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Uma formalização da mão invisível

Resumos

No artigo, busca-se reconstruir a noção de mão invisível da Economia Política Clássica e, em particular, de Adam Smith, a fim de demarcar seu significado, conceitual e formalmente. No presente texto, entretanto, o conceito não designa a coordenação ótima dos planos de agentes mercantis dotados de racionalidade perfeita, mas sim o processo de auto-organização inerente à concorrência de capitais. Após uma seção inicial em que se discute o conceito historicamente, constrói-se um modelo orientado temporalmente, o qual imediatamente reclama uma explicitação da dinâmica da mobilidade do capital que ocorre ante as variações das taxas de lucros setoriais. A formalização da mão invisível é feita, então, com base na chamada dinâmica de replicação, construída originalmente, no campo da biologia matemática, para mostrar o processo de reprodução e competição de certas espécies animais.

mão invisível; dinâmica de replicação; concorrência de capitais; auto-organização mercantil


In this paper, I intend to reconstruct the invisible hand notion created by Classical Political Economy and, in special, by Adam Smith, in order to circumscribe its significance, conceptually and formally. In the text, meanwhile, this concept do not designate the best coordination of agents plans, all of them endowed with perfect rationality, but the self-organization process inherent to the competition of capitals. After a section where this concept is discussed historically, I construct a time oriented model that requires, immediately, a formalization of capital mobility process which occurs in face of profit variations in the productive sectors. Then, the required formalization is done applying the so called replication dynamics that were constructed in the field of mathematic biology to represent the reproduction and competition process of certain animals' species.

invisible hand; replication dynamics; competition of capitals; market self-organization


Uma formalização da mão invisível

Eleutério F. S. Prado

Professor da USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Sítio do autor: http://www.econ.fea.usp.br/eleuterio/. Endereço para contato: FEA-USP - Av. Prof. Luciano Gualberto, 908. São Paulo - SP - CEP 05508-010

JEL Classification: B41, D59

RESUMO

No artigo, busca-se reconstruir a noção de mão invisível da Economia Política Clássica e, em particular, de Adam Smith, a fim de demarcar seu significado, conceitual e formalmente. No presente texto, entretanto, o conceito não designa a coordenação ótima dos planos de agentes mercantis dotados de racionalidade perfeita, mas sim o processo de auto-organização inerente à concorrência de capitais. Após uma seção inicial em que se discute o conceito historicamente, constrói-se um modelo orientado temporalmente, o qual imediatamente reclama uma explicitação da dinâmica da mobilidade do capital que ocorre ante as variações das taxas de lucros setoriais. A formalização da mão invisível é feita, então, com base na chamada dinâmica de replicação, construída originalmente, no campo da biologia matemática, para mostrar o processo de reprodução e competição de certas espécies animais.

Palavras-chave: mão invisível, dinâmica de replicação, concorrência de capitais, auto-organização mercantil

ABSTRACT

In this paper, I intend to reconstruct the invisible hand notion created by Classical Political Economy and, in special, by Adam Smith, in order to circumscribe its significance, conceptually and formally. In the text, meanwhile, this concept do not designate the best coordination of agents plans, all of them endowed with perfect rationality, but the self-organization process inherent to the competition of capitals. After a section where this concept is discussed historically, I construct a time oriented model that requires, immediately, a formalization of capital mobility process which occurs in face of profit variations in the productive sectors. Then, the required formalization is done applying the so called replication dynamics that were constructed in the field of mathematic biology to represent the reproduction and competition process of certain animals' species.

Key words: invisible hand, replication dynamics, competition of capitals, market self-organization

INTRODUÇÃO

Examina-se, aqui, uma vez mais, o argumento da mão invisível1 1 Este artigo de certo modo complementa um artigo anterior em que se busca fazer uma crítica à crítica de Elster ao emprego da noção de mão invisível na Economia Clássica e em Marx. (Prado, 1993). - não apenas com o objetivo de discuti-la conceitualmente, mas com o fim precípuo de formalizá-la. Ainda que esse conceito metodológico tenha recebido sua certidão de batismo em A Riqueza das Nações, e esteja, por isso, fortemente ligado a essa grande obra científica, aqui ele é compreendido como fundamental tanto para a Economia Política Clássica e sua crítica como para a ciência econômica atual. Admite-se, pois, que se trata de um conceito absolutamente necessário para uma boa compreensão dos processos econômicos reais que ocorrem na economia capitalista, os quais são processos de auto-organização orientados no tempo e que têm um caráter evolucionário. Dado que se afigura, entretanto, como uma noção enredada numa permanente controvérsia, em face de sua importância na batalha metodológica referente ao correto modo de entendimento do sistema econômico capitalista, passa a exigir um exame de contorno por meio das técnicas de formalização. Assim, essa noção poderá adquirir uma figura mais precisa e mais bem delimitada - algo necessário e preliminar para o bom desenvolvimento de um projeto teórico mais audacioso, a reconstrução da teoria clássica como um sistema adaptativo complexo.

Opta-se neste artigo por construir uma argumentação com base em O Capital, pois se acredita que apenas nesse texto genialmente interminável se pode encontrar um contexto teórico rigoroso para a análise de aspectos importantes do capitalismo. Entretanto, o exercício que se segue não é - e não quer ser entendido como se fosse - um fragmento de discurso que poderia se inserir na apresentação dialética que se encontra nessa obra, pois vem a ser, isto sim, um momento de identificação, meramente analítico, de uma característica central desse modo de produção. O exercício aqui feito segue, consciente e diligentemente, os cânones do entendimento.

