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Dinamismo econômico e batismos de ingênuos: a libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província de São Paulo (1871-1885)

Resumos

Estudamos os batismos de ingênuos registrados nas localidades paulistas de Iguape e Casa Branca entre 1871 e 1885. Nesse período, houve em Iguape o esmorecimento do dinamismo econômico assentado no cultivo de arroz destinado ao mercado interno. Já Casa Branca achava-se próxima à fronteira da expansão da lavoura cafeeira na província. Com a ênfase posta na comparação entre esses dois municípios, com vistas a explorar o condicionamento exercido por seus díspares panos de fundo econômicos, analisamos as características dos registros aludidos. Observamos a freqüência dos batizados no tempo, bem como computamos a distribuição, de acordo com a condição de legitimidade, das crianças nascidas de mães escravas após a promulgação da Lei do Ventre Livre. Acompanhamos o comportamento da defasagem temporal entre a data do nascimento e a do batismo. Avançamos, com fundamento em dois estudos de caso, um para cada uma das localidades selecionadas, algumas considerações acerca dos intervalos intergenésicos. Por fim, voltamos nossa atenção para a condição social de padrinhos e madrinhas. Mostraram-se muito expressivas, regra geral, as disparidades entre Iguape e Casa Branca.

batismos de ingênuos; cafeicultura no Oeste paulista; rizicultura no Vale do Ribeira; Lei do Ventre Livre; economia e demografia da escravidão


We study the baptisms of ingênuos registered in the localities of Iguape and Casa Branca, both in the province of São Paulo, in the period 1871-1885. Iguape, in those years, saw a slackening of the economic dynamism based on rice cultivation for the internal market. Casa Branca, on the other hand, was near the expansion frontier of coffee culture in the province. We emphasize the comparison between the characteristics of the registers of baptisms of ingênuos preserved for those two cities to explore the impact of their different economic contexts. We observe the frequency in time of the baptisms of children born of slave mothers after de promulgation of the Ventre-Livre Law. In addition, we compute the distribution of baptisms according to legitimacy condition, as well as accompany the behavior of the temporal gap between the dates of birth and baptism. Two case studies are used for some additional considerations about intergenesic intervals. Finally, we analyze the social condition of godfathers and godmothers. As a rule, the disparities between Iguape and Casa Branca were very significant.

baptisms of ingênuos; coffee culture in the West of São Paulo; rice culture in the Ribeira Valley; the Ventre-Livre Law; economy and demography of slavery


Dinamismo econômico e batismos de ingênuos – a libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província de São Paulo (1871-1885)

José Flávio MottaI; Agnaldo ValentinII

IProfessor do Departamento de Economia da FEA/USP, do Programa de Pós-Graduação em Economia do IPE-FEA/USP e do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP; membro do N.E.H.D. – Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/USP e do HERMES & CLIO – Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica da FEA/USP; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: jflaviom@usp.br

IIDoutor em História Econômica pela FFLCH/USP; membro do N.E.H.D. – Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/USP USP e do HERMES & CLIO – Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica da FEA/USP. E-mail: guiligui@usp.br

RESUMO

Estudamos os batismos de ingênuos registrados nas localidades paulistas de Iguape e Casa Branca entre 1871 e 1885. Nesse período, houve em Iguape o esmorecimento do dinamismo econômico assentado no cultivo de arroz destinado ao mercado interno. Já Casa Branca achava-se próxima à fronteira da expansão da lavoura cafeeira na província. Com a ênfase posta na comparação entre esses dois municípios, com vistas a explorar o condicionamento exercido por seus díspares panos de fundo econômicos, analisamos as características dos registros aludidos. Observamos a freqüência dos batizados no tempo, bem como computamos a distribuição, de acordo com a condição de legitimidade, das crianças nascidas de mães escravas após a promulgação da Lei do Ventre Livre. Acompanhamos o comportamento da defasagem temporal entre a data do nascimento e a do batismo. Avançamos, com fundamento em dois estudos de caso, um para cada uma das localidades selecionadas, algumas considerações acerca dos intervalos intergenésicos. Por fim, voltamos nossa atenção para a condição social de padrinhos e madrinhas. Mostraram-se muito expressivas, regra geral, as disparidades entre Iguape e Casa Branca.

Palavras-chave: batismos de ingênuos, cafeicultura no Oeste paulista, rizicultura no Vale do Ribeira, Lei do Ventre Livre, economia e demografia da escravidão

ABSTRACT

We study the baptisms of ingênuos registered in the localities of Iguape and Casa Branca, both in the province of São Paulo, in the period 1871-1885. Iguape, in those years, saw a slackening of the economic dynamism based on rice cultivation for the internal market. Casa Branca, on the other hand, was near the expansion frontier of coffee culture in the province. We emphasize the comparison between the characteristics of the registers of baptisms of ingênuos preserved for those two cities to explore the impact of their different economic contexts. We observe the frequency in time of the baptisms of children born of slave mothers after de promulgation of the Ventre-Livre Law. In addition, we compute the distribution of baptisms according to legitimacy condition, as well as accompany the behavior of the temporal gap between the dates of birth and baptism. Two case studies are used for some additional considerations about intergenesic intervals. Finally, we analyze the social condition of godfathers and godmothers. As a rule, the disparities between Iguape and Casa Branca were very significant.

Keywords: baptisms of ingênuos, coffee culture in the West of São Paulo, rice culture in the Ribeira Valley, the Ventre-Livre Law, economy and demography of slavery

JEL Classification: N36

INTRODUÇÃO1 1 Versões anteriores deste artigo foram apresentadas no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP, Caxambu, setembro de 2006) e no XXXIV Encontro Nacional de Economia (ANPEC, Salvador, dezembro de 2006). Os autores agradecem os comentários recebidos dos colegas professores Iraci del Nero da Costa, Cacilda Machado, Jonis Freire, Renato Leite Marcondes e Déborah Oliveira Martins dos Reis, bem como dos dois pareceristas da Estudos Econômicos.

A Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, em seu Artigo 1º, decretou: "Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre". Entre as várias disposições que acompanharam a libertação do ventre das cativas, figurava a seguinte determinação: "Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro dos nascimentos e óbitos dos filhos de escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos à multa de 100$000".2 2 É o § 5º do artigo 8 em que se atribui ao governo a tarefa de mandar "proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes no Império ...". As citações da letra da lei foram feitas a partir da transcrição disponível em Luné e Fonseca (1985, Anexos, p. 57-60). Sempre que pertinente, nas citações realizadas neste artigo, atualizamos a acentuação e a ortografia originais, e mantivemos a pontuação.

Esses assentos paroquiais de batismos de ingênuos são a nossa fonte principal neste artigo. No período que se estende do último trimestre de 1871 até a primeira quinzena de agosto de 1885, coletamos 1.648 registros, que correspondem à totalidade dos casos por nós levantados em duas localidades paulistas: Iguape e Casa Branca. A escolha dessas povoações não foi aleatória. Além, é claro, da disponibilidade da fonte documental contemplada, foi fundamental a existência de marcada disparidade no que respeita aos seus respectivos panos de fundo econômicos (delineados com brevidade na seção subseqüente). Imbricados a essa distinção de natureza econômica foram identificados, também, diferentes perfis demográficos, cuja descrição sucinta abre a análise comparativa dos assentos coletados, análise esta que é o objetivo maior da pesquisa realizada e, por conseguinte, recebe nossa atenção nas demais seções deste estudo.

CASA BRANCA E IGUAPE

O alvará que criou a Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Casa Branca foi assinado pelo Príncipe Regente D. João aos 25 de outubro de 1814.3 3 Hei por bem que no sertão da estrada de Goiás, do Bispado de São Paulo, d'aquém do Rio Pardo no lugar denominado da Casa Branca seja ereta uma nova Freguesia com a invocação de Nossa Senhora das Dores, a qual os moradores do dito sertão edificarão à sua custa no prefixo termo de quatro anos, e ficará limitada esta nova Freguesia desde o Rio Jaguari até o pouso do Cubatão. (Alvará do Príncipe Regente, de 25 de outubro de 1814. Cópia manuscrita. Caixa 45, ordem 282. Apud TREVISAN, 1982, p. 50). Como vai registrado no Almanak da Província de São Paulo de 1873, "sendo Freguesia pertencente ao Município de Mogi-Mirim, foi elevada à categoria de Vila em 1841, com a denominação de Nossa Senhora das Dores de Casa Branca, e à de cidade a 27 de Março de 1872" (LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 491). Na direção "Oeste", trilhada pela marcha do café, Casa Branca situa-se a cerca de dois terços do caminho entre a capital da província e Ribeirão Preto, esta última, na primeira metade da década de 1870, "nova e ainda pouco importante povoação" (MARQUES, 1953, v. 2, p. 209) mas que viria a ser o centro do assim chamado "Oeste Novo" paulista. Em meados daquele mesmo decênio, no verbete dedicado a Casa Branca, Manuel Eufrásio de Azevedo Marques observava que "a lavoura do município é o açúcar, cereais e algum café; também há fazendas de criação de gado" (MARQUES, 1953, v. 1, p. 173, negrito nosso).

