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Diferencial de rendimentos e desigualdades intragrupo para os músicos atuantes em Belo Horizonte

Resumo

Uma das características marcantes no campo de trabalho artístico é o diferencial de rendimentos e suas desigualdades. Como o campo é muito heterogêneo, este artigo pretende verificar se os diferenciais e desigualdades retratados pela literatura ocorrem para os músicos atuantes em Belo Horizonte. Para tanto, nos meses de fevereiro, março e abril de 2020, foi realizada uma pesquisa para a coleta de dados primários a fim de responder estas questões, a partir da aplicação econométrica e estatística. As aplicações sugerem que a hipótese de não linearidade entre o nível de instrução e rendimentos não pode ser rejeitada, e as características pessoais não se mostraram significativas nesta análise. Em relação às desigualdades intragrupo, constata-se que os maiores índices ocorrem em alguns grupos específicos, como os de músicos com dedicação exclusiva, na faixa etária de 30 a 36 anos e graduados no ensino superior em música.

Palavras-chave:
Diferencial de rendimento; Desigualdades intragrupo; Survey

Abstract

One of the outstanding characteristics in the field of artistic work is the income differential and its inequalities. As the field is very heterogeneous, this paper intends to verify whether the differences and inequalities portrayed by the literature occur for musicians working in Belo Horizonte. Therefore, in February, March and April 2020, a survey was carried out to collect primary data in order to answer these questions, from the econometric and statistical application. The results suggest that the hypothesis of non-linearity between the level of education and income cannot be rejected, and personal characteristics were not significant in this analysis. Regarding intra-group inequalities, it appears that the greatest levels occur in some specific groups, such as musicians with exclusive dedication, age group 30 to 36 years and graduates in higher education in music.

Keywords:
Income differential; Intragroup Inequalities; Survey

1. Introdução

A economia da cultura abrange uma série de atividades que formam um espectro bastante heterogêneo. Tal heterogeneidade se faz presente na forma de produtos tangíveis e intangíveis, nas várias modalidades de expressão bem como na forma de organização da produção, da distribuição e do consumo, por exemplo (Machado et al., 2016Machado, A. F. (Org.); Leitão, C (Org.). 2016. Por um Brasil Criativo: significados, desafios e perspectivas da Economia Criativa brasileira. 1. ed. Belo Horizonte: Código Editora, v. 1. 384p.). Estão presentes formas de trabalho autônomo, como de um artista plástico, de um poeta ou escritor, a instituições públicas, tais como museus e bibliotecas, ou grandes empresas do setor privado como gravadoras, estúdios de cinema, editoras.

Entre muitos aspectos de avaliação, o valor da obra é dado por sua autenticidade e unicidade, o que por muitas vezes afasta o economista de sua análise, posto que os modelos teóricos se baseiam, em grande medida, na homogeneidade dos produtos e na estabilidade nas preferências. Segundo Herscovici (1995Herscovici, A. 1995. Economia da Cultura e da Comunicação, EDUFES.), o trabalho artístico e os bens e serviços nos quais ele é inserido, são, por natureza, heterogêneos; eles são específicos e se valorizam como tais, mesmo sendo reproduzidos industrialmente. Ademais, o valor do trabalho artístico depende também de questões territoriais e conjunturais, como o público (envolvendo críticos, patrocinadores e consumidores, entre outros) entende e se sente identificado com o conteúdo ali apresentado, tanto em um ponto do tempo como também ao longo dos anos. Muitas obras que não foram bem-sucedidas no momento de seu lançamento e exibição, ganharam relevância em períodos subsequentes.

Ainda que a natureza do campo possa dificultar estudos econômicos sobre o tema, esforços têm sido feitos, uma vez que assume relevância na participação do produto, na geração de renda e postos de trabalho, além de atender a uma demanda crescente por conhecimento e entretenimento. Foi o estudo de Baumol e Bowen (1966Baumol, W. J.; Bowen, W. G. 1966 Performing Arts, the Economic Dilemma: A Study of Problems Common to Theatre, Opera, Music and Dance. [S.l.]: MIT Press) que trouxe, pela primeira vez, um modelo teórico para explicar questões econômicas relativas às artes e à cultura. Os autores defendiam que as artes performáticas, incluindo performances musicais, apresentam um problema duradouro de manutenção das suas atividades, dado que elas praticamente não apresentam ganhos de produtividade, enquanto os salários dos trabalhadores aumentam no longo prazo, ou seja, seus custos seriam sempre crescentes. Esse problema ficou conhecido como “doença de custo de Baumol” e, a partir dele, surgiram diversas discussões sobre como o Estado atuaria de modo a sustentar não só as artes, mas também outros setores de interesse público, como educação e saúde (Heilbrun 1984).

