Acessibilidade / Reportar erro

A ANTA E A COSMOPOLÍTICA: UM CONTO DE GUIMARÃES ROSA

The Tapir and Cosmopolitcs: A Tale from Guimarães Rosa

RESUMO

No conto “Tapiiraiauara”, Guimarães Rosa apresenta uma cena de caça na qual entram em jogo a vida de uma anta e questões de diplomacia. Partindo do debate sobre cosmopolíticas, a análise do conto revela problemas que incidem sobre perspectivas ameríndias tupi-guaranis e o Modernismo, especialmente quanto à simbologia de alguns animais que surgem no embate entre o cosmopolitismo antropofágico e o nacionalismo verde-amarelo.

Palavras-chave:
cosmopolíticas; Guimarães Rosa; tupi-guarani; nacionalismo; Modernismo

ABSTRACT

In his short story “Tapiiraiauara,” Guimarães Rosa portrays a hunting scene in which a tapir’s life and diplomacy issues are at stake. Based on the cosmopolitics debate, the analysis of the story reveals problems related both to Amerindian Tupi-Guarani perspectives and Brazilian Modernismo, especially regarding the symbolism of some animals that appear in the clash between “anthropophagic” cosmopolitans and verde--amarelo nationalist group.

Keywords:
cosmopolitics; Guimarães Rosa; Tupi-Guarani; nationalism; Modernism

para João Almino

SOBRE FÉ E MICROSCÓPIOS

“Peace is a Fiction of our Faith -”1 1 “A Paz é uma Ficção da nossa Fé —”. Mantive o travessão no fim do verso, uma vez que faz parte da singular pontuação de Emily Dickinson. (Dickinson, 2021Dickinson, Emily. Poesia completa, v. II: Folhas soltas e perdidas. Trad., intr. e notas Adalberto Müller. Brasília/Campinas: Ed. UnB/Ed. Unicamp, 2021., p. 102). Esse verso célebre de Emily Dickinson foi escrito provavelmente na primavera de 1865, depois do assassinato de Abraham Lincoln - que ocorreu uma semana após o tratado de paz que deu fim à Guerra Civil Americana, em 9 de abril. Dickinson devia saber que, independentemente da rendição do general Lee, tropas confederadas sulistas continuavam a atacar o Exército da União. Embora esse assunto pareça ser um tanto vetusto e distante, recordemos que a eleição de Donald J. Trump, em 2016, trouxe de volta a famigerada bandeira confederada à cena política norte-americana, expondo uma ferida que nunca cicatrizou e provando não apenas que Dickinson estava certa, mas que, em se tratando de paz, é preciso cautela. Após a euforia com a globalização (um mundo sem fronteiras…) e as novas tecnologias (uma aldeia global…), as sombras da guerra e do obscurantismo político reaparecem, em conjunção com a destruição provocada pelas mudanças climáticas decorrentes da aceleração termodinâmica do capitalismo no Antropoceno, que não são menos catastróficas 2 2 Remeto os leitores, após a leitura do texto de Benjamin que virá a seguir, às edições de 6 a 10 de outubro de 2020 da Folha de S.Paulo, com notícias e fotos de um dos maiores incêndios do Pantanal. do que aquele horror que o anjo de Walter Benjamin vê ao se voltar para o passado histórico:

É assim que deve parecer o Anjo da História. Sua face se volta para o passado. Lá onde nós vemos surgir uma sequência de eventos, ele vê uma catástrofe única, que incessantemente empilha escombros sobre escombros e os lança a seus pés. Ele gostaria de se demorar, de despertar os mortos e reunir de novo o que foi esmagado. Mas uma tempestade sopra do paraíso, que se agarra às suas asas, e é tão forte que o Anjo já não as consegue mais fechar. Essa tempestade o leva inexoravelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto diante dele a pilha de escombros cresce rumo ao céu. Aquilo que chamamos de progresso é essa tempestade. (Benjamin, 2020Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. Org. e trad. Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. Ed. crítica. São Paulo: Alameda, 2020., pp. 39-40) 3 3 Trata-se da edição crítica das “Teses” sobre o conceito de história. Essa versão da tese VII aparece num manuscrito enviado por Benjamin a Hannah Arendt pouco antes de sua morte trágica.

Muitas das catástrofes recentes decorrem justamente de uma tensão crescente na vida política causada pelo surgimento de um neoconservadorismo liberal de cariz ultranacionalista e religioso que tem levado à degradação dos direitos humanos e ambientais, ao acirramento de conflitos sociais e à negação de valores republicanos e democráticos. E o embate tanto mais se acirra na medida em que os novos nacionalistas negam - muitas vezes sob o influxo de religiões neopentecostais - o desastre climático que vivemos, porque negam até mesmo a ciência moderna. Como resolver esse impasse, esse choque de visões de mundo? O que ainda se pode salvar?

O sociólogo e filósofo francês Bruno Latour, recentemente falecido, procurou desmistificar, em um texto-debate bastante conhecido (Latour, 2018)Latour, Bruno. “Qual cosmos, quais cosmopolíticas? Comentário sobre as propostas de paz de Ulrich Beck”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 69, 2018, pp. 427-41., a ideia de que a paz entre as nações seria possível somente quando os atores políticos adotassem finalmente uma visão “cosmopolita”, ou seja, uma visão capaz de suprimir as diferenças radicais em favor de uma “visão comum” da humanidade e dos ideais humanitários. Para Latour, o absurdo (se não a violência) dessa ideia de origem iluminista (ou kantiana) viria não apenas de uma visão etnocêntrica (europeia) do que é a humanidade, mas de uma perspectiva humana demasiadamente humana, que suprime de cara o “cosmos” (ou seja, o mundo enquanto pluralidade de “seres” e “coisas”) em favor de uma ideia de política herdeira do racionalismo, segundo a qual a natureza - tal como observada pela “ciência” - está simplesmente dada, não é fruto de uma construção, construção essa que, como Latour mostrou em suas obras, sempre pressupõe inclusões e exclusões.

A essa visão cosmopolita dos pacifistas humanistas, Latour contrapõe a proposta de Isabelle Stengers (2018)Stengers, Isabelle. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, 2018, pp. 442-64. sobre as cosmopolíticas: não há um mundo comum a ser observado, mas uma multiplicidade de mundos a serem levados em consideração, mundos que não raro se apresentam na forma de conflitos irreconciliáveis, que partem de visões idiossincráticas e muitas vezes excludentes - tal como o incômodo pluriverso de William James, em que cada coisa é um “para si” e não um “para todos” (James, 1987James, William. A Pluralistic Universe. Writings 1902-1910. Nova York: The Library of America, 1987., p. 645). Assim, a tarefa ético-ecológica de cosmopolíticas futuras não seria a de criar, a partir de um ponto de vista predefinido, consensos imediatos, mas antes aprofundar e diversificar o debate, de modo a ressaltar o papel perene das agências de mediação, de diplomacia - e, diríamos nós, de tradução. Nos termos do pragmatismo 4 4 Embora não pareça, William James e Emily Dickinson tinham muito em comum, além de terem vivido geograficamente próximos no estado de Massachusetts, na primeira metade dos anos 1860 — época em que James também participa da expedição de Louis Agassiz à Amazônia, onde parece ter estudado, entre outras coisas, o idioma nheengatu. poético de Dickinson, o mundo seria melhor se a “Fé” que produz a “Ficção” fosse substituída por microscópios - “A Fé é fina invenção/ Mas o Microscópio é melhor”, diz ela em outro poema - e, acrescentaria, por macroscópios, de modo a se ter visões multifacetadas das coisas. Como veremos mais detalhadamente, João Guimarães Rosa já apresentava, em diálogo com a cultura e a política brasileira e internacional, perspectivas cosmopolíticas que podem auxiliar na defesa do pluralismo democrático, na medida em que, em suas obras, a vida das pessoas é profundamente afetada pelas relações com a natureza e com outros seres. Isso quando não acontece de a vida humana nem sequer estar presente, ou apenas ocupar uma posição secundária.

