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Uma análise além da renda: o pioneirismo de Gunnar Myrdal na abordagem econômica sobre as desigualdades sociais Os autores agradecem aos pareceristas anônimos pelos comentários e sugestões, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da Bolsa que possibilitou a realização desse estudo."

Resumo

Estudos sobre desigualdade na Ciência Econômica formam um campo amplo e consolidado, e são majoritariamente direcionados às desigualdades econômicas. Nas primeiras duas décadas do século XXI, movimentos sociais em diversos países fizeram reacender o debate, de tal forma que eminentes economistas passaram a incorporar questões sociais às suas análises sobre as desigualdades econômicas. O objetivo deste artigo é demonstrar que esta forma multidisciplinar de analisar as desigualdades foi empregada de forma pioneira por Gunnar Myrdal ainda na década de 1960, período em que os estudos sobre o tema eram muito correlacionados a métricas de renda e riqueza. A partir deste resgate, o artigo argumenta que a ampla gama de desigualdades sociais não surge apenas como uma consequência da distribuição desigual de renda. Por isso, sugere que o debate sobre a redução das desigualdades deve incorporar análises mais amplas tais como aquelas sugeridas por Myrdal. O artigo conclui que a efetiva redução das desigualdades sociais ocorre por meio da execução de profundas e lentas reformas estruturais.

Palavras-chave:
Desigualdade de renda; Desigualdade social; Desenvolvimento econômico; Gunnar Myrdal; Reformas estruturais

Abstract

Studies on inequality constitute a broad and consolidated field in Economic Science and are mostly oriented towards economic inequalities. In the first two decades of the 21st century, different countries’ social movements have retrieved the debate in such a way that notable economists began incorporating social issues into their analysis of economic inequalities. This paper aims to demonstrate that this multidisciplinary way of analyzing inequalities was first used by Gunnar Myrdal during the 1960s, when inequality studies were broadly related to income and wealth measurement. We argued that the wide range of social inequalities is not always a result of the unequal income distribution. Also, we highlight that social inequality has a long-term impact on economic development. As a result, the paper suggests that the debate regarding reducing inequality must incorporate broader actions such as those outlined by Myrdal. It concludes that reducing inequalities is a process based on the implementation of deep social reforms.

Keywords:
Social inequality; Income inequality; Gunnar Myrdal; Structural reforms; Economic development

1. Introdução

A desigualdade tornou-se um tema mais amplamente estudado na Ciência Econômica principalmente a partir do estudo seminal de Kuznets (1955Kuznets, Simon. 1955. “Economic Growth and Income Inequality”. American Economic Review 45, n. 1: 1-28.) no qual o autor analisa a relação entre desigualdade (de salário e renda) e crescimento econômico. A “hipótese de Kuznets” derivada deste artigo sugere que a desigualdade de renda se comporta como uma curva em “U invertido” durante o processo de transformação estrutural de uma economia, demonstrando que ela sai de uma sociedade agrícola para outra caracterizada por uma estrutura industrializada. Nesta trajetória, a desigualdade de renda aumentaria nos primeiros estágios de industrialização e crescimento econômico, atingiria seu pico, para então ser reduzida no longo prazo.

Desde sua publicação, este estudo de Kuznets deu origem a diversas interpretações. Dentre elas, destaca-se a de Okun (1975Okun, Arthur M. 1975. Equality and Efficiency: The Big Tradeoff. Washington, DC: Brookings Institution Press.). Nesta obra, o autor propõe que existe um trade-off entre crescimento do produto e igualdade de renda de tal forma que uma melhor distribuição de renda poderia representar obstáculos ao crescimento econômico. Esta perspectiva se consolidou no debate econômico em um momento em que os dois choques do petróleo (1973 e 1979) impactaram negativamente o crescimento do produto em diversas economias do mundo. Uma vez que os países estavam concentrados em recuperar os níveis de crescimento dos anos anteriores aos choques, as discussões sobre políticas de bem-estar social - tais como distribuição mais igualitária da renda - foram colocadas em segundo plano.

Nas primeiras duas décadas do século XXI, os estudos sobre desigualdade reacenderam no debate econômico, motivados principalmente pela degradação dos problemas econômicos e sociais que emergiram em (diversas nações. Apenas para citar alguns exemplos, pode-se mencionar que movimentos sociais de repercussão internacional surgiram em países de renda baixa e média como Tunísia e Egito em 2011, e Chile em 2016; e de renda alta, como a Espanha em 2011. Tais fatos tornaram-se um dos elementos que subsidiaram o retorno a discussões mais profundas acerca da correlação entre crescimento do produto e bem-estar social.

No debate econômico, os estudos sobre o tema têm procurado avaliar o aumento da desigualdade de renda e riqueza no mundo e apresentar seus impactos. Embora majoritariamente direcionados às desigualdades econômicas, destaca-se que autores especializados no tema têm incorporado outras questões sociais em suas análises, buscando evidenciar as maneiras pelas quais os problemas causados pela desigualdade de renda transbordam para demais áreas do sistema social (Piketty 2013, Stiglitz 2012Stiglitz, Joseph E. 2012 The Price of Inequality: How Today’s Divided Society Endangers our Future. New York: WW Norton & Company.; 2016, Milanovic 2016Milanovic, Branko. 2016. Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press., Galbraith 2007Galbraith, James. 2007. “Global Inequality and Global Macroeconomics”. Journal of Policy Modeling, n. 29: 587-607.; 2010, dentre outros). Nestes trabalhos, as desigualdades influenciam sobremaneira não só a matriz produtiva, como também o bem-estar individual, as relações políticas, a estrutura democrática e demais instituições do capitalismo.

No entanto, destaca-se que esta é uma orientação recente do debate, amplamente consolidado em torno de métricas relacionadas à renda e à riqueza. Como consequência, a ampla gama de desigualdades é geralmente interpretada enquanto consequência da distribuição desigual de renda. Em outras palavras, nota-se uma relação quase direta entre causa (distribuição desigual de renda) e consequência (existência de múltiplas desigualdades). Como resultado desta interpretação, as proposições de políticas redutoras de desigualdade encontram-se, em geral, circunscritas a propostas de natureza econômica tais como a aplicação de impostos progressivos sobre a renda e a taxação de grandes fortunas.

Tendo isso em mente, o objetivo do artigo é resgatar o trabalho elaborado por Gunnar Myrdal uma vez que ele elaborou uma interpretação mais ampla sobre desigualdade no âmbito da ciência econômica. De forma pioneira a partir da década de 1960, Myrdal já indicava que as análises sobre desigualdade deveriam ultrapassar as barreiras das variáveis econômicas. Seus estudos demonstraram que o amplo conjunto de desigualdades que marcam a sociedade contemporânea tem raízes mais complexas do que a distribuição desigual de renda, gerando, ademais, impactos deletérios de longo prazo para o desenvolvimento das nações.

Ressalta-se que este artigo emprega o termo “desigualdade social” para se referir a desigualdades observadas em setores como educação, saúde, saneamento, habitação, representação política, dentre outras. Desta forma, busca-se contribuir com o debate recente a partir das propostas elaboradas por Myrdal há cerca de 60 anos. A despeito de se tratar de um período de mais de meio século, considera-se que sua interpretação converge com as análises contemporâneas e que apresenta pontos relevantes ainda pouco explorados na literatura econômica recente sobre o tema.

O artigo está dividido em 4 seções além desta introdução. A segunda apresenta um breve panorama do debate recente acerca da desigualdade a fim de demonstrar como este campo vem incorporando demais fatores sociais às análises econômicas. A terceira procura resgatar a análise elaborada por Myrdal a partir dos anos 1960, período em que ele aprofundou seus estudos sobre a forma como as diferentes desigualdades se interligam no tecido social e geram resultados em diversos setores. A quarta seção busca destacar que tal interpretação foi pioneira em um período em que os estudos econômicos acerca da desigualdade eram delimitados a análises de renda e riqueza. Por fim, breves considerações finais concluem o artigo.