Segundo dados do Observatório do Itaú Cultural (2023), o setor movimentou 3,11% do PIB no ano de 2020, valor superior aos 2,1% da indústria automobilística.

Entendendo, portanto, a importância do setor para a economia contemporânea e reconhecendo a heterogeneidade nele presente, busca-se neste artigo trabalhar com um dos seus segmentos, a música, na perspectiva do artista e em um dado território. Obviamente, a concentração em um dos segmentos e em uma cidade não pode ser considerada universal, mas sinaliza pontos relevantes e muitas vezes consensuais.

O campo do trabalho do músico evidencia um ambiente em que o impulso de produção está mais associado à iniciativa do artista do que propriamente a uma demanda do público, o que, por muitas vezes, é caracterizado como excesso de oferta (Benhamou 2007Benhamou, F. 2007 A Economia da Cultura, Editora Ateliê), tais como renda média muito baixa, distribuição de renda distorcida, além do baixo impacto do nível de escolaridade sobre os rendimentos (Menger 2006Menger, P. M. 2006. “Artistic labor markets: Contingent work, excess supply and occupational risk management.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 765-811.). Em vista dessas condições, encontram-se relatos de que as ocupações artísticas podem não ser duradouras e que as circunstâncias identificadas no campo de trabalho podem acelerar o processo de transição para outros postos de trabalho ou da atividade para a inatividade (Alper e Wassall 2006Alper, N. O., e Wassall, G. H. 2006. “Artists’ careers and their labor markets.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 813-864.).

Sendo assim, este trabalho tem por objetivo examinar os fatores associados à distribuição do rendimento. Em termos específicos, pretende-se analisar a relação entre nível de escolaridade e rendimentos derivados da música e mensurar a magnitude das desigualdades de renda intragrupo. Para tanto, supõe-se que músicos com baixo nível de escolaridade podem aprimorar o seu talento e alcançar êxito em suas carreiras e, desse modo, os anos de estudo não acompanham linearmente o nível de renda auferido na música. Além disso, o campo de trabalho dos músicos tem sua distribuição de renda extremamente distorcida, com poucos indivíduos auferindo remunerações acima da média praticada (Rosen 1981Rosen, S. 1981. “The economics of superstars.” The American economic review 71(5), 845-858.).

Essas hipóteses são testadas com músicos residentes em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, estado na Região Sudeste do Brasil. A escolha da cidade, como foco locacional desta pesquisa, se dá pela notoriedade, diversidade e riqueza histórica da produção musical encontrada. A cena musical tem apelo não somente pela produção e interpretação de música nos mais variados estilos e gêneros, mas também pela qualidade, diversidade e estética, além da elaboração e concepções de inovações musicais.

A qualidade e o dinamismo do setor musical de Belo Horizonte também foram constatados pelo Ministério da Cultura (MinC) em 2006, ao considerar a cidade como um dos polos mais importantes da Economia da Cultura no Brasil, envolvendo produtos e espetáculos musicais, sendo apontada como uma das mais relevantes no cenário nacional (Porta 2008Porta, P. 2008. Economia da cultura: um setor estratégico para o país. Prodec/MinC. Disponível em: http://thacker.diraol.eng.br/mirrors/www.cultura.gov.br/site/wpcontent/uploads/2008/04/texto-sobre-o-prodec-paula-porta.pdf > Acesso em: 16 de maio de 2023.
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).

Este artigo conta com quatro seções, além desta introdução. Na segunda parte, é feita uma revisão da literatura sobre objetos de análise em questão. Em seguida, detalha-se o processo de coleta de dados primários, amostragem e questionário, além de descrever as perguntas do questionário relativas à distribuição e desigualdade do rendimento e a estratégia estatística. A apresentação dos resultados encontra-se na quarta seção e, por fim, são elaboradas algumas conclusões.

