).

A participação de pessoas vinculadas às secretarias de educação nos FEIS é considerada e promovida pelos membros dos fóruns como uma forma de exercer influência sobre as políticas regionais ou locais, seja porque são elas que estão “na ponta”, ou seja, estão diretamente ligadas ao cotidiano das instituições educativas, seja porque estão em contato direto com os que têm maior poder de decisão em tais políticas (secretários de Educação, prefeitos ou governadores). A inserção ocorre em dois espaços: nos comitês diretivos e nas assembleias dos fóruns. Em ambos são debatidas as políticas existentes, as propostas e as demandas de cada fórum, o que propicia a circulação de informações e promove processos de aprendizagem (Coêlho; Cavalcante; Turgeon, 2016Coêlho, Denilson Bandeira; Cavalcante, Pedro; Turgeon, Mathieu. “Mecanismos de difusão de políticas sociais no Brasil: uma análise do Programa Saúde da Família”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, 2016, pp. 145-65.). Além desse caráter deliberativo, ambos são espaços de formação, na medida em que debatem questões curriculares e políticas públicas da área da educação infantil. Alguns fóruns, como é o caso dos fóruns do Rio Grande do Sul e do Paraná, articulam as assembleias a programas de extensão oferecidos pelas universidades ligadas a eles. Muitas dessas assembleias introduzem a temática do dia em suas pautas, geralmente um assunto “em alta” na área. O espaço de compartilhamento de informações e apresentação de demandas pelos ativistas é também um espaço cedido aos representantes de governo. Ao mesmo tempo que há compartilhamento de desafios e soluções encontradas pelos governos municipais, há espaço para a justificação de ações e não ações desses governos e, em função disso, para uma potencial atenuação dos conflitos.

As duas representantes do poder público entrevistadas pela pesquisa revelaram a importância de sua participação nas assembleias dos fóruns. Elas se sentem mais fortalecidas e apoiadas na defesa dos princípios da educação infantil defendidos pelo movimento e mais preparadas para os embates em suas regiões. Uma demanda constante de tais representantes no MIEIB são posicionamentos públicos como apoio e argumento para tais embates.

A participação das representantes de secretarias de Educação nas assembleias dos fóruns é facilitada pela disponibilidade de transporte e dispensa de ponto, o que demonstra que muitos governos municipais e estaduais entendem os fóruns como espaços importantes para a formação e o debate das políticas públicas. Mas isso não significa que os princípios e as bandeiras do movimento sejam assumidos indiscriminadamente, haja vista que, dentro de um mesmo governo, há concepções diferenciadas de educação e educação infantil, além de disputas internas na elaboração de políticas públicas.

Contudo, a participação, a formação e o empoderamento das representantes dos segmentos das secretarias de educação nos fóruns têm sido uma forma estratégica do movimento disputar os conteúdos das políticas públicas no âmbito municipal, onde se dão as principais políticas da área da Educação Infantil. Um exemplo é a política de acesso às creches nos municípios paulistas. Em meados dos anos 2000, como forma de atender à enorme demanda, muitos municípios optaram pelo atendimento parcial dos bebês nas creches, o que dificultava a organização das famílias trabalhadoras no cuidado de seus filhos. Entendendo a educação infantil também como uma política de assistência às crianças e às famílias, o Fórum Regional de Educação Infantil de São Paulo defendia a ampliação das vagas em período integral ou em periodicidade de atendimento à escolha da família. A discussão pautou as assembleias regionais entre representantes das secretarias de Educação municipais e os membros dos comitês diretivos dos fóruns e criou uma pressão interna para que houvesse uma discussão mais ampliada do tema, principalmente naqueles municípios em que já se tinha a política de atendimento parcial como única solução para atender à demanda.