O AMIGO DA ONÇA E O AMIGO DA ANTA

Parece-me que João Guimarães Rosa antecipou o debate das cosmopolíticas de Stengers e Latour, e podemos constatar isso num breve e aparentemente singelo conto de Tutaméia, que tem o enigmático título de “Tapiiraiauara " (Rosa, 1995)Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.. A anedota desse conto é tão simples quanto sutil, aliás, sutilíssima. Um certo Iô Isnar convida um amigo para caçar antas, sabendo que há, nas redondezas, uma anta com um filhote. Contudo, o amigo, que é o narrador, é um dedicado observador da natureza e sente dó dos herbívoros quadrúpedes; ao mesmo tempo, observa certa crueldade no caçador, que matava apenas “por distração”, o que indica que talvez não se ativesse adequadamente aos códigos da caça (Descola, 2005Descola, Philippe. Par délà la nature et la culture. Paris: Gallimard, 2005.; Van Vliet et al., 2015Van Vliet, Nathalie et al. “Bushmeat Networks Link the Forest to Urban Areas in the Trifrontier Region between Brazil, Colombia, and Peru”. Ecology and Society, v. 20, n. 3, 2015, pp. 21-6.). 5 5 As reflexões de Philippe Descola (2005) me parecem relevantes para se pensar a relação entre caça, domesticação e alimentação do ponto de vista antropológico de uma “ecologia das relações”. O artigo de Nathalie van Vliet et al. (2015) apresenta uma abordagem pragmática e descritiva da caça entre indígenas e não indígenas na Amazônia. Assim, para tentar salvar o tapir e sua cria, ele lança mão de um expediente psicológico, de modo a induzir o caçador a errar seu alvo: dá notícias da provável guerra na Ásia, onde os “malinos pagãos, cochinchins, indochins […] martirizavam os prisioneiros”. Ora, ele sabe que Iô Isnar tem um filho no Exército, “filho único…” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 693), ele insinua, destilando o medo nas palavras.

Essa redução do conto a essa anedota não permite, obviamente, entender toda a complexidade de sua construção narrativa. Há uma grande riqueza de pequenos detalhes, que vão de uma observação científico-poética sobre os tapires e o seu habitat ao nome Isnar, que pode ser tomado como um anagrama de nariz e, ao mesmo tempo, como uma provável referência jocosa ao alemão ist narr (é tolo, estreito). Ademais, ressalta-se o modo como o amigo-narrador descreve sua estratégia, ponto por ponto, estratégia que lembra muito os jogos de diplomacia, na medida em que ele busca uma forma de entente na qual a anta (e sua cria) possam ser salvas sem que ele tenha de se posicionar contra o amigo caçador. Ele age, por assim dizer, nos bastidores do poder, valendo-se da manipulação: “Havia urgência. Podia-se uma ideia. À mão da linguagem. A de meneá-lo, a de agi-lo, nesse propósito, em farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 694). O que vemos aqui é aquela “eficácia” que Isabelle Stengers elogia no pensamento chinês tal como é descrito por François Julien: “a manipulação, a arte da disposição que permite aproveitar-se da propensão das coisas, de ‘dobrá-las’ de tal sorte que elas realizem ‘espontaneamente’ o que o artista, o homem de guerra ou o homem político desejam” (Stengers, 2018, p. 456)Stengers, Isabelle. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, 2018, pp. 442-64..

Não por acaso, maquiavelicamente, o autor-diplomata também fala por trás do conto, inserindo no texto literário o contexto imediato das relações internacionais: a Guerra Fria e, mais especificamente, o conflito no Vietnã, país que fazia parte da antiga Indochina francesa e incluía, ao sul, a Cochinchina. Vale lembrar que, como muitos dos textos de Tutaméia, “Tapiiraiauara” foi publicado em 10 de julho de 1965 no jornal médico O Pulso, que circulava em todo o Brasil (Rosa era médico, além de diplomata). Nos anos 1964-1965, os Estados Unidos aumentam consideravelmente o número de soldados no Vietnã, e o governo do general Castelo Branco, oriundo do golpe militar de março de 1964, alinhava-se favoravelmente aos norte-americanos. Sob a gestão do embaixador Vasco Leitão da Cunha, a política externa brasileira alia-se aos Estados Unidos na luta contra o comunismo, mas Leitão da Cunha opera no sentido de manter a tradição de não intervenção (que garantia também o status quo do regime militar no concerto das nações), afastando o Brasil da guerra. No entanto, entre março e junho de 1965 (período em que o conto pode ter sido escrito), a questão do “vai ou não vai” do apoio militar brasileiro aos Estados Unidos na guerra no Vietnã parecia ter forte impacto na opinião pública (Carrières, 2021)Carrières, Henri (org.). A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira: seleção de documentos diplomáticos (1964-1965), v. 2. Brasília: Funag, 2021..

Levando em conta esse contexto, podemos entender melhor quanto Rosa estava longe de ser um autor absenteísta, fechado em um mundo exclusivamente literário. Mais do que isso, o escritor-diplomata estava atento à questão da guerra no Extremo Oriente, mas já alertava também para uma outra política, que poderia dirigir-se para fora dos domínios da pólis e do pensamento antropocêntrico. Assim, em “Tapiiraiauara”, Rosa provoca uma série de descentramentos cosmopolíticos, partindo de uma redefinição do papel de mediação: o narrador-personagem, na medida em que se situa entre o tapir e o caçador, aproveita-se duplamente de sua posição distanciada para descrever minuciosamente os dois “adversários” (na forma sintético-poética característica de Tutaméia). Além disso, como narrador distanciado, ele tem um terceiro olho voltado para o leitor, de quem tenta angariar a simpatia para o tapir, pelo modo carinhoso como descreve o animal em seu habitat: “a anta, que ensina o filhote a nadar: coça-o leve com os dentes, alongando o trombigo” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 693). Ao revés, imputa ao caçador características de crueldade e estultícia, a começar pelo nome, dizendo logo que Iô Isnar estava “a fim de assassinato” e era “duro e mau como uma quina de mesa” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 693).

Essa posição “diplomática” do narrador (e do autor) 6 6 Sobre a presença de Rosa autor em sua obra, ver Mônica F. Rodrigues Gama (2013). não é de maneira nenhuma inocente: ele se aproveita de sua posição de superioridade intelectual (tem informações sobre a guerra e intencionalmente as distorce) para dobrar os ânimos do caçador e levá-lo a sentir no “extremo dos dedos um pânico”. Assim, em sua maquinação, o amigo-narrador age maquiavelicamente, no sentido negativo dessa palavra: “Devagar, a ministrar, com opinião de martelo e prego: ‘Seu filho único…’ Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos, o parar em morte, os suplícios mais asiáticos”. 7 7 Essa é uma das poucas vezes que Rosa faz referências à Ásia. Em Tutaméia, há um conto interessantíssimo sobre um chinês, intitulado “Orientação”, que comento em um ensaio sobre o autor mineiro (Müller, 2022). Enfim, pode-se dizer que a posição do narrador-amigo é de amigo da onça, mas também a de amigo da anta.

Para além da anedota e do conto, que termina num happy end, podemos entender melhor a relação cosmopolítica entre o narrador-diplomata e o escritor-diplomata. Se o primeiro age como amigo da onça (usa a astúcia, a discrição, o cálculo e, sobretudo, a força bruta dos argumentos intelectuais mais pesados para nocautear o adversário-vítima em seu ponto frágil), o segundo age como amigo da anta (pensa com o coração do tapir). O primeiro prepara a guerra, o segundo quer a paz, pelo menos para a anta.

Aqui vale recordar que, no Brasil, o imaginário da anta está carregado de negatividade. Uma “anta” se diz, infelizmente, para pessoas estultas (pessoas como o Isnar, “ist narr”). 8 8 Curiosamente, o dicionário Morais (1945) registra em anta : “adj. Interesseiro, esperto, aproveitador. Fingido, falso, mendaz”. Sabemos, contudo, que a anta é um animal extremamente inteligente e sensível, além de ter uma função importantíssima nos ecossistemas do Pantanal, do Cerrado e da Amazônia. Por se alimentar de uma grande quantidade de frutos silvestres, e por ter um trato digestivo que facilita a posterior germinação das sementes, que vai devolvendo à terra quando defeca ao longo de grandes percursos. Em outros termos, a anta é a “jardineira da floresta”. Além do mais, é um animal astuto, pois, apesar de sua pouca capacidade de defesa contra os predadores - notadamente os grandes felinos e os humanos -, sabe dissimular-se e é capaz de mergulhar e nadar em profundidade, razão por que vive perto da água. Enfim, na cadeia alimentar dos referidos ecossistemas, a anta, ao mesmo tempo que amplia a floresta, ainda garante a vida de grandes predadores como a onça, para a qual é uma das presas mais importantes.