2. Evidências teóricas e empíricas sobre o trabalho do artista: no caso o músico

A partir do entendimento sobre trabalho remunerado, que basicamente é vender a sua mão de obra em busca de provimentos pecuniários, este artigo permite averiguar hipóteses que extrapolam essas relações. O trabalho pode ser um fragmento central ao longo de uma vida, pela qual há uma série de contextos e diferentes entendimentos para cada indivíduo. Mas, sobretudo, cada tipo de trabalho pode ter um significado, objetivo ou exercício de vida.

Para compreender o contexto do trabalho dos músicos, destacam-se as posturas e as intempéries que envolvem o trabalho artístico e, sobretudo, os aspectos econômicos que fazem parte da trajetória profissional. A intenção é trazer informações concisas sobre o universo do trabalho na música e evidenciar alguns padrões heterogêneos que vão desde os aspectos econômicos até as características pessoais e profissionais.

Ao observar a conjuntura recente do trabalho do músico, para a cidade de Belo Horizonte, constata-se, a partir dos dados da PNAD-Contínua do IBGE, que a maioria dos músicos atua por conta própria ou sem carteira de trabalho assinada. Essas proporções acumulam taxas de 91,67%, em 2018, 64,71%, em 2019, e 100%, em 20201 1 Ao observar a série histórica dos dados da PNAD-Contínua, observa-se que, desde 2016, as proporções de músicos belorizontinos autônomos ou sem assinatura de carteira de trabalho concentram taxas próximas ou superiores a 80%, exceto para o ano de 2019. O recorte pela PNAD-Contínua tem por base a Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares, com o grupo base, 2652 - Músicos, cantores e compositores. .1

Independentemente da posição na ocupação que o músico atuante na capital mineira preencha, pretende-se captar aspectos que envolvem o conhecimento e habilidades diversificados no ramo da música e, também, formas híbridas de inserção, como a pluriatividade, a qual permite que o indivíduo atue como músico e exerça paralelamente uma ou mais atividades que não envolvam música ou os conhecimentos musicais.

Um dos fatos estilizados do trabalho artístico é que poucos indivíduos se sobressaem e, por sua vez, alcançam nível de renda extraordinário. Essa evidência também é encontrada no campo de atuação musical, com retornos muito acima da média praticada pelo mercado concentrados em poucos e seletos profissionais. Os altos retornos podem não estar relacionados estritamente ao talento, à originalidade e à criatividade do músico, e nem mesmo à experiência e acúmulo de anos de estudo ou especialização musical.

A relação entre renda e nível de escolaridade na vida profissional do músico é cercada de muitas complexidades adicionais perante às encontradas em ocupações não artísticas. Para o músico, a destreza, a vocação, o dom e diversas variáveis pessoais, ou até mesmo variáveis não observáveis, podem ser tão importantes para a determinação do nível de renda quanto o acúmulo de anos de estudo formal. Nesse sentido, a noção de capital cultural de Bourdieu (1994Bourdieu P. 1994 Distinction: a social critique of the judgement of taste [1979]. 6. ed. London: Routledge, 613 p [1979]) contribui para explicar uma relação não linear entre formação, vocação, talento e remuneração do músico. O capital cultural, um dos marcadores da distinção social, expressa-se pelo bom gosto, maneiras apropriadas, sofisticação cognitiva e receptividade a produtos culturais considerados legítimos. Desse modo, para o autor, condições sociais definem avaliação individual dos valores e estilos, sendo que preferências por participação na cultura dependem mais de estilos de vida do que de variáveis socioeconômicas.

Sabe-se que o músico passa por uma grande dedicação para adquirir e melhorar as suas habilidades musicais, artísticas e criativas. Existem intensos e extensos processos de estudos formais e informais, além da formação em nível superior, que permitem com que o músico obtenha conhecimentos e desenvolva as suas aptidões no processo produtivo da música. Mas, sobretudo, o talento, estilo de vida, as relações sociais, são peças-chaves que ajudam a explicar o processo de inserção no universo do trabalho musical, no qual é possível encontrar indivíduos autodidatas que passaram por todo processo de estudo e dedicação, sem a inserção no ensino superior e que conseguem desenvolver uma trajetória profissional sólida e com rendimentos elevados.