Não obstante, no mencionado Almanak de 1873, o arrolamento dos cultivos trazia, antes dos demais, o café: "(...) cultiva-se café, cana-de-açúcar, fumo, algodão e gêneros alimentícios" (LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 494). Efetivamente, naquele ano, a lista de fazendeiros parecia indicar já uma presença nada desprezível, muito pelo contrário, da lavoura cafeeira. Dessa forma, havia: 31 fazendeiros de cana-de-açúcar; 55 de café; oito de café e cana; um de café e algodão; dois de café, algodão, milho e mandioca; um de café, cana, algodão, milho e mandioca; um de café, cana e fumo; quatro de café e fumo; quatro de fumo; 11 de algodão, milho e mandioca, bem como 11 fazendeiros de criar gado. De outra parte, no comércio, eram 40 os negociantes de fazendas, ferragens, armarinho, molhados, louça, sal e/ou gêneros do País, havendo também quatro negociantes de animais e/ou gado e um negociante de drogas.

De acordo com as tabulações efetuadas por Sergio Milliet, a produção de café do município igualou-se a 1.750 arrobas em 1854, atingindo a marca de 300 mil arrobas em 1886. Nesse último ano, na zona da Mogiana, a produção cafeeira de Casa Branca superou a de todas as demais localidades, com a única exceção de Amparo, que naquele ano produziu mais de 900 mil arrobas da rubiácea (cf. MILLIET, 1939, p. 57).4 4 A divisão do Estado (...) se efetuou em obediência à delimitação de sete regiões, como segue: 1 – a chamada zona norte do Estado, inclusive o litoral (...); 2 – a zona a que demos a denominação de zona central, mais arbitrariamente traçada, abrangendo toda a área incluída dentro do polígono: Capital, Piracaia, Bragança, Campinas, Piracicaba, Itapetininga, Piedade, Una, Capital (...). Não foi naturalmente incluído o Município da Capital, pois viria a sua inclusão modificar de todo em todo quaisquer considerações sobre o desenvolvimento da região (...); 3 – a zona englobando os municípios tributários da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro, a partir de Campinas (...); 4 – a zona dos municípios tributários da Estrada de Ferro Paulista, à exceção dos da Alta Paulista, que foram adidos à zona da Noroeste, por se ligarem, pela cronologia, mais nitidamente à expansão desta (...); 5 – a zona que denominamos Araraquarense, e à qual se juntaram, para evitar-se a formação de uma nova unidade, encaixada entre esta e as zonas da Paulista e da Sorocabana, os municípios dos ramais que servem Bariri e Bauru, até este exclusive (...); 6 – a zona dos municípios tributários das Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e Alta Paulista (...); 7 – a zona compreendendo os (...) municípios da Sorocabana, a partir de Botucatu (...). Não foram estudadas, por não interessarem à análise do roteiro do café, as zonas da baixa Sorocabana e do Litoral Sul. (Milliet, 1939, p. 10-12). Adicionalmente, o leque das atividades agrícolas e comerciais descritas no Almanak permite-nos entrever, como característica do período por nós contemplado neste estudo, um crescente dinamismo econômico no município em tela.

Iguape, por seu turno, teve origens muito mais remotas. As referências ao povoamento inicial da região pelos colonizadores remontam ao século 16.5 5 Ver, por exemplo, Young (1898 e 1903). Em seus Apontamentos, escreveu Marques (1953, v. 1, p. 321): É desconhecida a época de sua fundação. Alguns historiadores a assinalam em 1567, outros em 1579, outros em 1611, e outros, finalmente, em 1654, pelo capitão Eleodoro Ébano Pereira; o que, porém pudemos descobrir em documentos autênticos, é que já era vila em 1638, e que a sua primeira matriz foi concluída em 1635. E, no Almanak de 1873 lemos: Não se conhece ao certo a data da fundação da primeira povoação em frente à barra do Icapara nem por quem foi principiada; mas sabe-se por uma certidão passada em 1660 ao Capitão Bernardo Rodrigues Bueno, pela Câmara Municipal, que Francisco Alvares Marinho e Antonio de Barcellos foram os doadores do terreno em que se acha situada a povoação atual, o que prova ser a sua existência anterior a essa data. (LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 305). A Vila de Nossa Senhora das Neves de Iguape foi elevada à categoria de cidade por lei provincial de 3 de abril de 1849. A caracterização do município, constante do volume organizado por Luné e Fonseca, embora mencione a produção e exportação de café, evidencia que, ao contrário do verificado na localidade da zona da Mogiana, no Vale do Ribeira o eixo da atividade econômica não estava na rubiácea:

O Município de Iguape é cortado por muitos rios caudalosos, porém navegáveis em grandes distâncias, convergindo todos para o Ribeira. [...]

O principal gênero cultivado neste Município é o arroz, por existirem planícies extensas, em grande parte charcosas e alagadiças, que não servem para outros produtos. Nos terrenos banhados pelo S. Lourenço, afluente do Juquiá, dá-se no entanto bem o café e o algodão.

A exportação pelo porto de Iguape consiste em arroz, milho, feijão, canoas, couros vacuns e de veado, madeiras, pó de arroz, farinha de milho, fumo, café, algodão, mate, taboado, canjica, toucinho etc., no valor oficial de 400 a 500:000$000 anuais. (LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 305).6 6 O seu porto tem suficiente fundo para grandes navios, mas o comércio de arroz e madeiras e pouco café, em que consiste por enquanto a exportação deste município, é feito ordinariamente em navios pequenos. (MARQUES, 1953, v. 1, p. 322).

Ainda nesse Almanak, foram listados 37 fazendeiros, todavia sem qualquer informe acerca dos produtos de suas fazendas, e 14 proprietários. Eram, ademais, 57 os negociantes, e outros sete os arrolados como "negociantes no Porto da Ribeira".

O maior dinamismo da rizicultura do Vale do Ribeira radicou na primeira metade do Oitocentos, portanto anteriormente ao período por nós contemplado neste estudo. O comportamento da proporção do arroz do Vale no total do produto entrado no Rio de Janeiro atesta a então crescente importância daquela região produtora: em 1799, Iguape e Cananéia respondiam por 40,5% do total de 18.045,5 alqueires, porcentual que atingiu os 69,2% dos 31.099,5 alqueires importados pela Corte em 1821.7 7 Cf. Brown (1986, p. 417).

O movimento ascendente da quantidade de arroz remetido anualmente pelo Porto de Iguape manteve-se ainda por mais alguns lustros. Tal cifra, no intervalo de 1839 a 1857, atingiu a média de 90.000 alqueires.8 8 Dados coligidos acerca da produção e dos preços do arroz entre 1840 e 1870 encontram-se tabulados em Valentin (2006, p. 49-56). Contudo, entre 1858 e 1870, a quantidade média reduziu-se a 79.500 alqueires. O estudo aprofundado da produção e comercialização do arroz no Vale do Ribeira durante o Oitocentos permitiu a Valentin (2006, p. 65) avançar a sugestão de uma abordagem em três intervalos:

o primeiro, que vai de 1800 a 1840, correspondeu à fase de gênese e expansão da rizicultura (...); o segundo, de 1841 a 1860, grosso modo, foi o período com as maiores quantidades exportadas do grão (...) e o último (1861 a 1880), que se caracterizou pela estabilidade econômica e pela redução acentuada da força de trabalho escrava.

A essa estabilidade da economia iguapense contrapõe-se, pois, o dinamismo crescente da atividade econômica em Casa Branca. Brevemente esboçados nesta seção, tais contextos diferenciados em meio aos quais, a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre, ocorreram os batismos de ingênuos, cujos registros serão por nós a seguir analisados, sempre privilegiando o enfoque comparativo entre as duas localidades selecionadas.

DADOS DEMOGRÁFICOS E BATISMOS DE INGÊNUOS

Na Demonstração dos escravos da Província [de São Paulo-JFM/AV], matriculados nos respectivos municípios, na conformidade da Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871 até 30 de setembro de 1872 (cf. LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 172-173), foi anotado um total de 3.064 cativos em Casa Branca, a maioria absoluta do sexo masculino (55%). Um contingente muito menor compunha a população escrava de Iguape (1.696 pessoas), e nela o predomínio dos homens era menos pronunciado (51%).

Ao considerarmos as tabulações dos dados do Recenseamento Geral do Império (cf. BASSANEZI, 1998), realizado em São Paulo em fins de janeiro de 1874, encontramos um grupo de cativos ainda menos numeroso na localidade do Vale do Ribeira (1.584 pessoas);9 9 Cifra que é a mesma constante do verbete POPULAÇÃO fornecido nos Apontamentos (MARQUES, 1953, v. 2, p. 181-186), em cuja abertura lemos: "Os esclarecimentos que apresentamos sob este título são o resultado da estatística oficial do ano de 1874". todavia mantinha-se, em comparação à matrícula, bastante próxima a participação masculina (52%). A disparidade entre as duas fontes mostrou-se bem mais significativa em Casa Branca: o total de escravos recenseados correspondeu a menos de 80% do total matriculado. Assim, computaram-se, em 1874, 2.414 cativos. Não obstante essa diferença substancial, a supremacia masculina (55%) permaneceu, também na localidade da Mogiana, tal e qual calculada a partir da Demonstração publicada no Almanak de 1873.10 10 Frisemos que esse total de 2.414 não considera os escravos residentes na Paróquia de Santa Rita do Passa Quatro, a qual é incorporada ao município de Pirassununga; "este procedimento foi adotado para facilitar o mapeamento e a comparabilidade dos dados censitários ao longo do tempo" (BASSANEZI, 1998, p. 35). Entretanto, se tomarmos os números fornecidos nos Apontamentos de Azevedo Marques, os cativos presentes em 1874 em Casa Branca (1.795) e em Santa Rita (298) somariam apenas 2.093 pessoas (MARQUES, 1953, v. 2, p. 184). E se adicionarmos, diretamente àquele total de 2.414, o número fornecido para Santa Rita nos Apontamentos, o resultado obtido, 2.712 indivíduos, equivale a cerca de 88% do total de cativos matriculados na localidade em tela.