“Amar os animais é aprendizado de humanidade”, diz o pórtico do Zoo de Hamburgo descrito por Guimarães Rosa em “Zoo”, texto publicado em março de 1961Rosa, João Guimarães. “Meu tio, o Iauaretê”. Senhor, ano 3, n. 3, Rio de Janeiro, mar. 1961, pp. 64-79. no Globo e em 29 de abril de 1967 em O Pulso. Embora se possa contrapor a essa visão o ódio da narradora de “Amor” (1960)Lispector, Clarice. “Amor”. In: Lispector, Clarice. Laços de família. São Paulo: Francisco Alves, 1960., de Clarice Lispector - ódio que é uma entrada para um amor mais profundo (ou guerra que prepara uma paz mais duradoura?) -, creio ser importante ressaltar que o interesse pela vida animal e vegetal é uma das matrizes da singularidade do escritor de Cordisburgo. Sabemos pelas suas notas e cadernos de viagem que ele tinha uma obsessão pela zoologia e pela botânica, temas que só se equiparavam com a preocupação que tinha em registrar a fala da gente sertaneja. Mais que isso, o mundo mineral, vegetal e animal deixam de ser em Rosa um “pano de fundo” para a narrativa e adquirem força agência, no sentido biopolítico. Pense-se no burrinho pedrês guiando a tropa na enchente, ou o papel de fundamento simbólico das relações que o buriti adquire nessa novela seminal que é Buriti (1995)Rosa, João Guimarães. Buriti. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., ou então nas modulações comunicativas da força telúrica em “O recado do morro”. Finalmente, ainda, recordemos o modo como a natureza vai conformando as disposições subjetivas e existenciais de Riobaldo em Grande sertão: veredas (1956)Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.. Na única entrevista que deu para a tevê (alemã), em 1961, Rosa fala de um “fundo telúrico, realista” de seu romance, no qual se passa uma “história com transcendência, visando até ao metafísico”. 9 9 A entrevista concedida em 1961 à televisão alemã foi apresentada pela primeira vez no documentário Outro sertão, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela (2013). Mais do que uma dialética do regional e do universal, do sertanejo e do cosmopolita, é essa tensão entre o telúrico 10 10 Vale lembrar aqui o artigo pioneiro de Antonio Candido sobre Sagarana, no qual o crítico dizia que o livro vinha “cheio de terra” (Rosa, 1994, p. 64), com um “sabor regional” que “transcende a região” (id.), pois criaria uma “experiência total em que o pitoresco e o exótico são animados pela graça do movimento interior em que se desfazem as relações do sujeito e objeto para ficar a obra de arte como integração total da experiência” (ibid., p. 65). Tratava-se, é claro, para Candido, de distinguir Rosa tanto do nacionalismo exacerbado do Estado Novo quanto de um regionalismo mais “provinciano” (Candido cita Gilberto Freyre, que, aliás, em 1926 publicara um Manifesto Regionalista). Candido também anotava, em outro momento, que a “região” em Rosa deixa “de ser, para ele, a simples localização da história” e passa a ser “a verdadeira personagem” (Rosa, 1994, p. 66). O saldo da crítica de Candido é conhecido: trata-se de exaltar a “fatura” da obra de arte literária em relação dialética com o meio social e histórico onde ela surge. e o metafísico que projeta a obra de Rosa para a discussão cosmopolítica, inserindo-o numa tradição que poderia incluir poetas e escritores como William Wordsworth, Henry Thoreau, Herman Melville (mais aquático que telúrico!), Nikolai Leskov, Jean Giono, José María Arguedas, Francis Ponge, Gary Snyder, Clarice Lispector, Glória Anzaldúa e Manoel de Barros, apenas para mencionar alguns nomes en passant. Esses autores também têm em comum o fato de se distanciarem de uma representação alegórica da natureza e dos seres não humanos (que se vê, por exemplo, nas fábulas clássicas): a natureza (inclusive a humana, mas não apenas) é, antes, como o escrivão Bartleby, evocado por Isabelle Stengers (2018Stengers, Isabelle. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, 2018, pp. 442-64., p. 448): ela recusa uma negociação quando solicitada a dobrar-se aos interesses da humanidade antropocênica.

Por isso, como Rosa, esses autores antecipam o debate das cosmopolíticas. Em suas obras, a vida das pessoas também é profundamente afetada pelas relações com a natureza. Em Francis Ponge (2022Ponge, Francis. Partido das coisas. Tradução, apresentação e notas de Adalberto Müller. Posfácio de Marcelo Jacques de Moraes. São Paulo: Iluminuras, 2022.), por exemplo, não se trata mais da relação com a natureza (daquilo que é vivo), mas do entrelaçamento das coisas com a linguagem que usamos para as definir e delimitar (um engradado, uma pedra ou uma ostra). Em Regain (1930)Giono, Jean. Regain. Paris: Grasset, 1930., de Jean Giono, a relação do homem com o trabalho é intermediada, para o bem ou para o mal, pelas forças da natureza, que tanto podem ser devastadoras quanto propícias. Em Água viva (1973)Lispector, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973., Clarice Lispector se indaga sobre o vivo e sua relação com o tempo, dissolvendo o pensamento conceitual numa espécie de líquido amniótico da linguagem. Em Borderlands/La frontera (1987)Anzaldúa, Gloria. Borderlands/La frontera. São Francisco: Aunt Lute, 1987., da texana Glória Anzaldúa, a visão cósmica dos ancestrais mexicanos sobre a vida terrestre e celeste imiscui-se nas múltiplas facetas da violência e da exploração na região de fronteira entre o México e os Estados Unidos. Enfim, em Moby Dick (1851)Melville, Herman. Moby Dick. Londres: Richard Bentley, 1851., de Melville, a exploração comercial desenfreada do óleo de baleia (como os combustíveis fósseis de hoje) recebia da natureza (representada pela baleia branca) uma resposta à altura da destruição, revelando que as forças demoníacas da aceleração capitalista serão cedo ou tarde revidadas em proporções catastróficas. As grandes inundações e tempestades de hoje são a prova de que baleia branca de Melville se proliferou na mesma escala da exploração capitalista e agora estamos todos - metrópoles e colônias, ricos e pobres - num gigantesco Pequod, à deriva no cosmos. 11 11 Há muitas posições políticas recentes que aderem a perspectivas cosmopolíticas similares às dos autores citados. Para o nosso caso específico, talvez fosse bom lembrar as ideias de “vivir bien” e “cosmoser” do ex-ministro de Relações Exteriores e atual vice-presidente da Bolívia, David Choquehuanca. Para uma rápida introdução à sua atuação e conceitos, veja-se o artigo de Enric Llopis (2015).

De volta à anta de Guimarães Rosa e ao Brasil, caberia antes de mais nada colocar a espinhosa questão da relação cultural entre a anta e a onça. Refiro-me, no segundo caso, à famosa novela “Meu tio, o Iauaretê” (1961)Rosa, João Guimarães. “Meu tio, o Iauaretê”. Senhor, ano 3, n. 3, Rio de Janeiro, mar. 1961, pp. 64-79., publicada em março de 1961 na revista Senhor. Aqui, como em Grande sertão: veredas, temos uma narrativa em forma de “monodiálogo”, na qual um onceiro vai paulatinamente se declarando índio e onça para um interlocutor silencioso. Nessa “confissão” cabocla, à medida que se dá a metamorfose identitária do onceiro, como já se observou, é a própria língua brasileira que vai sofrendo mutações para a língua indígena (nheengatu, tupi ou guarani, dependendo da perspectiva de análise). Não vou me arriscar a uma nova interpretação dessa novela (o que já tentei alhures), 12 12 Em “Tradução e perspectiva em Guimarães Rosa”, vemos como o “tradutor” e o “diplomata” atuaram sempre na ficção de Rosa, na medida em que ele vai introduzindo perspectivas múltiplas em suas narrativas, muitas das quais ultrapassam a fronteira do humano. Ao mesmo tempo, a linguagem vai sendo afetada por esse perspectivismo, e, no caso do Iauaretê, é a linguagem do indígena e da onça que vêm à tona (Müller, 2022). mas apenas quero salientar que esse texto deu novo impulso aos estudos sobre a antropofagia no Brasil, um tema que ganhou força nos últimos anos, e mais ainda com o centenário da Semana de Arte Moderna (Sterzi, 2022Sterzi, Eduardo. Saudades do mundo. São Paulo: Todavia, 2022.). Nessa novela, o índio, a onça e o tupi parecem se reencontrar com a longa história da antropofagia, no lugar em que a história se entrelaça com o mito, e a antropofagia e a onça13 13 Apenas para mencionar alguns títulos recentes, além de “Meu tio, o Iauaretê” (Rosa, 1969) e suas numerosas exegeses críticas, vale lembrar Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa (2008); a conferência de Eduardo Viveiros de Castro, “A força de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da diferOnça” (2013), que se desdobrou em ensaios e comentários; e o recente e premiado O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk (2021). Não se pode menosprezar também a importância das personagens-onça Maria Marruá e Juma nas duas versões da novela Pantanal, de 1990 (TV Manchete) e 2022 (TV Globo). assumem um papel relevante na literatura brasileira. Mas o que dizer do jabuti? Do macaco? Do tamanduá? Da Cobra de Bopp? E, finalmente, o que dizer da anta? Em outros termos, qual o risco de se reduzir uma fauna tão rica ao grande predador felino e, na mesma esteira, reduzir o tupi ao antropófago? Será que um animal “vegano” como a anta poderia nos ajudar a pensar outras formas de ser tupi ou brasileiro?