E, nesse quesito, tem-se por hipótese de que os retornos econômicos na trajetória de vida dos músicos não acompanham linearmente o nível de escolaridade, cabendo a análise das outras características observáveis que podem explicar os retornos pecuniários. As discrepâncias dos retornos pecuniários no universo artístico foram discutidas por Rosen (1981Rosen, S. 1981. “The economics of superstars.” The American economic review 71(5), 845-858.), ao detalhar a origem da concentração de renda em alguns poucos trabalhadores. Este fenômeno foi denominado como Economia dos Superstars. Esta conjectura pressupõe que haveria uma substituição imperfeita entre os ofertantes de trabalho, ou seja, os ofertantes de trabalho detentores de menores habilidades ou talento seriam fracos substitutos perante aqueles que são portadores de maiores atrativos. Assim, a demanda pelos artistas seria mais do que proporcional ao seu nível de talento.

Nas reflexões de Rosen (1981Rosen, S. 1981. “The economics of superstars.” The American economic review 71(5), 845-858.), o olhar está direcionado justamente para o trabalho artístico na seguinte descrição: um indivíduo ao assistir várias apresentações de cantores medianos não obtém um retorno suficientemente satisfatório ao que teria se estivesse assistindo a uma única apresentação com desempenho de alto nível. Rosen (1981) ainda menciona outros segmentos ao usar o exemplo de médicos, uma vez que as pessoas estariam dispostas a pagar mais por maior precisão em seus serviços.

Pelo ponto de vista da oferta de serviços culturais, o artista usa da mesma quantia de trabalho para realizar suas apresentações independentemente do número de pessoas que estariam em sua audiência e, em termos econômicos, os resultados estariam sujeitos ao crescimento de escala de produção, uma vez que os custos não crescem na mesma proporção do mercado consumidor. Neste sentido, aquele que está em maior evidência consegue auferir maiores rendimentos. Essa configuração induz a um único artista (ou um pequeno grupo de artistas) com a capacidade de atender todo o mercado (Rosen 1981Rosen, S. 1981. “The economics of superstars.” The American economic review 71(5), 845-858.).

Nessa linha de investigação, Chung e Cox (1994Chung, K. H., e Cox, R. A. 1994. “A stochastic model of superstardom: An application of the Yule distribution.” The Review of Economics and Statistics, 771-775.) pesquisam o fenômeno dos superstars/celebridades, sobre o parâmetro de escolha do consumidor, utilizando como parâmetro descritivo o número de premiações recebidas pelos artistas, e, no caso dos músicos, o número de discos de ouro. Dentre os resultados encontrados, os autores relatam que a hierarquia de renda não dialoga com a hierarquia de talento. Ou seja, a renda tende a se concentrar em apenas poucos indivíduos, independentemente do nível de talento observado.

Nos manuscritos de Rosen (1981Rosen, S. 1981. “The economics of superstars.” The American economic review 71(5), 845-858.), ainda há o destaque para as inovações tecnológicas de produção e comunicação que permitem que os ofertantes alcancem um número maior de consumidores, além de melhorar a percepção da receptividade. Assim, eles obtêm diminuições das barreiras comerciais.

Para além do impacto na produção, as inovações influenciam diretamente a forma de fruição musical. A forma de consumo e distribuição de música mudou significativamente no último século, uma vez que a fruição se dava exclusivamente por apresentações presenciais e, também, por intermédio de mídias físicas (fitas k7, CDs, DVDs). As transformações advindas da internet, da digitalização e compatibilização de áudio e do consequente acesso dinâmico aos serviços de streaming de áudio e de vídeo, mudaram completamente as características do mercado musical contemporâneo (Michel 2018Michel, R. C. 2018. Música, Redes e Tecnologia na Periferia: Um Estudo Acerca dos Impactos Tecnológicos na Produção De Rap Na Zona Sul De São Paulo. 196 f. 2018. Tese (Doutorado em Economia) - Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional - CEDEPLAR, Belo Horizonte. Disponível em: < https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/32037/1/tese_final_rcm.pdf> Acesso em: 16 de maio de 2023.
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).

