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ESTADO E SOCIEDADE NO BRASIL: A tese da mútua constituição e as políticas públicas

State and Society in Brazil: The Thesis of Mutual Constitution and the Public Policies

RESUMO

O objetivo deste artigo é contribuir para a identificação de um entrave teórico e empírico que a tese da mútua constituição enfrenta. O entrave diz respeito à dificuldade de desenvolver conhecimentos sobre políticas públicas, em comparação com os avanços na compreensão dos movimentos sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
políticas públicas; Estado-sociedade; relações

ABSTRACT

The aim of this article is to contribute to the identification of a theoretical and empirical obstacle facing the thesis of mutual constitution. This obstacle concerns the difficulty of developing knowledge about public policy, in comparison to the advances in understanding social movements.

KEYWORDS:
public policy; state-society; relations

INTRODUÇÃO

O problema das relações entre Estado e sociedade é um tropo de longa data nas ciências sociais brasileiras. Em uma digressão ao longo dos anos 1970, essa relação é estudada como componente formativo de aspectos sociológicos e políticos macrossistêmicos, como a formação dos Estados nacionais em contexto capitalista, contratos firmados entre elites governantes e a formação de sistemas partidários. Além do panorama geral constituinte do problema da relação socioestatal, Eli Diniz e Renato Boschi ([1977] 2016Diniz, Eli; Boschi, Renato Raul. “Estado e sociedade no Brasil: uma revisão crítica”. In: Szwako, José; Moura, Rafael; D’Ávila Filho, Paulo (orgs.). Estado e sociedade no Brasil: a obra de Renato Boschi e Eli Diniz. Rio de Janeiro: CNPq, Faperj, INCT/PPED, Ideia D, 2016, p. 276.) também diagnosticam a necessidade de avanço empírico e teórico que evite as “posições polares” na compreensão de tais relações - embora reconheçam que houve esforços intelectuais nesse sentido.

No bojo da interpretação da relação socioestatal, erigem-se conceitos como o populismo, do qual se extrai o diagnóstico de fragilidade organizacional das massas, geratriz de sua suscetibilidade à cooptação pelo Estado, pouco afeito à democracia (Weffort, 1978Weffort, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.). Boschi (1987Boschi, Renato Raul. A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1987.) capta empiricamente uma interação socioestatal basilar e produtiva em relação ao atendimento de pautas e demandas sociais nos municípios. Também observando o movimento de base, Ruth Cardoso (1983Cardoso, Ruth. “Movimentos sociais urbanos: balanço crítico”. In: Almeida, Maria Hermínia Tavares de; Sorj, Bernardo (orgs.). Sociedade política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983.) ressalta e discute argumentos importantes na interação socioestatal mediada pela esfera partidária e sindical. A autora trata, por exemplo, da ideologia de movimentos e partidos, hierarquias partidárias e funções desempenhadas pelo Estado e propõe condições sob as quais agendas e interesses se alinham ou se afastam.

O argumento da mútua constituição entre Estado e sociedade (E-S) pode ser inscrito nesse conjunto de preocupações que marcaram historicamente a trajetória dos problemas e objetos de nossas ciências sociais. Tal argumento, anunciado em Adrian Gurza Lavalle e José Szwako (2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. Sociedade civil, “Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, jan-abr. 2015, pp. 157-87.) e desenvolvido em Gurza Lavalle et al. (2017Gurza Lavalle, Adrian et al. “Movimentos sociais, institucionalização e domínios de agência”. Textos para Discussão CEM, v. 19, 2017, pp. 3-40.; 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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), advoga a existência de padrões interacionais rotinizados entre os atores, instituições e organizações de um e de outro E-S, que por sua vez expressam codependência, principalmente na produção de políticas públicas pós-1988 - em detrimento da magnitude temática da relação socioestatal voltada para os aspectos do plano “macro” (Diniz; Boschi, 2016Diniz, Eli; Boschi, Renato Raul. “Estado e sociedade no Brasil: uma revisão crítica”. In: Szwako, José; Moura, Rafael; D’Ávila Filho, Paulo (orgs.). Estado e sociedade no Brasil: a obra de Renato Boschi e Eli Diniz. Rio de Janeiro: CNPq, Faperj, INCT/PPED, Ideia D, 2016, p. 276.). Neste artigo, reconstruo os desdobramentos e limites advindos dessa tese analisando quantidade significativa de trabalhos acadêmicos nela inspirados.

O objetivo deste artigo, mais do que explorar, é contribuir para a identificação de um entrave teórico e empírico que a tese da mútua constituição enfrenta, observado a partir da análise bibliográfica. O entrave diz respeito à dificuldade de desenvolver conhecimentos sobre políticas públicas, em comparação com os avanços e estudos inicialmente interessados na compreensão dos movimentos sociais.

O artigo está organizado em mais três seções, além desta introdução e das conclusões. A primeira seção apresenta a justificação teórica do argumento da mútua constituição e avança para a análise de suas características básicas. A segunda seção aborda o plano empírico e analisa os trabalhos voltados para os conceitos propostos. A terceira seção examina sinteticamente as características da dimensão empírica da tese da mútua constituição e discute os limites apontados no estudo de políticas públicas. Nas conclusões, exploro os limites e as dificuldades encontrados na observação da tese da mútua constituição, apontando a relação entre seus conceitos e os objetivos de pesquisa usualmente voltados para as políticas públicas.

O ARGUMENTO, O PRESSUPOSTO OU A TEORIA DA MÚTUA CONSTITUIÇÃO ESTADO-SOCIEDADE: DO QUE ESTAMOS FALANDO?

A motivação inicial para a proposição de um conceito de mútua constituição E-S pode ser encontrada em uma crítica às leituras sociológicas sobre os movimentos sociais. O conhecimento sedimentado nas ciências sociais apontava para a ausência de uma sociedade civil autônoma em relação ao Estado, uma vez que tal heterogeneidade social dissolveria as forças amalgamadoras da organização coletiva.