2. As Desigualdades no Debate Recente

Na literatura especializada recente, destacam-se os estudos relacionados à desigualdade econômica (mensurada a partir de variáveis como salários, renda e riqueza) e seus impactos sobre diversas esferas da estrutura social (tais como populações pobres e vulneráveis, mobilidade social, representatividade política, dentre outras). Neste aspecto, um dos autores de mais destaque atualmente é Thomas Piketty. Seus estudos em conjunto com Emmanuel Saez e Anthony Atkinson apresentam a evolução da distribuição (e concentração) da renda desde 1910 até 2010, expandindo os dados utilizados por Kuznets para uma escala global.

Partindo da premissa de que a renda detida pelo um por cento da população mais rica é geralmente subestimada por pesquisas censitárias, os autores propuseram uma nova metodologia, corrigindo o índice de Gini por dados estimados a partir das declarações de imposto de renda. Seus resultados se configuram em uma vasta base de dados acerca da desigualdade e concentração da renda e da riqueza em mais de 20 países.

Piketty (2013) destaca que importantes oscilações na tendência da desigualdade de renda (tanto para aumento quanto para redução) ocorreram não apenas devido às variáveis econômicas (como políticas relativas aos salários, tributação e capacitação de mão-de-obra), mas principalmente devido a choques externos como as Grandes Guerras. No entanto, o principal argumento do autor, que ele chama de “força fundamental” para a ampliação das desigualdades de renda, é a relação entre a taxa de retorno do capital (r), e a taxa de crescimento da renda e do produto (g). Grosso modo, o autor explica que as desigualdades de renda e riqueza no mundo resultam da configuração do “capital no século XXI”, onde r > g. Neste aspecto, por serem superiores aos retornos de crescimento do produto, os retornos do capital resultam no aumento significativo do número de ricos, que concentram, no topo da pirâmide, a maior parte da renda. No longo prazo, essa renda é acumulada e expandida intergeracionalmente a partir da riqueza herdada. Conforme explica o autor (2013, 58), “é quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social [...]”.

Stiglitz (2012Stiglitz, Joseph E. 2012 The Price of Inequality: How Today’s Divided Society Endangers our Future. New York: WW Norton & Company.; 2016), também fez importantes contribuições sobre os impactos das desigualdades de renda no mundo, em especial, acerca da sua relação com o sistema político. Segundo o autor (2012, 51, tradução nossa), é necessário que se considerem os fatores políticos nas análises sobre desigualdade de renda, pois uma das características da atuação do Estado na economia é sua capacidade de fomentar a formação de oligopólios, através dos quais as desigualdades são ampliadas: “Grande parte da desigualdade que existe hoje é resultado da política do governo, tanto o que o governo faz quanto o que não faz. O governo tem o poder de mover dinheiro do topo para baixo e para o meio, ou vice-versa”.

Ele ressalta ainda que a desigualdade de renda se comporta como um círculo vicioso, ou seja, ela é ao mesmo tempo causa e consequência do fracasso do sistema político, que por sua vez impacta o sistema econômico e agrava o contexto econômico e social de uma nação. Em sua obra (2016), Stiglitz desmistifica concepções sobre a relação entre desigualdade de renda e crescimento tais como sugeridas por Okun (1975Okun, Arthur M. 1975. Equality and Efficiency: The Big Tradeoff. Washington, DC: Brookings Institution Press.). Para o autor (2015; 2016) proposições tais como a de que se deve “crescer o bolo para depois distribuir seus benefícios1 1 Esta expressão seria a analogia em língua portuguesa para “grow the pie” e “a rising tide lifts all boats” (ambas empregadas pelo autor). ” e, de forma complementar, de que tal distribuição se daria na forma de “economia do gotejamento”2 2 A expressão “trickle-down economics” refere-se aos benefícios fiscais concedidos aos grandes empresários para estimular os investimentos no curto prazo, que “gotejariam” até as classes mais baixas na forma de criação de emprego no longo prazo. , desconsideram o aumento da desigualdade durante a fase de crescimento econômico. O autor considera tais concepções fundadas em discursos políticos que não possuem embasamento empírico ou teórico.

Por sua vez, James K. Galbraith (2007Galbraith, James. 2007. “Global Inequality and Global Macroeconomics”. Journal of Policy Modeling, n. 29: 587-607.; 2010; 2012; 2016), diretor do University of Texas Inequality Project, elaborou importantes contribuições sobre o tema. Dentre elas, ele tem revisado estudos como o “U invertido” de Kuznets, adicionando às suas análises elementos relevantes que na era pós-globalização tornaram-se mais complexos, tais como; o capital financeiro, as inovações tecnológicas, as atuações governamentais (com novas regras de impostos), as atividades das grandes corporações, as organizações sindicais, dentre outros. Metodologicamente, seus estudos sobre desigualdade não utilizam a renda (income) e sim a remuneração pelo trabalho formal (pay) como principal variável de análise.

Galbraith (2016______. 2016. Inequality: What Everyone Needs to Know. New York: Oxford University Press.) sugere que, em certa medida, a desigualdade econômica não seria maléfica ao desempenho da economia, pois o crescimento da desigualdade pode ser um sinal de prosperidade econômica. No entanto, ressalta que é preciso atenção para que a desigualdade não se torne contraproducente. Destaca-se que o autor não define uma métrica para isso, apenas sinaliza que esta é uma questão que deve ser debatida pela sociedade.

Assim, assume como ponto de partida que as desigualdades econômicas no mundo atingiram níveis acima do “desejado”, e devem ser (reduzidas, ação que requer um conjunto de medidas sugeridas no livro). No entanto, cabe ressaltar que embora sinalize que há relação direta entre economias mais igualitárias e suas menores taxas de desemprego, pobreza e mortalidade (e outros indicadores de saúde e bem-estar), o destaque de seu trabalho sobre a desigualdade econômica é sua relação com o desempenho da economia, ou seja, com o crescimento do produto.

A incorporação de variáveis não-econômicas no debate sobre desigualdade encontra respaldo, inclusive, em estudos recentes de organizações como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Relatório do Desenvolvimento Humano 2019 (UNDP 2019) produzido no âmbito das Nações Unidas abordou o tema desigualdade para “além da renda, além das médias, além de hoje”. Nesta edição do Relatório, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), tradicionalmente publicado em suas edições, foi “ajustado” pelas desigualdades, buscando representar de forma mais efetiva o nível de desenvolvimento de cada país.

No mesmo ano, o (FMI) publicou um trabalho técnico direcionado aos “gastos sociais”. Nela, define que gastos sociais são aqueles relacionados à “proteção social e serviços de educação e saúde”, e ressalta que o interesse no tema foi intensificado na última década como reflexo do aumento das desigualdades após a crise financeira de 2008. O Relatório (2019, 7, tradução nossa) afirma que os gastos sociais “[...] são uma alavanca política essencial para promover o crescimento inclusivo, combater a desigualdade, proteger grupos vulneráveis durante mudanças e ajustes estruturais, suavizar o consumo ao longo do ciclo de vida e estabilizar a demanda durante choques econômicos”.

Outros autores têm contribuído para a robustez do debate recente sobre desigualdade no mundo. Dentre eles, destacam-se Milanovic (2016Milanovic, Branko. 2016. Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.), Kanbur (2017Kanbur, Ravi. 2017. “Structural Transformation and Income Distribution: Kuznets and Beyond”. African Development Bank Working Paper Series, n. 266.), Baymul e Sen (2018Baymul, Cinar, e Kunal Sen. 2018. “Was Kuznets Right? New Evidence on the Relationship Between Structural Transformation and Inequality”. University of Manchester Global Development Institute, Working Paper 2018-027: 1-44.). No Brasil, pode-se mencionar os trabalhos de Medeiros (2005Medeiros, Marcelo. 2005. O que faz os Ricos: O Outro Lado da Desigualdade Brasileira. São Paulo: Anpocs, Aderaldo & Rothschild.) e de Souza (2018De Souza, Pedro F. 2018. Uma História da Desigualdade: A Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil (1926-2013). São Paulo: Hucitec.). De forma geral, a temática vem adquirindo relevância no debate acadêmico, especialmente em resposta aos movimentos sociais como os mencionados na introdução deste artigo. Majoritariamente, nota-se que as análises utilizam renda e riqueza como suas principais variáveis, embora incorporem demais questões ao debate. Destaca-se, no entanto, que a preferência por tais variáveis tende a ser uma opção metodológica. Conforme destacado por Galbraith (2016______. 2016. Inequality: What Everyone Needs to Know. New York: Oxford University Press., 2, tradução nossa) “Os economistas tendem a estar especialmente interessados em três tipos de desigualdade: de salário, renda e riqueza”. Segundo o autor, essa preferência não implica em maior relevância das desigualdades econômicas frente às demais, mas ocorre apenas porque são calculadas através da unidade monetária, variável amplamente utilizada por economistas e menos complexa de ser mensurada quando comparada às demais.