Se por um lado, há uma queda de barreiras para a entrada de músicos distribuindo seus produtos e serviços em uma escala global pela internet, por outro lado, existem consequências incorporadas a um excesso de oferta já evidenciados por Throsby (2001Throsby, D. 2001. Economics and Culture. Cambridge University Press.) e Menger (2006Menger, P. M. 2006. “Artistic labor markets: Contingent work, excess supply and occupational risk management.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 765-811.) no campo de atuação artístico. E, nesse sentido, há indícios de que os superstars permanecem obtendo rendimentos extraordinários pela alta exposição e reinvestimentos na trajetória profissional, enquanto os demais continuam apostando e investindo na escalada para maiores retornos pecuniários, ou produzindo arte por amor à arte.

A associação (ou não) da renda dos artistas à escolaridade se faz presente em McLain (1978McLain, J. J. 1978. “The income of visual artists in New Orleans.” Journal of Cultural Economics, 63-76.), nos Estados Unidos, e Snooks (1983Snooks, G. D. 1983. “Determinants of earnings inequality amongst Australian artists.” Australian Economic Papers 22(41), 322-332.), na Austrália, ao relatar as desigualdades de ganhos e seus determinantes em ocupações dos artistas visuais. Posteriormente, Wasall e Alper (1992) relatam alguns determinantes sobre as desigualdades encontradas em um grupo mais heterogêneo de artistas, com o uso dos microdados do Censo Americano de 1980.

McLain (1978McLain, J. J. 1978. “The income of visual artists in New Orleans.” Journal of Cultural Economics, 63-76.) e Snooks (1983Snooks, G. D. 1983. “Determinants of earnings inequality amongst Australian artists.” Australian Economic Papers 22(41), 322-332.), ao investigarem os diferenciais de rendimento no campo de trabalho artístico, a partir do arcabouço teórico baseado na teoria do capital humano, mostram que os anos de estudo, em geral, não são significativos para a explicação dos rendimentos. Mas, por outro lado, o investimento em educação formal específica ao campo artístico do conhecimento resulta como um importante determinante para o incremento de ganhos ou rendimentos superiores para os artistas.

Contudo, os autores ainda relatam que os resultados empíricos encontrados não rejeitam totalmente a teoria do capital humano na análise dos diferenciais de rendimentos em atividades artísticas. Como os estudos foram realizados com bancos de dados secundários, não foi possível incluir variáveis como habilidades individuais artísticas e empresariais. Estas que são subjacentes à taxa de retorno pecuniário do trabalho (Mclain 1978McLain, J. J. 1978. “The income of visual artists in New Orleans.” Journal of Cultural Economics, 63-76.; Snooks 1983Snooks, G. D. 1983. “Determinants of earnings inequality amongst Australian artists.” Australian Economic Papers 22(41), 322-332.).

Wasall e Alper (1992) apontam que a renda total média dos artistas os coloca bem acima do nível de pobreza. No entanto, ao compará-los com os não artistas, a renda média deles encontra-se em nível inferior.

No entanto, para Coulangeon et al. (2005Coulangeon, P., Ravet, H., e Roharik, I. 2005. “Gender differentiated effect of time in performing arts professions: Musicians, actors and dancers in contemporary France.” Poetics 33(5-6), 369-387.), a menor vulnerabilidade pecuniária dos músicos pode estar relacionada aos custos de entrada no mercado. Ou seja, em uma análise intragrupo, mesmo que um músico desempenhe com menor intensidade técnica, intelectual ou criativa, há um grande rigor seletivo para que o indivíduo consiga extrair valor da sua capacidade artística no mercado. E, para além das capacidades cognitivas do músico, há a aquisição de equipamentos e acessórios que permitem a execução e distribuição do seu trabalho.