Os eventos organizados pelos fóruns, como congressos e seminários, também são estratégicos para a relação com os diversos setores do Estado em um contexto de porosidade bilateral. Além dos encontros regionais anuais em âmbito estadual, o MIEIB realiza encontros nacionais que contam com centenas de participantes, entre os quais representantes dos fóruns de todo o país, representantes do Estado e público interessado. Um exemplo foi o XXXIV Encontro Nacional do MIEIB, realizado em 2018, em Manaus. Estavam na mesa de abertura do encontro a secretária de Educação de Manaus, o secretário de Educação de Pacaraima (Roraima) e representantes da Universidade Federal do Amazonas, do Tribunal de Contas do Amazonas, da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME) e outros. Assim como no caso do encontro em Manaus, em geral tais participações se dão na mesa de abertura. Embora as consequências da participação de representantes do Estado em eventos do tipo mereçam estudos mais aprofundados, elas indicam a legitimidade que esses movimentos vêm construindo em sua relação com o Estado. Aos representantes do Estado interessa estar em um espaço que têm legitimidade social na área, como a rede MIEIB; aos membros do MIEIB, tal participação demonstra a força do movimento e pode representar influência, na medida em que traz as forças do Estado para o seu território a fim de ouvir suas demandas.

Em suma, a organização interna dos fóruns em comitês e assembleias, bem como de seus eventos, têm possibilitado, enquanto decisão estratégica do movimento, a participação de setores dos três níveis federativos. Essa porosidade das organizações em relação ao Estado significa, para o movimento, o aumento de sua legitimidade e a possibilidade de influenciar políticas públicas, na medida em que nesses espaços ocorrem processos de difusão de propostas e demandas. Tal participação, no entanto, difere de acordo com o espaço. Se, nos comitês diretivos e nas assembleias, os representantes do Estado levam os princípios e as bandeiras do movimento para as disputas internas no âmbito regional, os eventos organizados pelo movimento são uma oportunidade para tais princípios e bandeiras serem ouvidos diretamente pelos decisores (secretários de Educação, prefeitos e governadores).

O MOVIMENTO SINDICAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS (MSTTR)

O MSTTR é constituído por sindicatos municipais e intermunicipais, federações estaduais e a Confederação Nacional de Trabalhadores Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag),5 5 Essa denominação foi adotada recentemente, em decorrência da dissociação dos trabalhadores rurais assalariados e da disputa travada com outros movimentos de representação dos trabalhadores e trabalhadoras do mundo rural, principalmente em torno da categoria de agricultura familiar. institucionalizados pelo Estatuto do Trabalhador Rural (lei n. 4.214, de 2 de março de 1963). Aparentemente configura-se como um movimento de sindicatos alinhados aos termos da chave analítica do neocorporativismo. Mas apenas em aparência, pois se trata de um movimento complexo, que escapa da circunscrição do sindicalismo tradicional, porque também se expressa por uma diversidade de ações políticas, acionando repertórios (marchas, protestos, ocupações de prédios) e incorporando novas pautas.

Em sua interação com o Estado, o movimento continua a defender as pautas mais caras e marcantes de sua trajetória, como o enfrentamento da violência resultante do confronto com o agronegócio latifundiário, a luta pelos direitos previdenciários (adequação das normas ao reconhecimento do trabalho rural familiar) e demais políticas sociais no campo, a saber, educação, saúde, erradicação do trabalho infantil e reconhecimento dos direitos das mulheres trabalhadoras rurais. Na mesma direção, o MSTTR vem disputando as fontes de financiamento das atividades produtivas e organizativas, como o crédito rural, pois historicamente o Estado tem dado mais atenção ao agronegócio.

O MSTTR também desenvolve formas organizacionais distintas daquelas que o sindicalismo tradicionalmente aciona em suas lutas: reforça sua estrutura com redes de cooperativas e associações de economia solidária, abre espaço para novos coletivos de jovens, mulheres e idosos etc. Essas mudanças e formas de ação nos levaram a interpretar esse movimento sindical também como um movimento social, entendido como uma rede informal de interação (Diani, 1992Diani, Mario. “The Concept of Social Movement”. The Sociological Review, v. 40, n. 1, 1992, pp. 1-25. Disponível em: <Disponível em: http://journals.sagepub.com/doi/10.1111/j.1467-954X.1992.tb02943.x >. Acesso em: 18/10/2022.
http://journals.sagepub.com/doi/10.1111/...
). Na década de 1990, o MSTTR promoveu um giro político organizativo com a formulação de um projeto político (Dagnino; Panfichi; Rivera, 2006Dagnino, Evelina; Panfichi, Aldo; Rivera, Alberto Olvera (orgs.). A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo/Campinas: Paz e Terra/Unicamp, 2006.), nomeado de Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PADRSS).