A obra de Boschi (1987Boschi, Renato Raul. A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1987.) localiza e critica com acuidade a ideia de autonomia como condição necessária ao reconhecimento das organizações sociais como movimentos sociais. Estes últimos, na persecução de seus objetivos, acabam aproximando-os de esferas institucionalizadas do Estado, acumulam experiência e organizamse cada vez mais, profissionalizam a gestão de recursos que levam à padronização de interações socioestatais para a consecução de seus fins e nem por isso devem ser desconsiderados como movimentos sociais. Outros trabalhos chegaram a alertar sobre tais possibilidades interativas ao pesquisarem os espaços institucionalizados de participação social (Cornwall; Coelho, 2007Cornwall, Andrea; Coelho, Vera Schattan P. (orgs.). Spaces for Change? The Politics of Citizen Participation in New Democratic Arenas. Londres: Zed, 2007.; Moura; Silva, 2008Moura, Joana Tereza Vaz de; Silva, Marcelo Kunrath. “Atores sociais em espaços de ampliação da democracia: as redes sociais em perspectiva”. Revista de Sociologia e Política, v. 16, n. 31 (supl.), 2008, pp. 43-54. Disponível em: <Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/28198 >. Acesso em: 25/4/2023.
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), entradas pontuais na estrutura estatal (Abers; Serafim; Tatagiba, 2014Abers, Rebecca; Serafim, Lizandra; Tatagiba, Luciana. “Repertórios de interação estado-sociedade em um Estado heterogêneo: a experiência na era Lula”. Dados, v. 57, n. 2, 2014, pp. 325-57. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582014000200003&lng=pt&tlng=pt >. Acesso em: 25/4/2023.
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) e a construção de comunidades de políticas envolvendo ambos os atores (Cortes, 2014Cortes, Soraya Vargas. “Viabilizando a participação em conselhos de política pública municipais: arcabouço institucional, organização do movimento popular e policy communities”. In: Hochman, Gilberto; Arretche, Marta Teresa da Silva; Marques, Eduardo Cesar (orgs.). Políticas públicas no Brasil. 4. ed., Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.).

Consolida-se na bibliografia especializada pós-redemocratização a pesquisa sobre as interseções de interesses socioestatais, a partir da mobilização de teorias dos movimentos sociais e instituições de participação em políticas públicas. Mas é em Gurza Lavalle e Szwako (2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. Sociedade civil, “Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, jan-abr. 2015, pp. 157-87.) que o argumento da mútua constituição E-S se torna explícito. O objetivo geral do artigo é parear argumentos e contra-argumentos, de forma a expor conclusões errôneas de concepções isolacionistas.

A proposição dos autores sobre como começar a resolver esse dilema das interpretações isolacionistas parte do neoinstitucionalismo histórico de Theda Skocpol (1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992.). Essa pesquisa buscou explicar como políticas de proteção social emergiram em um país com tradição político-institucional e costumes que jamais favoreceram a formação de um Estado de bem-estar social (Skocpol, 1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992., p. 7).

Quatro processos são sondados por Skocpol. O primeiro é o processo de formação e transformação do Estado e das organizações partidárias pelas quais os agentes políticos representativos e burocráticos se manifestam. A autora destaca a relevância dos atores diretamente envolvidos: políticos e administradores são atores com razões próprias associadas ao “local” onde atuam. A partir dessa “contextualização”, os atores se utilizam das capacidades institucionais do Estado, mas possuem características e objetivos próprios e despendem esforços de acordo com seus interesses. A conjuntura institucional determinou a forma como interesses se conectaram e produziram - ou deixaram de produzir - as políticas sociais no caso estudado (Skocpol, 1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992.).

O segundo tipo de processo são aqueles pelos quais os efeitos das instituições políticas e procedimentos são interpostos sobre as identidades, objetivos e capacidades dos grupos sociais. A autora observou que as estratégias dos atores em movimento foram influenciadas fortemente pelas condições institucionais da participação política. Por exemplo, o movimento social das mulheres e mães, sem direito ao voto, buscou acesso direto a atores políticos estratégicos (Skocpol, 1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992., pp. 51-52).

Outro processo é o de encaixe institucional (institutional fit), dado entre os objetivos e as capacidades dos grupos ativos no processo político, de um lado, e, de outro, os pontos de acesso e alavancagem que as instituições políticas permitem. Esse aspecto propõe uma lógica geral para explicar a institucionalização de demandas de movimentos sociais no Estado. O conceito de encaixe institucional, herdado criticamente por Gurza Lavalle et al. (2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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) e Skocpol, é fundacional para dar conta da mútua constituição entre Estado e sociedade:

a estrutura geral das instituições políticas fornece acesso e alavancagem a alguns grupos e alianças, incentivando e recompensando seus esforços para moldar as políticas governamentais, ao mesmo tempo que nega acesso e alavancagem a outros grupos e alianças que operam na mesma política nacional. (Skocpol, 1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992., p. 54)1 1 Tradução minha.

A autora argumenta que os grupos de mulheres e mães se estruturaram horizontalmente em larga escala, apresentando organizações nos vários estados da federação, o que os transformou em organizações “paralelas” aos três níveis federativos, próximas dos atores institucionais (Skocpol, 1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992., p. 50). Essa organização paralela às estruturas do Estado explicaria, em parte, o sucesso das pensões garantidas a mulheres nos Estados Unidos.

É a hipótese de que políticas sociais voltadas para as mães foram implantadas nos Estados Unidos em função da mobilização social institucionalmente encaixada nas estruturas estatais que inspira Gurza Lavalle et al. (2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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) a pensarem nos processos de institucionalização de demandas sociais. De acordo com os autores:

Encaixes, em formulação mais restritiva e relacionalmente mais radical, são aqui definidos como sedimentações institucionais de processos de interação socioestatal que ganham vida própria (artefatos: instrumentos, regras, leis, programas, instâncias, órgãos) e mediante as quais atores sociais são, em alguma medida, bem-sucedidos em dirigir de modo contínuo a seletividade das instituições políticas ao seu favor, ampliando sua capacidade de agir. (Gurza Lavalle et al., 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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, p. 47)

Os autores atribuíram a Skocpol (1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992.) uma percepção fundacional acerca das interações socioestatais, principalmente sobre as configurações de E-S estarem imbricadas e determinarem mutuamente resultados e efeitos. A principal crítica à autora é por não alcançar mecanismos teóricos atentos à caracterização da institucionalização obtida pelos atores em movimento (Gurza Lavalle et al., 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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, p. 25).