Percebemos, outrossim, ainda com base nas tabulações do Recenseamento, que os escravos de Iguape correspondiam a tão-somente cerca de um décimo (9,9%) do conjunto de seus habitantes; essa proporção elevou-se para mais de um quinto (21,8%) em Casa Branca.11 11 No que diz respeito à população livre, foram contadas 8.649 pessoas em Casa Branca no Recenseamento Geral do Império, ao passo que, em Iguape, havia 14.421 súditos livres de D. Pedro II. Ademais, enquanto nesta última localidade os cativos com 15 ou menos anos de idade perfizeram 23,0% da população escrava, tais crianças compunham 16,4% dos cativos de Iguape. No outro extremo da distribuição etária, a faixa de 61 ou mais anos, as participações igualaram-se a 12,2% e 18,4%, respectivamente, em Casa Branca e Iguape.

São, pois, nítidas as diferenças entre as localidades analisadas no tocante aos dados demográficos apresentados, e se coadunam com os distintos panos de fundo econômicos delineados na seção anterior. Em um rápido sumário, temos: Iguape possuía maior número de habitantes, porém uma escravaria menor, tanto em termos relativos como absolutos; Casa Branca possuía não apenas um grupo mais numeroso de cativos, mas essas pessoas apresentavam um perfil etário relativamente mais jovem, bem como um desequilíbrio em favor do sexo masculino mais acentuado. Tais disparidades refletem-se, igualmente, no cômputo do número absoluto de registros de batismos de ingênuos: enquanto coligimos 485 de tais assentos em Iguape, de 1872 a 1883, foi quase 2,5 vezes maior o total correlato coletado em Casa Branca (1.163 batizados entre 1871 e 1885). Considerado o conjunto dos "nossos" batizandos, os meninos foram 827 e as meninas 821.

Fornecemos a distribuição anual dos registros de batismos no Gráfico 1. Verificamos, ainda que em patamares distintos, um comportamento bastante próximo seguido pelas curvas referentes às duas localidades até fins da década de 1870. A partir dos dados de 1879 essas curvas passam a comportar-se de maneira oposta, alargando-se, com isso, a distância entre elas, sobretudo devido ao aumento do número de assentos de batismos em Casa Branca.


Ora, como se sabe, o tráfico interno de escravos vivenciou sensível intensificação em seu ritmo na segunda metade dos anos de 1870.12 12 São conhecidas as dificuldades vivenciadas à época pelo Nordeste do País, violentamente castigado pelas secas. Por exemplo, em seu estudo sobre a indústria açucareira em Pernambuco, escreve Peter Eisenberg: O tráfico interprovincial chegou ao auge na década de 1870 em virtude das severas secas nordestinas que forçaram a liquidação dos ativos fixos, como os escravos. O total de escravos embarcados para o sul, após 1876, foi tão elevado que as províncias compradoras — Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais — impuseram elevados tributos à importação de escravos, em 1880 e 1881. (...) Os tributos acabaram com o tráfico interprovincial de escravos. (EISENBERG, 1977, p. 175-177). E o destino desse fluxo foi, em especial, determinado pelo avanço da produção cafeeira. Tal movimento, no caso paulista, sofreu o impacto, em princípios de 1881, do estabelecimento de um imposto proibitivo à entrada de novos cativos em São Paulo, com o que se restringiu o comércio humano, em grande medida, aos limites da província.13 13 The Rio Bill levied a registration tax of 1:500$ on slaves brought from other provinces, and was passed in mid-December, 1880. The Minas bill created a tax of 2:000$, and was passed in late December, 1880. The São Paulo bill also created a tax of two contos , and became law on January 15, 1881. (SLENES, 1976, p. 124-125). Esse evolver do tráfico de escravos decerto se coloca entre os fatores explicativos do comportamento das curvas no Gráfico 1, retratando uma Casa Branca profundamente envolvida com a expansão cafeeira, e uma Iguape que já ultrapassara os melhores momentos do dinamismo econômico assentado na rizicultura.

De fato, o paulatino avanço da questão servil, com seu corolário na Abolição, em 1888, imbricado às vicissitudes vivenciadas pelo comércio de cativos, produziu os seguintes totais da População escrava matriculada até 30 de março de 1887 (cf. BASSANEZI, 1998): 679 pessoas em Iguape e 3.004 em Casa Branca.14 14 Desta última, salientemos, não mais fazia parte Santa Rita do Passa Quatro com seus 972 escravos matriculados até 30 de março de 1887. Esses totais traduzem com justeza o "ponto de chegada" das tendências manifestas no comportamento dos registros de batismos.

CONDIÇÃO DE LEGITIMIDADE DOS INGÊNUOS

Os Gráficos 2 e 3, cada um deles dedicado a uma das localidades analisadas, retomam a distribuição anual dos ingênuos batizados. Nesses gráficos computamos, adicionalmente, a condição de legitimidade. No que tange a essa variável, convém observarmos, antes de mais nada, o aparente maior cuidado dos responsáveis pelos assentos em Casa Branca. Lá, foi quase sempre anotada pelo pároco a dita condição, mediante a inserção das expressões "filho natural de" ou "filho legítimo de". Por conta desse esmero, para apenas dois dos 1.163 batizandos não foi possível identificar a variável em tela. Em Iguape, todavia, a legitimidade ou não dos ingênuos teve de ser inferida a partir da situação conjugal de suas mães; e, do conjunto de 485 registros daquela localidade do Vale do Ribeira, tal informação não se mostrou disponível para 60 casos, a grande maioria deles (80%) atinente aos anos de 1872, 1873 e 1874, havendo tão-somente um assento sem o aludido informe no período de 1878 a 1883.15 15 O maior ou menor cuidado dos responsáveis pelos registros, vale salientar, não tem relação necessária com uma eventual maior ou menor presença da Igreja nas localidades analisadas. De fato, não encontramos nenhum indício dessa presença diferenciada, com o que não a consideramos como fator que pudesse responder, mesmo parcialmente, pelas diferenças verificadas entre os batismos de ingênuos realizados em Casa Branca e Iguape.



Em ambos os gráficos, percebemos o marcado predomínio dos registros de filhos naturais. Essa predominância foi igualmente observada em inúmeros outros trabalhos, em especial para a população escrava, mas também para as pessoas livres. Ilustram esse conjunto de estudos disponíveis os de Góes (1993, p. 59) e Vasconcellos (2002, p. 141). Márcia Vasconcellos, debruçando-se sobre os registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, em Angra dos Reis, Província do Rio de Janeiro, computou, no período 1830-1871, em um total de 1.331 assentos de batismos de crianças escravas, uma participação das legítimas (18,4%) inferior a um quarto da participação das naturais (81,6%). Os porcentuais correlatos, calculados por José Roberto Góes para o caso da Freguesia de Inhaúma, no município da Corte, para o intervalo 1817-1842, atingiram, respectivamente, 20,7% e 79,3%, em um conjunto de 1.118 registros.16 16 Para o caso da Paróquia da Sé da cidade de Salvador, na Bahia, os dados analisados por Johildo L. Athaide produziram os seguintes resultados: "(...) os batismos dos escravos registraram 99,5% de ilegítimos (século XIX)! Mesmo entre os livres desse grande centro urbano, as proporções são inusitadas: 51,3% de ilegítimos, mais 16,5% de expostos num total de 67,8% de bastardos" ( Apud MARCÍLIO, 1986, p. 210).

Comparados a esses resultados, os informes por nós tabulados apontam para uma incidência relativamente maior das crianças legítimas, ao menos em Casa Branca, no contexto da expansão cafeeira. Em Iguape, por seu turno, o predomínio dos filhos naturais foi ainda maior do que nas regiões fluminenses estudadas por Vasconcellos e Góes.17 17 Os resultados de Iguape aproximaram-se dos porcentuais fornecidos na nota anterior, calculados para a Paróquia da Sé de Salvador. Todavia, uma comparação mais minuciosa com os porcentuais computados por esses autores demanda, antes de mais nada, que comparemos os informes de "nossos" ingênuos com os atinentes aos batismos de escravos em Casa Branca e Iguape, ou seja, aos batizados de filhos de escravas nascidos antes da Lei do Ventre Livre. Atender a essa demanda, contudo, ainda que seja uma tarefa já inserida em nosso horizonte de pesquisa, fugiria aos objetivos deste artigo. É possível que a distinção observada entre os panos de fundo econômicos vigentes na localidade da Mogiana e na do Vale do Ribeira contribuísse para a menor freqüência de uniões legítimas entre os cativos de Iguape. Afinal, o dinamismo da cafeicultura tornava Casa Branca recebedora de um afluxo de cativos, ao passo que Iguape via declinar sua população escrava. A legitimação das uniões entre escravos, dada a legislação proibitiva da separação entre cônjuges pela venda, poderia se tornar óbice à comercialização dessas pessoas.18 18 O raciocínio descrito implicaria a diminuição, em Iguape comparada a Casa Branca, da presença relativa de uniões legitimadas pela Igreja e, em decorrência, dos batismos de crianças legítimas, mas não necessariamente influiria na conformação de famílias escravas, na medida em que estas dispensassem o aval religioso.

