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“Empresários, Trabalhadores e Grupos de Interesse: a política econômica nos governos Jânio Quadros e João Goulart, 1961-1964” (Felipe Pereira Loureiro) Esta resenha foi elaborada pelo autor a convite do Editor da revista EE.

O trabalho de Felipe Pereira Loureiro oferece uma importante (e bem escrita) contribuição para a historiografia do período. O autor realizou um esforço de pesquisa primária muito interessante, com a documentação e análise dos desenvolvimentos no movimento sindical nos governos Quadros e Goulart, e uma investigação também profunda de fontes primárias sobre as relações Brasil-EUA. Sendo assim, pode-se argumentar que as obras que se seguirem sobre o período 1961-1964 necessariamente terão esse trabalho como uma das referências-chave.

O livro acerta ao adotar como linha mestra a análise dos quatro planos de estabilização fracassados que marcaram o período 1961-64: a tentativa sob Quadros, centrada na Instrução n. 204 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), o Plano de Emergência do gabinete Neves, ambos em 1961, o Plano de Economia de 1962 e, mais emblemático, o Plano Trienal de 1963. A incapacidade dos sucessivos governos, por diversas razões, de restaurar o equilíbrio macroeconômico, nesses anos que antecederam a ruptura de 1964 e o início do regime autoritário, teve curiosa similaridade com o fracasso, sob este ângulo, dos governos que se seguiram imediatamente ao mesmo, nos anos 1980 e início dos 1990. O autor, de forma acertada, atribui em parte o enfraquecimento político dos governantes às suas dificuldades na gestão da economia, em especial no que se refere ao controle da inflação, cujo impacto social era particularmente agudo em um contexto pré-indexação. A complexidade das ações políticas no contexto ideológico polarizado da Guerra Fria também fica aparente na análise. Pereira Loureiro atribui primariamente às reações de empresários, trabalhadores e grupos externos, o fracasso dos sucessivos planos de estabilização. As evidências para tanto são apresentadas de forma cronológiconarrativa, ainda que precedência não necessariamente implique causalidade. A inferência poderia ter sido reforçada com uma análise paralela do igualmente conturbado período 1985-1994, quando tanto associações empresariais quanto sindicatos (estes, livres da tutela do Estado) também atuaram fortemente para condicionar a política econômica, em uma conjuntura também caracterizada por dificuldades no balanço de pagamentos. Os planos padeciam, também, de alguns problemas que, à luz da experiência posterior, já diminuíam as chances de sucesso: eram por vezes excessivamente ambiciosos e detalhados (a Síntese do Plano, Trienal, exposta em fac-símile no sítio do Ministério do Planejamento, chega a quase 200 páginas), e seu anúncio também ocorria por vezes de forma parcial e fragmentada, limitando a perspectiva de ganhos de expectativa.

Uma característica do período 1961-64, que sugere baixo grau de tolerância das lideranças políticas, em todo o espectro ideológico, frente a qualquer estratégia de estabilização que pudesse apresentar risco de desaceleração econômica, foi a rapidez com que as diversas tentativas foram abandonadas. Acima de tudo, os planos de estabilização, sem exceção, foram breves demais para gerar qualquer resultado positivo. A política de reequilíbrio macroeconômico ortodoxa sob Quadros durou de meados de março (com a citada Instrução 204) ao início de junho de 1961 (quando o recolhimento compulsório dos bancos comerciais foi relaxado), ainda que o programa não tivesse sido formalmente abandonado até a renúncia. O Plano de Emergência do gabinete Neves foi anunciado em setembro de 1961 e descartado em dezembro. O Plano de Economia, adotado no final do verão de 1962, não chegou ao final do inverno. Já o Plano Trienal, adotado em janeiro-março de 1963, foi abortado em junho-julho, quando os principais gestores da economia, os Ministros Santiago Dantas e Celso Furtado (Fazenda e Planejamento, respectivamente) foram desligados do governo. Ao menor sinal de resistência, seja das chamadas “classes produtoras” (o empresariado), ou dos sindicatos, os diversos governos rapidamente ensejavam correções de curso, que em linhas gerais apontavam para políticas de demanda, monetária e fiscal, mais expansionistas, contrabalançadas por uso mais intenso de controles de preços, ou de um preço em especial, a taxa de câmbio, com o objetivo de conter a inflação.