Talvez. Mas isso implica voltar a um tema como “a Anta e o Brasil”, que pode não ser um assunto tão vegano assim, e muito menos pacífico.

A ANTA POLÍTICA BRASILEIRA

No manifesto conhecido como “Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)” (Del Picchia et al., 1929Del Picchia, Menotti et al. “O actual momento literario” [“Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)]”. Correio Paulistano, ed. 23.555, 1929, p. 4.), 14 14 Esse título do manifesto é posterior. Na publicação original, que tem por título “O atual momento literário”, há apenas uma breve apresentação jornalística antecedendo o que é chamado de “orientação do grupo verde-amarelo” (Del Picchia et al., 1929). publicado em maio de 1929 no Correio Paulistano (um ano depois do “Manifesto Antropófago”), o grupo conhecido como verde-amarelista (entre os quais estão Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, que fizeram parte da Semana de Arte Moderna, e o poeta integralista Plínio Salgado) parecia partir de um ponto em comum com Oswald de Andrade: o retorno ao tupi. No entanto, eles o fizeram por razões diametralmente opostas: o tupi de Oswald, desde o slogan que abre o manifesto (“Tupi or not tupi”), era antes de tudo cosmopolita, aberto às teses do marxismo e do freudismo, atento às vanguardas europeias (cubismo, dadaísmo, surrealismo), e queria produzir o nacional em contato com o estrangeiro, deglutindo-o. O tupi antropófago servia, assim, como um paradigma cultural, a partir do qual se faria uma “revolução caraíba” de caráter internacional. E ser internacional em 1929 não deixava de significar algum tipo de vínculo com o anarquismo da Segunda Internacional.

Bem diferente desse tupi que aparece em Oswald como um “aglomerado indígena-alienígena” (Sterzi, 2022Sterzi, Eduardo. Saudades do mundo. São Paulo: Todavia, 2022.) é o tupi de Plínio Salgado e de seus correligionários protofascistas. Por mais estranho que pareça, a defesa do tupi e da anta em Plínio Salgado parece ser a repetição nacional de uma farsa histórica (no sentido marxiano), a do Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que propunha restaurar o tupi e o nacionalismo extremo para salvar o Brasil da crise de valores instaurada na Primeira República. Mas se lá o motivo do retorno ao tupi aparece numa clave cômico-satírica, no manifesto dos protofascistas brasileiros o tom é de gravidade. Nele, o tupi será erigido à categoria de consciência nacional para tornar-se o paradigma de uma “subjetividade” nacional, destinada a criar uma “Pátria Comum” contra a “tirania das sistematizações ideológicas” (leia-se: Marx, Freud, Oswald), fundada na ideia de um nacionalismo radical que antecipava o que seria o governo Getúlio Vargas e que recentemente foi reciclado pelos neoconservadores do MBL e pelos bolsonaristas. 15 15 Em “Os romances de Plínio Salgado” (2020), Flávio Aguiar fez um bom resumo da relação entre a literatura de Salgado e o Estado Novo. Para uma análise aprofundada do MBL, do Bolsonarismo e suas matrizes ver Rocha (2023). Vale a pena ler, mesmo que a contragosto, esse momento bombástico do grupo da Anta:

Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação do Brasil na humanidade, de fé em nosso valor, de construção nacional.

Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas.

Nosso nacionalismo é “verde-amarelo” e tupi. O objetivismo das instituições e o subjetivismo da gente sob a atuação dos fatores geográficos e históricos. (Del Picchia et al.,1929Del Picchia, Menotti et al. “O actual momento literario” [“Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)]”. Correio Paulistano, ed. 23.555, 1929, p. 4.)

A tese principal do manifesto, que já vinha sendo explicitada desde 1926 por Plínio Salgado em outro manifesto, intitulado “A anta e o curupira”, é a de que o índio real já havia desaparecido e que era preciso fazê-lo reviver enquanto força subjetiva capaz de moldar um novo nacionalismo (um novo instinto de nacionalidade, em termos machadianos). Como demonstrou muito bem Antonio Arnoni Prado (2010Prado, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda: os Dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo. São Paulo: Editora 34, 2010.), o verde-amarelismo nada mais foi do que uma “falsa vanguarda” que andava a reboque da vanguarda da Semana de 1922, mas também ia na contracorrente, pois se aliava politicamente às tendências conservadoras da sociedade brasileira, a qual paulatinamente ia fazendo aliança com o fascismo para frear a todo custo o trem da Revolução de 1917.

Mas não se tratava apenas de um ideal estético (como o dos românticos): o grupo da Anta pretendia forjar um novo brasileiro, capaz de atender às demandas de uma nova república, que já se vislumbrava nesse período entreguerras, sobretudo com o fascismo de Mussolini e o ideário do Partido Nacional-Socialista Alemão (ou nazista): uma política tão estatizante quanto nacionalista que visava criar um “socialismo” unicamente para os nacionais (no caso, arianos), baseado na ideia de exclusão do Outro, do Estrangeiro (e das raças e minorias sociais consideradas inferiores ou incômodas ao progresso). No manifesto verde-amarelo, esse Outro, que se opõe ao tupi, é o tapuia, o índio que se rebelou, que fugiu para as matas, ou que foi vencido pelos tupis.

Convém lembrar que a distinção etnográfica entre tupis e tapuias já vinha sendo feita desde o século XIX e aparece num livro pouco comentado do indianista Gonçalves Dias, O Brazil e a Oceania. Nesse texto, uma conferência de 1853 (publicado postumamente), Dias (1909)Dias, A. Gonçalves. O Brazil e a Oceania. Rio de Janeiro: Garnier, 1919. já distinguia claramente dois tipos indígenas bastante diferentes: os tupis e os “tapuias”, sendo estes últimos conhecidos como “tapuya caa-pora”, o inimigo agreste e selvagem. 16 16 Dias faz uma diferenciação linguística entre dois grandes grupos de indígenas no Brasil, o que viria a ser confirmado com a separação etnolinguística dos grupos tupi e macro-jê (além de outros). Plínio Salgado e seus correligionários se aproveitaram dessa ideia, associando-a a uma visão maniqueísta que servirá às suas ideias raciais fascistas:

Os tupis desceram [do Norte] para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro o seu grande sentimento de humanidade. Seu totem não é carnívoro: a Anta. […] O tapuia isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e pelas flexas inimigas. O tupi sociabilizou-se sem temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é morto, o tupi é vivo. (Del Picchia, 1929Del Picchia, Menotti et al. “O actual momento literario” [“Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)]”. Correio Paulistano, ed. 23.555, 1929, p. 4., p. 4)

Há duas ideias paralelas na máquina retórica dos integralistas modernos: de um lado, define-se o caráter nacional por exclusão (nacional por subtração?) do estrangeiro, isto é, do europeu, sobretudo aquele “intelectual” que dissemina as “ideologias” europeias (entenda-se, o comunismo); de outro, define-se o mesmo caráter nacional pela exclusão do nacional-selvagem (o tapuia), que nada mais é que um falso brasileiro, ou seja, um jacobino: “Todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é forçosamente tupi. Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação. O nacionalismo tupi não é intelectual. É sentimental” (Del Picchia, 1929Del Picchia, Menotti et al. “O actual momento literario” [“Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)]”. Correio Paulistano, ed. 23.555, 1929, p. 4., p. 4).

Se retomarmos o fio das ideias dos verde-amarelistas e integralistas, talvez percebamos que o que estava sendo dito não era outra coisa senão a proposta de uma cisão radical na política e na cultura brasileira na qual se separasse definitivamente o joio tapuia do trigo tupi, em prol da construção de um “verdadeiro” Estado nacional baseado na “bondade” e no “sentimento de humanidade”. De um lado, o tupi (morto, evidentemente, e diluído no sangue dos conquistadores), sentimental e não afeito às ideologias, capaz de ser agregado e integrar-se à “predestinação humana”, tendo a Anta como “totem não carnívoro”; em outros termos, o “conservador”, que o manifesto da Anta convocará expressamente no último parágrafo (“Aceitamos todas as instituições conservadoras”). De outro, o tapuia, o selvagem, o desagregador, o “ideólogo”, o jacobino (leia-se comunista), cujo totem cultural (não nomeado) será, a partir de Oswald de Andrade, o antropófago e, indiretamente, a onça. Uma tal cisão político-cultural, anota Arnoni Prado (2010Prado, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda: os Dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo. São Paulo: Editora 34, 2010.), estava à espera de um braço forte, capaz de levar a cabo a implantação de um regime de “bondade” e “sentimento de humanidade”, do qual evidentemente seriam “excluídos” os tapuias jacobinos. Não é difícil perceber que, no campo pragmático, as ideias do grupo Anta triunfaram depois de 1932, com a exacerbação do nacionalismo e o alinhamento do governo Vargas ao fascismo - que resultou na perseguição a todos os “tapuias”, nacionais e estrangeiros. Como demonstra Arnoni Prado (2010)Prado, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda: os Dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo. São Paulo: Editora 34, 2010., o discurso da “falsa vanguarda” (na qual se incluem nomes como os de Graça Aranha e Paulo Prado) idealizava um novo brasileiro, capaz de superar as contradições sociais e políticas por meio de uma purificação disfarçada de miscigenação: assim como o sangue da Anta supostamente aumentava a força e a intrepidez do tupi, o sangue do tupi (e dos outros povos “formadores”) deveria integrar-se ao sangue da futura raça brasileira.