A despeito das questões de método, argumenta-se neste artigo que as análises econômicas sobre desigualdade devem ser mais abrangentes devido à complexidade inerente ao sistema social. Neste aspecto, a obra de Gunnar Myrdal possui grande destaque. Ao longo de sua carreira, o autor elaborou uma análise multidisciplinar 3 3 A característica “multidisciplinar” das análises do autor é, por ele mesmo, classificada como “institucionalista”. Assim, sua identificação enquanto um “economista institucionalista” decorre da incorporação, em seus estudos, de outras disciplinas além da economia (Myrdal 1978). sobre as desigualdades sociais adaptadas às idiossincrasias do mundo real, ao invés de elaborar modelos formalizados de grande abstração teórica (Ferreira, Salles 2020Ferreira, Carolina C., e Alexandre O. T. Salles. 2020. “Desenvolvimento Econômico e Desigualdade Social: Uma Análise a partir do Princípio de Causação Circular Cumulativa de Gunnar Myrdal”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 55 (2020):82-116.). Uma de suas principais contribuições a este respeito consiste em demonstrar como as desigualdades apresentam impactos de longo prazo no desenvolvimento da sociedade, e em elaborar um plano para superá-las. Devido à importância acadêmica de suas contribuições sobre o assunto, suas principais propostas serão apresentadas na próxima seção.

3. Desigualdade Social: Um Resgate da Abordagem Myrdaliana

Myrdal é considerado um dos autores clássicos da literatura sobre ao desenvolvimento econômico. Contudo, suas contribuições para as ciências sociais ecoam em outras áreas além da Economia, como a Antropologia e a Sociologia. Dentre os vários livros e artigos que publicou correlacionando a questão das desigualdades sociais com desenvolvimento econômico, duas obras se destacam: Economic Theory And Underdeveloped Regions (1957) e Asian Drama (1968). Nestas, inter alia, ressalta que os entraves ao desenvolvimento das nações subdesenvolvidas4 4 O artigo fará uso do termo “subdesenvolvido” conforme empregado originalmente por Myrdal para fazer referência a países atualmente classificados como de renda baixa, média, média-alta ou países em desenvolvimento. são compostos por fatores econômicos (como produtividade, desemprego, níveis de renda e poupança) e não econômicos (que abrangem setores “de consumo coletivo” como níveis de educação e saúde, além de poder político, estratificação social, política eeconômica, dentre outras instituições e comportamentos sociais). A visão do autor é que este conjunto de fatores interagem entre si e determinam o padrão de desenvolvimento em cada país.

Nas obras mencionadas acima são abordados temas como: i) a forma como as desigualdades surgem e se reforçam no tempo através do princípio de Causação Circular Cumulativa5 5 Uma explicação detalhada sobre o princípio da Causação Circular Cumulativa (CCC) conforme elaborada por Myrdal foge do escopo deste artigo. Em linhas gerais, a CCC tem como objetivo central explicar a forma como os fatores (sejam econômicos ou não econômicos) interagem e causam mudanças uns nos outros ao longo do tempo. O princípio da CCC tem como premissa um sistema social dinâmico, que não gera equilíbrio nos moldes walrasianos, e cuja interação dos fatores pode gerar efeitos benéficos ou maléficos ao sistema social. Para mais detalhes, ver Myrdal (1957), Berger (2009), O’Hara (2008) e Ferreira e Salles (2020). ; ii) os impactos que as desigualdades existentes nos níveis internacional, regional e doméstico têm sobre o desenvolvimento; iii) o papel do Estado para a mitigação das crises e promoção do desenvolvimento econômico; e iv) os entraves institucionais ao desenvolvimento econômico e, em especial, o papel da corrupção neste processo. É importante notar que a própria definição de desenvolvimento do autor incorpora a importância da redução das desigualdades sociais. Myrdal define desenvolvimento econômico como um “movimento ascendente de todo o sistema social” (“the movement upward of the entire social system”, 1974, 729). Afirma ainda que nações que não alcançam o desenvolvimento são aquelas em que a estrutura social tem pouca mobilidade, fruto da contínua reprodução das desigualdades ao longo do tempo.

O fenômeno da desigualdade foi tema de seu discurso de agradecimento ao The Sveriges Riksbank Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel. Neste discurso, o autor (1975) discorre a respeito de desigualdades internacionais e domésticas e seus impactos sobre o processo de desenvolvimento das nações. Em especial, ressalta que mesmo quando países subdesenvolvidos apresentam tendências de crescimento do produto, as desigualdades sociais profundas fazem com que os benefícios do crescimento sejam garantidos apenas às elites, resultando em um aprofundamento dos níveis de pobreza do restante da população. Myrdal foi laureado com o Nobel de Economia em 1974______. 1974. “What is Development?” Journal of Economic Issues8, n. 4: 729-36. por sua análise multidisciplinar sobre os fenômenos econômicos, sociais e institucionais.

De fato, tal forma multidisciplinar de analisar os problemas sociais com foco nas desigualdades é apresentado ainda nos anos 1940 em American Dilemma (1944), onde analisa as raízes dos problemas socioeconômicos vividos pela população negra estadunidense. Sempre considerando que os problemas sociais apresentam um caráter circular, Myrdal apresenta os mecanismos através dos quais as diversas desigualdades entre negros e brancos se perpetuavam naquela sociedade.

Ao considerar o sistema social como integrado e interdependente, Myrdal destaca que medidas de redistribuição mais igualitária de renda, embora relevantes, não surtiriam os efeitos desejados para o desenvolvimento destas sociedades. Por isso, a redução das desigualdades deveria ocorrer a partir de reformas estruturais profundas. Em uma importante contribuição ao Banco Mundial, o autor ressaltou que

Em países subdesenvolvidos, tal redistribuição de renda não pode, entretanto, ser realizada tributando os ricos e transferindo dinheiro para os pobres por meio de programas de seguridade social e outras medidas semelhantes para elevar seus níveis de vida. Os pobres são esmagadoramente numerosos e os ricos são relativamente poucos - e a evasão de impostos entre eles é muito comum. O que é necessário para elevar os níveis de vida miseráveis da massa de pessoas pobres é, em vez disso, reformas institucionais radicais. Isso serviria ao duplo propósito de maior igualdade e crescimento econômico. Os dois objetivos estão inextricavelmente unidos (1984, 154, tradução nossa).

Myrdal enfatiza, ainda, que a análise acerca de “maior igualdade” deve abranger aspectos que ultrapassem as barreiras econômicas de renda e riqueza. O autor advoga por uma maior igualdade de oportunidades e acesso a melhores padrões de educação e saúde, bem como pela ampliação da igualdade na esfera política (dentre outras condições que serão mencionadas nesta seção). Por isso, defende que as reformas são os mecanismos necessários para promover as rupturas na estratificação política, econômica e social, a partir das quais poderá enfim se consolidar um processo de desenvolvimento econômico.

Por se tratar de um processo intrincado, o resultado de tais reformas ocorrerá apenas no longo prazo, quando as instituições que compõem a sociedade serão capazes de absorver as modificações necessárias a apresentar o esperado “movimento ascendente do sistema social”, potencializando assim o desenvolvimento econômico.