A grande diferença e ruptura entre a obra matriz de Skocpol (1922) e Gurza Lavalle et al. (2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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) é o argumento de que as instituições estatais seriam desdobradas de um substrato de relações E-S e, assim, as relações socioestatais não produziriam resultados em políticas apenas esporadicamente.

A corrente teórica do neocorporativismo em Phillippe Schmitter (1992Schmitter, Phillippe Charles. “The Consolidation of Democracy and Representation of Social Groups”. American Behavioral Scientist, v. 35, n. 4-5, 1992, pp. 422-49. Disponível em: <Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/000276429203500406 >. Acesso em 24/4/2023.
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) foi fundamental para a busca de caracterizações melhoradas e mais detalhadas sobre os encaixes institucionais. O neocorporativismo aí demarcado realiza estudo sobre as organizações representativas de grupos sociais que ocupam espaços no Estado para exercerem sua finalidade. Num primeiro sentido há uma institucionalização do social “para e no” Estado. Alguma organização ganha monopólio sobre a representação do grupo social. Assim, a “entidade” se dota de espaços, garantias, proteções e ferramentas para a manutenção de sua posição e função.

O segundo sentido das instituições representativas sob a lógica do neocorporativismo influencia os movimentos sociais e trata da regulação e limitação do seu âmbito de ação (Gurza Lavalle et al., 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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, p. 33). Assim, a regulação dos movimentos sociais garantiria alguma previsibilidade ou controle do Estado sobre eles, compensados pela inserção dos atores sociais no Estado, mesmo que de forma recortada.

A partir da revisão proposta pelos autores da mútua constituição, o neocorporativismo se mostrou menos atento ao processo formativo das configurações. Em contrapartida, Schmitter (1992Schmitter, Phillippe Charles. “The Consolidation of Democracy and Representation of Social Groups”. American Behavioral Scientist, v. 35, n. 4-5, 1992, pp. 422-49. Disponível em: <Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/000276429203500406 >. Acesso em 24/4/2023.
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) permite uma atenção ao nível qualitativo das institucionalizações observadas em relação à sua configuração - a “institucionalização” ganha densidade analítica mediante registro configuracional.

Tal configuração remete a uma ideia de “escala” de capacidades e autoridades que os atores detêm nas estruturas nas quais se enxertaram. O que por sua vez mapeia e explica o que os entes mobilizados podem alcançar e justifica a adoção desse referencial teórico na análise dos processos de institucionalização. O conceito de domínio de agência concede maior sensibilidade qualitativa à caracterização das configurações dos encaixes. Pode-se dizer que o conceito define as características associadas aos encaixes: “Domínios constituem esferas de competência e, neste caso, a competência diz respeito à capacidade de agir em determinado âmbito sob responsabilidade direta ou indireta do Estado, notadamente em campos de políticas sociais” (Gurza Lavalle et al., 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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, p. 51).

Apesar da incorporação de conceitos do neoinstitucionalismo e do corporativismo, o objetivo dos autores é fornecer uma teoria que explique o processo de institucionalização de demandas de movimentos sociais a partir de “entradas” no Estado brasileiro. Essas duas obras clássicas teorizam a institucionalização de movimentos sociais a partir de interesses de pesquisas em andamento. Ou seja, a teorização da mútua constituição em Gurza Lavalle et al. (2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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) requer destilar conceitos de teorias clássicas e associá-los ao conceito de movimentos sociais.

Logo, os autores ponderam a permutabilidade de conceitos e proposições do neocorporativismo em relação à análise embasada nos movimentos sociais e no Estado que a tese da mútua constituição propõe. O limite e o cuidado a ser tomado, apontados pelos autores, correspondem à diferença entre os objetos de pesquisa de cada corrente teórica. A heterogeneidade dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil (OSC) destoa do monopólio das organizações de representação dos interesses de grupos sociais específicos (trabalhadores, capitalistas etc.) e das instituições criadas como portadoras dos interesses encaixados. Há pluralidade no objeto de pesquisa de interesse da agenda nacional, enquanto a agenda internacional priorizou organizações de tendências monopolistas. Esse seria um desafio de ajuste teórico que também é válido e desafiador para a compreensão do plano socioestatal nas políticas públicas.

O PLANO EMPÍRICO DOS CONCEITOS DA MÚTUA CONSTITUIÇÃO SOCIOESTATAL

Na seção anterior foi observada a construção da teoria que embasa o argumento das interações socioestatais como fundacionais para as instituições políticas e as políticas públicas. Nesta seção debato como esses conceitos adquiriram concretude empírica e transcreveram pressupostos e hipóteses nos casos estudados.

Uma das teóricas da mútua constituição E-S, Euzeneia Carlos (2021Carlos, Euzeneia. “Movimentos sociais e políticas públicas: consequências na política nacional de direitos humanos”. Dados, v. 64, n. 4, 2021, pp. 1-41.), estudou o movimento social de direitos humanos do estado do Espírito Santo que atuou na consolidação da Política Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O caso estudado aponta para o processo de formulação de programas de proteção no âmbito da PNDH.2 2 Programa de Proteção de Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita); Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Os programas resultaram das ações da Campanha Contra a Impunidade e Corrupção e a Campanha Contra as Violações no Sistema Prisional.

O interesse primordial do artigo de Carlos é compreender como os movimentos sociais importam para a produção de políticas públicas. Para tanto, aplica a metodologia denominada process-tracing over time, que analisa a correspondência entre resultados observados na política pública, em relação à sua formatação, e as demandas do movimento social. Assim, a autora mapeou demandas e eventos-chave associados às transformações observadas na política pública.

Um dos achados da pesquisa de Carlos é que a institucionalização de demandas se deu a partir de encaixes de atores no Estado, manifestos em cargos, planos e órgãos no nível estadual e federal. Assim, o estudo identifica que as proposições ideacionais dos movimentos sociais compuseram os programas e políticas no âmbito dos direitos humanos, além de alcançarem estabilidade e capacidade de usufruir de ferramentas estatais expressas em leis, regulações e órgãos.