A essa altura, creio ser desnecessário repetir o quanto as ideias do verde-amarelismo se valeram da anta e do tupi (e do legado indianista romântico) para construir um mito brasileiro racista e conservador, mito esse que veio a ter influência tanto no debate contemporâneo sobre a miscigenação quanto na própria vida política brasileira recente; e o quanto as ideias de Plínio Salgado, que associavam virilidade e poder como forma de reinventar a brasilidade, voltaram a animar o neoconservadorismo e acabaram definindo o discurso do Palácio do Planalto (“Brasil acima de tudo”) entre 2018 e 2022. Não por acaso, na contramão desse discurso, um escritor (e também diplomata) escreveu uma sátira contundente na qual uma anta se torna candidata à Presidência da República (Almino, 2022Almino, João. O homem de papel. Rio de Janeiro: Record, 2022.).

Se tivéssemos mais tempo (e espaço) valeria a pena esmiuçar esse romance divertidíssimo que é O homem de papel (2022)Almino, João. O homem de papel. Rio de Janeiro: Record, 2022., de João Almino, no qual vemos ocorrer a ressurreição cômico-irônica da anta integralista. Ainda assim, resumo (mal) em três ou cinco linhas a história do romance, unicamente para proveito das ideias que aqui se desenvolvem: o conselheiro Aires, personagem de Machado de Assis, sai de dentro do livro a que pertencia ficcionalmente e passa a viver uma relação real com uma leitora, presenciando diretamente os fatos da vida política e cultural do Brasil contemporâneo. A certa altura dessa fábula cervantina, as antas começam a invadir Brasília, e um dos tapires é alçado à posição de centro da vida política, quando um deputado propõe que a anta seja candidata à Presidência da República. Não faltam, na história das antas de Almino, referências sarcásticas ao integralismo, o que também deixa claro tratar-se de um jogo sutil de comparação do que há em comum entre nacionalismo e imbecilidade no integralismo e a ascensão do neoconservadorismo brasileiro, que, não por acaso, estava no poder na época em que o romance foi publicado. Apesar da perspectiva distanciada criada por Almino (seu personagem-narrador é duplamente fictício), na anamorfose do jogo de espelhos narrativo, a anta não deixa de servir a um propósito eminentemente alegórico da estultícia humana. 17 17 Numa linha muito menos sutil de raciocínio, Diogo Mainardi usou a anta de forma depreciativa para vituperar de forma obsessiva e infundada o governo Lula em Lula é minha anta (2007), reunião de crônicas publicadas na revista Veja, a qual, sabemos, fazia e faz oposição ao governo do PT.

O TAPIR E O TUPI

Depois desse recuo tático, no qual quis antes de mais nada amplificar o sentido político que a anta recebeu na cultura e na política brasileira desde o Modernismo (sem esquecer da contraposição com a onça, que perpassa todo este ensaio), voltemos ao conto de Guimarães Rosa. Ou melhor, voltemos ao título do conto, pois é nele que parece estar a chave para se pensar uma outra relação da anta com o mundo, ou a relação da anta com um outro mundo (outro cosmos). Tapiiraiauara (ou tapyra’yawara) é um ser mitológico, meio anta (tapir) meio onça (yawara), que aparece nas cosmologias de povos da Amazônia (Saunier et al., 2021Saunier, Karine Aguiar de Sousa et al. “Tapyra’yawara: A ecomusicologia de uma dança dramática do rio Maués-Açu”. In: XXXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. 31., 2021. Anais… João Pessoa, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://anppom-congressos.org.br/index.php/31anppom/31CongrAnppom/paper/view/721/426 >. Acesso em: 10/7/2023.
https://anppom-congressos.org.br/index.p...
), sobretudo nas cosmologias tupis-guaranis (de onde provém o nome). No vocabulário de nheengatu de Ermano Stradelli (1929Stradelli, Ermano. “Vocabularios da lingua geral portuguez-nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua”. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, t. 104, v. 158, 1929, pp. 9-768.), encontramos uma definição que parece apontar, por si só, para uma interpretação 18 18 Seria então possível ver, numa tradução de “tapiiraiauara” por tapironça, uma efígie do próprio narrador (e quiçá do autor). do conto de Guimarães Rosa:

Tapyíra-iauára - anta-cachorro, anta onça, que aparece aos caçadores que violam as leis de caça matando as fêmeas quando grávidas. Contam que é uma onça com cabeça de anta que, quando o caçador confiante, porque a vê descuidada, deixando-o se aproximar, pensa poder flechá-la a salvo, se levanta e mostra o que é, investindo, mal dando-lhe tempo na maior parte dos casos, a fugir sem olhar para trás. (Stradelli, 1929Stradelli, Ermano. “Vocabularios da lingua geral portuguez-nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua”. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, t. 104, v. 158, 1929, pp. 9-768., p. 665)

Essa definição, que aparece também no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo (2002Câmara Cascudo, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2002.), pode ter sido uma das fontes para o título de Rosa, embora também não seja impossível que ele tenha lido Stradelli nos seus estudos sobre as línguas tupis-guaranis. Aliás, é preciso dizer que, posto que tenha afirmado apenas ter estudado a gramática do tupi (“Entrevista”, 2006)“Entrevista: João Guimarães Rosa, por Lenice Guimarães de Paula Pitanguy”. Germina, ago. 2006. Disponível em: <Disponível em: https://www.germinaliteratura.com.br/pcruzadas_guimaraesrosa_ago2006.htm >. Acesso em: 30/3/2023.
https://www.germinaliteratura.com.br/pcr...
, nota-se em sua obra - além de “Meu tio, o Iauaretê” - que Rosa se valeu várias vezes das línguas tupis-guaranis, e muitas vezes de forma bastante criativa. 19 19 Eduardo Sterzi (2022, pp. 136- -ss.) defende a ideia de que o uso das línguas indígenas em “Meu tio, o Iauaretê” (Rosa, 1969) e outros textos, como “Uns índios (suas falas)” (Rosa, 1970), indica uma necessária fragmentação de línguas que nunca apontam para uma totalidade identitária (como o tupi de Policarpo Quaresma), mas para o “gaguejo”, o rastro apenas da língua subalterna e reprimida que quer falar. Pode ser, mas, a meu ver, isso não impede que se observe uma sistematização na fatura, o que só é possível se de fato nos aproximamos das línguas tupi-guarani o suficiente para entender quanto seu uso não é aleatório e fragmentado (e muito menos um gaguejo), mas é antes fruto de um estudo dedicado, aliado a uma criatividade incomum. Na novela “O recado do morro”, apenas para ficar com um exemplo, além de toda a discussão sobre a oralidade e a escrita que a obra levanta (e as relações desse tema com a etnografia ameríndia), encontramos trechos em que o autor se exercita no tupi, seja de forma descritiva/interpretativa, seja de forma puramente criativa: “morava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e grotas - uma urubuquara - casa dos urubus” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 623). É essa palavra, formada por urubu + -qua (guarani kuaa, buraco) + -ra (sufixo de lugar), que é usada no título-topônimo 20 20 Um livro que certamente não terá faltado aos estudos de “gramática tupi” a que se refere o autor na carta supracitada, e sobretudo na escrita de “O recado do morro” (Rosa, 1994), é a obra singularíssima de Teodoro Sampaio, O tupi na geografia nacional (2010 [1901]). “No Urubuquaquá, no Pinhém” (aliás, um topônimo igualmente inventado), e deve-se atentar para o fato de que -qua é primeiramente “buraco”, mas pode ser entendido como casa no sentido de toca (é esse o sentido em Araraquara). Quando aparece o personagem Gorgulho, ele é descrito como um “criaturo anhanho” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 625), termo formado a partir do tupi anhangá, 21 21 O sentido indígena da palavra não é o mesmo do demônio cristão, mas, sim, de sombras que andam na floresta e podem ser até mesmo de animais. A palavra é formada de ang- (alma, sombra) e da raiz -nha-, que tanto forma “correr” quanto “mal/mau” (ver o termo guarani atual ñaña). diabo (e veremos que o próprio narrador de “Tapiiraiauara” se define como Anhangá). A certa altura de Buriti, 22 22 As três aparições de antas nessa novela ou elas irrompem de forma violenta, ou são associadas ao perigo. novela em que a plasticidade da língua portuguesa atinge um dos seus extremos de beleza, Rosa assim descreve o encontro de Miguel e Gualberto com um riacho: “Pararam, perto da grota profunda, que avanhandava o regatozinho corrinhante” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 869). A palavra-valise “avanhandava” pode ser decomposta em ava- (“índio” ou “homem”, como os falantes de guarani se chamam entre si), -nha-[nhani] (correr) + andava. Quando o Chefe está sofrendo uma de suas insônias, ele teme o “anhanjo” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 906), palavra que amalgama o demônio e o anjo. Vale destacar que não se trata de um procedimento apenas “joyciano”: antes, as línguas tupis-guaranis são naturalmente aglutinantes, e a formação de palavras-valise (inclusive verbos-valise) é bastante comum, muito antes de Joyce. 23 23 Desenvolvo essa tese no livro inédito A cosmopoética guarani-mbyá: o Ayvu Rapyta, em fase de preparação editorial. Assim, mais do que um “rastro” de uma língua reprimida, mais do que uma reivindicação identitária ou uma filiação nacionalista (nos moldes de Policarpo Quaresma ou dos verde-amarelistas), o tupi-guarani aparece na obra de Rosa como uma poderosa ferramenta de criação estética, apontando para uma tradição de escritores que se valeram expressivamente dessa língua: Anchieta, José de Alencar, Gonçalves Dias, Sousândrade, Raul Bopp e, mais recentemente, Wilson Bueno (admirador confesso de Rosa). Mais do que isso, esse “rastro” das línguas indígenas atua como um “recado do morro”, fala de tudo aquilo que foi destruído e soterrado pelas máquinas avassaladoras do capitalismo predador, que ainda dita as regras do jogo no Brasil. Em Guimarães Rosa, há como que um outro Anjo da História (um anjo anhanho, um anhanjo), que parece querer falar na língua dos oprimidos, de todos os oprimidos, dos “involuntários da pátria” - como chamou Eduardo Viveiros de Castro (2017Viveiros de Castro, Eduardo. “Os involuntários da Pátria”. Aracê: Direitos Humanos em Revista, ano 4, n. 5, 2017, pp. 187-93.) os indígenas, mas como também poderíamos chamar as antas, as araras-azuis, as cobras, as saúvas, as florestas, os rios.