Antes da formulação desse projeto político, além das negociações tripartites garantidas pelo regramento neocorporativista, o MSTTR se relacionava com o Estado fazendo pressão política, negociações e reivindicações pontuais. Na década de 1990, ele manteve essa forma de interação, mas apostou também em novas maneiras de interação com o Estado, a começar pela melhoria da qualidade técnica de suas reivindicações e estratégias de negociação: ao invés de demandas pontuais, formulação de pautas integradas de diversas políticas; no lugar de solicitações para setores isolados, negociação com autoridades governamentais com alto poder de decisão. Além disso, o MSTTR deliberou sobre a ocupação de espaços no Estado, o que significava ter seus próprios candidatos nos pleitos eleitorais, apoiar aqueles que compartilhavam da noção de desenvolvimento rural expressa no PADRSS, mas também informar sobre a institucionalização de proposições e concepções de desenvolvimento rural por meio de interações com o Estado. Essa é a primeira faceta da porosidade bilateral.

A segunda faceta consistiu na abertura de espaços que permitiram que o Estado transitasse no movimento por meio de suas organizações e seus eventos. Isso fica especialmente evidente no caso da participação de autoridades em eventos do MSTTR, particularmente aquelas autoridades que possuem alto poder decisório. Essa participação não é novidade. Todavia, a partir da década de 1990, o sindicalismo rural nucleado pela Contag estabeleceu com clareza os termos do diálogo: ele é portador de um projeto robusto, concreto e enraizado (PADRSS), que em cada evento se materializa diante das autoridades com um conjunto de reivindicações e propostas de políticas, bem como agudas críticas às políticas implementadas (Cantanhede Silva, 2023Cantanhede Silva, José Domingos. Entre o desenvolvimentismo e o pós-desenvolvimentismo: projeto alternativo de desenvolvimento rural sustentável e solidário como instrumento de ação política do MSTTR. Tese (doutorado em ciências sociais). São Leopoldo: PPGCS/Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2023.). O PADRSS é a espinha dorsal dos eventos nacionais e é por meio dele que o movimento se comunica com os representantes do poder público. Não se trata de participação meramente ritualística, na qual a autoridade fala na abertura de um evento; o que vemos são trocas e confrontos de argumentos, prestação de contas e comprometimentos políticos.

Convém sublinhar que o fato de o movimento social se encontrar em processo de interação não implica que todo e qualquer governo instalado no Estado terá caminho aberto para adentrar seus espaços. Essa abertura tem a ver com a identidade dos projetos políticos. Ela ocorre quando o movimento tem alguma afinidade de ideias com os governos em determinados contextos, em geral mediante a construção de relações políticas em que a autoridade tem posições que correspondem ao projeto político do movimento.

A participação de autoridades nos eventos do MSTTR do Maranhão é vista por uma ativista como um recurso para fortalecer o movimento sindical e os laços com as autoridades estatais aliadas (Cantanhede Silva, 2023Cantanhede Silva, José Domingos. Entre o desenvolvimentismo e o pós-desenvolvimentismo: projeto alternativo de desenvolvimento rural sustentável e solidário como instrumento de ação política do MSTTR. Tese (doutorado em ciências sociais). São Leopoldo: PPGCS/Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2023.). Quando o movimento consegue que governadores, secretários de Estado, diretores de autarquias etc. estejam presentes em seus espaços políticos, entende que está transmitindo à sociedade e outros movimentos sociais uma mensagem sobre seu capital político e capacidade de articulação e, à autoridade, sobre seu poder de mobilização e disposição de manter fortes os laços criados em tempos pretéritos, particularmente em período eleitoral, razão da abertura do trânsito da autoridade no território sindical.