Se a dialética é a racionalidade que se funda na negação, na supressão das determinações finitas, para apreender no discurso o automovimento do conceito, o entendimento é a racionalidade baseada na positivação, na fixação abstrata do existente, a qual se afirma por estabelecer sempre relações entre universais e particulares, entre causas e efeitos, entre ações e suas finalidades etc.2 2 Diz Hegel do entendimento que ele se distingue por estabelecer " relações necessárias entre determinações isoladas da representação" e por manter-se " na determinação rígida e na diferença desta em relação com outras diferenças - abstração que é considerada por ele como subsistente e existente por si." Já da razão dialética, ele diz que tem, primeiro, um momento negativo no qual ocorre " a auto-supressão destas determinações finitas e sua transição para seu contrário" e, depois, que possui um " o momento positivo-racional que apreende a unidade das determinações em sua oposição." (Hegel, 1969, p. 124-129). O trabalho do entendimento na ciência em geral caracteriza-se pelo uso extensivo da matemática e pela construção de modelos, ou seja, por constituir um saber que se satisfaz em estabelecer os nexos aparentes entre os fenômenos sem investigar os nexos essenciais e internos que os expõem como elementos de um todo.

O estudo do conceito de mão invisível neste artigo começa com uma retomada dos argumentos centrais de Adam Smith e Marx. O primeiro autor, como se sabe, formulou-o de modo clássico em A Riqueza das Nações. Já o segundo autor, especialmente em O Capital, não apenas contribuiu para seu desenvolvimento num momento crucial da constituição da Economia Política como ciência, como também foi capaz de delimitá-lo mais rigorosamente. A retomada é feita sob a luz de certas precisões analíticas desenvolvidas por John Elster. Contudo, ao absorvê-las como elementos que vão compor o teor deste artigo, argumenta-se em parte contra elas, modificando-as de um modo capital.

Havendo separado a noção de mão invisível de sua contextura funcionalista, na seção seguinte, constrói-se um modelo dinâmico da economia capitalista como um todo, no espírito da Economia Clássica, mas com os recursos formais da Economia Contemporânea. Ao fazê-lo, põe-se claramente o problema da causação circular entre o investimento e a taxa de lucro, o qual passa então a reclamar uma solução teórica. Na seção 2, buscando resolver esse problema que surge da natureza da concorrência dos capitais, formaliza-se o elemento central do processo da mão invisível como retroação sistêmica, com base nas assim chamadas dinâmicas de replicação.3 3 Depois que este artigo estava pronto, e mesmo aprovado para a publicação, foi notada a seguinte tese do renomado biólogo Stephen Jay Gould. " De fato, gostaria de adiantar uma tese mais forte segundo a qual a teoria da seleção natural é, em essência, a teoria econômica de Smith transferida para a natureza [...] Os organismos individuais empenhados na 'luta pela existência' agem de modo análogo às empresas na competição. O sucesso reprodutivo torna-se semelhante ao lucro - pois, ainda mais do que na economia do homem, não se pode verdadeiramente conservá-lo na natureza." (Gould, 2002, p. 122-123). Finalmente, na seção 3 faz-se um balanço das possibilidades de simulação do modelo tendo por referência a questão da estabilidade.

1. MÃO INVISÍVEL: SMITH E MARX

Adam Smith, como se sabe, considera a esfera econômica como uma ordem natural - não, portanto, como uma ordem moral - cujo funcionamento está baseado em ações de indivíduos dispersos e heterogêneos, mas organizados. Esses indivíduos buscam os próprios interesses privados, agem egoisticamente, e são guiados pela racionalidade instrumental, ou seja, pelo uso adequado de meios para a obtenção de fins não necessariamente justificáveis de um ponto de vista moral.4 4 Ver sobre isso Cerqueira (2005). Dito de outro modo, essa ordem não é baseada na benevolência, mas, ao contrário, funda-se no individualismo ganancioso e possessivo. Entretanto, ela funciona, se expande e gratifica a sociedade, pois se encontra coordenada anonimamente por um "mecanismo" que ele chama de mão invisível:

"(...) já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar o seu capital em fomentar a atividade (...) e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo (...) [Ao empregar o seu capital] ele tem em vista apenas sua própria segurança; ao orientar sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios objetivos, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quanto tenciona realmente promovê-lo." (Smith, 1983, p. 379).

Esta argumentação de Adam Smith é considerada algumas vezes como uma explanação funcionalista, já que supostamente explica a busca individual do lucro por suas conseqüências globais, ou seja, pelo aumento da renda da sociedade como um todo. Nessa perspectiva, a argumentação de Smith diz que as ações dos capitalistas individuais são postas como tais por seus resultados sistêmicos. O funcionalismo, como se sabe, absorve e integra o indivíduo na totalidade social, transformando-o meramente em função. Segundo o cânone da explanação funcionalista que se segue dessa ontologia social conservadora, sempre que um fenômeno tem conseqüências benéficas, não intencionadas e não reconhecidas como tais, ele pode ser explicado por essas conseqüências. (Elster, 1983, p. 57). Ora, encaixa-se a argumentação de Smith nesse padrão de explanação? É preciso duvidar, ainda que certa semente funcionalista esteja de fato presente no argumento de Smith.

Segundo Elster, uma boa explanação funcionalista (identificada por ele à explanação de mão invisível) pode ser assim formalizada: o fenômeno X é explicado por sua função Y, com referência ao grupo Z, se e somente se as seguintes condições são válidas: a) Y é um efeito de X; 2) Y é benéfico para Z; 3) Y não é resultado intencional da ação que produz X; 4) Y não é reconhecido pelos atores que compõem Z; 5) Y mantém X por meio de um processo de realimentação causal que passa por Z. (Elster, 1985, p. 57).

Conforma-se, entretanto, o argumento de Smith inteiramente a esse padrão de explanação? Para sabê-lo, basta identificar X com a busca do lucro, Y com o crescimento da renda e Z com a sociedade como um todo, fazendo depois as devidas substituições no esquema apresentado. As quatro primeiras condições afiguram-se, então, plenamente satisfeitas pelo argumento de Smith, mas, segundo Elster, isto não ocorre com a quinta delas. Smith não teria explicitado ou demonstrado o processo de realimentação segundo o qual a busca do lucro seria gerada e mantida pelo crescimento econômico. Assim, Smith não teria apresentado uma boa explanação funcionalista, já que estaria faltando em seu argumento o processo evolucionário que faz a ligação entre as ações microeconômicas com o do comportamento macrossocial.