Ao final de “Tapiiraiauara”, quando a anta finalmente se torna visível para o caçador e o amigo (da onça), seu nome virá duplamente inscrito pela língua tupi: “E foi que: mal coube aos olhos, vulto, bruno-pardo, patas, pelo estreito passadouro - tapiruçu, grã-besta, tapiira… - o coto de cauda. Com os cães lhe atrás” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 695). Além da insistência na diversidade de nomes (e atributos semânticos que tais nomes podem comportar), não deve ter escapado a Rosa, como não deveria nos escapar, sempre que falamos da anta, que se trata de um animal de imensa importância na cultura dos povos das terras baixas do continente latino-americano, além de ser um espécime, como já vimos, fundamental na cultura 24 24 Ao falar da relação entre floresta e cultura, aqui, refiro-me à constatação de Philippe Descola (1986) sobre a Amazônia e os povos que nela habitam. Para o antropólogo, onde vemos a “natureza” da floresta, os povos amazônicos veem antes a cultura, uma vez que a floresta, segundo dizem os estudos de etnobotânica, não nasceu naturalmente, mas é fruto da interação entre as espécies, inclusive a humana. das florestas tropicais e subtropicais desse continente. Além disso, em numerosas cosmologias e cosmografias ameríndias, a anta ocupa um papel relevante, seja nos mitos do tapir sedutor dos desanas, seja na cosmografia do Tapi’i Rape, que é o nome que os tupis-guaranis dão à nossa Via Láctea: o Tapi’i Rape é o grande mapa astronômico onde se observam as constelações ou asterismos (Lima, 2014Lima, Flávia Pedroza et al. “Relações céu-Terra entre os indígenas do Brasil: distintos céus, diferentes olhares”. In: Matsuura, Oscar T. (org.). História da astronomia no Brasil. Recife: Cepe, 2014, pp. 86-128.), os quais funcionam como grandes geocronolocalizadores, indicando os locais e o tempo correto de caçar, pescar, plantar e se mover no mundo. Entre os shipibos e os wuitotos, a anta está associada tanto à Via Láctea (que surge do golpe que a anta dá com os pés na “água do céu”) quanto ao papel de guardiã da Árvore do Mundo, a partir da qual todos os seres se organizam no tempo e no espaço (Roe, 1982Roe, Peter G. The Cosmic Zygote: Cosmology in the Amazon Basin. New Brunswick: Rutgers University Press, 1982.).

Em resumo, pode-se considerar que a decisão do narrador amigo da onça do conto “Tapiiraiauara”, de Rosa, é uma decisão cosmopolítica, uma vez que: 1) tenta resolver uma posição de conflito entre dois atores enclaustrados em suas respectivas idiotias (no sentido dado por Isabelle Stengers (2018Stengers, Isabelle. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, 2018, pp. 442-64.) de singularidade e estranheza de cada ator político em relação aos demais); 2) usa artifícios ou artimanhas diplomáticas para a resolução do conflito entre dois atores anta-gônicos; 3) leva em consideração a questão “ecossistêmica” do conflito, transcendendo a posição humanista clássica em defesa dos direitos dos animais; 4) não deixa de tomar partido, mas faz isso em nome de uma posição minoritária e indefesa, de uma posição subalterna; 5) ao tomar partido do subalterno, divide sua posição em dois flancos: de um lado, expõe a crise no humano (a guerra, a crueldade, o descaso com a vida alheia), ao passo que (se) aproxima intelectual e afetivamente (d)o animal e (d)o indígena; ou seja, ao aproximar o leitor, desde o título, à perspectiva indígena do tapir, realiza uma translação (uma negociação diplomática) que vai do tapir ao tupi. Finalmente, e talvez isso seja o mais importante, Guimarães Rosa traz o leitor para a discussão das cosmopolíticas envolvidas na caça e no sistema de predação. Sobre isso, vale dizer que não se trata de negar a caça e a predação, mas de saber quando e como caçar. Note-se o que ele diz no finalzinho do conto: “Embaixo, lá a anta soltara estridente longo grito - de ao se atirarem à água, o filhote e ela - de em salvo. Refez-se a tranquilidade” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 695). Resta saber - e foi para isso que atentamos na análise do conto, usando o contraste de teorias divergentes do nosso Modernismo - se também a obra de Guimarães Rosa não se encaminha sempre para uma negociação (diplomática) entre o cosmopolitismo antropofágico e o nacionalismo verde-amarelo, ou se, mais que uma negociação, ela não busca uma outra saída, que já não é apenas política, mas cosmopolítica.