Adicionalmente, também em ambos os Gráficos mostra-se patente que o mencionado predomínio das crianças ilegítimas foi crescente ao longo do tempo. Assim, em Casa Branca, para três dos quatro anos de 1871 a 1874, a proporção dos filhos naturais, sempre a maioria absoluta, esteve entre 50% e 60%. Já nos oito anos de 1875 a 1882, o porcentual correlato foi calculado entre 60% e 70%; de fato, em apenas um desses oito anos ele foi inferior a 65%. E, finalmente, no último triênio considerado, tal cifra alçou-se a, respectivamente, 71,1%, 82,0% e 87,5%. Em Iguape, simplesmente não foi registrada nem ao menos uma criança legítima em 1877 e tampouco no intervalo 1880-1883; e, de 1872 a 1876, a participação das ilegítimas oscilou de um mínimo de 89,5% a um máximo de 97,0%.19 19 Para esse qüinqüênio da década de 1870, mesmo se computássemos como legítimos todos os ingênuos para os quais não foi possível determinar a condição de legitimidade (e nada indica que essa ausência de informação fosse marcada por tal viés), a participação dos ilegítimos igualar-se-ia, no mínimo, a 56,1%.

Trata-se, uma vez mais, de um resultado já apontado na historiografia e detectado no decurso de todo o Oitocentos. Por exemplo, Motta e Marcondes, trabalhando o tema das famílias escravas no Vale do Paraíba paulista, mediante a comparação dos dados das listas nominativas dos habitantes de Lorena em 1801 com os informes da Lista de Classificação dos Escravos para Emancipação referente a Lorena e Cruzeiro, confeccionada na primeira metade da década de 1870, afirmaram o seguinte:

Assim, casados, viúvos e filhos legítimos, conjuntamente, correspondiam a quase dois quintos (38,8%) dos cativos no início do século XIX e a pouco mais de um quarto (27,0%) em 1874. No que respeita às mães solteiras e aos filhos naturais, a situação inverte-se: eles (mães e filhos) perfaziam tão-somente 14,2% dos escravos em 1801, porcentual que se eleva para 26,0% sete décadas depois. Em suma, condições aparentemente menos favoráveis para as famílias escravas em 1874 talvez signifiquem apenas uma incidência maior de uniões legitimadas pela Igreja em 1801.(MOTTA; MARCONDES, 2000, p. 109-110)

Sheila de Castro Faria (1992, p. 126) verificou, igualmente, ao avancar-se pelos Oitocentos, essas "quedas bruscas dos casamentos entre cativos", e observou:

a diminuição dos casamentos legais entre cativos não significou ausência de família escrava. Significou, isso sim, uma mudança formal, visando a satisfazer interesses senhoriais, ao mesmo tempo em que deixou a cargo dos escravos grande parte da organização da vida no cativeiro.

TEMPO TRANSCORRIDO ENTRE NASCIMENTOS E BATISMOS

O Gráfico 4 traz a distribuição dos ingênuos batizados segundo o número de dias calculado entre o nascimento e a ocasião em que o sacramento foi ministrado. Apenas não foi possível identificarmos ambas as datas para três crianças em Iguape e 30 em Casa Branca (respectivamente, 0,6% e 2,6% do total). É bastante nítido o amplo predomínio dos casos em que o sacramento religioso ocorria até os 90 dias de idade dos bebês. Na localidade do Vale do Ribeira, 83,8% das 482 crianças para as quais conhecemos as idades por ocasião do batismo, tinham 90 dias ou menos; o porcentual correlato, em Casa Branca, foi ainda mais elevado: 90,9%.20 20 Essas proporções pouco variaram de acordo com a legitimidade das crianças. Assim, os mesmos porcentuais, considerada essa variável, igualaram-se a: 91,8% (legítimos de Casa Branca), 90,5% (ilegítimos de Casa Branca), 90,9% (legítimos de Iguape) e 84,3% (ilegítimos de Iguape). Vale lembrar que para 60 batizandos de Iguape não foi possível identificar a condição de legitimidade, 78,3% deles com idades inferiores ou iguais a 90 dias.


A essa diferença (90,9% versus 83,8%) correspondeu a menor média computada para o município da Mogiana: 47,61 dias, versus 58,37 dias em Iguape.21 21 A amplitude da variação etária foi, respectivamente nas duas localidades consideradas, de 1 a 549 dias e de 0 a 432 dias e os desvios padrão igualaram-se a 43,612 em Casa Branca e a 51,991 em Iguape. Salientemos serem essas cifras bastante elevadas.22 22 Convém lembrarmos as prescrições eclesiásticas: No Brasil, os ritos da igreja foram codificados num sínodo de 1707 e publicados nas Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia em 1720. Segundo esse código, o pároco devia batizar o recém-nascido até oito dias após o nascimento. Cada criança devia ter somente uma madrinha (com mais de 12 anos de idade) e um padrinho (com mais de 14 anos de idade). Os pais da criança eram proibidos de ser seus padrinhos, bem como os membros de ordens religiosas (com exceção das ordens que concediam títulos de cavaleiro). O batismo dos escravos recém-chegados e ainda não aculturados (escravos boçais de língua não sabida) exigia instruções religiosas especiais para garantir que compreenderiam suas obrigações de membros da igreja. (SCHWARTZ, 2001, p. 266-267, negritos no original). Por exemplo, em Minas Gerais, na Paróquia de Antonio Dias, para um contingente de 1.394 inocentes escravos as médias fornecidas em Costa (1979, p. 65) igualaram-se a 10,4 e 12,8 dias, respectivamente, nos intervalos 1719-1768 e 1769-1818. Consoante escreveu o autor:

Aparentemente, os escravos viam-se mais fortemente presos aos ditames da Igreja (...). Outro fator explicativo, a nosso ver dos mais relevantes, da relativa presteza em se batizarem as crianças escravas, deve-se ao fato de o mesmo equivaler ao reconhecimento oficial dos direitos do proprietário com respeito à posse do recém-nascido. (COSTA, 1979, p. 64-65).23 23 Levando em conta o conjunto formado por crianças livres, cativas e as alforriadas ao nascer, e incluídos também os expostos, as médias fornecidas (COSTA, 1979, p.64) variaram entre 11 e 15 dias, segmentados os batizandos nos dois períodos referidos. Os valores das médias por nós encontrados mostraram-se também bastante elevados quando os comparamos aos atinentes a batizandos livres de Ubatuba, entre as décadas finais do Setecentos e iniciais do século 19: Em parte, devido ao alto risco de morrer nos primeiros dias de vida, os pais costumavam batizar seus filhos com poucos dias de idade. Em uma amostra que fizemos, verificamos que a média de tempo entre o nascimento e o dia do batizado era de 20 dias apenas, com intensidade maior entre o segundo e o décimo quinto dia. Havia ainda, a crença entre nossos caipiras de que o batismo exercia não apenas o meio de ingresso na vida do espírito, a iniciação na vida cristã e da Igreja, mas era ainda um meio de se conseguir a vida do corpo. A criança deve ser levada logo à pia batismal, para assegurar sua saúde e sobrevida à primeira e mais difícil fase de sobrevivência. Enfim, a própria Igreja incentivava a prática do batismo nos primeiros dias da criança. (MARCÍLIO, 1986, p. 202, negrito no original). Uma vez mais cumpre observar a mesma ressalva explicitada na nota 17; os informes presentes nos trabalhos de Costa e Marcílio são, decerto, referenciais importantes; não obstante, será nossa tarefa, na continuidade dessa pesquisa, comparar os dados dos "nossos" ingênuos com os dos escravos e livres de Casa Branca e Iguape.

No Gráfico 5 fornecemos as idades médias dos ingênuos batizados calculadas a cada ano (considerada a data do registro). Com a exceção de 1878 e de 1880, percebemos confirmarem-se idades médias sempre mais elevadas dos batizandos em Iguape. Quiçá a condição mais febricitante da economia de Casa Branca se refletisse igualmente na maior presteza com vistas à realização daquele sacramento!24 24 Na próxima seção, dedicada ao tema dos intervalos intergenésicos, veremos outro possível condicionante dessa maior ou menor presteza em ministrar o sacramento do batismo aos ingênuos. E, ao menos quanto à primeira das duas exceções mencionadas, tratou-se do efeito de um caso isolado: o ingênuo Manoel, nascido a 6 de julho de 1876 em Casa Branca, filho natural de Basília, escrava do Dr. Martinho da Silva Prado, foi batizado apenas 549 dias depois, em 6 de janeiro de 1878.25 25 Esse menino, o mais velho dentre todas as "nossas" crianças, tornou o desvio padrão das idades em 1878 o mais elevado entre todos os demais anos: 75,653 (número aproximadamente 40% maior do que o segundo desvio padrão mais elevado calculado para Casa Branca: 54,377, em 1883).


Cremos ser também possível discernir, nas duas curvas desenhadas no Gráfico 5, um traçado em forma de "U". Vale dizer, tais curvas sugerem uma tendência de declínio das idades médias dos ingênuos entre 1872 e 1876, tendência esta que se reverteu a partir daquele ano. As razões para esse comportamento, similar nas duas localidades, talvez radiquem no próprio evolver da questão servil. Em outras palavras, no contexto da promulgação da Lei do Ventre Livre e da realização da matrícula dos escravos, eventualmente muitos senhores "adiassem" em certa medida o cumprimento das prescrições eclesiásticas. Afinal, a definição quanto à "propriedade" dos ingênuos — decerto amiúde disfarçada nas entrelinhas do direito ao usufruto dos serviços dessas crianças — não deveria ser algo muito claro, a despeito da letra da lei, para muitos dos envolvidos.