Seu trabalho a respeito das reformas institucionais redutoras de desigualdade e, por consequência, promotoras de desenvolvimento, foi delineada em Asian Drama (1968) e expandido em Challenge of World Poverty (1970). Neste último, Myrdal propõe que os problemas do mundo subdesenvolvido são, em geral, muito semelhantes, e ocorrem especialmente em quatro esferas: i) educação, demografia, produção agropecuária e poder político. Estes seriam os principais setores onde deveriam ocorrer as reformas institucionais capazes de reduzir as desigualdades que obstam o desenvolvimento destas nações, e serão sumarizados a seguir.

3.1. A redução das desigualdades educacionais

A relação direta entre educação e economia é amplamente explorada pelas ciências sociais, e considera-se consenso que países economicamente mais pobres apresentam maior número de analfabetos e pior qualidade do ensino em relação àqueles mais desenvolvidos. Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) também destaca esse aspecto, e inicia sua análise sobre o sistema educacional de países subdesenvolvidos a partir de duas principais variáveis: o número de pessoas alfabetizadas e o número de crianças matriculadas no ensino primário. Em ambas análises, destacou que há escassez de estatísticas confiáveis ou satisfatórias para que se compreenda o sistema e, então, se planeje a reforma no sistema educacional. Por esse motivo, destaca que um dos problemas de se reformar a estrutura educacional desses países está na maneira como os dados têm sido manipulados e divulgados ao longo dos anos, em geral, superestimando a qualidade do ensino. Outro aspecto estatístico que apresenta viés na análise da estrutura educacional destes países é o número de crianças matriculadas nas escolas. Myrdal ressalta que o número de matrículas não corresponde de fato ao número de crianças que frequentam as salas de aula, especialmente nas regiões mais pobres e isoladas.

Para além dos problemas estatísticos que configuram as medidas quantitativas educacionais em alguns países, o autor ressalta que o maior problema do sistema educacional nestes casos encontra-se de fato na qualidade do ensino. Por isso, as reformas educacionais devem encampar não apenas as variáveis quantitativas, mas especialmente as qualitativas.

Uma das críticas do autor à forma como a educação é inserida na análise econômica se relaciona à abordagem que foi dedicada a este tema no Pós-Segunda Guerra. Neste período, autores convencionais passaram a incluir a variável “capital humano” em seus modelos de crescimento econômico. Em geral, estes modelos analisam a educação enquanto uma variável homogênea e mensurável nas equações de custos. Seu retorno é então calculável e compõe o resultado do crescimento do produto. Segundo Myrdal, abordagens desta natureza não compreendem questões qualitativas relativas à educação, tais como: a qualidade do ensino; as pessoas a quem ele é direcionado (e suas diferenças sociais e de gênero6 6 Myrdal afirma que, em áreas mais pobres como as rurais, a presença de meninas na escola é inferior à de meninos. )6; o conteúdo que é ensinado; sua adequação à realidade destas pessoas; e o próprio propósito da educação enquanto uma variável de redução das desigualdades sociais.

Um dos problemas no sistema educacional destes países é o índice elevado de analfabetismo entre pessoas adultas. Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) destaca que crianças cujos pais são analfabetos têm maior probabilidade de se distanciarem da educação formal. Com relação à educação primária, os dados analisados pelo autor indicam que, além do baixo número de crianças matriculadas, ao menos metade evade ou não frequenta a escola regularmente. Este índice de evasão aumenta à medida que se avança da educação primária para níveis subsequentes. Como exemplo, menciona que enquanto na Índia uma em cada três crianças conclui o ensino primário, no Paquistão este número decresce para uma em cada seis crianças. Em áreas rurais e mais pobres, estes dados são ainda mais elevados. Segundo o autor, de uma forma geral, tal situação decorre da escassez de recursos financeiros destinados à educação.

Somado à conjuntura fiscal e orçamentária, Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) destaca que a situação educacional destes países é agravada pela profunda desigualdade social que apresentam, fazendo com que a educação formal se torne um privilégio destinado à elite. Por consequência, uma pequena parcela da população alcança níveis de educação formal mais elevados, enquanto a maioria dos indivíduos não conclui sequer o ensino primário. De forma cumulativa, o hiato educacional entre a elite e o restante da população reforça a rigidez do sistema social e amplia as desigualdades já existentes. Desta forma, o autor conclui que o “o monopólio da educação é [...] a base mais fundamental da desigualdade, e mantém seu domínio com mais força nos países mais pobres” (1970, 195 tradução nossa).

Tal monopólio é mantido pela estrutura estabelecida de poder político exercido pelas classes mais elevadas visto que não estão de fato interessadas em ampliar a cobertura educacional em seus países. Logo, a urgência da reforma educacional não é legitimada por estas elites uma vez que a implementação deste tipo de política está fora de seu radar de interesses políticos.

Segundo o autor (1970) o ensino primário é negativamente afetado também pela má formação dos professores. Muitos países não possuem a estrutura adequada para treiná-los e a própria qualidade do treinamento pode ser questionada em diversas regiões, especialmente nas mais pobres. Como consequência, os salários dos professores nestes países são proporcionalmente inferiores aos dos países desenvolvidos. Ademais, o autor destaca que, em geral, os profissionais da educação melhor treinados atuam nos grandes centros, o que contribui para a acentuação das desigualdades regionais.

Myrdal ressalta que devem ocorrer investimentos nas estruturas físicas e ampliação das redes de ensino, inclusive àquelas destinadas às áreas rurais. Não obstante, a reestruturação da educação apoia-se de forma estratégica sobre a figura do professor. Ele destaca que deve haver aumento no número destes profissionais, e que eles devam ser adequadamente qualificados. A este respeito, Myrdal afirma que a reforma do sistema educacional

[...] seria uma tarefa desesperançosa sem professores que estejam não apenas satisfeitos com suas condições econômicas e sociais e sejam aceitos como líderes intelectuais e morais em sua comunidade, como também que sejam dedicados, entusiasmados, imbuídos do zelo de disseminar conhecimentos úteis e práticos e com vontade de avançar (1970, 201 tradução nossa).

Myrdal destaca que para que reformas desta natureza sejam postas em prática é necessário que o governo mantenha o controle sobre as instituições educacionais através do aperfeiçoamento de práticas de setores administrativos dedicados à educação. Em especial, ressalta a questão do financiamento: os valores direcionados à educação não poderão ser calculados em termos de “retorno de investimento no capital humano”, pois a reforma do sistema educacional só apresenta seus resultados no longo prazo. Ademais, as reformas de caráter qualitativo estão mais relacionadas à redução das desigualdades sociais e ao desenvolvimento socioeconômico do que ao próprio crescimento do produto. Portanto, caberá ao governo equalizar o orçamento de forma que o setor educacional garanta sua manutenção e expansão, mesmo em um cenário em que os investimentos em obras de infraestrutura sejam prioridade para o poder político estabelecido por demonstrarem resultados mais conspícuos no curto prazo.

3.2. O controle demográfico e seus impactos sobre as desigualdades

A chamada “explosão populacional” ocorrida no Pós-Segunda Guerra foi a mais importante mudança ocorrida na estrutura socioeconômica dos países subdesenvolvidos (Myrdal 1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.). Por isso, a questão do controle demográfico deve ser um ponto essencial no planejamento do desenvolvimento. Segundo o autor, índices populacionais mais elevados podem frustrar o planejamento governamental pois impactam nos níveis de renda dos indivíduos, em seu padrão de consumo e, portanto, em sua qualidade de vida. A densidade populacional torna-se mais concentrada nas grandes cidades e tende a formar comunidades habitacionais cujas condições de vida e sobrevivência são incompatíveis com a dignidade humana.

Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) formula o debate acerca do crescimento demográfico em países subdesenvolvidos a partir de dois temas específicos, a saber, a taxa de mortalidade infantil e a taxa de natalidade7 7 A taxa de mortalidade infantil é calculada pela razão entre o número de óbitos até um ano de idade por mil crianças nascidas vivas, enquanto a taxa de natalidade é a razão entre o número de nascidos vivos por mil habitantes. . Ao tratar da tendência mundial de redução da taxa de mortalidade infantil, o autor afirma que tal redução não ocorreu por melhora nos níveis sociais, e sim devido ao aprimoramento da tecnologia aplicada à medicina. Enquanto os índices sociais dos países subdesenvolvidos se apresentavam estáveis (em níveis abaixo do desejado), a tecnologia possibilitou que doenças que antes vitimavam crianças passassem a ser tratadas de forma mais eficaz, inclusive preventivamente, como por exemplo através da aplicação de vacinas.

Quanto à taxa de natalidade, Myrdal destaca que as políticas destinadas a este fim devem ser implantadas, em especial, em regiões mais carentes onde a desigualdade e a pobreza permeiam as mais diversas áreas. Nestas regiões, inclusive, há escassez de mão de obra de profissionais da saúde, em especial dos médicos, uma vez que estes tendem a se concentrar nos grandes centros em função da escassez de recursos das regiões mais pobres e afastadas. Assim, torna-se uma responsabilidade do Estado implementar políticas que garantam o acesso à saúde nestas regiões mais carentes.

Ademais, Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) sugere que os países incentivem práticas contraceptivas uma vez que a redução da taxa de natalidade tem influência tanto no curto quanto no longo prazo. No curto prazo, a redução desta taxa gera impacto na distribuição etária da população, além de influenciar a renda das próprias famílias (promovendo uma maior proporção de renda per capta em famílias menos numerosas.), impactando positivamente o consumo. Por sua vez, o aumento do consumo direcionado à melhoria no padrão de vida afeta também positivamente a qualidade e produtividade da mão de obra, favorecendo a eficiência do trabalho. Por sua vez no longo prazo, a redução da natalidade tende a reduzir taxas de desemprego e aumentar salários, dada a redução da oferta de mão de obra. Nota-se que o efeito cumulativo age sobre todos os fatores de forma ascendente. Portanto, as propostas elaboradas por Myrdal acerca das inter-relações entre controle demográfico e desigualdade social estão pensadas dentro da proposta de que as mudanças agem de forma multivariada em processo de causação circular cumulativa com o propósito de promover uma ascensão social geral na qualidade de vida da sociedade. Seu raciocínio está portanto focado na busca de um desenvolvimento econômico que seja socialmente mais inclusivo.

3.3. A redução das desigualdades na produção agropecuária

A análise de Myrdal acerca da produção agropecuária é majoritariamente direcionada à agricultura, mas o autor trata de agricultura e pecuária como atividades que seguem padrões similares. Sua análise pode ser segmentada em duas: i) direcionada à países latino-americanos onde este setor opera em “escala industrial”; e ii) referente ao restante dos países subdesenvolvidos.

No primeiro caso, o termo "escala industrial" a que o autor se refere significa que a estrutura produtiva destes países está concentrada na produção de grãos do tipo commodities, como soja, trigo e café. De forma geral, estas plantações contam com elevado aporte tecnológico e, portanto, altos níveis de investimentos e emprego regular da mão de obra. Contudo, o autor destaca dois problemas existentes neste modelo: a) o fato de que os grãos são direcionados ao mercado externo; e b) o cultivo destas commodities supera o cultivo de demais grãos alimentícios (como arroz e feijão). Estes dois problemas ressaltam o fato de que a agricultura nesses países não é direcionada à demanda da crescente população interna, dificultando a redução dos seus níveis de pobreza e bem-estar, e preservando assim as desigualdades.

No segundo caso, Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) destaca que a produção agropecuária nos demais países subdesenvolvidos apresenta uma taxa homem/terra elevada, o que resulta em baixos retornos por unidade de terra. Nestes países, há um nível crescente de oferta de mão de obra, relacionado ao aumento crescente de natalidade, que resultam na subutilização desta mão de obra. Tal configuração acarreta rendimentos salariais abaixo do desejado, reforçando os ciclos de pobreza e as desigualdades sociais nestas regiões. O autor afirma que um dos responsáveis por este modo de produção ineficiente é a insipiência da tecnologia empregada na produção. Ele destaca que quanto mais aperfeiçoada for a tecnologia empregada, maior será a necessidade de se contratar mão de obra para realizar as atividades sequenciais possibilitadas pelo aumento da produção.

De forma geral, o autor destaca que muitos destes países alegam que seu subdesenvolvimento esteja ligado à sua condição de “subindustrialização”. Por isso, veem na industrialização uma forma de realocar esta crescente mão de obra e lograr o desenvolvimento econômico. Todavia, Myrdal ressalta que a busca pela industrialização como solução a esta condição econômica não deve substituir o emprego de tecnologia mais avançada no campo8 8 Esta mesma proposta está amplamente documentada na obra de vários autores da CEPAL. Ver, por exemplo: por (Prebisch (1949), Furtado (1961), Pinto (1970) e Fajnzylber (1983). . Desta forma, ele propõe que o planejamento econômico de reestruturação do setor agropecuário nestes países contemple a melhor utilização da mão de obra disponível. Ademais, Myrdal destaca que a correlação entre o desenvolvimento industrial e produtividade na agricultura é positiva. Isso significa que muitas indústrias podem ser criadas para amparar as atividades agrícolas, tal como a fabricação de maquinário, ferramentas, fertilizantes, entre outros.

Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) sugere que a reforma do setor agropecuário deve ser empregada de forma radical em ambos os sistemas de produção, abarcando os países latinos e os demais países subdesenvolvidos. Contudo, ele alerta que isso deve ser feito em observância às particularidades econômicas, sociais e culturais de cada região. Tal reforma deve ser direcionada às relações entre os proprietários de terra e seus produtores rurais, especialmente em latifúndios improdutivos ou que se segmentam em práticas de arrendamentos e meação de terras9 9 No sistema de arrendamento, o proprietário da terra cobra do arrendatário um valor fixo de aluguel. Já no sistema de meação, como a palavra sugere, os lucros são divididos pela metade entre proprietário e meeiro. Em ambos, o proprietário da terra não é responsável pela sua produção, apenas aufere lucros relativos à sua cessão temporária ao locatário. .

Na relação entre proprietários e arrendatários, geralmente os aluguéis pagos pelas terras podem superar os lucros obtidos pelo cultivo. Já na relação com os meeiros, a divisão dos lucros os impossibilita estes últimos de acumular capital para o aprimoramento e ampliação da produção. Estas relações mantêm os padrões de pobreza elevados e acentuam as desigualdades sociais entre proprietários e arrendatários/meeiros ao longo do tempo. Ademais, a posse da terra é considerada um investimento seguro e lucrativo no longo prazo, e isso faz com que investidores das zonas urbanas adquiram terras mesmo sem a intenção de cultivá-las10 10 A este respeito, o autor propõe a aplicação de tributos específicos aos proprietários cujas terras não são cultivadas. , aumentando assim seu baixo rendimento.

Por isso, Myrdal reafirma que a reforma agrária deve ser conduzida em conjunto com outras que lhe são complementares, tais como: fortalecimento de cooperativas; políticas de crédito aos pequenos agricultores; garantia de suprimentos aos pequenos produtores (tais como sementes e fertilizantes); condições favoráveis de mercado para escoar a produção, dentre outras medidas. Em geral, estas reformas contribuiriam para a redução das desigualdades regionais - principalmente entre pequenas comunidades rurais - e possibilitariam maior mobilidade econômica e social em áreas rurais.

No entanto, segundo o autor, o principal obstáculo para a reforma no setor agropecuário encontra-se na política. Isso porque, de uma forma geral, os proprietários de latifúndios compõem as elites destes países, e se articulam sob a forma de blocos coesos para exercer influência e poder político, com o objetivo de criar dificuldades à concretização das reformas, inviabilizando sua implementação.

3.4. Disciplina social e a promoção de maior igualdade de poder político

A questão da disciplina social é um dos postos-chave da análise de Myrdal, e envolve o conceito de Soft State apresentado por ele em Asian Drama (1968). Soft State, ou “Estado Brando” representa uma situação em que se verifica em um país no qual os poderes (legislativo, executivo e judiciário) apresentam ineficiências em suas funções, ou seja, demonstram inépcia quanto à elaboração e cumprimento das leis, coordenação das ações do governo, ou até mesmo manutenção da ordem social.