É fato que os governos do período não conseguiram estabilizar a economia, mas a responsabilidade não se limita aos gestores da época. A herança do governo Kubitscheck foi pesada. Se houve de fato avanço no processo de industrialização da economia no quinquênio JK, seu governo deixou um legado macroeconômico muito desafiador para seu sucessor. Inflação ascendente (de cerca de 20% ao final do mandato presidencial anterior para 30-40% ao final do mandato Kubitscheck), em parte associada à monetização do déficit fiscal e, talvez o maior desafio, um balanço de pagamentos altamente fragilizado - financiado por meio de atrasados comerciais, especialmente junto a empresas de petróleo. Apesar de estarmos nominalmente no regime de câmbio fixo de Bretton Woods, a escalada inflacionária doméstica havia levado, na década anterior, à adoção de um regime de taxas múltiplas de câmbio, com parcelas adicionais diferenciadas e variáveis, acima da paridade oficial de Cr$18,50 por dólar, estabelecida em 1948. Mas este regime, intensamente manipulado pelo governo, em um contexto de severas restrições ao comércio exterior e fluxos de capitais, não foi suficiente para estabelecer taxas de câmbio que compensassem o diferencial de inflação entre o Brasil e o exterior, tomando-se os EUA como base. Consequentemente, o país se deparava com uma crônica apreciação cambial, que se tornou aguda quando a inflação doméstica se acelerou, e que contribuiu sobremaneira para a deterioração do balanço de pagamentos. Os termos de troca tiveram tendência de queda no período, acumulando redução próxima a 8% entre 1960 e 1963, mas isso seria razão para se perseguir com maior, e não menor, celeridade o “realismo cambial”.

A propósito, a combinação de severos controles de capitais com uma inflação doméstica caminhando para os 100% ao ano, gerou o desenvolvimento do mercado paralelo de dólares - este chegou a ter importância (e visibilidade) suficiente para ser citado no relatório anual do Banco de Compensações Internacionais (BIS) de 1963, segundo o qual a taxa do mercado paralelo teria depreciado 75% entre maio e agosto de 1962.1 1 BIS (1963). O texto sugere um ágio entre a taxa do mercado paralelo e a taxa “livre”, que poderia se aproximar de 50%. A terapia indicada para restaurar o equilíbrio macroeconômico no Brasil, na virada dos 1950 para os 1960, era relativamente simples: ajuste fiscal, unificação e realismo cambial, o que implicava desvalorização da moeda nacional, e política monetária e de crédito que garantisse que o ajuste de preços relativos ensejado pela desvalorização fosse persistente. Esse menu de políticas constava do receituário do Fundo Monetário

Internacional (FMI), e poderia, com a contribuição de um maior acesso a financiamentos externos, permitir um ajuste gradual - como de fato acabou ocorrendo, sob o período Campos-Bulhões. A implementação de tal ajuste implicava, contudo, tolerância para o risco de certa desaceleração da atividade, o que de fato ocorreu entre 1964 e 1967 - o PAEG acabou não sendo menos gradualista do que seus antecessores. Obviamente, o bem-sucedido PAEG contou com uma conjuntura política distinta, que ofereceu, ao governo Castelo Branco, à custa da repressão a atores políticos e sociais, o espaço necessário para enfrentar a desaceleração sem risco de perda de poder. Não se segue que estabilização e a responsabilidade macroeconômica seriam incompatíveis com a manutenção do regime democrático - a experiência desde 1994 demonstra isso. Mas Pereira Coutinho acerta ao concluir que as condições mais favoráveis para a estabilização foram observadas no governo Quadros, e que os governos que se seguiram, seja sob o parlamentarismo ou o presidencialismo redivivo a partir de 1963, trabalham sob um cenário político bem desfavorável.

Cabe registrar, também, aspectos do trabalho que poderiam ser aprimorados. Em primeiro lugar, o texto por vezes sugere uma interpretação do processo inflacionário, suas causas e possíveis terapias, que não parece ser consistente com a visão dominante entre os economistas (ainda que esta seja reconhecidamente imperfeita).2 2 Ver, por exemplo, Yellen (2015) sobre o estado da arte no debate sobre a inflação. Há ênfase na relação, ou corrida, entre preços e salários, como se as condições de demanda, e, mais especificamente, a política monetária, pouco tivesse a ver com o processo inflacionário. A aceleração inflacionária observada no período foi tudo, menos surpreendente: descontrole fiscal e políticas monetárias acomodatícias geram este tipo de resultado, em qualquer economia de mercado. O autor parece atribuir ao fortalecimento do movimento sindical uma fatia de responsabilidade pelo recrudescimento do processo inflacionário, mas a causalidade aqui pode ter sido bilateral: os sindicatos provavelmente ganharam força na medida em que ofereciam a uma parcela da sociedade a perspectiva de defesa do poder de compra que as políticas do governo não propiciavam. Boa parte do trabalho se dedica à crônica das relações Brasil-EUA. Assim como os planos de estabilização, e na verdade parte integral dos mesmos, foram recorrentes as missões de renegociação dos compromissos junto a credores internacionais - em contraste com as negociações dos anos 1980 e 1990, credores governamentais predominavam.

O roteiro era o mesmo: brasileiros de alta reputação internacional eram enviados para as capitais do Hemisfério Norte, com a missão de renegociar a dívida, em troca da adoção de programas de estabilização que seguiam geralmente uma agenda ortodoxa, similar à que seria adotada em um programa do FMI, mas buscando condicionalidades menos restritivas e com o menor grau possível de contato oficial e público com o Fundo (em consequência da muito comentada “ruptura” de Kubitscheck com o Fundo em 1959).