Em meados dos anos de 1870, é possível que a situação dos ingênuos estivesse mais bem estabelecida, ao menos na perspectiva dos senhores. Contudo, nos anos subseqüentes, seria crescente a agitação abolicionista, e cada vez mais incerta a manutenção do próprio instituto da escravidão. Tal incerteza poderia ser responsável, ao menos parcialmente, pelo novo movimento de elevação das idades médias dos batizandos ingênuos. Em verdade, ao aludido evolver da questão servil no decorrer da segunda metade do século 19, e em especial no período por nós contemplado, eventualmente se devam os substanciais diferenciais, acima mencionados, entre as idades médias calculadas no caso de Iguape, e mesmo no de Casa Branca, vis-à-vis os informes disponíveis para o Setecentos e para os primeiros decênios do Oitocentos, em outras localidades brasileiras.

INTERVALOS INTERGENÉSICOS: UMA ILUSTRAÇÃO

Os assentos de batismos permitem que nos acerquemos da discussão sobre o intervalo temporal transcorrido entre os nascimentos dos filhos das escravas.26 26 Sobre essa questão, por exemplo, para a Freguesia de Mambucaba, na Província do Rio de Janeiro, entre 1830 e 1871, escreveu Vasconcellos (2002, p. 103): As africanas solteiras e as crioulas, tanto solteiras quanto casadas, davam à luz entre dois anos e um mês a 3 anos, o que representava, em porcentuais, respectivamente, 35,2%, 36,1% e 58,3%. Ao contrário, no caso das africanas casadas, a tendência era entre os 12 meses a 2 anos, 38,3%, particularmente, entre 1 ano e 7 meses a 2 anos, ou seja, o período entre um nascimento e outro era menor e, em tese, deveriam ter mais filhos. Tendo em vista o período de nossa análise (1871-1885), esse recorte segundo a origem das mães perde muito de sua relevância. Em Casa Branca, por exemplo, para mais de 93% das mães (1.085 delas) essa informação não foi indicada nos assentos; outras 77 eram "crioulas" e a restante "natural da Bahia"; analogamente, esse informe não pôde ser trabalhado a partir dos documentos de Iguape. Nesta seção, de fato, procederemos a uma primeira aproximação às possibilidades abertas pela fonte documental utilizada. Tal será feito com base na apresentação de dois casos, cada um afeto a uma das localidades estudadas.27 27 Estamos cientes da impossibilidade de quaisquer generalizações fundamentadas tão-somente nesses dois casos. Pretendemos, na seqüência desta pesquisa, tabular todo o universo dos registros coletados, o que permitirá um embasamento mais sólido às nossas afirmações acerca da duração dos intervalos intergenésicos em Casa Branca e Iguape. Não obstante, é evidente que esse desdobramento não implicará de forma alguma o descarte da análise de natureza qualitativa exemplificada pelos dois casos tratados aqui.

O Quadro 1 traz o caso coletado em Casa Branca, referente à escravaria possuída por Antonio Caetano Villas-Boas. No Almanak de 1873, Antonio Caetano estava entre os fazendeiros de cana-de-açúcar arrolados naquele município. De fato, foram vários os Villas-Boas listados nesse volume, nas páginas dedicadas a Casa Branca: João Ignácio também era fazendeiro de cana-de-açúcar; Joaquim Ignácio e José Estevão eram fazendeiros de café, sendo este último igualmente indicado entre os fazendeiros de café e cana, com o informe de que possuía "máquina de serrar"; João Ignácio e Joaquim Ignácio apareciam novamente, junto com Francisco Ignácio, como fazendeiros de algodão, milho e mandioca. Ainda no mesmo Almanak, havia a informação de que José Estevão era suplente do subdelegado da cidade e, tal como Joaquim Ignácio, eleitor da freguesia. Por fim, José Venâncio aparecia como Capitão da 1ª Seção de Batalhão de Reserva da Guarda Nacional (cf. LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 494-499).


Entre 1871 e 1885, houve o registro de 14 batismos de ingênuos gerados por cativas cujo proprietário era Antonio Caetano. Duas dessas mulheres eram casadas e as outras três solteiras. Os primeiros assentos coletados datam de 2 de fevereiro de 1874. Naquele dia, "receberam os santos óleos" duas meninas, Maurícia e Luciana, filhas legítimas, respectivamente, dos casais Francisca & Cândido e Marcelina & Sebastião. Maurícia nascera em meados de outubro de 1873, vinte dias antes de Luciana. A conveniência do proprietário, sobretudo, e até mesmo, em certa medida, a conveniência dos cativos, atuavam decerto entre os fatores condicionantes da definição da data da cerimônia religiosa e, por essa via, da própria duração do intervalo temporal entre o nascimento e o batizado.28 28 Esse, pois, o condicionante adicional mencionado na nota 24 acima. Essa prática de batizar, em um único dia, duas crianças geradas no mesmo plantel de escravos repetiu-se por mais duas vezes, em 21 de novembro de 1875 e em 7 de setembro de 1884, envolvendo, portanto, 6 (42,9%) daqueles 14 registros.

Observando as datas dos nascimentos dos quatro filhos de Francisca e dos cinco de Marcelina, parece-nos bastante plausível sugerir que Francisca tenha vivenciado uma quinta gravidez, entre 1877 e 1878, mas o fruto correspondente não teria vingado ou, se nascido, não teria sobrevivido até o batizado. Em assim sendo, e com a exclusão de Fabiana, que levou à pia batismal apenas um rebento (a menina Theodora, no último dos registros localizados vinculados ao escravista Antonio Cândido Villas-Boas), fornecemos, na Tabela 1, os intervalos intergenésicos calculados, no caso em tela, para as oito situações possíveis.

Nunca esquecendo que estamos apresentando nesta seção um conjunto muito reduzido de observações, fato a demandar redobrada cautela de nossa parte, notemos que os resultados colocados na Tabela 1 sugerem intervalos entre nascimentos de filhos ilegítimos menores quando comparados aos atinentes às crianças legítimas. O menor intervalo entre os filhos naturais foi pouco maior do que um ano e meio; o maior, entre os legítimos, ficou abaixo dos três anos.29 29 No estudo sobre Mambucaba, referido na nota 26, levando em conta o conjunto dos batismos, percebemos que a maioria absoluta dos intervalos intergenésicos inseriu-se nas faixas de 2 anos e um mês a 3 anos e de um a 2 anos (cf. VASCONCELLOS, 2002, p. 103). Vale dizer, a peculiaridade de Casa Branca, comparada a Mambucaba, não estaria no "tamanho" dos intervalos, mas na inversão observada segundo a legitimidade das uniões que geraram as crianças objeto dos registros examinados. Porém, reportando-nos à citação feita na nota 26, cumpre ressalvar ser tal inversão apenas parcial, uma vez que se vê mediada pela variável "origem", pois, na localidade fluminense, diferiam os intervalos entre os nascimentos de filhos de mulheres casadas crioulas e africanas.

O Quadro 2 apresenta o caso selecionado para análise coletado em Iguape. João Pupo da Rocha foi referido no Almanak de 1873 como fazendeiro. Outros Pupo da Rocha citados foram Manoel Gonçalves, também fazendeiro, e Cândido, um dos 45 Inspetores de Quarteirão arrolados no município (cf. LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 303-311).30 30 Há registro da família Pupo da Rocha no Vale do Ribeira desde 1789, quando os irmãos Manoel Rodrigues da Rocha e Gregório Gonçalves da Rocha aparecem na lista nominativa, naturais de Taubaté, dedicando-se ao comércio e à construção de embarcações, ambos escravistas. O filho de Gregório, de nome Cândido Pupo da Rocha — pai do João Pupo cujas escravas computamos no Quadro 2 —, possuía um engenho de arroz no rio Itimirim daquela cidade e detinha 16 escravos quando faleceu, em 1856. Para a localidade do Vale do Ribeira, dispomos da Lista de Classificação dos Escravos, elaborada tendo em vista as disposições do Decreto nº 5.135, de 13 de novembro de 1872, no qual se aprovou o regulamento geral para a execução da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Com base nessa fonte, sabemos que, em 1873, João Pupo da Rocha possuía ao menos 22 cativos. Eram três homens com idades entre 25 e 42 anos, cinco mulheres com idades entre 25 e 40 anos e 14 crianças com 12 ou menos anos (seis meninos e oito meninas). Todas as seis mães que listamos no Quadro 2 foram identificadas na Lista de Classificação. Generosa (então com 25 anos), Luiza (39), Claudiana (33) e Antonia (30) já haviam gerado rebentos livres por força da Lei do Ventre Livre. Engracia e Ignácia ainda eram crianças em 1873, respectivamente com 12 e 9 anos de idade. Essas seis escravas de João Pupo da Rocha batizaram 13 ingênuos no período de 1872 a 1883.