Já os aspectos que envolvem maior vulnerabilidade, distinguindo para o caso de atores e dançarinos, o início da trajetória é o ponto mais crítico para a subsistência na ocupação por fatores relativos aos retornos pecuniários às horas de dedicação ao trabalho. Para atores e dançarinos, o processo de seleção ocorre após a entrada e início da sua trajetória profissional, enquanto no caso dos músicos o processo de seleção ocorre de modo imediato. E, desse modo, se o músico não possui os atributos ou os aparatos mínimos para o desempenho profissional, o mercado irá impor sanções imediatas no seu percurso profissional desde o início, compondo assim maiores barreiras à entrada. Mas, no longo prazo, há uma convergência entre todas as ocupações nas artes performáticas (Coulangeon et al. 2005Coulangeon, P., Ravet, H., e Roharik, I. 2005. “Gender differentiated effect of time in performing arts professions: Musicians, actors and dancers in contemporary France.” Poetics 33(5-6), 369-387.).

A partir do conceito de superstars,Alper e Wasall (2006Alper, N. O., e Wassall, G. H. 2006. “Artists’ careers and their labor markets.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 813-864.) argumentam que os artistas que se submetem a rendimentos médios mais baixos, são mais propensos a ficar sem rendimentos ou desempregados. Mesmo assim, o número de pessoas que continua a entrar no universo artístico e, sobretudo, na produção de música, é sempre crescente, independente das intempéries encontradas no mercado artístico.

O excesso de oferta de músicos pressupõe que os indivíduos derivam satisfação a partir dos riscos que a atividade profissional na música lhes proporciona. Ou seja, o risco baseado na expectativa de ganhos futuros muito altos, inspirados nos rendimentos dos superstars, move a entrada de novos músicos, fazendo com que haja um achatamento do nível de remuneração praticado. Os superstars podem ser entendidos como meio propulsor de incentivo a entrada de novos indivíduos, já que, além dos ganhos extraordinários, há um estilo de vida idiossincrático e atraente para a expectativa de vida futura.

Assim, as desigualdades encontradas no universo de trabalho artístico são derivadas da possibilidade de muito reconhecimento do público e, consequentemente, ganhos extraordinários. O trabalho do artista, e no caso deste artigo o trabalho do músico, em muitos casos seria como uma aposta lotérica, obtendo satisfação em cada hora adicional dedicada ao trabalho na expectativa de ganhos extraordinários no futuro (Alper, Wasall 2006Alper, N. O., e Wassall, G. H. 2006. “Artists’ careers and their labor markets.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 813-864.).

Ainda nesse contexto, Haak (2005Haak, C. 2005. “Künstler zwischen selbständiger und abhängiger Erwerbsarbeit.” Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB). Discussion Paper 2005-107) em seu estudo longitudinal para a Alemanha, destaca que os músicos são fortemente representados nas camadas de baixos e altos salários, enquanto no segmento de renda média, são sub-representados. Todavia, os músicos, dentre os grupos artísticos observados, são aqueles que possuem menores riscos econômicos, uma vez que mais de 55% dos músicos são capazes de viver da profissão como ocupação principal, mesmo considerando aqueles que atuam de modo informal.

Eikhof e Warhurst (2014) contestam o discurso da meritocracia no trabalho de Florida sobre a classe criativa2 2 De forma sucinta, classe criativa para Richard Florida (2002) diz respeito aos trabalhadores com, no mínimo, ensino superior completo em qualquer campo do conhecimento. .2 Esse discurso reproduzido pelo DCMS, na Grã-Bretanha, não encontra evidências significativas de que a escolaridade e a experiência abririam as portas para os artistas com mesmo nível de formação. Os autores apontam que redes já consolidadas por familiares, amigos e críticos são muito mais importantes para o sucesso da carreira dos artistas do que sua formação. O’Brien et al. (2016O’Brien, D.; LAURISON, D.; MILES, A.; FRIEDMAN, S. 2016. Are the creative industries meritocratic? An analysis of the 2014 British Labour Force Survey. Cultural Trends, v. 25, n. 2, p. 116-131.), em outro estudo, chegam à mesma conclusão. A classe social da família do artista é uma referência para a sua remuneração muito mais do que a escolaridade. As oportunidades não são as mesmas para todos com mesmo nível educacional.