A emblemática participação do então governador do Maranhão, Flávio Dino, à época filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), no VIII Congresso Estadual dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Maranhão (2016) e na plenária estadual de avaliação do mandato da diretoria eleita naquele congresso corrobora nossa assertiva sobre o trânsito de autoridades com elevado poder decisório nos espaços políticos do MSTTR. Na ocasião, o governador acentuou o alinhamento político com o movimento, afirmando que a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema) e os sindicatos que a compõem “sempre apontaram para a classe trabalhadora o caminho correto” e que a correspondência com o “caminho correto” levou à recriação, em seu governo, da Secretaria da Agricultura Familiar: “Nós recriamos a Secretaria de Agricultura Familiar e quero agradecer à Fetaema, porque foi proposta da entidade” (Contag, 2016Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares). “Eleita diretoria da Fetaema gestão 2016-2020”. Contag, 6/6/2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.contag.org.br/indexdet2.php?modulo=portal&acao=interna2&codpag=101&id=11477&mt=1&nw=1&ano=&mes= >. Acesso em: 20/3/2023.
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). Em outras palavras, além do caráter simbólico, a participação da autoridade máxima do Executivo nesses eventos implica o comprometimento do poder público com o projeto político do movimento em termos de construção de políticas e apoio à sua pauta em outra esfera estatal, a saber, no Legislativo federal, como foi o caso do vice-governador do Maranhão na primeira reunião anual do conselho deliberativo do MSTTR (Maranhão, 2019Maranhão. “Governo debate políticas públicas para agricultura familiar em reunião anual de produtores”. Governo do Maranhão: Agência de Notícias, 27/3/2019. Disponível em: <Disponível em: https://www3.ma.gov.br/agenciadenoticias/?p=245118 >. Acesso em: 30/6/2020.
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).

Em 2018, no fim de seu primeiro mandato, o governador Flávio Dino esteve presente na Assembleia do Conselho Deliberativo da Fetaema, que teve aproximadamente quatrocentos participantes. Nessa assembleia, houve tanto prestação de contas da entidade quanto avaliação das políticas do governo. O presidente da Fetaema elencou diversos pontos que deveriam ser melhorados num próximo governo, entre os quais a relação da segurança pública com os trabalhadores e trabalhadoras do campo: “precisamos na próxima gestão [...] trabalhar para que a polícia deixe de ser truculenta nas ações de despejos” (Fetaema, 2018Federação dos Trabalhadores, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema). Ata do Conselho da fetaema. São Luís: FETAEMA, 2018.). Na sequência, em tom mais crítico, as chamadas bases sindicais procederam a avaliação das ações do governo. Uma vez que o governador assegurou que a Secretaria da Agricultura Familiar foi recriada em razão de uma reivindicação do MSTTR, temos evidências da implicação do movimento na criação dessa capacidade estatal. Entretanto, quando o movimento apontou a violência dos agentes de segurança pública contra agricultores e agricultoras familiares em conflitos agrários, verificamos que o processo interacional abrange áreas específicas da esfera estatal. Tal limitação evidencia que os trânsitos do Estado no movimento e do movimento no Estado não foram suficientes para garantir a repercussão das reivindicações do MSTTR para a área de segurança pública.

A oportunidade oferecida à autoridade de falar diretamente com grupos mais amplos do que a direção do movimento tem um caráter simbólico e ritualístico. No entanto, os dirigentes estaduais aproveitam essas instâncias, que reúnem lideranças representativas da chamada base sindical - sindicatos municipais, delegados sindicais oriundos de comunidades e povoados, polos regionais e grupos específicos de jovens, mulheres e terceira idade - para provocar momentos de justificação, prestação de contas e comprometimento do poder público.

Um ex-dirigente do MSTTR que atuou durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva fala sobre a estratégia de abrir espaços para os atores estatais nos eventos: “Tinha algumas coisas que nós formulamos juntos, ocupando os espaços no governo ou levando o governo para o nosso espaço, e dali saíam proposições para os ministérios, para os bancos etc., e então daí você já tinha galgado um espaço para que aquilo virasse política pública” (Cantanhede Silva, 2023Cantanhede Silva, José Domingos. Entre o desenvolvimentismo e o pós-desenvolvimentismo: projeto alternativo de desenvolvimento rural sustentável e solidário como instrumento de ação política do MSTTR. Tese (doutorado em ciências sociais). São Leopoldo: PPGCS/Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2023.).