Dado o reduzido número de ingênuos legítimos em Iguape (cf. Gráfico 4), não surpreende o predomínio absoluto das crianças naturais observado no Quadro 2. Ademais, comparando os Quadros 1 e 2, percebemos, de pronto, que as idades dos batizandos vinculados a Antonio Caetano Villas-Boas foram, em média, inferiores às dos filhos das cativas de Pupo da Rocha. De fato, no caso do escravista de Casa Branca, a média igualou-se a 62,36 dias, cifra que atingiu os 108,77 dias no plantel iguapense. E, neste último plantel, foi relativamente menos freqüente a prática de batizar num mesmo dia mais de um ingênuo: tal ocorreu tão-somente em duas ocasiões, envolvendo quatro (30,8%) dos 13 batizandos. Registre-se, quanto a esta questão, a realização do batismo de Agostinho, filho de Claudiana, aos 26 de dezembro de 1872, sendo que, na véspera, dia de Natal, haviam "recebido os santos óleos" Valerino e Jacinta, filhos, respectivamente, de Generosa e Luiza.

O cálculo dos intervalos intergenésicos para as cativas de João Pupo da Rocha produziu resultados também muito instigantes. Pois nos parece inegável que esses intervalos mostraram-se, em média, superiores aos computados para as escravas de Antonio Villas-Boas. E isto não obstante as três mães do caso do Vale do Ribeira serem solteiras. Contradita-se, ao que tudo indica, a sugestão feita a partir da Tabela 1 (e comprova-se a demanda de cautela redobrada!). Porém, a própria inexistência de ingênuos legítimos nesse plantel de Iguape impede, ao fim e ao cabo, uma comparação nos moldes da efetuada para a escravaria de Casa Branca.

Esse impedimento, todavia, talvez seja meramente ilusório. Se lembrarmos da presença dos homens adultos arrolados como pertencentes a Pupo da Rocha na Lista de Classificação de 1873 (Gregório, Benedito e Júlio) e compararmos novamente os Quadros 1 e 2, torna-se bastante plausível aventarmos a hipótese de que, por exemplo, em Iguape, Generosa desfrutasse de um relacionamento duradouro com algum daqueles três cativos, tão estável quanto os relacionamentos legitimados dos casais Francisca & Cândido e Marcelina & Sebastião, em Casa Branca. Recoloca-se, portanto, numa nova perspectiva, a comparação que fizemos na seção dedicada à condição de legitimidade dos ingênuos de Casa Branca e de Iguape.

Em suma, o que esses quadros e tabelas indiciam é, eventualmente, do ponto de vista dos senhores, o maior estímulo à reprodução dos escravos na região de maior dinamismo. E isto mesmo num contexto no qual os frutos dessa reprodução detinham um status diferenciado, sendo, consoante a letra da lei, "considerados de condição livre". Essas crianças eram, afinal, mão-de-obra potencial, da qual não necessariamente quisessem (ou pudessem) abrir mão pelo menos certa parcela dos escravistas.31 31 São vários os estudos que têm dedicado atenção aos ingênuos enquanto mão-de-obra disponível para os (ou disputada pelos) proprietários de suas mães; ver, por exemplo, entre outros, Alaniz (1997) e Teixeira (2004). E, ainda da perspectiva dos senhores, quiçá houvesse um menor empenho para legitimar as relações familiares de seus cativos e, por essa via, dificultar as vendas dessas pessoas, na região menos afetada pelo frenesi econômico, região esta que vivenciava rápida diminuição em seu contingente escravo.32 32 Repitamos: o cômputo dos intervalos intergenésicos para a totalidade dos casos disponíveis em Casa Branca e Iguape decerto contribuirá para o adensamento da análise que integra esta seção.

UMA PALAVRA SOBRE PADRINHOS E MADRINHAS

O tema do compadrio estabelecido em função do sacramento do batismo de crianças escravas tem sido tratado por inúmeros estudiosos de nosso passado.33 33 Alguns poucos exemplos são: Botelho (1997), Brügger (2004), Franco Netto (2005), Freire (2004), Gudeman e Schwartz (1988), Kjerfve e Brügger (1991), Schwartz (2001) e Vasconcellos (2002). Já se salientou a importância desse parentesco ritual como fator de ampliação do relacionamento familiar entre os cativos.34 34 Seguramente a ‘família’ estendia-se muito além dos limites de qualquer unidade residencial. É sempre muito difícil recapturar tais laços, mas no ato ritual do batismo e no parentesco religiosamente sancionado do compadrio, que acompanha esse sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição mais ampla de parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata e de testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das fronteiras culturais determinadas por esse relacionamento espiritual. (SCHWARTZ, 1988, p. 330). Adicionalmente, padrinhos e madrinhas dos pequenos cativos foram analisados de acordo com sua condição social, bem como segundo a condição de legitimidade dos batizandos. Assim, tomando novamente como exemplo o estudo sobre Mambucaba, lemos:

No caso do batismo de crianças, os padrinhos tenderam, entre 1830 e 1871, a serem escravos, quando os batizandos eram legítimos, e livres quando eram ilegítimos. A escolha de padrinhos escravos representava a preocupação dos pais em adotar vínculos de compadrio com "irmãos" de cativeiro (...). Em relação ao percentual de livres, representava a preocupação, particularmente entre as mães solteiras, em ligar-se a indivíduos com situação jurídica superior, podendo daí obter vantagens e ajudas. (VASCONCELLOS, 2002, p. 170).

A citação enfatiza, no processo de escolha de padrinhos e madrinhas, a importância da vontade dos pais, ainda que não necessariamente em detrimento da de seus proprietários, ao menos no caso dos batismos de crianças cativas. A autora afirma também que, no decurso da segunda metade do Oitocentos, essa escolha privilegiou cada vez mais homens e mulheres escravas, mesmo no caso dos batizandos ilegítimos (cf. VASCONCELLOS, 2002, p. 171 e 175).

Os resultados para as localidades por nós estudadas, fornecidos na Tabela 3, retratam, uma vez mais, diferenças significativas, seja comparados ao caso de Mambucaba, seja no confronto entre Casa Branca e Iguape. Nesse último confronto, houve também semelhanças. Dessa forma, em ambas, fossem os batizandos legítimos ou não, quer para padrinhos quer para madrinhas, o apadrinhamento feito por escravos nunca compreendeu maioria absoluta dos ingênuos, atingindo no máximo 38,3%, igualando-se o porcentual mínimo a 2,1%. Em ambas, outrossim, tanto no caso dos porcentuais mínimos como nos máximos, as proporções de cativas entre as madrinhas foram mais elevadas do que as dos escravos entre os padrinhos.

O mais interessante, porém, são as diferenças. É nítida a maior participação de cativos e cativas apadrinhando ingênuos em Iguape. Isto vale para crianças legítimas e ilegítimas. Além disso, enquanto em Iguape as participações são mais elevadas entre os ilegítimos, em Casa Branca os porcentuais maiores radicam entre os legítimos. Vale dizer, é possível que a comunidade escrava estabelecida no contexto economicamente mais estável do Vale do Ribeira valorizasse relativamente mais o parentesco ritual firmado com pessoas que faziam parte daquela comunidade ou dela estavam bastante próximas (como seria provável no caso dos libertos).35 35 Adicionalmente, para o caso de Iguape, pudemos identificar como pessoas "libertas" os padrinhos de dez e as madrinhas de 19 das crianças batizadas. E em todos os assentos nos quais o padrinho e/ou a madrinha eram libertos, os ingênuos recebedores do sacramento em questão eram filhos de mães solteiras. Todavia, estas mães correspondiam a menos de 5% do total de mães solteiras de Iguape, o que nos impediu de avançar maiores considerações baseadas na distinção entre padrinhos/madrinhas escravos e forros. Já para os registros de Casa Branca, mostrou-se problemática a distinção precisa entre essas duas condições sociais (escravos ou forros) de padrinhos e madrinhas. Daí nossa opção por apresentar os dados na forma da Tabela 3. Na localidade do "oeste" paulista, no ambiente mais dinâmico (atributo que, do ponto de vista da comunidade escrava, talvez encontrasse um sucedâneo bem adequado no termo "conturbado") lá vigente, seria admissível pensarmos que aumentasse em muito a valorização do parentesco ritual firmado com pessoas "de fora", escolhidas dentre o contingente livre de Casa Branca.36 36 Não podemos deixar de mencionar que nossa argumentação neste parágrafo compartilha, com a citação feita de Vasconcellos, a mesma ênfase posta na vontade dos escravos. É evidente que, por outro lado, poderíamos aventar que os senhores de Casa Branca se mostrassem mais cuidadosos quanto a evitar o fortalecimento das relações entre os escravos, o que redundaria na escolha — feita por eles, escravistas — preferencial de padrinhos livres. É evidente, também, que as duas interpretações não se colocariam como necessariamente excludentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os assentos de batismos de crianças ingênuas permitiram-nos – mantido ao longo de todo o texto o diálogo com vários dos trabalhos produzidos nas últimas décadas embasados em especial nesse mesmo tipo de documento – analisar uma série de características dos batizados, dos batizandos, das mães escravas, dos padrinhos e das madrinhas. Essa análise teve seu foco assentado na comparação dessas características tais como se apresentaram nas localidades de Iguape e Casa Branca.

Evidenciamos, com base nos resultados alinhavados nas diversas seções (cuja repetição aqui nos parece ociosa), o impacto que diferentes panos de fundo econômicos e distintos perfis demográficos (particularmente da população cativa) causaram sobre os níveis e o ritmo do evolver dos batizados, sobre as idades dos batizandos, sobre os intervalos intergenésicos e, por fim, sobre a condição social dos padrinhos e madrinhas daqueles ingênuos.