Monika Dowbor (2018Dowbor, Monika. “Escapando das incertezas do jogo eleitoral: a construção de encaixes e domínio de agência do Movimento Municipalista de Saúde”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018, pp. 89-118.), coautora da teoria em questão, analisa as escolhas e ações dos movimentos sociais em relação aos pontos de acesso ao Estado, portanto estuda como os atores se encaixam nele. Diante da instabilidade da disputa eleitoral e dos mandatos políticos consolidados e da atuação como outsider dos atores, a pesquisadora estuda a racionalidade e a estratégia destes últimos em tal escolha. O trabalho observa que são realizadas várias escolhas, inclusive a de atuar pelas instituições participativas (IP), além do sistema eleitoral e outras formas de contato com o Estado. Conclui que essas estratégias significam uma institucionalização do movimento social que não implica retração de suas finalidades e identidades.

O caso do Movimento Sanitário, nos anos de 1980, orienta a aplicação empírica da autora, que se utiliza de fontes documentais e entrevistas. O estudo mostra que a estratégia de abrir mão de cargos mais concorridos, de maior autoridade, recursos e capacidades de ação, para privilegiar posições mais acessíveis, a despeito da menor disponibilidade de recursos, orientou o movimento social. O processo de obtenção de cargos pelo movimento social configura um domínio de agência, no sentido de orientar a penetração do ator no Estado, bem como as potencialidades do cargo. A análise processual evidenciou essa penetração e a produção de resultados sobre as políticas públicas.

Patrícia Freitas (2018Freitas, Patrícia Tavares de. “A entrada dos novos imigrantes na política local de São Paulo: domínio de agência e disputa partidária”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018.) estudou o processo de encaixe institucional de movimentos sociais no estado e na cidade de São Paulo em relação à política municipal sobre os novos imigrantes. Ela identificou a concorrência sobre a política a partir de núcleos de ação institucionalizados em cada nível de governo, cujos atores políticos variaram em relação a perfil e interesses - igrejas, movimentos sociais, partidos. Essas configurações de encaixe disputaram entre si para definir os contornos e rumos da política pública. Esse estudo dá ênfase sobretudo à constituição de um mosaico de configurações de encaixes, capacidades e autoridades de interesses em disputa.

Maria do Carmo Albuquerque (2018Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Analisando impactos do movimento social na construção da política socioeducativa: coalizões de defesa e encaixes”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018, pp. 211-51.) vê seu trabalho em diálogo com o dilema da institucionalização dos movimentos sociais como sintoma de desmobilização. Albuquerque busca entender o movimento social a partir de sua “nova” realidade após a década de 1980, a da política institucionalizada. Também mobiliza como referencial teórico a questão da incidência dos movimentos sociais nas políticas públicas - um ponto em comum com todos os trabalhos analisados até aqui.

Como traço distintivo em relação aos demais estudos, Albuquerque (2018Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Analisando impactos do movimento social na construção da política socioeducativa: coalizões de defesa e encaixes”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018, pp. 211-51.) pensa a atuação dos movimentos sociais como uma coalizão de defesa. Uma diferença fundamental entre eles é a maior coordenação das ações. O emprego do conceito de coalizão sugere uma maior correspondência com a mudança de contexto dos movimentos sociais quando estes se institucionalizam. Com esse ajuste teórico, a autora enfatiza que os atores mobilizados compartilham crenças fundamentais sobre políticas públicas e coordenam mais seriamente as estratégias de ação enquanto coalizões de defesa, com atuação em políticas mais específicas. Esse ajuste é importante porque sugere um deslocamento do foco dos movimentos sociais para outra definição dos atores mobilizados, principalmente os sociais.

Albuquerque (2018Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Analisando impactos do movimento social na construção da política socioeducativa: coalizões de defesa e encaixes”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018, pp. 211-51.) adota o conceito de encaixe institucional de Skocpol (1992Skocpol, Theda. Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 1992.) para localizar a penetração das coalizões no Estado. Empiricamente, Albuquerque estuda a reforma da política socioeducativa de jovens e adolescentes, animada pelo movimento pelos direitos da criança e do adolescente (movimento DCA). O que caracterizou os encaixes foi o acolhimento de “crenças” do movimento de direitos garantista, contrário ao movimento menorista, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que o apoiaram via processos legais de fiscalização da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo (Febem).

Outra forma de encaixe se deu pela formação de grupos de trabalho que estudavam as organizações estatais e publicizavam seus achados, incentivando e orientando mudanças na condução da política e, finalmente, incidindo na configuração e no destino das políticas públicas.

Esses estudos exemplares da dimensão empírica dos conceitos da mútua constituição são estudos nos quais a causalidade se encontra nos processos históricos, o que remete à justaposição metodológica entre as pesquisas apresentadas: são estudos qualitativos amparados em fontes documentais e entrevistas. Os estudos também apresentam uma justificativa de pesquisa em comum, que é explicar a influência que os movimentos sociais exercem sobre as políticas públicas e, paralelamente, a existência e as características desses mesmos movimentos quando se institucionalizam.

Os estudos concluíram que os movimentos sociais importam para as políticas e que interações socioestatais, no sentido da institucionalização de demandas, sempre foram mais frequentes e intensas do que se pressupunha até então, o que leva a crer que os movimentos sociais apresentam ciclos de vida continuados após o encaixe institucional.

Daqui em diante, busco analisar trabalhos que não estão inscritos na filiação teórica dos movimentos sociais, expondo outro tipo de conexão dos conceitos da mútua constituição. Adianto que essa linhagem de estudos está mais relacionada ao tema das políticas públicas, de sua implementação e da provisão de serviços públicos.

Kellen Gutierres (2018Gutierres, Kellen Alves. “Estudo de trajetórias e interações socioestatais: mútua constituição entre movimento social e a política pública de assistência social”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 105, 2018, pp. 81-114.) tratou da formulação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nos anos 1990. A interação socioestatal foi pressuposta a partir do trabalho de Gurza Lavalle e Szwako (2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. Sociedade civil, “Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, jan-abr. 2015, pp. 157-87.). O método aplicado foi o de análise de trajetória e história de vida dos atores que participaram da formulação da política. O trabalho explica que, a partir da formação e da ativação de movimentos sociais defensores da sistematização da política de assistência, pôde ser observada uma profunda mudança institucional nessa política. Conselhos, instituições do governo local e nacional, ambientes acadêmicos e de pesquisa, partidos políticos etc. são exemplo dos espaços de atuação do movimento. Gutierres afirma que a conquista e o efeito da interação socioestatal sobre a política pública foram a visão garantista. Assim, o pilar ideacional básico da política é alterado a partir do movimento.