Como consequência, apresentam uma série de situações caracterizadas pelo autor (1970) como “problemas de indisciplina social”. Dentre eles, os mais observados são: i) leis cujos benefícios direcionam-se a pequenos grupos privilegiados; ii) generalização de práticas ilícitas asseguradas por um nível significativo de impunidade; iii) corrupção em suas diversas formas atingindo os setores público e privado; e iv) excessiva carga burocrática e demasiado número de cargos públicos de baixa produtividade. Ou seja, a indisciplina social está relacionada ao não cumprimento de regras sociais aceitas comumente como adequadas, seja por civis ou por pessoas encarregadas de ocupar posições nas três esferas de poder.

Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) ressalta que estes problemas configuram obstáculos à elaboração e execução de reformas estruturais e estão diretamente relacionados às relações de poder presentes nestes países. Nos soft states, as elites políticas e econômicas formam arranjos políticos com o objetivo de criar um ambiente institucional que os permita legislar em causa própria. Uma das maneiras disso ocorrer é a não aprovação de medidas que possam beneficiar a maioria da população caso este benefício custe a esta elite a perda de parte de seus privilégios. Como exemplo, ele menciona o fato de que reformas agrárias e tributárias não são articuladas adequadamente, e, quando ocorrem, suas metas não são cumpridas. Ademais, ele ressalta que, o problema na execução (enforcement) dessas medidas está relacionado ao elevado nível de impunidade, que ocorre também por corrupção no poder judiciário.

A corrupção observada na relação entre os setores público e privado também é mantida através do poder político detido pelas elites nacionais. Práticas de controle discricionário são aplicadas pelo governo ao setor privado a fim de garantir os privilégios comerciais às grandes empresas ou grupo de empresários. Myrdal entende “práticas discricionárias” como as relações que não são pautadas por um conjunto estabelecido de regras bem definidas. Segundo o autor, a escassez de regras torna-se um convite à corrupção e demandam maior burocratização dos setores administrativos para o cumprimento de suas funções. Em resposta a este ineficiente grau de burocratização, criam-se cargos políticos de baixo nível hierárquico que não raro são ocupados por pessoas sem a qualificação adequada, cujo objetivo real é fazer a retribuição de favores políticos.

Portanto, Myrdal (1970______. 1970. The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline. New York: Random House.) reforça que a reforma administrativa deve ocorrer de forma abrangente objetivando principalmente uma maior eficiência da administração pública e supressão da corrupção. Um dos tópicos que esta reforma deve priorizar é a contração de cargos públicos direcionados ao cumprimento de favores políticos, que em sua maioria apresentam baixa produtividade e reduzem a eficiência do serviço público. Tal redução deve ser acompanhada do aumento dos salários dos servidores qualificados como forma de coibir práticas de corrupção, tais como, por exemplo, o suborno. No entanto, para que esta reforma tenha o efeito desejado, deve-se reestruturar também os sistemas legislativo e jurídico para que atuem de forma mais funcional, apresentando menos lacunas nas leis e maior ação punitiva realizada de forma isonômica.

A punição à corrupção deve ser amplamente executada, especialmente para os cargos de nível hierárquico superior que estejam envolvidos em práticas discricionárias entre o Estado e o setor privado. Myrdal reconhece que estes países apresentam políticas anticorrupção em seus planos de governo, inclusive com medidas bem especificadas. No entanto, elas não são executadas adequadamente. O grande obstáculo a esta reforma visando uma maior disciplina social são as relações desiguais de poder. Nota-se portanto que as relações de poder entabuladas e mantidas pelas classes mais altas buscam conservar a rigidez e desigualdade da estrutura social.

Por este motivo, as desigualdades destacadas nas subseções anteriores estão diretamente relacionadas a esta assimetria de poder entre as elites e a maioria da população destes países. A este respeito, Myrdal destaca que “todo sistema político, jurídico e administrativo é, portanto, sistemática e fortemente ponderado contra as massas de pessoas pobres” (1970, 221 tradução nossa). Pode-se concluir daí que, sem a reforma nas estruturas de poder, a redução das desigualdades sociais dificilmente se tornaria exequível.

Assim, as reformas que empreguem maior igualdade nas relações de poder estão relacionadas ao fortalecimento da democracia e à difusão do poder político pelos estratos menos favorecidos da sociedade. Desta forma, o autor ressalta a necessária ação civil por meio de pressão política das massas sobre o poder público de forma que as reformas sociais sejam implementadas, uma vez que não se espera que a elite política e econômica abdique de seus privilégios em prol do bem comum.

4. O Pioneirismo de Gunnar Myrdal na Abordagem Econômica sobre as Desigualdades Sociais

As propostas apresentadas acima evidenciam como as desigualdades econômicas, sociais e políticas provocam um efetivo retrocesso no “movimento ascendente de todo o sistema social”, impedindo que os países ingressem numa trajetória de desenvolvimento econômico. O resgate à abordagem myrdaliana ressalta, entre outras coisas, que as desigualdades ocorrem em diversos setores sociais interconectados entre si, em causação cumulativa, e que não possuem relação apenas com o nível de renda. Pelo contrário, a abordagem do autor revela que as desigualdades são multifacetadas e se manifestam através de um conjunto imbricado de fatores, do qual nenhum setor é realmente isolável.

Em outras palavras, as desigualdades apresentam características e atributos diversos que lhe conferem uma natureza multidisciplinar e, por isso, o tema supera os limites da Ciência Econômica. De fato, esta é uma abordagem que tem sido amplamente estudada na Sociologia, Antropologia e Filosofia. Desta forma, tratar as desigualdades em suas diversas dimensões além da econômica não é uma originalidade de Myrdal. Seu pioneirismo nesta literatura encontra-se na incorporação de uma interpretação multidisciplinar no interior do pensamento econômico, demonstrando que as desigualdades não deveriam ser tratadas como um tema subjacente ao crescimento, ou mesmo como consequência de um crescimento desordenado.

De fato, à época em que Myrdal esteve empenhado em analisar os obstáculos ao desenvolvimento dos países do sul da Ásia, o debate econômico a respeito das desigualdades dava-se majoritariamente em termos de renda e riqueza. Desde os anos 1920 com a publicação de Hugh Dalton, notam-se diversos estudos que buscam relacionar a distribuição da renda à função utilitarista de bem-estar social (Dalton 1920; Lange 1942Lange, Oscar. 1942. “The Foundations of Welfare Economics”. Econometrica 10, n.3/4 : 215-228.; Aigner e Heins 1967Aigner, Dennis J, e Arthur J. Heins. 1967. “A Social Welfare View of the Measurement of Income Inequality”. Review of Income and Wealth 13, n. 1: 12-25.; Atkinson 1970Atkinson, Anthony B. “On the Measurement of Inequality”. 1970. Journal of Economic Theory, n. 2 (1970): 244-263; Tinbergen 1970Tinbergen, Jan. 1970. “A Positive and a Normative Theory of Income Distribution”. Review of Income and Wealth: 221-234.). Neste contexto, a definição de “igualdade/desigualdade” estava circunscrita em termos econômicos de forma quase-intuitiva e consensual. Uma passagem de Aigner e Heins expõe este pensamento:

O uso do termo “igualdade” por economistas para fazer referência à distribuição de renda tem sido historicamente consensual quando relacionado a características estatísticas da distribuição, em vez de ser um conceito firme de igualdade. É claro que tal conceito baseia-se em suposições [...] de bem-estar relacionadas à renda e sua distribuição; suposições estas que, em sua maioria, foram deixadas implícitas (e desconhecidas) nas discussões sobre igualdade de renda na literatura (1967, 12 tradução nossa).