(Recebido em fevereiro de 2007. Aceito para publicação em julho de 2007).

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  • ______. História de Iguape. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. VIII, p. 222-325, 1903.
  • 1
    Versões anteriores deste artigo foram apresentadas no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP, Caxambu, setembro de 2006) e no XXXIV Encontro Nacional de Economia (ANPEC, Salvador, dezembro de 2006). Os autores agradecem os comentários recebidos dos colegas professores Iraci del Nero da Costa, Cacilda Machado, Jonis Freire, Renato Leite Marcondes e Déborah Oliveira Martins dos Reis, bem como dos dois pareceristas da
    Estudos Econômicos.
  • 2
    É o § 5º do artigo 8 em que se atribui ao governo a tarefa de mandar
    "proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes no Império ...". As citações da letra da lei foram feitas a partir da transcrição disponível em Luné e Fonseca (1985, Anexos, p. 57-60). Sempre que pertinente, nas citações realizadas neste artigo, atualizamos a acentuação e a ortografia originais, e mantivemos a pontuação.
  • 3
    Hei por bem que no sertão da estrada de Goiás, do Bispado de São Paulo, d'aquém do Rio Pardo no lugar denominado da Casa Branca seja ereta uma nova Freguesia com a invocação de Nossa Senhora das Dores, a qual os moradores do dito sertão edificarão à sua custa no prefixo termo de quatro anos, e ficará limitada esta nova Freguesia desde o Rio Jaguari até o pouso do Cubatão. (Alvará do Príncipe Regente, de 25 de outubro de 1814. Cópia manuscrita. Caixa 45, ordem 282.
    Apud TREVISAN, 1982, p. 50).
  • 4
    A divisão do Estado (...) se efetuou em obediência à delimitação de sete regiões, como segue: 1 – a chamada zona norte do Estado, inclusive o litoral (...); 2 – a zona a que demos a denominação de zona central, mais arbitrariamente traçada, abrangendo toda a área incluída dentro do polígono: Capital, Piracaia, Bragança, Campinas, Piracicaba, Itapetininga, Piedade, Una, Capital (...). Não foi naturalmente incluído o Município da Capital, pois viria a sua inclusão modificar de todo em todo quaisquer considerações sobre o desenvolvimento da região (...); 3 – a zona englobando os municípios tributários da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro, a partir de Campinas (...); 4 – a zona dos municípios tributários da Estrada de Ferro Paulista, à exceção dos da Alta Paulista, que foram adidos à zona da Noroeste, por se ligarem, pela cronologia, mais nitidamente à expansão desta (...); 5 – a zona que denominamos Araraquarense, e à qual se juntaram, para evitar-se a formação de uma nova unidade, encaixada entre esta e as zonas da Paulista e da Sorocabana, os municípios dos ramais que servem Bariri e Bauru, até este exclusive (...); 6 – a zona dos municípios tributários das Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e Alta Paulista (...); 7 – a zona compreendendo os (...) municípios da Sorocabana, a partir de Botucatu (...). Não foram estudadas, por não interessarem à análise do roteiro do café, as zonas da baixa Sorocabana e do Litoral Sul. (Milliet, 1939, p. 10-12).
  • 5
    Ver, por exemplo, Young (1898 e 1903). Em seus
    Apontamentos, escreveu Marques (1953, v. 1, p. 321):
    É desconhecida a época de sua fundação. Alguns historiadores a assinalam em 1567, outros em 1579, outros em 1611, e outros, finalmente, em 1654, pelo capitão Eleodoro Ébano Pereira; o que, porém pudemos descobrir em documentos autênticos, é que já era vila em 1638, e que a sua primeira matriz foi concluída em 1635.
    E, no
    Almanak de 1873 lemos:
    Não se conhece ao certo a data da fundação da primeira povoação em frente à barra do Icapara nem por quem foi principiada; mas sabe-se por uma certidão passada em 1660 ao Capitão Bernardo Rodrigues Bueno, pela Câmara Municipal, que Francisco Alvares Marinho e Antonio de Barcellos foram os doadores do terreno em que se acha situada a povoação atual, o que prova ser a sua existência anterior a essa data. (LUNÉ; FONSECA, 1985, p. 305).
  • 6
    O seu porto tem suficiente fundo para grandes navios, mas o comércio de arroz e madeiras e pouco café, em que consiste por enquanto a exportação deste município, é feito ordinariamente em navios pequenos. (MARQUES, 1953, v. 1, p. 322).
  • 7
    Cf. Brown (1986, p. 417).
  • 8
    Dados coligidos acerca da produção e dos preços do arroz entre 1840 e 1870 encontram-se tabulados em Valentin (2006, p. 49-56).
  • 9
    Cifra que é a mesma constante do verbete POPULAÇÃO fornecido nos
    Apontamentos (MARQUES, 1953, v. 2, p. 181-186), em cuja abertura lemos:
    "Os esclarecimentos que apresentamos sob este título são o resultado da estatística oficial do ano de 1874".
  • 10
    Frisemos que esse total de 2.414 não considera os escravos residentes na Paróquia de Santa Rita do Passa Quatro, a qual é incorporada ao município de Pirassununga;
    "este procedimento foi adotado para facilitar o mapeamento e a comparabilidade dos dados censitários ao longo do tempo" (BASSANEZI, 1998, p. 35). Entretanto, se tomarmos os números fornecidos nos
    Apontamentos de Azevedo Marques, os cativos presentes em 1874 em Casa Branca (1.795) e em Santa Rita (298) somariam apenas 2.093 pessoas (MARQUES, 1953, v. 2, p. 184). E se adicionarmos, diretamente àquele total de 2.414, o número fornecido para Santa Rita nos
    Apontamentos, o resultado obtido, 2.712 indivíduos, equivale a cerca de 88% do total de cativos matriculados na localidade em tela.
  • 11
    No que diz respeito à população livre, foram contadas 8.649 pessoas em Casa Branca no
    Recenseamento Geral do Império, ao passo que, em Iguape, havia 14.421 súditos livres de D. Pedro II.
  • 12
    São conhecidas as dificuldades vivenciadas à época pelo Nordeste do País, violentamente castigado pelas secas. Por exemplo, em seu estudo sobre a indústria açucareira em Pernambuco, escreve Peter Eisenberg:
    O tráfico interprovincial chegou ao auge na década de 1870 em virtude das severas secas nordestinas que forçaram a liquidação dos ativos fixos, como os escravos. O total de escravos embarcados para o sul, após 1876, foi tão elevado que as províncias compradoras —
    Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais —
    impuseram elevados tributos à importação de escravos, em 1880 e 1881. (...) Os tributos acabaram com o tráfico interprovincial de escravos. (EISENBERG, 1977, p. 175-177).
  • 13
    The Rio Bill levied a registration tax of 1:500$ on slaves brought from other provinces, and was passed in mid-December, 1880. The Minas bill created a tax of 2:000$, and was passed in late December, 1880. The São Paulo bill also created a tax of two contos
    , and became law on January 15, 1881. (SLENES, 1976, p. 124-125).
  • 14
    Desta última, salientemos, não mais fazia parte Santa Rita do Passa Quatro com seus 972 escravos matriculados até 30 de março de 1887.
  • 15
    O maior ou menor cuidado dos responsáveis pelos registros, vale salientar, não tem relação necessária com uma eventual maior ou menor presença da Igreja nas localidades analisadas. De fato, não encontramos nenhum indício dessa presença diferenciada, com o que não a consideramos como fator que pudesse responder, mesmo parcialmente, pelas diferenças verificadas entre os batismos de ingênuos realizados em Casa Branca e Iguape.
  • 16
    Para o caso da Paróquia da Sé da cidade de Salvador, na Bahia, os dados analisados por Johildo L. Athaide produziram os seguintes resultados:
    "(...) os batismos dos escravos registraram 99,5% de ilegítimos (século XIX)! Mesmo entre os livres desse grande centro urbano, as proporções são inusitadas: 51,3% de ilegítimos, mais 16,5% de expostos num total de 67,8% de bastardos" (
    Apud MARCÍLIO, 1986, p. 210).
  • 17
    Os resultados de Iguape aproximaram-se dos porcentuais fornecidos na nota anterior, calculados para a Paróquia da Sé de Salvador. Todavia, uma comparação mais minuciosa com os porcentuais computados por esses autores demanda, antes de mais nada, que comparemos os informes de "nossos" ingênuos com os atinentes aos batismos de escravos em Casa Branca e Iguape, ou seja, aos batizados de filhos de escravas nascidos antes da Lei do Ventre Livre. Atender a essa demanda, contudo, ainda que seja uma tarefa já inserida em nosso horizonte de pesquisa, fugiria aos objetivos deste artigo.
  • 18
    O raciocínio descrito implicaria a diminuição, em Iguape comparada a Casa Branca, da presença relativa de uniões legitimadas pela Igreja e, em decorrência, dos batismos de crianças legítimas, mas não necessariamente influiria na conformação de famílias escravas, na medida em que estas dispensassem o aval religioso.
  • 19
    Para esse qüinqüênio da década de 1870, mesmo se computássemos como legítimos todos os ingênuos para os quais não foi possível determinar a condição de legitimidade (e nada indica que essa ausência de informação fosse marcada por tal viés), a participação dos ilegítimos igualar-se-ia, no mínimo, a 56,1%.
  • 20