Gabriela Brettas (2016Brettas, Gabriela Horesh. O papel das organizações da sociedade civil na política pública de assistência social no Brasil: dilemas e tensões na provisão de serviços. Dissertação (mestrado em ciências sociais). São Paulo: PPGEPP/Universidade de São Paulo, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100138/tde-27072016-103637/ >. Acesso em: 24/4/2023.
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) observa como as relações socioestatais operaram na reconfiguração do SUAS por volta de 2010. As relações se deram, especificamente, sobre a adequação dos serviços e das ações socioassistenciais prestadas pelas OSC ao modelo proposto pelo SUAS. Brettas enfatiza que os interesses de formulação da política pública não são impostos sem negociação com as partes societais interessadas. E mais, a negociação é uma condição necessária, pois as disputas de ideias sobre termos específicos da política a ser formulada e/ou implementada (nesse caso, a adequabilidade e o pertencimento da provisão indireta de serviços ao SUAS) são incertas e os interesses apresentados não correspondem exatamente à fronteira na qual se insere o ator (Estado ou sociedade). Ao mesmo tempo, é real a dependência estatal em relação à provisão indireta de serviços das OSC, principalmente quando as burocracias da pasta de assistência estão em expansão gradual. Assim, há uma série de condições interpostas na formulação da política, em função da codependência e do reconhecimento da importância dos serviços prestados de forma indireta pelas OSC, configuradas como uma força política.

O trabalho tem como referencial teórico o neoinstitucionalismo histórico e enfatiza as continuidades e rupturas na implementação da política pública. Em relação ao pressuposto da mútua constituição, Brettas (2016Brettas, Gabriela Horesh. O papel das organizações da sociedade civil na política pública de assistência social no Brasil: dilemas e tensões na provisão de serviços. Dissertação (mestrado em ciências sociais). São Paulo: PPGEPP/Universidade de São Paulo, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100138/tde-27072016-103637/ >. Acesso em: 24/4/2023.
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) se vale do trabalho de Gurza Lavalle e Szwako (2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. Sociedade civil, “Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, jan-abr. 2015, pp. 157-87.), ainda subteorizado em comparação com seus trabalhos posteriores. A autora “teoriza” a mútua constituição muito mais como um pressuposto analítico, ainda não dotado de conceitos como encaixe institucional ou domínios de agência. No entanto, ela mostra com notável desempenho empírico as condicionalidades que as interações trazem para a política pública, e que a proximidade E-S na provisão de serviços estabelece condições tanto para a policy como para as politics.

Renata Bichir, Gabriela Brettas e Pamella Canato (2017Bichir, Renata; Brettas, Gabriela Horesh; Canato, Pamella. “Multi-level Governance in Federal Contexts: The Social Assistance Policy in the City of São Paulo”. Brazilian Political Science Review, v. 11, n. 2, 2017, pp. 1-29.) estudaram a implementação do SUAS na cidade de São Paulo, tendo como referenciais teóricos o conceito de governança multinível e o pressuposto da mútua constituição (Gurza Lavalle; Szwako, 2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. Sociedade civil, “Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, jan-abr. 2015, pp. 157-87.). Esses referenciais conduziram a pesquisa a considerar os caminhos que decisões tomadas em certo locus percorrem até se materializarem em ações (implementação de políticas públicas), especialmente quando passam por níveis de governo distintos (governança multinível).

O estudo de Bichir et. al. (2017Bichir, Renata; Brettas, Gabriela Horesh; Canato, Pamella. “Multi-level Governance in Federal Contexts: The Social Assistance Policy in the City of São Paulo”. Brazilian Political Science Review, v. 11, n. 2, 2017, pp. 1-29.) considera que a implementação é permeada por regras e atores em atividades diferentes daqueles do contexto de formulação: envolve governança, entendida como o ato de lidar com atores e condições políticas em nível local que não haviam sido previstas ou consideradas. A relação política socioestatal é o que permeia as condições de implementação do SUAS no nível local e é consolidada na provisão de serviços no município e no arranjo ordenado dos serviços prestados direta e indiretamente. A mútua constituição, como pressuposto, emerge na pesquisa como negociação e diálogos que permeiam o arranjo da rede de serviços.

O trabalho conclui que as condições políticas da política pública no nível local importam. A força política das OSC no município de São Paulo exige maior capacidade explicativa do que macroteorias seriam capazes de alcançar. As autoras expuseram que a relação socioestatal, notadamente a das burocracias com as OSC, seriam um condicionante da implementação da política. Mostram também que há espaço decisório no processo de implementação e no nível municipal, mesmo quando as políticas são formuladas no nível federal.

Em trabalho mais recente, Renata Bichir, Guilherme Pereira e Maria Laura Gomes (2021Bichir, Renata; Pereira, Guilherme; Gomes, Maria Laura. “Interações socioestatais e construção de capacidades nas políticas públicas: o caso da assistência social na cidade de São Paulo”. Novos Estudos Cebrap, v. 40, n. 1, 2021, pp. 57-79. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/rY7ThPXFsxgYzcCcrZMYzmp/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 25/4/2023.
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) dão continuidade à pesquisa, agora considerando as interações socioestatais como sintomas de cocriação de capacidades estatais. No mesmo sentido empírico de observação das relações entre burocracias e OSC na provisão de serviços, eles consideram que a implementação do SUAS é buscada por ambas as partes E-S, a partir da ponderação das capacidades de ação das entidades privadas. Isso significa que a implementação do SUAS depende das interações socioestatais, que, por sua vez, não aplicam irrefletidamente a política formulada em nível federal. Ao contrário, as interações na implementação têm como resultado o ajuste geral da rede socioassistencial.