A abertura de espaços dá oportunidade às autoridades de falar, mas também de as fazer escutar os trabalhadores que coordenam o movimento e a chamada base. A participação de atores estatais nos congressos nacionais do MSTTR se configura nesse sentido. Por exemplo, no X Congresso, realizado em 2009, a participação de observadores governamentais foi bastante expressiva: 28% dos observadores nacionais pertenciam às instituições estatais e estavam lá apenas para escutar, prestar atenção às reivindicações, diagnósticos e prognósticos formulados pelo organizador do evento.

No que concerne à transformação da participação de autoridades em instrumento de “pressão política”, percebe-se que o termo adquire um sentido particular no contexto da interação entre o MSTTR e o Estado. Diferentemente das grandes mobilizações de trabalhadores nas ruas, nesse âmbito a “pressão política” obedece a um padrão de debate entre autoridades e ativistas de todas as instâncias sindicais dentro do espaço do próprio movimento, de maneira que a autoridade conheça análises, problemas, políticas, avaliações e, eventualmente, forme uma convicção consonante com o ponto de vista do movimento sindical.

Dizer que o MSTTR é um movimento propositivo faz parte do discurso dos atores e atrizes que o compõem. Essa expressão aparece quando se pergunta sobre a abertura de caminhos no movimento para o trânsito do Estado. O trânsito de autoridades é utilizado estrategicamente pelo movimento para ratificar ou propor correção de políticas públicas. Ainda que o alcance desse compartilhamento em termos de incidência precise ser mais bem investigado, é inegável que, ao trazer as autoridades públicas para dentro de suas instâncias de debates, o movimento possibilita a difusão de suas propostas.

CONCLUSÃO

A pergunta sobre a importância de movimentos sociais para a produção de políticas públicas ocupa já há algum tempo a agenda das pesquisas acadêmicas (Bosi; Giugni; Uba, 2016Bosi, Lorenzo; Giugni, Marco; Uba, Katrin. The Consequences of Social Movements. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.; Amenta et al., 2010Amenta, Edwin et al. “The Political Consequences of Social Movements”. Annual Review of Sociology, v. 36, 2010, pp. 287-307.; Tatagiba; Teixeira 2022Tatagiba, Luciana; Teixeira, Ana Claudia Chaves (orgs.). Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Ed. Unesp, 2022.; Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017Carlos, Euzeneia; Dowbor, Monika; Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Movimentos sociais e seus efeitos nas políticas públicas: balanço do debate e proposições analíticas”. Civitas, v. 17, n. 2, 2017, pp. 360-78.). Sua incidência em diferentes etapas do ciclo de políticas públicas tem sido analisada a partir da chave das interações dos movimentos sociais com o Estado, por meio de canais institucionalizados ou com repertórios de confronto extrainstitucional. Neste artigo, lançamos luz sobre as formas dessa influência, analiticamente enquadrada aqui como estratégia dos atores de movimentos para trazer o Estado para dentro de seus espaços por meio de organizações e eventos. Com base em estudo de caso de dois movimentos, identificamos três formas mais comuns: a inclusão de representantes do Estado nos comitês diretivos das organizações; a participação de representantes do Estado em assembleias periódicas; e a presença de representantes do Estado em eventos organizados pelos movimentos.