Mais recentemente, ainda investigando sobre o impacto da educação formal artística sobre a renda na Dinamarca, Bille e Jansen (2018Bille, T., e Jensen, S. 2018. “Artistic education matters: survival in the arts occupations.” Journal of Cultural Economics 42(1), 23-43.) encontram indícios de que a educação formal é um importante subsídio para a permanência ativa da ocupação como artista. Entretanto, ressaltam que esse atributo possui pouca influência sobre a renda. Ao explorar os rendimentos, a fim de constatar possíveis diferenças envolvendo educação, treinamento e demais qualidades que possam influenciar diretamente nos retornos, há a identificação de que artistas não se encaixam no modelo padrão de ganhos como o de trabalhadores convencionais.

O ingresso em instituições de ensino superior se faz muito importante, principalmente para artistas performáticos, como os músicos, uma vez que através do conhecimento adquirido pelas vias formais é possível superar algumas barreiras para a entrada no universo do trabalho, além da ampliação da sua rede de contatos e relacionamentos profissionais que melhoram as expectativas dos rendimentos e a permanência na ocupação. Mas a construção de uma personalidade artística, identificável ao longo das obras como um estilo pessoal, pode ser tão ou mais importante do que um curso superior na escalada para o sucesso (Bille, Jansen 2018Bille, T., e Jensen, S. 2018. “Artistic education matters: survival in the arts occupations.” Journal of Cultural Economics 42(1), 23-43.).

3. Base de Dados e Metodologia

O método empregado para coletar as informações sobre profissionais da música em Belo Horizonte baseia-se na pesquisa de campo com questionário on-line autoaplicável, enviado por correio eletrônico direcionado, em um primeiro momento, aos músicos registrados na Ordem dos Músicos do Brasil - OMB, de Belo Horizonte e, posteriormente, para todos os músicos atuantes na capital mineira. Em processo de construção de “bola de neve”, a amostra foi produzida, pelo mailing da OMB, e alcançou aproximadamente 22% dos músicos entrevistados. Como a entrevista foi on-line e a amostragem seguiu a técnica de “bola de neve”, não há como assegurar representatividade amostral por perfis intragrupo.

O tamanho da amostra deveria ser de 375 entrevistas o que, estatisticamente, garante o nível de confiança e erro de estimação suficientemente aceitável para a realização da pesquisa com rigor estatístico recomendado em um universo de 15.000 músicos3 3 Número aproximado informado pela Ordem dos Músicos do Brasil de Belo Horizonte. , representando o espectro mais amplo que descreve a categoria em Belo Horizonte. Ou seja, é representativo de modo quantitativo e não qualitativo. Todos os participantes receberam e concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)4 4 O questionário e TCLE foram submetidos ao Comitê de Ética em Pesquisa - CEP da Universidade Federal de Minas Gerais, no dia 22/11/2019. . Ao todo, 380 indivíduos tiveram a oportunidade de acessar e responder ao questionário geral, com perguntas referentes a todos os objetivos deste artigo, durante os meses de fevereiro, março e abril de 20205 5 Ressalta-se que a pesquisa não descreve o universo dos músicos em BH, mas sim a situação dos respondentes. .

O instrumento de coleta foi elaborado para captar e mensurar as possíveis desigualdades de rendimentos, além de alcançar seus determinantes no universo de trabalho, considerando nível de educação musical, nível de escolaridade em outras áreas, contribuição com a previdência social dentro da música, contribuição com a previdência social fora da música, além de informações pessoais.

Os diferenciais de rendimentos têm sua fonte de dados gerada por quatro perguntas ao músico entrevistado sobre a sua renda mensal descritas no Quadro 1. Para além da formalidade e informalidade, busca-se identificar se o músico está coberto pelos benefícios previdenciários e seguridade do trabalho, seja como músico ou em outro posto de trabalho.

Quadro 1
Rendimentos e proteção social do trabalho

No caso dos músicos, a educação formal não está diretamente relacionada aos retornos salariais, uma vez que o mercado da música é muito mais complexo do que o mercado convencional (Bille, Jensen 2018Bille, T., e Jensen, S. 2018. “Artistic education matters: survival in the arts occupations.” Journal of Cultural Economics 42(1), 23-43.). Sabe-se que o conhecimento adquirido em uma formação superior em música é importante para promover e habilitar conhecimentos importantes no percurso profissional, embora seja comum indivíduos que consigam desenvolver suas habilidades de modo autodidata e, consequentemente, aprimorar seus talentos criativos a ponto de alcançar rendimentos similares ou superiores àqueles que passaram pelas cátedras universitárias (Towse 2006Towse, R. 2006. “Human capital and artists’ labour markets.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 865-894.).