A negociação entre as várias partes considera perfil, dimensão, capacidades e experiência que as OSC possuem e podem agregar à rede, o que define, por sua vez, os enfoques da prestação direta (a partir das próprias burocracias). Essas ponderações geram uma ressalva à visão de que o modus operandi das OSC é incompatível com o SUAS. A consideração da negociação socioestatal revela potencialidades de implementação, ao mesmo tempo que diversidade de resultados.

O que fica dessa linha de estudos, entretanto, é a manifestação de possibilidades desenvolvidas a partir de relações complexas que relativizam campos de interesses que seriam entendidos como “estatais” ou “societais”. Elas mostram uma articulação mais complexa, que implica potencialmente a implementação voluntária do SUAS pelas OSC e oferece um feedback das expectativas do sistema sobre as entidades privadas.

INTERAÇÕES SOCIOESTATAIS, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: ENFOQUES DE PESQUISA E DIFERENTES ALCANCES DA TESE DA MÚTUA CONSTITUIÇÃO

Há claramente uma cisão entre os objetivos dos trabalhos que empregam o argumento da mútua constituição socioestatal. Por um lado, as pesquisas buscam compreender se e de que forma os movimentos sociais influenciam os processos de políticas públicas (Albuquerque, 2018Albuquerque, Maria do Carmo Alves. “Analisando impactos do movimento social na construção da política socioeducativa: coalizões de defesa e encaixes”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018, pp. 211-51.; Almeida, 2020Almeida, Debora Rezende de. “Resiliência institucional: para onde vai a participação nos Conselhos Nacionais de Saúde e dos Direitos da Mulher?”. Caderno CRH, v. 33, 2020, pp. 1-24.; Carlos, 2021Carlos, Euzeneia. “Movimentos sociais e políticas públicas: consequências na política nacional de direitos humanos”. Dados, v. 64, n. 4, 2021, pp. 1-41.; Dowbor, 2018Dowbor, Monika. “Escapando das incertezas do jogo eleitoral: a construção de encaixes e domínio de agência do Movimento Municipalista de Saúde”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018, pp. 89-118.; Freitas, 2018Freitas, Patrícia Tavares de. “A entrada dos novos imigrantes na política local de São Paulo: domínio de agência e disputa partidária”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018.; Gutierres, 2018Gutierres, Kellen Alves. “Estudo de trajetórias e interações socioestatais: mútua constituição entre movimento social e a política pública de assistência social”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 105, 2018, pp. 81-114.; Pereira, 2020Pereira, Matheus Mazzilli. “Trazendo os governos de volta: a chefia do executivo e os resultados do ativismo institucional LGBT (2003-2014)”. Sociologias, v. 22, n. 53, 2020, pp. 228-63. Disponível em: <Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/view/15174522-95594 >. Acesso em: 8/5/2023.
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). Nesse sentido, elas se debruçam sobre problemas como as condições e os tipos de influência que os movimentos sociais exercem sobre a formulação de políticas públicas. Também abordam questões específicas das ciências sociais no Brasil, como o destino dos movimentos sociais quando alcançam seus objetivos iniciais e marcham para a institucionalização de suas demandas e estruturas.

O resultado dos estudos da mútua constituição nos movimentos sociais consiste em um profundo avanço interpretativo, embasado teórica e empiricamente, quanto às preocupações mobilizadoras da agenda de pesquisa. Viu-se que movimentos sociais importam para as políticas públicas, que suas estratégias de ação envolvem a busca de contatos estatais e que seus ciclos de vida não se encerram quando os objetivos são alcançados.

O “outro lado” do objeto de pesquisa foi privilegiado por um grupo de pesquisadores que buscou entender como os atores sociais coexistem e atuam junto aos atores estatais, políticos e burocráticos, em espaços de políticas públicas institucionalizadas (Bichir; Brettas; Canato, 2017Bichir, Renata; Brettas, Gabriela Horesh; Canato, Pamella. “Multi-level Governance in Federal Contexts: The Social Assistance Policy in the City of São Paulo”. Brazilian Political Science Review, v. 11, n. 2, 2017, pp. 1-29.; Bichir; Pereira; Gomes, 2021Bichir, Renata; Pereira, Guilherme; Gomes, Maria Laura. “Interações socioestatais e construção de capacidades nas políticas públicas: o caso da assistência social na cidade de São Paulo”. Novos Estudos Cebrap, v. 40, n. 1, 2021, pp. 57-79. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/rY7ThPXFsxgYzcCcrZMYzmp/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 25/4/2023.
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; Brettas, 2016Brettas, Gabriela Horesh. O papel das organizações da sociedade civil na política pública de assistência social no Brasil: dilemas e tensões na provisão de serviços. Dissertação (mestrado em ciências sociais). São Paulo: PPGEPP/Universidade de São Paulo, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100138/tde-27072016-103637/ >. Acesso em: 24/4/2023.
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; Lara, 2020Lara, Maria Fernanda Aguilar. “A implementação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil na assistência social do município de São Paulo”. In: X Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP, São Paulo. Anais... São Paulo: FFLCH/USP, 2020, pp. 107-15.). O principal espaço de interação apontado pelos estudos empíricos, em análise qualitativa, está na assistência social dos municípios. Destaca-se a interação entre os gestores e burocratas municipais e os agentes que representam entidades privadas na provisão dos serviços.

A interação socioestatal é um pressuposto que se confirma ao longo das pesquisas. Segundo esses trabalhos, a interação na provisão de serviços públicos ocorre em dimensão política e técnica. Uma breve contextualização auxilia na compreensão dessas dimensões. As OSC sempre foram as executoras de serviços socioassistenciais, principalmente diante da inexistência de regulações gerais da pasta, que vieram a existir a partir da década de 1990. Assim, uma trajetória histórica de relativo afastamento estatal nas tarefas públicas de assistência social contextualiza as interações analisadas no presente. O legado da trajetória é a influência e o domínio das OSC sobre a execução dos serviços assistenciais, principalmente quando não eram políticas públicas, mas sim ações pontuais. Com a gradual formulação do SUAS, os interesses, as ideias e os propósitos do que seria a assistência passaram a competir com a atuação e domínio tradicional das OSC.