A porosidade visível no Estado em termos de acesso às instituições públicas e aos três poderes agora se revela bilateral: os atores deixam suas organizações e seus eventos permeáveis aos diversos representantes do Estado. Ainda que mais fraca do que sua correspondente no Estado em termos de incidência, a porosidade de movimentos é construída estrategicamente para difundir e fazer circular ideias, projetos e reivindicações entre gestores públicos e autoridades, bem como legitimar alianças com autoridades públicas. Ela pode ser conjuntural - quando um governador participa do evento, por exemplo - ou mais sustentável no tempo - quando um burocrata faz parte da instância deliberativa do movimento. Chamar a atenção de gestores e políticos para suas causas ou ter um espaço de alta visibilidade para a apresentação de suas demandas não é trivial para atores que não dispõem de fartos recursos financeiros. Ao abrir organizações e eventos ao Estado, os movimentos criam espaços para essa escuta. No caso do MIEIB, os fóruns debatem questões curriculares e de políticas públicas na área da educação infantil e constituem-se como palcos para a troca de experiências e elaboração de soluções para os problemas públicos, bem como para a articulação de alianças com entidades parceiras, formuladores de políticas públicas e/ou setores do Judiciário e do Legislativo. Os fóruns empoderam os gestores públicos na medida em que os posicionamentos de suas assembleias são levados para as disputas internas do poder público. A presença de altas autoridades públicas em eventos do MSTTR, como governadores, secretários de Estado e diretores de autarquias, transmite à sociedade e aos outros movimentos sociais uma mensagem sobre seu capital político e capacidade de articulação e, à autoridade, sobre seu poder de mobilização. Ao mesmo tempo, nessa ocupação de espaços, as autoridades são impelidas a se justificar, prestar contas e se comprometer com a correção das políticas.

Um dos riscos que os movimentos correm ao trazer o Estado para dentro de suas organizações é a cooptação de suas causas, no sentido de uma atenuação de sua radicalidade. Em termos de deliberação, é muito mais fácil acirrar o conteúdo dos debates na presença apenas de ativistas do movimento, no que se refere tanto às críticas quanto à ampliação das reivindicações. Os movimentos atenuam esse risco selecionando os convidados. A porosidade de movimentos também não opera sempre: ela deixa de funcionar em contextos em que os governos são hostis às causas de movimentos.

Vimos nos casos analisados que ativistas reforçam a possibilidade de disseminação das ideias defendidas pelos atores de movimentos entre os representantes do poder público e ao mesmo tempo apontam a possibilidade de apropriação de seus espaços pelo Estado como forma de legitimar determinadas políticas de governo. A porosidade da sociedade civil, à semelhança da do Estado, contém oportunidades e riscos, mas uma não substitui a outra. Ambas são estratégicas e utilizadas pelos atores de movimentos sociais de acordo com sua leitura de oportunidades, com sua legitimação, e conforme sua busca de políticas públicas condizentes com seus projetos políticos.

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  • 1
    Agradecemos ao Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento (GPACE) e ao Grupo de Trabalho Social Movement/Social Justice, coordenado pelo prof. David S. Meyer, da Universidade da Califórnia (Irvine), pelas preciosas contribuições a este artigo.
  • 2
    Ao usar aqui o verbo “influenciar”, remetemo-nos mais à intenção dos atores do movimento do que à ideia de causalidade ou correlação, na medida em que os próprios estudos de consequências de movimentos sociais nas políticas públicas mostram que se trata de modelos explicativos indiretos e multivariáveis (Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017Carlos, Euzeneia; Dowbor, Monika; Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Movimentos sociais e seus efeitos nas políticas públicas: balanço do debate e proposições analíticas”. Civitas, v. 17, n. 2, 2017, pp. 360-78.).
  • 3
    Nesta análise, as instituições participativas como conselhos gestores de políticas públicas são consideradas parte da porosidade do Estado.
  • 4
    Elisabeth Clemens também cunhou o conceito de repertório organizacional, o que implica considerar as formas organizacionais existentes um conjunto histórico escolhido do ponto de vista tanto estratégico quanto identitário. Isso possibilita a análise da mútua constituição entre movimentos e Estado (Clemens, 2005Clemens, Elisabeth. “Two Kinds of Stuff: The Current Encounter of Social Movements and Organizations”. In: Davis, Gerald et al. (orgs.). Social Movements and Organization Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 351-65.).
  • 5
    Essa denominação foi adotada recentemente, em decorrência da dissociação dos trabalhadores rurais assalariados e da disputa travada com outros movimentos de representação dos trabalhadores e trabalhadoras do mundo rural, principalmente em torno da categoria de agricultura familiar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2022
  • Aceito
    17 Mar 2023
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