No entanto, toda essa interpretação é controversa e mesmo duvidosa, já que Adam Smith é um filósofo moral cuja orientação teórica mostra-se marcadamente individualista. Eis que em A Riqueza das Nações, por isso mesmo, a condição de capitalista não se confunde com a de indivíduo, mas vem a ser apenas uma determinação posicional do indivíduo no sistema econômico. É justo registrar aqui, também, que o argumento de Smith pode ser considerado como um juízo de justificação. Como se sabe, a busca do lucro, para esse autor, está fundada na própria natureza do indivíduo, mas vem a ser uma motivação menor cuja desinibição na sociedade não se justifica por si mesma. É o "sistema da liberdade natural" que o faz, pois ele é visto como capaz de aproveitar essa motivação má e egoísta dos indivíduos para gerar um resultado socialmente benéfico para eles próprios enquanto pessoas morais.

A referida falta de fechamento do argumento também pode ser seriamente questionada. A Riqueza das Nações é um livro muito rico e complexo, e nele podem ser encontrados elementos que fornecem uma fundamentação microeconômica precisa do comportamento sistêmico denominado de mão invisível. Aqui se vai por esse caminho e se prefere pensar que este pensador clássico foi o primeiro a chegar a uma boa explanação científica acerca da concorrência capitalista e a explicitar com grande profundidade a sua capacidade inerente de aprisionar e mobilizar os indivíduos ao seu irresistível modo de operação. Neste caminho se separa a explanação de mão invisível da explanação funcionalista.

De qualquer modo, aqui se foca principalmente o esquema de causalidade contido na argumentação do iluminista escocês. Defende-se aqui a idéia de que esse esquema contém elementos essenciais para uma correta explanação dos funcionamentos do sistema econômico capitalista. Para apreciar o seu valor científico é preciso explorá-lo mais a partir crítica que sofreu da parte de Marx. Assim, pode-se purgá-lo dos elementos apologéticos, ficando com a base científica que é bem resistente.

" A dependência recíproca se expressa na necessidade constante da troca e no valor de troca com a mediação de tudo. Os economistas expressam isso como segue: cada um persegue o seu interesse privado; e por esse meio favorece o interesse privado de todos, o interesse geral, sem mesmo desejá-lo ou sabê-lo. A questão real não é que cada indivíduo, perseguindo o seu interesse privado, promove a totalidade dos interesses privados, o interesse geral. Igualmente, é possível deduzir dessa frase abstrata que cada indivíduo bloqueia reciprocamente a afirmação do interesse de todos os outros, de modo que, ao invés de uma afirmação geral, a guerra de todos contra todos produz uma negação geral. Mais propriamente, a questão é que o interesse privado é ele mesmo já um interesse socialmente determinado, o qual somente pode ser efetivado dentro das condições estabelecidas pela sociedade e com os meios providos pela sociedade; e que por isso está constrangido pela reprodução dessas condições e meios. É interesse de pessoas privadas; mas o seu conteúdo, assim como sua forma e meio de realização, é dado pelas condições sociais independentes de todos." Marx, 1973, p. 156).

É evidente na leitura deste trecho que Marx critica o elemento justificante na argumentação de Smith, pois a busca do interesse privado pode originar não só o crescimento, mas também a crise econômica. Eis que o resultado não intencionado da busca do lucro pode ser benéfico ou maléfico para a sociedade como um todo, além de incidir diferencialmente sobre as partes componentes dessa sociedade. Ademais, há aí neste trecho uma negação explícita de que a busca do lucro possa ser explicada pela sua conseqüência não intencionada e não reconhecida, ou seja, pelo crescimento da renda da sociedade. A origem da busca do lucro, ele a encontra na própria sociabilidade capitalista, ou seja, na relação de capital que estrutura o modo de produção e que põe a sociedade, em sua unidade, como uma sociedade atravessada pela contradição entre capitalistas e trabalhadores. Marx não cai no funcionalismo, não totaliza o sistema enquanto tal, não integra plenamente o homem no sistema e não faz a apologia deste sistema, ainda que, para ele, o capitalismo seja essencialmente uma forma de sociabilidade estruturada por relações e interversões que se reproduzem com grande inércia.

De qualquer modo, o argumento da mão invisível precisa ser recuperado. Na verdade, precisa ser simplesmente encarado como uma expressão metafórica para a concorrência capitalista e para o modo como esta concorrência coopta, de uma maneira quase irresistível, as ações dos capitalistas e dos trabalhadores, pois, como diz Smith, "todo indivíduo emprenha-se continuamente em descobrir a aplicação mais vantajosa de todo o capital que possui... [procurando] a própria vantagem, e não a da sociedade." (Smith, 1983, p. 378). Na luta pela sobrevivência, os capitalistas buscam obter o máximo lucro possível, e os segundos, sem grandes alternativas, procuram vender no mercado a sua força de trabalho.

Ficando apenas com a base científica do argumento, considere-se a seguinte forma alternativa para a explanação da mão invisível: X explica Y como um fenômeno emergente. Dado X, Y retroage sobre X por meio de sua influência no grupo Z. Configura-se uma explanação de mão invisível se e somente se as seguintes condições são válidas: a) Y é um efeito de X; 2) Y é benéfico ou maléfico para Z; 3) Y não é resultado intencional da ação X; 4) Y não é reconhecido pelos atores que compõem Z; 5) Y modifica X por meio de um processo de realimentação causal que passa por Z.