Os estudos observam como a implementação da pasta tendeu a ocorrer, principalmente diante da disputa sobre a ideia do fenômeno de predação da política pública e da estatização das funções das OSC - ideia muito disputada nos estudos citados. O pressuposto da mútua constituição foi adotado nesses estudos para apontar a realidade da interação socioestatal como condicionante do processo e dos resultados da implementação da política de assistência.

A agenda de pesquisa permitiu observar, em primeiro lugar, a codependência entre Estado e sociedade na provisão dos serviços. Mesmo que os estudos tenham apontado que a expansão burocrática observada no setor tenha alcançado a maior parte dos municípios, exemplificada pela expansão dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), a “substituição” de serviços públicos pelos privados não é um objetivo uníssono. A busca pelo aumento da prestação direta e a adequação da prestação indireta aos preceitos do SUAS não desconsideram a realidade local da pasta e as forças políticas das OSC. Ambos os aspectos tornam a interação negociada uma condição para a determinação de resultados de implementação de políticas públicas.

Em segundo lugar, nas interações que ocorreram ao longo da pós-formulação do SUAS e da vinculação dos serviços das OSC a ele, o conflito não é uma categoria que explique integralmente os resultados sobre a implementação. A capacidade política de avaliar e negociar espaços de atuação para ajustar a rede de serviços, conforme as características das OSC e as necessidades municipais, é um traço determinante para a formatação da rede. Dessa forma, nesses estudos a interação socioestatal tem adicionado camadas de complexidade sobre o funcionamento da política pública e seus resultados.

Como um pressuposto de pesquisa analisado empiricamente, a tese da mútua constituição possibilitou observar processos antes ignorados. Entretanto, a tese tem sido empregada como um pressuposto, desprovida de categorias analíticas mais profundas: encaixes institucionais e domínios de agência. Nenhum dos estudos citados, nessa vertente das políticas públicas, chegou a mobilizar tais conceitos, mesmo quando já teorizados.

Um dos aspectos que dificulta sua observação empírica em contexto de políticas públicas é o enfoque conceitual do ator: como definir os agentes? Os agentes identificados na sociedade civil estão dissociados do conceito de movimentos sociais por duas razões: uma teórica e outra empírica.

A razão teórica, já exposta, consiste no desinteresse dessa agenda em explicar comportamentos de agentes sociais mobilizados e organizados. A razão empírica, ou seja, que parte da observação do objeto e seus comportamentos é que as OSC apresentam graus de articulação e capacidades políticas muito distintas. Cabe lembrar que, desenvolvidos em São Paulo, os estudos encontraram OSC de grande porte, dotadas de capacidades diversas e profundas. Assim, nesses casos, as capacidades consolidam as entidades privadas como atores políticos, mas não estendem categorias para explicar e desenvolver graus de organização, articulação, disputas internas etc. Logo, resta na animação da tese da mútua constituição uma pergunta sobre as agências em operação e como elas são conceituadas. Assim, tende a ocorrer um afastamento dos desenhos de pesquisa, aprofundado pela dimensão metodológica, no que diz respeito aos conceitos da tese da mútua constituição.

Esse afastamento ocorre em razão da dificuldade de associar ao objeto de pesquisa um conceito que dê conta dos atores em agência, nesse caso, os tradicionalmente chamados movimentos sociais. Ou seja, se o problema de definir e especificar os atores em movimento (OSC plurais, movimentos sociais, acadêmicos etc.) é natural no campo de estudo dos movimentos sociais, ele é maior quando esses atores se movimentam na estrutura estatal, uma vez que exigem novos estudos sobre sua nova contextualização, apesar de ser também nessa arena que as políticas e os atores societais se redefinem.

O desafio metodológico é endógeno no estudo dos movimentos sociais e foi sintetizado em dois aspectos por Matheus Pereira, Monika Dowbor e José Szwako (2021Pereira, Matheus Mazzilli; Dowbor, Monika; Szwako, José. “Métodos em movimento: quais são os desafios metodológicos para os estudos de movimentos sociais no Brasil contemporâneo”. In: XX Congresso Brasileiro de Sociologia, Belém. Anais eletrônicos... 2021, pp. 1-20.; 2022Pereira, Matheus Mazzilli; Dowbor, Monika; Szwako, José. Métodos em movimento. Rio de Janeiro: Eduerj, 2022.). Primeiro, a baixa transparência e o rigor nos procedimentos metodológicos adotados, que conduzem ao baixo controle das escolhas metodológicas. Segundo, os estudos de movimentos sociais careceriam de maior acervo de técnicas capazes de explorar os problemas e objetos da pesquisa. Os autores definem os objetivos e limites de sua pesquisa, mas também devem equacioná-los às técnicas dominadas para responder às perguntas e objetivos que eles mesmos propõem.

As interações socioestatais, em trabalhos focados em políticas públicas, inserem-se no referencial teórico por meio de categorias como governança e pela consideração da discricionariedade no nível local, condicionada por peculiaridades das relações políticas desenvolvidas nos municípios (Gurza Lavalle; Rodrigues; Guicheney, 2019Gurza Lavalle, Adrian; Rodrigues, Maira; Guicheney, Hellen. “Local Agency and Federal Inducement: The Workings of the Municipal Housing Policy in Recife and Curitiba”. Revista de Sociologia e Política, v. 27, n. 71, 2019, pp. 1-27.).

Assim, fica claro que o pressuposto da mútua constituição ganha vida nessa agenda apoiado em outras teorias que dão vazão às categorias explicativas relacionadas ao Estado e à política pública. Alguns exemplos são: as capacidades estatais (weberianas e relacionais), conceitos desenvolvidos do federalismo (por exemplo, governança multinível) e conceitos relativos à literatura sobre políticas públicas, notadamente relacionados à implementação. Assim, a tese da mútua constituição apresentou status de estagnação nessa parte da agenda de pesquisa, embora sejam inegáveis os avanços que ela possibilitou ao propor a centralidade das interações nas dinâmicas de políticas.