A relevância de credores oficiais, em um contexto de recrudescimento das tensões geopolíticas na região, após a Revolução Cubana, criou possibilidades e riscos para essas negociações - algo bem reportado pelo autor. Um governo disposto a pagar o preço político de um maior alinhamento com as gestões dos EUA para circunscrever o regime castrista contaria, a julgar pelas opiniões das fontes americanas citadas no trabalho, com maior boa vontade nas negociações. Mesmo uma atitude de maior independência, como ensaiada pelo próprio Quadros, seria encarada com naturalidade pelas autoridades americanas, desde que fosse mais aparente, voltada para objetivos políticos domésticos, do que efetiva. O trabalho mostra, também, que os governos Kennedy e Johnson tinham uma noção bastante precisa sobre a fragilidade do balanço de pagamentos brasileiro, o impacto econômico provável caso o governo optasse por uma reorientação para o bloco soviético, e, assim, a fragilidade do poder de barganha de suas contrapartes. Esperar ou demandar ajuda financeira, sem condicionantes econômicas e/ou políticas, naquele contexto de tensão política global, que atingiu o auge na crise dos mísseis de outubro de 1962, parecia uma atitude excessivamente otimista. A descrição de um diálogo entre Goulart e Averell Harriman, o financista-político-diplomata americano, entre outras evidências, sugere que o presidente acreditava que nossos problemas econômicos derivavam basicamente de uma tendência desfavorável de termos de troca, de responsabilidade de indefinidos “trustes” internacionais, o que, de alguma forma difusa, fazia-nos merecedores de um apoio econômico-financeiro incondicional dos EUA. Essa expectativa parecia fantasiosa, e, de fato, mostrou-se frustrada. E a falta de compromisso com ajuste macroeconômico, evidenciada pelos líderes políticos da época, facilitava a vida da “linha-dura” dentro do governo americano, que cobrava o uso mais intenso da fragilidade financeira brasileira com fins geopolíticos. A dependência financeira, em suma, militava contra uma política externa mais assertiva. Pereira Loureiro visa analisar a formulação e implementação da política econômica no período 1961-1964, e a influência dos grupos sociais.

O trabalho cobre exaustivamente as alterações na política monetária e fiscal, bem como a gestões internacionais. Mas o texto teria sido enriquecido de forma importante caso tivesse aprofundado a análise do impacto e possível contribuição da política econômica para a desaceleração econômica ocorrida no período - 1963 marcou a primeira queda da produção industrial desde 1930 (excetuando o ocorrido em 1940, que resultou de restrições de oferta derivadas do conflito mundial). Alguns autores, como John Wells, atribuíram ao aperto de crédito ensejado pelo Plano Trienal, responsabilidade pela recessão industrial.3 3 Abreu (1990), Wells (1977). Como o mesmo foi breve, e, de qualquer forma, as medidas de contenção creditícia deveriam ter impactado a atividade econômica com certa defasagem, tal impacto não deve ser superestimado. Uma conjectura, que Pereira Loureiro ou outros historiadores do período podem vir a testar, é se o “stop-and-go” de planos econômicos observado entre 1961 e 1963 não teria contribuído, dados os distúrbios na oferta de crédito e recorrentes mudanças nas regras cambiais, e o aumento geral do grau de incerteza sobre a política econômica, para a desaceleração da atividade.

  • Editora UNESP, 1ª Ed. São Paulo, 2017, 597 p.
  • Esta resenha foi elaborada pelo autor a convite do Editor da revista EE.
  • 1
    BIS (1963). O texto sugere um ágio entre a taxa do mercado paralelo e a taxa “livre”, que poderia se aproximar de 50%.
  • 2
    Ver, por exemplo, Yellen (2015)Yellen, J. 2015. “Inflation Dynamics and Monetary Policy, Philip Gamble Memorial Lecture”. University of Massachusetts, Amherst. sobre o estado da arte no debate sobre a inflação.
  • 3
    Abreu (1990)Abreu, M. de P. 1990. “Inflação, estagnação e ruptura: 1961-1964”. In Abreu, M. de P. (Org.). A Ordem do Progresso. Cem anos de política econômica republicana (1889-1989), Rio de Janeiro: Campus., Wells (1977)Wells, J. 1977. “Growth and fluctuations in the Brazilian manufacturing sector during the 1960’s and early 1970’s”. Cambridge, PhD (Dissertation) - Cambridge University..

Referências

  • Abreu, M. de P. 1990. “Inflação, estagnação e ruptura: 1961-1964”. In Abreu, M. de P. (Org.). A Ordem do Progresso. Cem anos de política econômica republicana (1889-1989), Rio de Janeiro: Campus.
  • Bank for International Settlements (BIS). 1963. “Thirty-Third Annual Report, 1st April 1962-31st”, March, Basle, 1963.
  • Wells, J. 1977. “Growth and fluctuations in the Brazilian manufacturing sector during the 1960’s and early 1970’s”. Cambridge, PhD (Dissertation) - Cambridge University.
  • Yellen, J. 2015. “Inflation Dynamics and Monetary Policy, Philip Gamble Memorial Lecture”. University of Massachusetts, Amherst.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2017
  • Aceito
    09 Mar 2018
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