Para interpretar essa forma, assuma-se que X representa a busca do maior lucro possível, Y indica a taxa de lucro observada pelo capitalista individual; sejam Z os capitais particulares representados pelos capitalistas que os possuem. Fazendo abstração da mediação das finanças na alocação de capital, é preciso tratar os capitalistas como um bloco de suportes que tem de tomar duas decisões interligadas de investimento, as quais ocorrem de modo descentralizado: de um lado, têm de decidir quanto capital investem em cada momento do tempo; de outro, têm de escolher quanto aplicam em cada setor da economia. Esse montante e sua repartição em cada momento do tempo, dos quais resultam as condições do sistema econômico no momento seguinte, são assim explicados pelas taxas observadas de lucro no momento anterior.

Se os capitalistas, por meio de suas ações gananciosas, fazem emergir, sem intenção e sem reconhecimento, nos diversos níveis setoriais e no nível do sistema como um todo, determinadas taxas e massas de lucros, estes resultados se refletem, no momento seguinte, no próprio comportamento microeconômico dos próprios capitalistas. E isto ocorre porque eles visam somente o lucro de suas empresas, procurando comparar a lucratividade que obtêm, e que podem eventualmente obter, com a lucratividade em geral. A decisão de cada capitalista é prospectiva, local e interessada no próprio negócio, ainda que tenha um olho nos sinais que vêm do mercado setorial em que o capitalista compete, assim como no comportamento da economia como um todo.

Desse modo, tem-se uma explanação evolucionária de mão invisível que se distingue de uma explanação funcionalista, pois esta última não é mais do que uma modalidade de lógica situacional que toma um determinado estado da sociedade como um dado e que justifica o seu vir a ser apelando para um processo evolucionário vago. A primeira, ao contrário, está inerentemente centrada no processo de desenvolvimento e de mudança. A identificação, entretanto, entre essas duas formas de explanação vem a ser feita sempre que se abstrai a flecha do tempo na análise da sociedade, que se compreendem as decisões como se elas não tivessem um passado e que se toma o sistema como uma realidade meramente fixada e positiva - não em processo de mudança.

De um modo geral, toda essa interpretação é endossada por Foley. Em A Riqueza das Nações, ele lê que os proprietários maximizam o próprio lucro movendo constantemente o seu capital para os ramos de produção mais lucrativos. Ao fazê-lo, produzem, em conjunto e sem intenção, uma tendência à equalização das taxas de lucro entre os diferentes ramos de produção. Essa equalização, Smith a vê também uma condição para a maximização da taxa de lucro geral do capital nacional, o que promove a riqueza da nação. As concepções desse grande pensador, no entanto, não se conformam ao paradigma da "economia de equilíbrio":

"Smith e os economistas políticos clássicos que o seguiram não acreditavam que este processo competitivo gerasse efetivamente a equalização dos lucros realizados ou prospectivos em qualquer momento do tempo. O movimento do capital de um ramo da produção para outro deteriora as condições de lucratividade de outros ramos, e isto, junto com as perturbações sofridas pela economia nacional, impede que o estado de igualação das taxas de lucro seja alcançado. Eles viam uma incessante flutuação dos preços e das taxas de lucro como um resultado do processo competitivo... Entretanto, este conceito de estado de equilíbrio (o qual passou a ser chamado de equilíbrio de longo período) mantém ainda um papel natural e importante na análise da economia real. A dinâmica competitiva, mesmo se não é estável no sentido matemático, pois o sistema não é atraído para o estado caracterizado pela equalização das taxas de lucros, impede que os preços e essas taxas oscilem, indefinidamente, muito distantes dos seus valores de equilíbrio. Esta idéia era expressa argumentando que os preços de mercado observados tendem a gravitar em torno dos preços naturais nos quais as taxas de lucro se igualam." (Foley, 2003, p. 4).

Modelo de Três Setores

Para formalizar, na seção seguinte, o argumento da mão invisível é preciso construir nesta um modelo da economia capitalista como um todo. Para tanto, considere-se de início o circuito do capital monetário com as suas três metamorfoses.

Nesse circuito, D designa a forma dinheiro, M indica a forma mercadoria (MP responde pelos meios de produção, FT responde pela força de trabalho), e P assinala a transformação dos meios de produção em nova mercadoria, ou seja, a produção mercantil - que é, como se sabe, no aspecto material, obra da natureza e do trabalho concreto, e no aspecto social, obra do trabalho social ou do trabalho humano abstrato. A primeira metamorfose corresponde à mudança de forma do dinheiro em mercadoria (D - M), a segunda metamorfose ocorre na produção (M... P...M') e a terceira metamorfose vem a ser a conversão da nova mercadoria em dinheiro (M' - D'). A primeira metamorfose corresponde ao momento do investimento, a segunda ocorre no momento da produção e a terceira completa-se no momento da comercialização da mercadoria recém-produzida.

O circuito apresentado está datado, já que o modelo a ser construído é evolucionário. Em caso de reprodução simples, tem-se que Dt+1 = Dt, qualquer que seja o momento do tempo considerado. Em caso de reprodução ampliada, tem-se que Dt+1 > Dt em cada um dos momentos da seqüência de tempo considerada; no caso particular em que todo o valor produzido num certo período for realizado nesse mesmo período, sendo, depois, investido no momento seguinte, tem-se que Dt+1 = D't . Caso ocorram flutuações macroeconômicas no sistema econômico (o que não é objeto de estudo deste texto), o investimento monetário total poderá aumentar ou diminuir de um momento para o outro, no curso do processo evolucionário.

No circuito do capital monetário é preciso considerar, de início, o momento do capital produtivo (M... P... M') que começa após a compra de meios de produção (MP) e da contratação de força de trabalho (FT) e que termina com a produção de novas mercadorias (M'). É, como se sabe, nesse momento do metabolismo do capital que o valor já existente nos meios de produção é transferido para o valor do produto, assim como é gerado um novo valor, o qual se reparte em reposição do valor da força de trabalho e geração de mais-valia.