Tanto o amigo da onça, que se converte em amigo da anta, quanto o leitor e o caçador cruel sabem que a “tranquilidade” final da anta é provisória, como é provisória a nossa crença de que podemos reverter o processo do Antropoceno, que se agrava mais ainda com o surgimento do neoconservadorismo de direita e de regimes autocráticos rebobinados. Porque sabemos, com Emily Dickinson, que a “paz é ficção da nossa fé”. A saída de Guimarães Rosa é acreditar na ficção e fazer com que ela funcione da melhor maneira, fazendo a passagem aqui do Homo faber para o Homo fabulator (Latour, 2013Latour, Bruno. Investigación sobre los modos de existencia. Trad. Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidós, 2013.). No final das contas, a imagem do ficcionista converge com a do amigo da onça/amigo da anta, que engana seu amigo com uma “maquinação”, a qual realiza “à mão de linguagem” para impedir o desfecho violento, o derramamento de sangue inocente: “Mas, que, então, algum azar o impedisse - Anhangá o transtornasse!” (Rosa, 1995Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 694). Anhangá, ou o diabo, o que desvia (“O Anhangão” de Grande sertão: veredas!); ou então o “anhanjo” (citado acima), o mensageiro sutil: diplomata, ou tradutor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Aguiar, Flávio. “Os romances de Plínio Salgado”. A terra é redonda. 16 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/os-romances-de-plinio-salgado/ >. Acesso em: 16/7/2023.
    » https://aterraeredonda.com.br/os-romances-de-plinio-salgado/
  • Almino, João. O homem de papel. Rio de Janeiro: Record, 2022.
  • Anzaldúa, Gloria. Borderlands/La frontera. São Francisco: Aunt Lute, 1987.
  • Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. Org. e trad. Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. Ed. crítica. São Paulo: Alameda, 2020.
  • Câmara Cascudo, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2002.
  • Carrières, Henri (org.). A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira: seleção de documentos diplomáticos (1964-1965), v. 2. Brasília: Funag, 2021.
  • Del Picchia, Menotti et al. “O actual momento literario” [“Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)]”. Correio Paulistano, ed. 23.555, 1929, p. 4.
  • Descola, Philippe. La nature domestique: symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de l’Homme/Fondation Singer-Polignac, 1986.
  • Descola, Philippe. Par délà la nature et la culture. Paris: Gallimard, 2005.
  • Dias, A. Gonçalves. O Brazil e a Oceania. Rio de Janeiro: Garnier, 1919.
  • Dickinson, Emily. Poesia completa, v. II: Folhas soltas e perdidas. Trad., intr. e notas Adalberto Müller. Brasília/Campinas: Ed. UnB/Ed. Unicamp, 2021.
  • “Entrevista: João Guimarães Rosa, por Lenice Guimarães de Paula Pitanguy”. Germina, ago. 2006. Disponível em: <Disponível em: https://www.germinaliteratura.com.br/pcruzadas_guimaraesrosa_ago2006.htm >. Acesso em: 30/3/2023.
    » https://www.germinaliteratura.com.br/pcruzadas_guimaraesrosa_ago2006.htm
  • Gama, Mônica F. Rodrigues. Plástico e contraditório rascunho: a autorrepresentação de João Guimarães Rosa. Tese (doutorado em letras). São Paulo: PPLB/FFLCH, 2013.
  • Giono, Jean. Regain. Paris: Grasset, 1930.
  • James, William. A Pluralistic Universe. Writings 1902-1910. Nova York: The Library of America, 1987.
  • Latour, Bruno. Investigación sobre los modos de existencia. Trad. Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidós, 2013.
  • Latour, Bruno. “Qual cosmos, quais cosmopolíticas? Comentário sobre as propostas de paz de Ulrich Beck”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 69, 2018, pp. 427-41.
  • Lima, Flávia Pedroza et al. “Relações céu-Terra entre os indígenas do Brasil: distintos céus, diferentes olhares”. In: Matsuura, Oscar T. (org.). História da astronomia no Brasil. Recife: Cepe, 2014, pp. 86-128.
  • Lispector, Clarice. “Amor”. In: Lispector, Clarice. Laços de família. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
  • Lispector, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
  • Llopis, Enric (2015). “El Vivir Bien indígena va más allá del capitalismo y el socialismo”, Rebelión, 13 nov. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://rebelion.org/el-vivir-bien-indigena-va-mas-alla-del-capitalismo-y-el-socialismo/ >. Acesso em: 30/6/2023.
    » https://rebelion.org/el-vivir-bien-indigena-va-mas-alla-del-capitalismo-y-el-socialismo/
  • Mainardi, Diogo. Lula é minha anta. Rio de Janeiro: Record, 2007.
  • Melville, Herman. Moby Dick. Londres: Richard Bentley, 1851.
  • Morais Silva, Antonio de. Grande dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1945.
  • Müller, Adalberto. “Tradução e perspectiva em Guimarães Rosa”. In: Müller, Adalberto. A imagem sob a imagem: ensaios sobre literatura & artes. Niterói: Eduff, 2022, pp. 123-41.
  • Mussa, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2008.
  • Ponge, Francis. Partido das coisas. Tradução, apresentação e notas de Adalberto Müller. Posfácio de Marcelo Jacques de Moraes. São Paulo: Iluminuras, 2022.
  • Prado, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda: os Dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo. São Paulo: Editora 34, 2010.
  • Roe, Peter G. The Cosmic Zygote: Cosmology in the Amazon Basin. New Brunswick: Rutgers University Press, 1982.
  • Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
  • Rosa, João Guimarães. “Meu tio, o Iauaretê”. Senhor, ano 3, n. 3, Rio de Janeiro, mar. 1961, pp. 64-79.
  • Rosa, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
  • Rosa, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
  • Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
  • Rosa, João Guimarães. Buriti. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
  • Rosa, João Guimarães. “Tapiiraiauara”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
  • Rocha, João Cezar de Castro. Bolsonarismo: Da guerra cultural ao terrorismo doméstico. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
  • Sampaio, Teodoro. O tupi na geografia nacional. 6. ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2010.
  • Saunier, Karine Aguiar de Sousa et al. “Tapyra’yawara: A ecomusicologia de uma dança dramática do rio Maués-Açu”. In: XXXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. 31., 2021. Anais… João Pessoa, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://anppom-congressos.org.br/index.php/31anppom/31CongrAnppom/paper/view/721/426 >. Acesso em: 10/7/2023.
    » https://anppom-congressos.org.br/index.php/31anppom/31CongrAnppom/paper/view/721/426
  • Stengers, Isabelle. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, 2018, pp. 442-64.
  • Sterzi, Eduardo. Saudades do mundo. São Paulo: Todavia, 2022.
  • Stradelli, Ermano. “Vocabularios da lingua geral portuguez-nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua”. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, t. 104, v. 158, 1929, pp. 9-768.
  • Van Vliet, Nathalie et al. “Bushmeat Networks Link the Forest to Urban Areas in the Trifrontier Region between Brazil, Colombia, and Peru”. Ecology and Society, v. 20, n. 3, 2015, pp. 21-6.
  • Verunschk, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • Viveiros de Castro, Eduardo. “A força de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da diferOnça”. Transcrição da palestra ministrada no IFCH/Unicamp. LS, 11 abr. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2018/04/23/a-forca-de-um-inferno-rosa-e-clarice-nas-paragens-da-diferonca-transcricao-da-palestra-de-eduardo-viveiros-de-castro-no-ifch-unicamp/ >. Acesso em: 10/7/2023.
    » https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2018/04/23/a-forca-de-um-inferno-rosa-e-clarice-nas-paragens-da-diferonca-transcricao-da-palestra-de-eduardo-viveiros-de-castro-no-ifch-unicamp/
  • Viveiros de Castro, Eduardo. “Os involuntários da Pátria”. Aracê: Direitos Humanos em Revista, ano 4, n. 5, 2017, pp. 187-93.
  • 1
    “A Paz é uma Ficção da nossa Fé —”. Mantive o travessão no fim do verso, uma vez que faz parte da singular pontuação de Emily Dickinson.
  • 2
    Remeto os leitores, após a leitura do texto de Benjamin que virá a seguir, às edições de 6 a 10 de outubro de 2020Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. Org. e trad. Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. Ed. crítica. São Paulo: Alameda, 2020. da Folha de S.Paulo, com notícias e fotos de um dos maiores incêndios do Pantanal.
  • 3
    Trata-se da edição crítica das “Teses” sobre o conceito de história. Essa versão da tese VII aparece num manuscrito enviado por Benjamin a Hannah Arendt pouco antes de sua morte trágica.
  • 4
    Embora não pareça, William James e Emily Dickinson tinham muito em comum, além de terem vivido geograficamente próximos no estado de Massachusetts, na primeira metade dos anos 1860 — época em que James também participa da expedição de Louis Agassiz à Amazônia, onde parece ter estudado, entre outras coisas, o idioma nheengatu.
  • 5
    As reflexões de Philippe Descola (2005Descola, Philippe. Par délà la nature et la culture. Paris: Gallimard, 2005.) me parecem relevantes para se pensar a relação entre caça, domesticação e alimentação do ponto de vista antropológico de uma “ecologia das relações”. O artigo de Nathalie van Vliet et al. (2015)Van Vliet, Nathalie et al. “Bushmeat Networks Link the Forest to Urban Areas in the Trifrontier Region between Brazil, Colombia, and Peru”. Ecology and Society, v. 20, n. 3, 2015, pp. 21-6. apresenta uma abordagem pragmática e descritiva da caça entre indígenas e não indígenas na Amazônia.