Um dos artigos sobre desigualdade mais referenciados deste período, “On the measure of inequality” de Anthony Atkinson (1970Atkinson, Anthony B. “On the Measurement of Inequality”. 1970. Journal of Economic Theory, n. 2 (1970): 244-263), confirma tal consenso exposto na citação anterior. Em sua análise, a noção de desigualdade como sendo unicamente a diferença entre as rendas é considerada como uma premissa da análise econômica.

Medidas de desigualdade são usadas por economistas para responder a uma ampla gama de perguntas. A distribuição de renda é mais igual à do que fora no passado? Os países subdesenvolvidos são caracterizados por maior desigualdade quando comparados aos países avançados? Os impostos levam a uma maior igualdade na distribuição de renda ou riqueza? Contudo, apesar da ampla utilização dessas medidas, relativamente pouca atenção tem sido dada aos problemas conceituais envolvidos na mensuração da desigualdade e tem havido poucas contribuições para os fundamentos teóricos do assunto (1969, 244 tradução nossa).

Destaca-se, no entanto, que não é objetivo deste estudo propor uma superioridade metodológica entre as análises mencionadas anteriormente e aquela proposta por Myrdal no mesmo período. O que se busca é destacar o pioneirismo deste autor em incorporar demais elementos a esta análise em um período em que os estudos sobre desigualdade de renda se aprofundavam e expandidos no debate econômico. Segundo Myrdal, limitar os estudos sobre desigualdade a fatores econômicos não seria apropriado para analisar a realidade dos países subdesenvolvidos. Por isso, sua abordagem multidisciplinar (institucionalista) indicava que se fazia necessário extrapolar os métodos quantitativos desta análise:

[...] Não porque eu seja avesso à quantificação do conhecimento. Mas os fatos institucionais são muito complicados e não podem ser facilmente reduzidos a medidas estatísticas; eles devem ser descritos de uma forma menos precisa [...] Além disso, a pesquisa institucional não poderia se basear nos conceitos usados na literatura econômica comum e emprestados de estudos de países desenvolvidos: conceitos como renda, poupança, oferta, demanda e preços [...] Esses conceitos raramente eram adequados para lidar com a realidade em países subdesenvolvidos (1984, 155 tradução nossa).

Tal abordagem pioneira do autor foi corroborada nas críticas ao livro Asian Drama publicadas naquele período. Considerando as críticas positivas e negativas, seus autores ressaltam o processo multidisciplinar de análise como uma abordagem contrária à teoria sobre desenvolvimento vigente. Jean Grossholtz (1968Grossholtz, Jean. 1968. “Asian Drama: An Inquiry into the Poverty of Nations, by Gunnar Myrdal”. American Political Science Review 4, n. 62: 1278-1280.) ressalta que

O Professor Myrdal e seus colegas construíram uma “grande teoria” do desenvolvimento, definindo a relação entre todos os fatores políticos, econômicos e sociais relevantes e significativos envolvidos. A teoria engloba um conjunto de proposições explícitas sobre a natureza do crescimento econômico no contexto asiático e um conjunto de proposições de apoio que definem a relação política e social que fundamenta e reage a essas condições econômicas (1968, 1278-79 tradução nossa).

Em sua crítica, Thomas Balogh (1968Balogh, Thomas. 1968. “The Scrutable East: Asian Drama: An Inquiry Into the Poverty of Nations, by Gunnar Myrdal”. Institute of Development Studies Bulletin 1, n. 1: 12-15.) destaca o distanciamento da análise de Myrdal da corrente neoclássica amplamente produtiva à época:

Dois11 11 A segunda obra referenciada por Thomas Balogh nesta crítica é “The new industrial society”, de John Kenneth Galbraith. picos sólidos de interpretação da economia política elevam-se sobre a planície árida habitada pelo economista moderno convencional que, atraído pela miragem da determinação matemática, da generalização indevida, da agregação ilícita e da documentação inadequada de perspectivas seculares, aspiram ao status de cientistas. [...] O conhecimento incrivelmente detalhado reunido nos três volumes de “Asian Drama” pelo Sr. Myrdal e sua equipe internacional de assistentes fará do trabalho uma fonte básica não só para o estudo dessa área, mas para todo o campo da economia do desenvolvimento (1968, 12 tradução nossa).

Novamente, destaca-se que a abordagem de Myrdal em analisar as desigualdades sociais está intimamente relacionada ao processo de desenvolvimento da nação. Segundo o autor, não poderá haver desenvolvimento sem que as estruturas desiguais da sociedade sejam rompidas, processo que só ocorrerá após a instauração de reformas sociais profundas.

A este respeito, Myrdal (1974______. 1974. “What is Development?” Journal of Economic Issues8, n. 4: 729-36.) destaca que, ao analisarem apenas os “fatores econômicos” e os padrões de desigualdade da distribuição de renda, os economistas tradicionais não demonstravam interesse em tratar de reformas sociais, desconsiderando que produtividade e igualdade de oportunidades eram, de fato, interligadas no processo econômico. Por isso, as reformas sociais eram consideradas custosas ao crescimento do produto e, portanto, evitadas tanto nas análises a este respeito, quanto naquelas direcionadas à distribuição de renda. Como consequência, ressalta que isso resultava em um relevante viés no debate sobre desigualdade da época. A este respeito, as palavras do autor merecem destaque:

[...] a distinção [entre produção e distribuição] foi usada pelos economistas como um meio de escapar dos problemas de distribuição, concentrando-se nos problemas de produção [...] e pensando na distribuição como uma simples questão de distribuição de renda. Isso refletiu em um viés na teoria econômica que ainda está entre nós, principalmente em pesquisas sobre países subdesenvolvidos, implicando a visão de que reformas igualitárias são necessariamente caras em termos de crescimento econômico e definitivamente não são produtivas. Essa visão tem sido continuamente discutida por motivos especulativos. Mesmo em relação aos países desenvolvidos, foram fornecidas poucas evidências empíricas, mesmo para interrelações ‘econômicas’ simples, como o efeito da mudança na distribuição de renda sobre poupança, rendimento do trabalho e eficiência. A questão da igualdade sempre foi mantida em segundo plano. Esta, por sua vez, está relacionada ao fato de que, assim que a distribuição é colocada em foco, o tipo de teoria geral em termos ‘econômicos’, que nos serviu muito bem ao lidar com problemas de equilíbrio e crescimento durante a Grande Depressão, torna-se insuficiente. Todos os fatores ‘não econômicos’ - estrutura política, social e econômica, instituições e padrões de comportamento, e de fato todas as relações interpessoais - devem ser incluídos na análise (1973, 10 tradução nossa, aspas no original).

Desta forma, demonstra-se que o debate sobre desigualdade no período mencionado não captava adequadamente seus impactos sobre o conjunto complexo de necessidades sociais que necessitam ser superadas para conduzir as nações ao desenvolvimento. Com destaque à questão da corrupção e do poder político amplamente analisada por Myrdal, Routh (1968Routh, Guy. 1968. “Myrdal’s Asian Drama: A Review Essay”. Monthly Labor Review91, n. 10: 12-15.) afirmou que “muitos desses problemas foram ignorados ou evitados, mas agora são confrontados por Myrdal” (1968, 15 tradução nossa). Segundo Routh, a ciência econômica já possuía, à época, as ferramentas necessárias para realizar análises mais robustas, mas para que isso ocorresse seria necessário romper as barreiras entre as ciências sociais.

Em suma, conforme mencionado neste artigo, o debate econômico recente vem, paulatinamente, incorporando estes elementos às análises e enriquecendo o debate político com sugestões que possam resultar na ampliação do bem-estar econômico e social. A respeito desta transição metodológica, destaca-se uma passagem de Amartya Sen12 12 Sen possui uma vasta obra sobre desigualdade. Suas análises de caráter abrangente e multidisciplinar foram publicadas a partir do final da década de 1970, quando faz interlocuções com a publicação da Teoria da Justiça de John Rawls (“Rawls versus Bentham: An axiomatic examination of the pure distribution problem”, 1974; e “Equality of what?”, 1979). Posteriormente, Sen apresenta amplamente seu argumento em “Inequality Reexamined” (1992), contudo, está fora dos objetivos deste artigo entrar em mais detalhes sobre sua obra a respeito. ainda na década de 1970. No capítulo de abertura de sua obra em que reúne a evolução de métodos e métricas a respeito da desigualdade econômica, o autor afirma que a opção pelo método está intimamente relacionada à conjuntura política na qual o pesquisar está inserido.