Para que o que vem a seguir é suficiente pensar abstratamente a produção capitalista por meio da consideração de apenas três setores produtivos. No primeiro, designado pelo subíndice 1, é produzida a mercadoria que atua como meio de produção; no segundo setor, indicado pelo subíndice 2, é produzida a mercadoria que vem a ser vendida aos trabalhadores e aos próprios capitalistas como bem de consumo; finalmente, no terceiro setor, indicado pelo subíndice 3, é produzida a mercadoria ouro que funciona como dinheiro, que é acumulada como tesouro pelos proprietários dos meios de produção e que, ao mesmo tempo, é um bem de luxo.

A produção, em seu aspecto material, está indicada por meio das seguintes atividades de transformação:

(a11, l1) ® 11 (a12, l2) ® 12 (a13, l3) ® 13

Nessas transformações, a11, a12 e a13 respondem pelos coeficientes de insumo-produto, ou seja, pelas quantidades de meio de produção necessárias para produzir uma unidade de 1, 2 e 3, respectivamente. Aí, os li são os coeficientes de trabalho por unidade de produto, indicadas, por sua vez, por 1i , onde i = 1, 2 ou 3. Assumem-se, pois, coeficientes fixos; mas se o faz é porque isto é suficiente para o exercício levado a efeito no artigo e não porque esta seja uma premissa da Economia Clássica ou da obra econômica de Smith e de Marx.

A formação de preços de produção no momento "t" está representada, de modo usual, por um sistema de equações:

Os preços das mercadorias 1, 2 e 3, no período "t", são designados, sucessivamente, por p1,t, p2,t e p3,t . Note-se, então, que ali p1,t-1 (i = 1, 2, 3) representa o capital constante investido no período "t" para produzir uma unidade da mercadoria "i". O conteúdo material do capital constante foi produzido no período imediatamente anterior ou, eventualmente, em períodos anteriores, mas ele é sempre avaliado ao preço do período anterior. O salário real da força de trabalho contratada, pago por unidade de tempo de trabalho dedicado à produção, é e ele está medido em bem de consumo. A disponibilidade desse bem se deve ao fato de que foi produzido em períodos anteriores, mas ele é apreçado sempre em valor monetário do período anterior. Além do salário real constante, supõe-se também, para não complicar em demasia o modelo, que a mobilidade da força de trabalho é perfeita. Para simplificar ainda, não se considera a existência de estoques de meio de produção, os quais teriam sido comprados, mas não teriam sido imediatamente empregados na produção. Note-se, então, que representa o capital variável investido no período "t" em cada um dos três setores, por unidade de produto. Como os ri,t são as taxas de lucro setoriais, os valores representam os montantes de lucros apropriados em cada um dos setores, por unidade de produto.

Como no setor 3 é produzido o material do dinheiro, faz-se necessário fixar uma unidade de ouro como padrão monetário nessa economia abstrata. Formalmente, então, p3,t = 1 em todos os momentos do tempo.

Considera-se, de modo geral, que o sistema econômico está em processo de reprodução ampliada, já que é nessa situação que se insere o argumento da mão invisível de Adam Smith. Admite-se, então, que há um montante de investimento que é aplicado na produção mercantil como um todo, ou seja, It. Tendo por referência o circuito do capital monetário, sabe-se então que It = Dt em todos os momentos. O capital total dessa economia capitalista tem, pois, de ser repartido entre os três setores, de tal modo que a sua própria reprodução ocorra possivelmente em escala ampliada. Há em cada setor uma coleção de capitais particulares e cada um deles pode, em princípio, ser aplicado em qualquer um dos três setores, dependendo da lucratividade esperada. Sejam ¦1,t, ¦2,t e ¦3,t as frações do capital-dinheiro total investidas, respectivamente, nos setores 1, 2 e 3, seja como capital constante, seja como capital variável, de tal modo a viabilizar a produção em cada momento "t". Obviamente, ¦1,t, ¦2,t e ¦3,t = 1.

Supõe-se aqui que cada uma dessas frações é função de si mesma no período anterior, assim como de cada uma das taxas de lucros setoriais observadas nesse mesmo período. Admite-se, pois, que há um processo de ajuste que regula o montante investido em cada setor e que ele depende da repartição passada do investimento, assim como dos retornos obtidos por estes investimentos nos três setores que compõem a economia. Assim, pode-se escrever genericamente:

¦i,t+1 = F ( ¦i,t, r1,t, r2,t e r3,t)

Até aqui, esse processo de ajuste não foi especificado, mas ele já pode ser compreendido como um circuito de realimentação que torna os resultados das ações econômicas de investimento uma espécie de causa dessas próprias ações. Já aqui se pode perceber também que a especificação desse processo de ajuste consiste em dar uma forma precisa ao modo de causação evolucionário conhecido pelo nome de mão invisível. Antes de apresentá-lo explicitamente, porém, é preciso completar o modelo.

Havendo calculado as frações setoriais do investimento, é então possível obter as quantidades que serão produzidas no período "t" para os setores i = 1, 2 e 3.

Na economia considerada são mantidos estoques de mercadorias prontas aguardando o momento de serem vendidas. Em conseqüência, há aí mercadorias que são mantidas fora da circulação durante certo período de tempo, o que requer o investimento de certo montante de capital comercial, o qual costuma flutuar dentro de determinados limites. A consideração explícita desse capital exigiria a adição de um setor ao modelo, o qual se apropriaria de uma parte do lucro gerado nos setores produtivos. Como isto complicaria a construção, sem adicionar um novo elemento à análise, far-se-á, por simplicidade, abstração desse capital.

Para fechar o modelo, é preciso agora supor a existência de uma demanda de bens de consumo por parte dos capitalistas, indicada como D2,t. Dada essa demanda, é possível calcular os estoques mantidos na produção na forma de capital-mercadoria (mercadorias 1 e 2) ou na forma de tesouro (mercadoria ouro).