CONCLUSÕES

A teoria e os conceitos da mútua constituição E-S cresceram substancialmente, passando de um texto de discussão (Gurza Lavalle et al., 2017Gurza Lavalle, Adrian et al. “Movimentos sociais, institucionalização e domínios de agência”. Textos para Discussão CEM, v. 19, 2017, pp. 3-40.) para um livro com maior desenvoltura teórica e aplicação empírica (Gurza Lavalle et al., 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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). Assim, o aspecto interacional subjacente às pesquisas sobre setores e políticas diversas pôde se tornar objeto central das análises. Essa interação e a mútua constituição deixam de ser um desiderato dos estudos e tornam-se o objeto das pesquisas.

A justificação teórica para a busca de conceitos, argumentos ou teoria da mútua constituição socioestatal se baseou na crítica aos estudos sobre os movimentos sociais. Gurza Lavalle e Szwako (2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. Sociedade civil, “Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, jan-abr. 2015, pp. 157-87.) e Gurza Lavalle et al. (2017Gurza Lavalle, Adrian et al. “Movimentos sociais, institucionalização e domínios de agência”. Textos para Discussão CEM, v. 19, 2017, pp. 3-40.; 2018Gurza Lavalle, Adrian et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://books.scielo.org/id/v4cnf >. Acesso em: 25/4/2023.
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), juntamente com outros autores menos recentes, criticaram noções como autonomia, amorfismo e incapacidade organizacional, pelo menos enquanto categorias exclusivas da descrição das relações E-S. Como alternativa, os conceitos da mútua constituição socioestatal diversificaram as categorias analíticas sobre tal relação.

Em relação aos dois conceitos centrais que animam o argumento da mútua constituição socioestatal, o de encaixe institucional e o de domínio de agência, é observada uma dualidade complementar, ou uma dupla possibilidade de enfoques de pesquisa, embora a bibliografia especializada os tenha abordado em unicidade.

Foi identificado, na bibliografia recente, um foco nos processos de institucionalização das demandas de movimentos sociais e sua interferência no processo de formulação de políticas. Esse é um interesse de pesquisa que se aproxima mais do conceito de encaixe institucional, do processo formulador e do interesse de identificar as políticas “coproduzidas”, assim como identificar o novo movimento social encaixado nas estruturas estatais.

Um segundo enfoque proporia objetos de pesquisa que buscam identificar ferramentas e capacidades estatais usufruídas na pós-formulação. Isso, por sua vez, orienta qualitativamente o encaixe anteriormente produzido, sua extensão e resultados para as políticas, após a institucionalização. Essa dualidade demarca também uma particularidade temporal: o processo de formulação das políticas e de atuação dos movimentos sociais; e momentos pós-formulação, ou referentes ao espaço entre a formulação e a implementação.

O conceito de encaixe institucional ressignifica os entrecruzamentos entre E-S que rotineiramente eram observados nas ciências sociais. A teoria do neoinstitucionalismo histórico mostrou que essa interseção entre organizações, instituições e atores não é uma novidade. A partir daí, a bibliografia mais recente no Brasil tendeu a orientar empiricamente essa interação. Ficou provado que movimentos sociais não perdem sua razão de ser, identidade ou ativismo, depois que consolidam seus objetivos e, principalmente, depois que são empoderados por mecanismos estatais em interação rotineira no Estado.

O conceito de encaixe institucional prioriza e lança luz sobre o processo de institucionalização das demandas dos movimentos sociais. Aborda as configurações dos movimentos e das estruturas estatais que recebem sua ação. É a articulação das propriedades configuracionais de um e outro que explicam a demanda bem-sucedida de estruturação. Assim, fica claro que o foco dos estudos empíricos recentes é um objeto de pesquisa relativo aos encaixes institucionais. São estudos que se caracterizaram como histórico-processuais, voltados para as relações sociológicas e estratégias, assim como para as identidades de atores. Os pesquisadores desses estudos explicam como políticas públicas estabelecidas na pós-redemocratização surgiram embasadas nas interseções de interesses, o que confirma pressupostos do avanço do argumento da mútua constituição.

Contudo, diante do desafio de explicar relações socioestatais em espaços institucionalizados de políticas públicas, nota-se uma carência conceitual para dar conta do Estado. Essa dimensão nos parece mais afeita ao conceito de domínio de agência, que explica as configurações qualitativas do encaixe. Assim, o desdobramento mais especializado desse conceito permitiria reduzir o foco no aspecto processual de penetração e caminhar em direção à compreensão dos potenciais de ação dos movimentos sociais, suas novas capacidades, autoridades e influências na implementação da política. No estudo da contemporaneidade das políticas públicas, é necessário que os “domínios de agência” produzam categorias para descrever, qualificar e diferenciar capacidades usufruídas - por mais que tais políticas tenham sido fundadas pela interação socioestatal.

As categorias conceituais da tese da mútua constituição abrangem o objeto de pesquisa relacionado às políticas públicas de forma ainda muito limitada. Conceitos polissêmicos e disputados, como o de capacidade estatal, governança multinível e aqueles relacionados aos dilemas da implementação de políticas públicas, predominam como referencial teórico na análise da mútua constituição. Portanto, nota-se a necessidade de desenvolvimento teórico continuado e de associação com outros conceitos - em uma espécie de complementação.

O desenvolvimento da tese da mútua constituição no sentido de categorias explicativas afeitas às políticas públicas, ao Estado e às suas capacidades, assim como ao processo decisório é uma dimensão-chave para o aprofundamento e a continuidade da teoria - pelo menos em relação às políticas públicas. O conceito de encaixe parece focar mais no estudo dos processos de entrada social no Estado - de forma a compreender a institucionalização de demandas de movimentos sociais - e o conceito de domínio de agência no momento pós-institucionalização dos interesses de movimentos sociais, que remete ao usufruto rotineiro de capacidades e ferramentas estatais para a implementação dos interesses estruturados no Estado. Nesse sentido, parece promissora a associação daqueles referenciais observados na bibliografia com o conceito de domínio de agência - desde que o domínio aponte para as capacidades apropriadas, coproduzidas ou operadas conjuntamente pelos atores encaixados no Estado. Um exemplo dessa necessidade encontra-se na orfandade de definições e conceituações dos agentes sociais envolvidos na política, que não são traduzíveis na língua dos movimentos sociais.

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    Tradução minha.
  • 2
    Programa de Proteção de Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita); Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2022
  • Aceito
    14 Abr 2023
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