  • 6
    Sobre a presença de Rosa autor em sua obra, ver Mônica F. Rodrigues Gama (2013Gama, Mônica F. Rodrigues. Plástico e contraditório rascunho: a autorrepresentação de João Guimarães Rosa. Tese (doutorado em letras). São Paulo: PPLB/FFLCH, 2013.).
  • 7
    Essa é uma das poucas vezes que Rosa faz referências à Ásia. Em Tutaméia, há um conto interessantíssimo sobre um chinês, intitulado “Orientação”, que comento em um ensaio sobre o autor mineiro (Müller, 2022Müller, Adalberto. “Tradução e perspectiva em Guimarães Rosa”. In: Müller, Adalberto. A imagem sob a imagem: ensaios sobre literatura & artes. Niterói: Eduff, 2022, pp. 123-41.).
  • 8
    Curiosamente, o dicionário Morais (1945)Morais Silva, Antonio de. Grande dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1945. registra em anta : “adj. Interesseiro, esperto, aproveitador. Fingido, falso, mendaz”.
  • 9
    A entrevista concedida em 1961 à televisão alemã foi apresentada pela primeira vez no documentário Outro sertão, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela (2013).
  • 10
    Vale lembrar aqui o artigo pioneiro de Antonio Candido sobre Sagarana, no qual o crítico dizia que o livro vinha “cheio de terra” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 64), com um “sabor regional” que “transcende a região” (id.), pois criaria uma “experiência total em que o pitoresco e o exótico são animados pela graça do movimento interior em que se desfazem as relações do sujeito e objeto para ficar a obra de arte como integração total da experiência” (ibid., p. 65). Tratava-se, é claro, para Candido, de distinguir Rosa tanto do nacionalismo exacerbado do Estado Novo quanto de um regionalismo mais “provinciano” (Candido cita Gilberto Freyre, que, aliás, em 1926 publicara um Manifesto Regionalista). Candido também anotava, em outro momento, que a “região” em Rosa deixa “de ser, para ele, a simples localização da história” e passa a ser “a verdadeira personagem” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 66). O saldo da crítica de Candido é conhecido: trata-se de exaltar a “fatura” da obra de arte literária em relação dialética com o meio social e histórico onde ela surge.
  • 11
    Há muitas posições políticas recentes que aderem a perspectivas cosmopolíticas similares às dos autores citados. Para o nosso caso específico, talvez fosse bom lembrar as ideias de “vivir bien” e “cosmoser” do ex-ministro de Relações Exteriores e atual vice-presidente da Bolívia, David Choquehuanca. Para uma rápida introdução à sua atuação e conceitos, veja-se o artigo de Enric Llopis (2015Llopis, Enric (2015). “El Vivir Bien indígena va más allá del capitalismo y el socialismo”, Rebelión, 13 nov. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://rebelion.org/el-vivir-bien-indigena-va-mas-alla-del-capitalismo-y-el-socialismo/ >. Acesso em: 30/6/2023.
    https://rebelion.org/el-vivir-bien-indig...
    ).
  • 12
    Em “Tradução e perspectiva em Guimarães Rosa”, vemos como o “tradutor” e o “diplomata” atuaram sempre na ficção de Rosa, na medida em que ele vai introduzindo perspectivas múltiplas em suas narrativas, muitas das quais ultrapassam a fronteira do humano. Ao mesmo tempo, a linguagem vai sendo afetada por esse perspectivismo, e, no caso do Iauaretê, é a linguagem do indígena e da onça que vêm à tona (Müller, 2022Müller, Adalberto. “Tradução e perspectiva em Guimarães Rosa”. In: Müller, Adalberto. A imagem sob a imagem: ensaios sobre literatura & artes. Niterói: Eduff, 2022, pp. 123-41.).
  • 13
    Apenas para mencionar alguns títulos recentes, além de “Meu tio, o Iauaretê” (Rosa, 1969Rosa, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.) e suas numerosas exegeses críticas, vale lembrar Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa (2008Mussa, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2008.); a conferência de Eduardo Viveiros de Castro, “A força de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da diferOnça” (2013Viveiros de Castro, Eduardo. “A força de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da diferOnça”. Transcrição da palestra ministrada no IFCH/Unicamp. LS, 11 abr. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2018/04/23/a-forca-de-um-inferno-rosa-e-clarice-nas-paragens-da-diferonca-transcricao-da-palestra-de-eduardo-viveiros-de-castro-no-ifch-unicamp/ >. Acesso em: 10/7/2023.
    https://laboratoriodesensibilidades.word...
    ), que se desdobrou em ensaios e comentários; e o recente e premiado O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk (2021Verunschk, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). Não se pode menosprezar também a importância das personagens-onça Maria Marruá e Juma nas duas versões da novela Pantanal, de 1990 (TV Manchete) e 2022 (TV Globo).
  • 14
    Esse título do manifesto é posterior. Na publicação original, que tem por título “O atual momento literário”, há apenas uma breve apresentação jornalística antecedendo o que é chamado de “orientação do grupo verde-amarelo” (Del Picchia et al., 1929Del Picchia, Menotti et al. “O actual momento literario” [“Nhengaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta)]”. Correio Paulistano, ed. 23.555, 1929, p. 4.).
  • 15
    Em “Os romances de Plínio Salgado” (2020)Aguiar, Flávio. “Os romances de Plínio Salgado”. A terra é redonda. 16 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/os-romances-de-plinio-salgado/ >. Acesso em: 16/7/2023.
    https://aterraeredonda.com.br/os-romance...
    , Flávio Aguiar fez um bom resumo da relação entre a literatura de Salgado e o Estado Novo. Para uma análise aprofundada do MBL, do Bolsonarismo e suas matrizes ver Rocha (2023Rocha, João Cezar de Castro. Bolsonarismo: Da guerra cultural ao terrorismo doméstico. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.).
  • 16
    Dias faz uma diferenciação linguística entre dois grandes grupos de indígenas no Brasil, o que viria a ser confirmado com a separação etnolinguística dos grupos tupi e macro-jê (além de outros).
  • 17
    Numa linha muito menos sutil de raciocínio, Diogo Mainardi usou a anta de forma depreciativa para vituperar de forma obsessiva e infundada o governo Lula em Lula é minha anta (2007)Mainardi, Diogo. Lula é minha anta. Rio de Janeiro: Record, 2007., reunião de crônicas publicadas na revista Veja, a qual, sabemos, fazia e faz oposição ao governo do PT.
  • 18
    Seria então possível ver, numa tradução de “tapiiraiauara” por tapironça, uma efígie do próprio narrador (e quiçá do autor).
  • 19
    Eduardo Sterzi (2022Sterzi, Eduardo. Saudades do mundo. São Paulo: Todavia, 2022., pp. 136- -ss.) defende a ideia de que o uso das línguas indígenas em “Meu tio, o Iauaretê” (Rosa, 1969Rosa, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.) e outros textos, como “Uns índios (suas falas)” (Rosa, 1970)Rosa, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970., indica uma necessária fragmentação de línguas que nunca apontam para uma totalidade identitária (como o tupi de Policarpo Quaresma), mas para o “gaguejo”, o rastro apenas da língua subalterna e reprimida que quer falar. Pode ser, mas, a meu ver, isso não impede que se observe uma sistematização na fatura, o que só é possível se de fato nos aproximamos das línguas tupi-guarani o suficiente para entender quanto seu uso não é aleatório e fragmentado (e muito menos um gaguejo), mas é antes fruto de um estudo dedicado, aliado a uma criatividade incomum.
  • 20
    Um livro que certamente não terá faltado aos estudos de “gramática tupi” a que se refere o autor na carta supracitada, e sobretudo na escrita de “O recado do morro” (Rosa, 1994Rosa, João Guimarães. Tutaméia. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.), é a obra singularíssima de Teodoro Sampaio, O tupi na geografia nacional (2010 [1901]Sampaio, Teodoro. O tupi na geografia nacional. 6. ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2010.).
  • 21
    O sentido indígena da palavra não é o mesmo do demônio cristão, mas, sim, de sombras que andam na floresta e podem ser até mesmo de animais. A palavra é formada de ang- (alma, sombra) e da raiz -nha-, que tanto forma “correr” quanto “mal/mau” (ver o termo guarani atual ñaña).
  • 22
    As três aparições de antas nessa novela ou elas irrompem de forma violenta, ou são associadas ao perigo.
  • 23
    Desenvolvo essa tese no livro inédito A cosmopoética guarani-mbyá: o Ayvu Rapyta, em fase de preparação editorial.
  • 24
    Ao falar da relação entre floresta e cultura, aqui, refiro-me à constatação de Philippe Descola (1986Descola, Philippe. La nature domestique: symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de l’Homme/Fondation Singer-Polignac, 1986.) sobre a Amazônia e os povos que nela habitam. Para o antropólogo, onde vemos a “natureza” da floresta, os povos amazônicos veem antes a cultura, uma vez que a floresta, segundo dizem os estudos de etnobotânica, não nasceu naturalmente, mas é fruto da interação entre as espécies, inclusive a humana.

Editado por

Editor responsável: Fernando Bee.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2023
  • Aceito
    04 Jul 2023
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br