A demanda de bens de consumo por parte dos trabalhadores é exógena à produção, já que ela é um dispêndio necessário para a reprodução do próprio sistema produtivo do capital. Mas a demanda de bens de consumo dos capitalistas vem a ser endógena. Supõe-se, então, que é, no momento "t", uma proporção constante b do montante de lucros totais obtidos em "t-1".

É preciso notar que b tem de ser escolhido convenientemente, já que apenas parte dos lucros totais da classe capitalista pode ser aplicada na compra de bens de consumo. Uma outra parte dos lucros totais assume a forma de poupança cujo montante, dada a formulação do modelo, necessariamente se acumula como tesouro.

Finalmente, é necessário modelar o modo de variação dos preços. Considerem-se apenas os estoques das mercadorias 1 e 2, já que não há variação do padrão monetário. Note-se, de início, que se há excesso de oferta de qualquer uma delas em certo momento, então o seu estoque respectivo tem de aumentar; e que, em caso contrário, se há excesso de demanda, esse estoque tem de diminuir. A partir dessa consideração, a seguinte regra de variação de preços se impõe: o preço da mercadoria "i" (i = 1 ou 2) tem de aumentar ou cair conforme haja, respectivamente, queda ou incremento de seu estoque. Eis que isso é equivalente a supor que os preços sobem ou descem desde que haja excesso de demanda ou excesso de oferta da mercadoria "i".

2. A MÃO INVISÍVEL

Como já se indicou antes, a mão invisível só pode ser compreendida numa perspectiva evolucionária. Agora, cumpre especificá-la melhor. É preciso ver, de início, que esse modo de explanação contém um elemento supra-intencional, pois a ação intencional considerada - a busca do lucro - gera resultados não intencionais em termos de massas e taxas de lucros. Ademais, é preciso ficar claro que se trata de um modo de causação que importa em certa circularidade, já que o efeito da causa, por realimentação, modifica, senão o modo de causação enquanto tal, pelo menos a sua intensidade. No contexto considerado neste artigo, eis que isto significa o seguinte: o investimento setorial causa uma determinada lucratividade setorial e que esta retroage sobre o investimento setorial. Enquanto um modo de causação que envolve essas duas características, para não se tornar algo logicamente absurdo, ele requer, necessariamente, a consideração da flecha do tempo. Mas ele requer também, como premissa inquestionável, a ganância que está inscrita na motivação dos agentes do capital como uma determinação estrutural, quase inexorável, da sociabilidade capitalista.

Sob essas condições, quando muitos capitais concorrem para a obtenção da melhor remuneração possível, a explicação da intensidade relativa do investimento setorial requer a compreensão do modo de regulação das aplicações de capital. Estas, por ocorrerem de modo cego em relação aos resultados globais por elas mesmas gerados, subsistem como comportamentos fenomênicos que seguem determinadas rotinas. No contexto aqui considerado, esse modo de regulação descentralizado pode ser apresentado por meio de cinco condições:5 5 As condições discriminadas foram estabelecidas com base em Elster (1985, p. 45-68).

1. O montante de produto e o preço de venda da mercadoria setorial é conseqüência da busca individual de lucro por parte dos capitalistas;

2. A variação do preço setorial, assim como do produto setorial, melhora ou piora a situação dos capitalistas aí comprometidos com a produção;

3. Essas variações são resultados não intencionais das ações gananciosas individuais;

4. Os capitalistas não buscam resultados globais, nem os reconhecem como objetivos possíveis de serem perseguidos individualmente;

5. As variações dos produtos e dos preços setoriais estimulam ou desestimulam a busca individual do lucro por meio de um processo de realimentação que passa pelas mentes dos capitalistas individualmente considerados.

Para formalizar a mão invisível enquanto uma expressão da concorrência de capitais, aqui é empregado um resultado clássico da teoria dos jogos evolucionários: a dinâmica de replicação.6 6 A formulação aqui empregada inspira-se fortemente na exposição da dinâmica de replicação encontrada em Vega-Redondo (1996, p. 44-48). Ela fará ver o capital como um sujeito replicante, o que não ofende o conceito marxiano de capital como sujeito automático. Eis que isto implica supor, é certo, a existência de uma teleologia objetiva.7 7 Segundo John Elster, a idéia - para ele se trata meramente de uma idéia - de teleologia objetiva se afigura como um retorno ou uma regressão à metafísica. (Elster, 1989, p. 166). Não há em Marx, porém, uma teleologia cósmica. Há uma teleologia constituída institucionalmente. O sistema econômico realmente existente funda-se na metafísica do valor e do capital, que é exossomática. A relação de capital impõe a medição da riqueza real por meio do trabalho abstrato. Ela programa, também, os agentes do capitalismo (capitalistas e trabalhadores) para agirem em função da acumulação. No caso da reprodução animal, há também uma teleologia objetiva semelhante, e esta vem a ser fornecida pela finalidade endossomática de copiar e expandir o patrimônio genético. Neste segundo caso, tem-se mais propriamente o que Mayr chama de processo teleonômico. (Mayr, 2004, p. 55-82). Tal finalismo inerente à relação de capital não é, por isso, redutível às ações deliberativas dos indivíduos, ainda que dependa dessas ações enquanto tais. A ação humana nesse sistema está negada como ação humana, pois se trata de atuação alienada, ação que está programada pelas instituições do modo de produção capitalista. Como essa estrutura institucional é objetiva, regula e condiciona o comportamento humano, e o capital é um movimento de reprodução, os capitalistas tornam-se suportes da relação de capital, ou seja, meros portadores de vontades que moram nos capitais por eles mesmos possuídos. Os trabalhadores, por sua vez, também tendem a agir como proprietários da própria força de trabalho.