Neste sentido, a relevância do contexto político não pode ser desconsiderada. De forma geral, observa-se que as estruturas de desigualdade identificadas por Myrdal em seu período de análise ainda permanecem nas sociedades contemporâneas, tanto nos países subdesenvolvidos quanto naqueles em processo de desenvolvimento econômico, independe de seu nível de renda. Por estes motivos, sugere-se neste trabalho que interpretações multidisciplinares como as de Myrdal sejam incorporadas no debate acadêmico recente, no intuito de que sejam renovadas e robustecidas, para então serem transbordadas para o campo das políticas públicas. Propõe-se que tal renovação e robustecimento devam conter elementos das sociedades contemporâneas que não foram discutidas pelo autor à época. Dentre esses temas, destacam-se a desigualdade de gênero e a desigualdade racial. Quanto à primeira, nota-se que o debate sobre gênero ainda era incipiente no período em que escreveu, o que resulta em poucas referências ao tema em suas obras. Com relação à desigualdade racial, embora seu estudo em American Dilemma (1944) tenha sido abrangente e relevante, não foi considerado em sua análise sobre a relação entre desigualdade e desenvolvimento.

Assim, em complemento aos estudos sobre desigualdade de renda e riqueza, propõe-se neste artigo que se deva ampliar o escopo da análise econômica sobre as desigualdades para patamares que incluam aspectos sociais que não possuem medidas quantitativas necessariamente modeláveis. De forma geral, as profundas reformas necessárias para reduzir as desigualdades sociais no longo prazo são resultado de um redirecionamento político-social, com ampla participação da sociedade civil (em especial da parcela menos favorecida da população), e que encontra inúmeros obstáculos no arranjo institucional desses países. O século XXI tem sido marcado por uma profusão de crises que, dentre outros aspectos, evidenciam a importância crucial da implementação de políticas públicas para a redução das desigualdades econômicas e sociais, argumento este cunhado por Myrdal ainda na geração passada de economistas dedicados a este tema.

5. Considerações Finais

Estudos sobre desigualdade permeiam as Ciências Econômicas principalmente a partir dos anos 1950. Geralmente dedicados às desigualdades de renda e riqueza, estes estudos vêm paulatinamente incorporando demais elementos do sistema social como resposta à ampla gama de desigualdades encontradas na sociedade. Argumentou-se neste estudo que a tendência em se incorporar demais aspectos sociais às desigualdades econômicas foi elaborada de forma pioneira por Gunnar Myrdal ainda nos anos 1960, quando o debate econômico sobre o tema estava focado em termos de mensuração da concentração da renda e da riqueza.

O resgate à abordagem myrdaliana sobre desigualdades contribui para o debate recente especialmente a partir de dois aspectos: i) indica que as desigualdades sociais não necessariamente possuem uma relação direta com distribuição per capita da renda; ii) indica que as desigualdades sociais interferem diretamente no processo de desenvolvimento econômico, e podem ser consideradas não apenas uma consequência do subdesenvolvimento, mas também como uma de suas causas.

O resgate à interpretação myrdaliana sobre as desigualdades ressalta que os problemas de países em processo de desenvolvimento são semelhantes e permanecem em muitos aspectos através do tempo. As desigualdades nos setores de educação, saúde, habitação e divisão de poder na sociedade, além dos hábitos de corrupção que permeiam as relações sociais, são características comuns nestes países também no cenário atual. A permanência destas características no sistema social ao longo dos anos confirma a premissa do autor de que estes fatores se reforçam no tempo através de um processo de causação cumulativa, gerando impactos econômicos e sociais que retardam o desenvolvimento destas nações.

Como consequência, indica-se que as sugestões de política para a redução das desigualdades sociais devam incorporar aspectos relacionados às reformas sociais, de forma semelhante ao que foi apresentado pelo autor em sua obra. Isso significa que medidas econômicas que visem alcançar uma melhor redistribuição de renda e gerar desenvolvimento econômico (compreendido nos termos de um “movimento ascendente de todo o sistema social”) necessitam estar vinculadas a reformas sociais profundas, que no longo prazo serão capazes de reduzir as desigualdades que desafortunadamente constituem-se como característica distintiva de diversas sociedades, do passado e do presente.

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  • Os autores agradecem aos pareceristas anônimos pelos comentários e sugestões, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da Bolsa que possibilitou a realização desse estudo."
  • JEL Classification:

    B55, I00, I30, O21
  • 1
    Esta expressão seria a analogia em língua portuguesa para “grow the pie” e “a rising tide lifts all boats” (ambas empregadas pelo autor).
  • 2
    A expressão “trickle-down economics” refere-se aos benefícios fiscais concedidos aos grandes empresários para estimular os investimentos no curto prazo, que “gotejariam” até as classes mais baixas na forma de criação de emprego no longo prazo.
  • 3
    A característica “multidisciplinar” das análises do autor é, por ele mesmo, classificada como “institucionalista”. Assim, sua identificação enquanto um “economista institucionalista” decorre da incorporação, em seus estudos, de outras disciplinas além da economia (Myrdal 1978).
  • 4
    O artigo fará uso do termo “subdesenvolvido” conforme empregado originalmente por Myrdal para fazer referência a países atualmente classificados como de renda baixa, média, média-alta ou países em desenvolvimento.
  • 5
    Uma explicação detalhada sobre o princípio da Causação Circular Cumulativa (CCC) conforme elaborada por Myrdal foge do escopo deste artigo. Em linhas gerais, a CCC tem como objetivo central explicar a forma como os fatores (sejam econômicos ou não econômicos) interagem e causam mudanças uns nos outros ao longo do tempo. O princípio da CCC tem como premissa um sistema social dinâmico, que não gera equilíbrio nos moldes walrasianos, e cuja interação dos fatores pode gerar efeitos benéficos ou maléficos ao sistema social. Para mais detalhes, ver Myrdal (1957), Berger (2009), O’Hara (2008) e Ferreira e Salles (2020).
  • 6
    Myrdal afirma que, em áreas mais pobres como as rurais, a presença de meninas na escola é inferior à de meninos.
  • 7
    A taxa de mortalidade infantil é calculada pela razão entre o número de óbitos até um ano de idade por mil crianças nascidas vivas, enquanto a taxa de natalidade é a razão entre o número de nascidos vivos por mil habitantes.
  • 8
    Esta mesma proposta está amplamente documentada na obra de vários autores da CEPAL. Ver, por exemplo: por (Prebisch (1949), Furtado (1961), Pinto (1970) e Fajnzylber (1983).
  • 9
    No sistema de arrendamento, o proprietário da terra cobra do arrendatário um valor fixo de aluguel. Já no sistema de meação, como a palavra sugere, os lucros são divididos pela metade entre proprietário e meeiro. Em ambos, o proprietário da terra não é responsável pela sua produção, apenas aufere lucros relativos à sua cessão temporária ao locatário.
  • 10
    A este respeito, o autor propõe a aplicação de tributos específicos aos proprietários cujas terras não são cultivadas.
  • 11
    A segunda obra referenciada por Thomas Balogh nesta crítica é “The new industrial society”, de John Kenneth Galbraith.
  • 12
    Sen possui uma vasta obra sobre desigualdade. Suas análises de caráter abrangente e multidisciplinar foram publicadas a partir do final da década de 1970, quando faz interlocuções com a publicação da Teoria da Justiça de John Rawls (“Rawls versus Bentham: An axiomatic examination of the pure distribution problem”, 1974; e “Equality of what?”, 1979). Posteriormente, Sen apresenta amplamente seu argumento em “Inequality Reexamined” (1992), contudo, está fora dos objetivos deste artigo entrar em mais detalhes sobre sua obra a respeito.

Editor Responsável:

Dante Mendes Aldrighi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2020
  • Aceito
    23 Jul 2021
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