    Essas proporções pouco variaram de acordo com a legitimidade das crianças. Assim, os mesmos porcentuais, considerada essa variável, igualaram-se a: 91,8% (legítimos de Casa Branca), 90,5% (ilegítimos de Casa Branca), 90,9% (legítimos de Iguape) e 84,3% (ilegítimos de Iguape). Vale lembrar que para 60 batizandos de Iguape não foi possível identificar a condição de legitimidade, 78,3% deles com idades inferiores ou iguais a 90 dias.
  • 21
    A amplitude da variação etária foi, respectivamente nas duas localidades consideradas, de 1 a 549 dias e de 0 a 432 dias e os desvios padrão igualaram-se a 43,612 em Casa Branca e a 51,991 em Iguape.
  • 22
    Convém lembrarmos as prescrições eclesiásticas:
    No Brasil, os ritos da igreja foram codificados num sínodo de 1707 e publicados nas Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia em 1720. Segundo esse código, o pároco devia batizar o recém-nascido até oito dias após o nascimento. Cada criança devia ter somente uma madrinha (com mais de 12 anos de idade) e um padrinho (com mais de 14 anos de idade). Os pais da criança eram proibidos de ser seus padrinhos, bem como os membros de ordens religiosas (com exceção das ordens que concediam títulos de cavaleiro). O batismo dos escravos recém-chegados e ainda não aculturados (escravos boçais de língua não sabida) exigia instruções religiosas especiais para garantir que compreenderiam suas obrigações de membros da igreja. (SCHWARTZ, 2001, p. 266-267, negritos no original).
  • 23
    Levando em conta o conjunto formado por crianças livres, cativas e as alforriadas ao nascer, e incluídos também os expostos, as médias fornecidas (COSTA, 1979, p.64) variaram entre 11 e 15 dias, segmentados os batizandos nos dois períodos referidos. Os valores das médias por nós encontrados mostraram-se também bastante elevados quando os comparamos aos atinentes a batizandos livres de Ubatuba, entre as décadas finais do Setecentos e iniciais do século 19:
    Em parte, devido ao alto risco de morrer nos primeiros dias de vida, os pais costumavam batizar seus filhos com poucos dias de idade. Em uma amostra que fizemos, verificamos que a média de tempo entre o nascimento e o dia do batizado era de 20 dias apenas, com intensidade maior entre o segundo e o décimo quinto dia. Havia ainda, a crença entre nossos caipiras de que o batismo exercia não apenas o meio de ingresso na vida do espírito, a iniciação na vida cristã e da Igreja, mas era ainda um meio de se conseguir a vida do corpo. A criança deve ser levada logo à pia batismal, para assegurar sua saúde e sobrevida à primeira e mais difícil fase de sobrevivência. Enfim, a própria Igreja incentivava a prática do batismo nos primeiros dias da criança. (MARCÍLIO, 1986, p. 202, negrito no original).
    Uma vez mais cumpre observar a mesma ressalva explicitada na nota 17; os informes presentes nos trabalhos de Costa e Marcílio são, decerto, referenciais importantes; não obstante, será nossa tarefa, na continuidade dessa pesquisa, comparar os dados dos "nossos" ingênuos com os dos escravos e livres de Casa Branca e Iguape.
  • 24
    Na próxima seção, dedicada ao tema dos intervalos intergenésicos, veremos outro possível condicionante dessa maior ou menor presteza em ministrar o sacramento do batismo aos ingênuos.
  • 25
    Esse menino, o mais velho dentre todas as "nossas" crianças, tornou o desvio padrão das idades em 1878 o mais elevado entre todos os demais anos: 75,653 (número aproximadamente 40% maior do que o segundo desvio padrão mais elevado calculado para Casa Branca: 54,377, em 1883).
  • 26
    Sobre essa questão, por exemplo, para a Freguesia de Mambucaba, na Província do Rio de Janeiro, entre 1830 e 1871, escreveu Vasconcellos (2002, p. 103):
    As africanas solteiras e as crioulas, tanto solteiras quanto casadas, davam à luz entre dois anos e um mês a 3 anos, o que representava, em porcentuais, respectivamente, 35,2%, 36,1% e 58,3%. Ao contrário, no caso das africanas casadas, a tendência era entre os 12 meses a 2 anos, 38,3%, particularmente, entre 1 ano e 7 meses a 2 anos, ou seja, o período entre um nascimento e outro era menor e, em tese, deveriam ter mais filhos.
    Tendo em vista o período de nossa análise (1871-1885), esse recorte segundo a origem das mães perde muito de sua relevância. Em Casa Branca, por exemplo, para mais de 93% das mães (1.085 delas) essa informação não foi indicada nos assentos; outras 77 eram "crioulas" e a restante "natural da Bahia"; analogamente, esse informe não pôde ser trabalhado a partir dos documentos de Iguape.
  • 27
    Estamos cientes da impossibilidade de quaisquer generalizações fundamentadas tão-somente nesses dois casos. Pretendemos, na seqüência desta pesquisa, tabular todo o universo dos registros coletados, o que permitirá um embasamento mais sólido às nossas afirmações acerca da duração dos intervalos intergenésicos em Casa Branca e Iguape. Não obstante, é evidente que esse desdobramento não implicará de forma alguma o descarte da análise de natureza qualitativa exemplificada pelos dois casos tratados aqui.
  • 28
    Esse, pois, o condicionante adicional mencionado na nota 24 acima.
  • 29
    No estudo sobre Mambucaba, referido na nota 26, levando em conta o conjunto dos batismos, percebemos que a maioria absoluta dos intervalos intergenésicos inseriu-se nas faixas de 2 anos e um mês a 3 anos e de um a 2 anos (cf. VASCONCELLOS, 2002, p. 103). Vale dizer, a peculiaridade de Casa Branca, comparada a Mambucaba, não estaria no "tamanho" dos intervalos, mas na inversão observada segundo a legitimidade das uniões que geraram as crianças objeto dos registros examinados. Porém, reportando-nos à citação feita na nota 26, cumpre ressalvar ser tal inversão apenas parcial, uma vez que se vê mediada pela variável "origem", pois, na localidade fluminense, diferiam os intervalos entre os nascimentos de filhos de mulheres casadas crioulas e africanas.
  • 30
    Há registro da família Pupo da Rocha no Vale do Ribeira desde 1789, quando os irmãos Manoel Rodrigues da Rocha e Gregório Gonçalves da Rocha aparecem na lista nominativa, naturais de Taubaté, dedicando-se ao comércio e à construção de embarcações, ambos escravistas. O filho de Gregório, de nome Cândido Pupo da Rocha — pai do João Pupo cujas escravas computamos no
    Quadro 2 —, possuía um engenho de arroz no rio Itimirim daquela cidade e detinha 16 escravos quando faleceu, em 1856.
  • 31
    São vários os estudos que têm dedicado atenção aos ingênuos enquanto mão-de-obra disponível para os (ou disputada pelos) proprietários de suas mães; ver, por exemplo, entre outros, Alaniz (1997) e Teixeira (2004).
  • 32
    Repitamos: o cômputo dos intervalos intergenésicos para a totalidade dos casos disponíveis em Casa Branca e Iguape decerto contribuirá para o adensamento da análise que integra esta seção.
  • 33
    Alguns poucos exemplos são: Botelho (1997), Brügger (2004), Franco Netto (2005), Freire (2004), Gudeman e Schwartz (1988), Kjerfve e Brügger (1991), Schwartz (2001) e Vasconcellos (2002).
  • 34
    Seguramente a ‘família’ estendia-se muito além dos limites de qualquer unidade residencial. É sempre muito difícil recapturar tais laços, mas no ato ritual do batismo e no parentesco religiosamente sancionado do compadrio, que acompanha esse sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição mais ampla de parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata e de testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das fronteiras culturais determinadas por esse relacionamento espiritual. (SCHWARTZ, 1988, p. 330).
  • 35
    Adicionalmente, para o caso de Iguape, pudemos identificar como pessoas "libertas" os padrinhos de dez e as madrinhas de 19 das crianças batizadas. E em todos os assentos nos quais o padrinho e/ou a madrinha eram libertos, os ingênuos recebedores do sacramento em questão eram filhos de mães solteiras. Todavia, estas mães correspondiam a menos de 5% do total de mães solteiras de Iguape, o que nos impediu de avançar maiores considerações baseadas na distinção entre padrinhos/madrinhas escravos e forros. Já para os registros de Casa Branca, mostrou-se problemática a distinção precisa entre essas duas condições sociais (escravos ou forros) de padrinhos e madrinhas. Daí nossa opção por apresentar os dados na forma da
  • 36
    Não podemos deixar de mencionar que nossa argumentação neste parágrafo compartilha, com a citação feita de Vasconcellos, a mesma ênfase posta na vontade dos escravos. É evidente que, por outro lado, poderíamos aventar que os senhores de Casa Branca se mostrassem mais cuidadosos quanto a evitar o fortalecimento das relações entre os escravos, o que redundaria na escolha — feita por eles, escravistas — preferencial de padrinhos livres. É evidente, também, que as duas interpretações não se colocariam como necessariamente excludentes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2007
    • Recebido
      Fev 2007
    Departamento de Economia; Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Av. Prof. Luciano Gualberto, 908 - FEA 01 - Cid. Universitária, CEP: 05508-010 - São Paulo/SP - Brasil, Tel.: (55 11) 3091-5803/5947 - São Paulo - SP - Brazil
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