Assume-se que os capitais particulares só se interessam pelo objetivo de obter o maior lucro possível nas circunstâncias que encontram em cada momento do tempo. Assim, cada setor da economia é considerado apenas como uma oportunidade de investimento lucrativo, sendo encarado, por isso, como uma estratégia possível do jogo capitalista. Os capitais são indiferentes em relação a elas, exceto pelos montantes de lucro que podem gerar. O conjunto das frações do capital investidas nos diversos setores da economia constitui-se no perfil das estratégias, o qual se altera permanentemente durante o processo evolutivo do sistema econômico.

Dado que a expressão desse perfil pode ser escrita como (¦1,t, ¦2,t e ¦3,t), o problema explanatório acima posto se transforma, agora, num problema matemático que se resume em encontrar as equações dinâmicas capazes de representar o movimento temporal desse perfil de estratégias.

Há, pois, uma população de capitais unitários, já que o capital social só existe por meio de uma multiplicidade de capitais particulares. De acordo com as premissas do modelo, eles se somam para chegar ao montante It. Cada unidade de capital compete na captura de lucro com a população de capitais, e esta última está distribuída segundo o perfil de estratégias acima indicado. Ao escolher o setor "i" (i = 1, 2 ou 3), cada unidade de capital faz uma opção estratégica e se valoriza segundo as possibilidades momentâneas desse setor, as quais dependem das opções que foram feitas pela população de capitais no momento anterior.

Uma unidade de capital aplicada no setor "i", no momento "t", transforma-se, quando as mercadorias produzidas são vendidas, numa quantidade de capital igual a di,t = (1 + ri,t) que estará disponível para investimento no momento "t+1". Esse montante inclui em si mesmo a reposição do capital unitário investido e o lucro unitário. A magnitude di,t pode ser chamada, por isso, de fator de valorização do capital no setor "i", no momento "t". Como di,t representa o capital valorizado unitário, se foi investido ¦i,t Ii,t no setor "i" em "t", aí foi gerado ao todo di,t¦i,t Ii,t de capital. Logo, essa última magnitude vem a ser o capital valorizado setorialmente. O capital valorizado total, portanto, pode ser expresso como a soma dessas magnitudes setoriais.

As relações entre o total de capital valorizado e as suas partes valorizadas setorialmente podem ser tomadas como indicadores de como poderá ser repartido o investimento no período seguinte. Pode-se supor, por isso, que as frações do capital-dinheiro investida em "t+1" mudam conforme os resultados observados no período "t":

Após chamar a grandeza

de fator de valorização média do capital, pode-se escrever uma expressão mais específica da dinâmica de replicação dos capitais:

Esse sistema de equações dinâmicas - construído com base em equações a diferenças finitas - descreve os comportamentos temporais das frações de investimento com base em dinâmicas de replicação. Se o fator de valorização do setor "i" é superior à média ponderada dos fatores no momento "t", a fração sobe no momento "t+1"; no caso contrário, ela diminui. Como uma dessas equações é dependente das outras, para descrever a trajetória das três frações do investimento são necessárias apenas duas equações. Ademais, a trajetória do sistema está definida e sempre permanece no interior do simplex unitário D2.

A expressão acima também pode ser apresentada numa forma que facilita a interpretação:

Nessa forma, fica evidente que a dinâmica de replicação implica que as variações (positivas ou negativas) das frações de investimento setoriais mudam proporcionalmente às variações (positivas ou negativas) dos fatores de valorização dos capitais em relação à média desses fatores. O parâmetro Yi foi introduzido de modo ad hoc na expressão para indicar que as variações dos fatores de valorização podem ser transmitidas às variações das frações de investimento com maior ou menor lentidão.

CONCLUSÃO

O modelo apresentado pode ser estudado facilmente por meio de simulações numa planilha eletrônica (ver apêndice). Ele apresenta estabilidade local para certos conjuntos de valores dos parâmetros de ajustamento dos preços e das quantidades.8 8 Em Duménil e Levy (1993) é apresentado um modelo de dois setores semelhante ao aqui exposto. Sendo mais simples, ele pôde ser reduzido a duas equações dinâmicas e, assim, resolvido analiticamente. Desse modo, foi possível, também, delimitar a região no espaço de validade dos parâmetros de reação em que há estabilidade local. As variações dos preços dependem das variações dos estoques e das grandezas dos parâmetros de ajustamento li (i = 1, 2 ou 3). As variações das quantidades dependem das variações das frações do investimento; estas, por sua vez, dependem das variações dos fatores de valorização. Dito de outro modo, os preços de mercado e as quantidades produzidas, sob certos valores desses parâmetros, convergem para os seus valores de equilíbrio, ou seja, para os preços de produção e para as quantidades que permitem a reprodução tranqüila do sistema. Mas isto ocorre desde que os preços não sofram perturbações estocásticas. Havendo tais perturbações cujas causas, aliás, podem ser consideradas endógenas, eles se espalham indefinidamente em torno desses valores de equilíbrio tal como previsto pela Economia Política Clássica.

Note-se que a dinâmica de replicação contém já uma lógica estabilizadora que atua sobre o ajustamento das quantidades produzidas: o ajustamento das frações do investimento depende das variações do fator de valorização em relação à média dos fatores, não de modo absoluto, mas em proporção inversa em relação à própria grandeza dessa fração. Assim, um dado afastamento do fator em relação à média dos fatores influi mais ou menos no ajustamento das frações (e, assim, na intensidade do investimento setorial) dependendo se o valor absoluto da fração é baixo ou alto, respectivamente.

Que a estabilidade do sistema dependa crucialmente dos parâmetros de ajustamento dos preços e das quantidades produzidas, isto tem sentido econômico. A estabilidade do sistema econômico real também depende da prudência dos capitalistas no ajustamento dos preços e dos níveis de produção em face das alterações que ocorrem continuamente na demanda das mercadorias que produzem e vendem nos mercados. Contudo, a estabilidade do sistema econômico real depende também de um aspecto que o modelo não contempla: a existência de uma ecologia de empresas em cada ramo de produção. Nesse último caso, é bem provável que passe a existir também um conjunto de regras, díspares e não sincronizadas entre si, de ajustamento de preços e quantidades, as quais acabam por contrariar umas às outras, pelo menos até certo ponto, no que se refere aos seus efeitos globais.9 9 Por outro, entretanto, é de se esperar que sincronizações relacionadas a aumentos e a diminuições do investimento privado total estejam presentes nas crises econômicas. De qualquer modo, ainda que se tenha suprimido a complexidade intra-setorial por meio da suposição de que as empresas atuam coordenadamente em cada setor, o modelo apresentado parece fornecer uma imagem pertinente do processo da concorrência capitalista, visto como mão invisível.

(Recebido em março de 2005. Aceito para publicação em dezembro de 2005).

APÊNDICE

Apresentam-se aqui, a título de ilustração, os principais resultados de uma simulação feita com base nos parâmetros da tabela que aparece em seqüência. O coeficiente b da propensão a consumir dos capitalistas foi feito igual a 0,6. Os gráficos que se seguem mostram o comportamento das taxas de lucro e das frações setoriais do investimento no tempo.

TAXAS DE LUCRO

FRAÇÕES DE INVESTIMENTO

  • Duménil, G.; Lévy, D. The economics of the profit rate - competition, crises and historial tendencies in capitalism. Aldershot: Edward Elgar, 1993.
  • Cerqueira, H. E. A. da Gama. A mão invisível de Júpiter e o método newtoniano de Smith. Texto para Discussão Cedeplar, n. 171, junho de 2005.
  • Elster, J. Explaining technical change - studies in rationality and social change. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
  • _______. Marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos - argumentos a favor do individualismo metodológico. In: Lua Nova, n. 17, p. 163-204, junho de 1989.
  • Foley, D. K. Unholy trinity - labor, capital and land in the new economy. Londres: Routledge, 2003.
  • Gould, S. J. The structure of evolutionary theory Massachusetts: Harvard Press, 2002.
  • Hegel, G. W. F. Texto dialéticos (Selecionados por Djacir Menezes). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
  • Mayr, E. Biologia, ciência única São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • Marx, K. Grundrisse - foundations of the critique of political economy (Rough Draft). Londres: Penguin, 1973.
  • Prado, E. F. S. Microeconomia reducionista e microeconomia sistêmica In: Sítio do Autor.
  • _______. Elter e a mão invisível. In: Lua Nova, n. 28/29, p. 297-312, 1993.
  • Smith, A. A riqueza das nações - investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
  • Vega-Redondo, F. Evolution, games and economic behaviour New York: Oxford University Press, 1996.
  • 1
    Este artigo de certo modo complementa um artigo anterior em que se busca fazer uma crítica à crítica de Elster ao emprego da noção de mão invisível na Economia Clássica e em Marx. (Prado, 1993).
  • 2
    Diz Hegel do entendimento que ele se distingue por estabelecer "
    relações necessárias entre determinações isoladas da representação" e por manter-se "
    na determinação rígida e na diferença desta em relação com outras diferenças -
    abstração que é considerada por ele como subsistente e existente por si." Já da razão dialética, ele diz que tem, primeiro, um momento negativo no qual ocorre "
    a auto-supressão destas determinações finitas e sua transição para seu contrário" e, depois, que possui um "
    o momento positivo-racional que apreende a unidade das determinações em sua oposição." (Hegel, 1969, p. 124-129).
  • 3
    Depois que este artigo estava pronto, e mesmo aprovado para a publicação, foi notada a seguinte tese do renomado biólogo Stephen Jay Gould. "
    De fato, gostaria de adiantar uma tese mais forte segundo a qual a teoria da seleção natural é, em essência, a teoria econômica de Smith transferida para a natureza [...] Os organismos individuais empenhados na 'luta pela existência' agem de modo análogo às empresas na competição. O sucesso reprodutivo torna-se semelhante ao lucro - pois, ainda mais do que na economia do homem, não se pode verdadeiramente conservá-lo na natureza." (Gould, 2002, p. 122-123).
  • 4
    Ver sobre isso Cerqueira (2005).
  • 5
    As condições discriminadas foram estabelecidas com base em Elster (1985, p. 45-68).
  • 6
    A formulação aqui empregada inspira-se fortemente na exposição da dinâmica de replicação encontrada em Vega-Redondo (1996, p. 44-48).
  • 7
    Segundo John Elster, a idéia - para ele se trata meramente de uma idéia - de teleologia objetiva se afigura como um retorno ou uma regressão à metafísica. (Elster, 1989, p. 166). Não há em Marx, porém, uma teleologia cósmica. Há uma teleologia constituída institucionalmente. O sistema econômico realmente existente funda-se na metafísica do valor e do capital, que é exossomática. A relação de capital impõe a medição da riqueza real por meio do trabalho abstrato. Ela programa, também, os agentes do capitalismo (capitalistas e trabalhadores) para agirem em função da acumulação. No caso da reprodução animal, há também uma teleologia objetiva semelhante, e esta vem a ser fornecida pela finalidade endossomática de copiar e expandir o patrimônio genético. Neste segundo caso, tem-se mais propriamente o que Mayr chama de processo teleonômico. (Mayr, 2004, p. 55-82).
  • 8
    Em Duménil e Levy (1993) é apresentado um modelo de dois setores semelhante ao aqui exposto. Sendo mais simples, ele pôde ser reduzido a duas equações dinâmicas e, assim, resolvido analiticamente. Desse modo, foi possível, também, delimitar a região no espaço de validade dos parâmetros de reação em que há estabilidade local.
  • 9
    Por outro, entretanto, é de se esperar que sincronizações relacionadas a aumentos e a diminuições do investimento privado total estejam presentes nas crises econômicas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2005
    • Recebido
      Mar 2005
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