Para observar a relação entre o nível educacional e os rendimentos dos músicos, o estudo visa testar a hipótese de que o nível de rendimentos está correlacionado de modo linear e crescente ao nível educacional. No Quadro 2, as questões tratam sobre o nível educacional formal, com três questões fechadas sobre formação específica como músico, em áreas diversas e grau mais elevado de ensino que o músico completou.

Quadro 2
Educação Formal

No Quadro 3, constam as questões investigadas sobre informações pessoais e familiares, as quais, além de contribuir para a análise descritiva, justificam-se para evidenciar discriminação (ou não) na distribuição e diferenciais de rendimentos.

Quadro 3
Informações Pessoais e Familiares

Com o intuito de testar se a educação formal afeta o rendimento do músico, o contexto empírico compatível com o universo do trabalho e do capital humano, tem-se a partir de Mincer (1974Mincer, J. 1974. Schooling, experience and earnings. New York: National Bureau of Economic Research, Columbia University, 152p.) a equação que considera a influência dos anos de experiência e instrução formal no rendimento dos indivíduos. Tal modelo é conhecido como equação de rendimentos ou equação minceriana, que para este trabalho é referida da seguinte maneira:

ln Y i = a + b 1 s i + b 2 j i + b 3 c i + b 4 m i + u (1)

Em que: lnY = logaritmo natural do rendimento ou remuneração do trabalho do músico; s = escolaridade do artista em anos de estudo; j = experiência contabilizada pela idade; c = características individuais; m = caraterísticas do posto de trabalho; a, b 1 , b 2 , b 3, b 4 = parâmetros estimados; u = termo de erro estocástico.

As deduções a partir da equação (1) pretendem demonstrar se os anos adicionais de escolaridade e experiência são significativos estatisticamente, e avaliam se há impacto positivo ou negativo sobre os rendimentos, ou seja, os parâmetros encontrados b 1 e b 2 demonstram os resultados acerca desta representatividade, c representa as variáveis controle por atributos pessoais e m do posto de trabalho.

Além das incertezas, de rotatividade e subemprego, o trabalho dos músicos também é caracterizado por profissionais que obtém menores rendimentos com o seu trabalho, em grupos de idade e qualificação similares. Esses aspectos oferecem referências para que sejam investigadas as desigualdades intragrupo.

Ao observar detalhadamente esse objeto, Rosen (1981Rosen, S. 1981. “The economics of superstars.” The American economic review 71(5), 845-858.) ilustra a distribuição de renda no mercado dos músicos como extremamente distorcida, como fenômeno denominado como Economia dos Superstars.

Como o Superstar torna-se referência para os demais componentes do seu grupo de trabalho, ele também se transforma em referência de remuneração. A partir da existência dos ganhos extraordinários dos Superstars,Menger (2006Menger, P. M. 2006. “Artistic labor markets: Contingent work, excess supply and occupational risk management.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 765-811.) reporta que a entrada no campo de trabalho nas artes é induzida por eles, e a partir desta circunstância, pressupõe que os artistas seriam amantes do risco, sendo atraídos pela possibilidade de atingir ganhos não habituais ou improváveis de serem atingidos.

O processo metodológico que envolve a aplicação dos Indicadores de Desigualdade, necessita basicamente de duas informações primordiais: 1) a parcela acumulada de indivíduos considerados na amostra; e, 2) a parcela acumulada da renda recebida. Com a finalidade de construir e analisar o Índice de Desigualdade, o Quadro 4 traz quatro perguntas, em que a primeira é fechada e todas as demais são abertas, sendo respondidas de modo numérico com base na moeda brasileira, o Real.

Quadro 4
Renda

Para avaliar a desigualdade intragrupo na profissão de músico, utilizam-se indicadores para demonstrar o nível de concentração da distribuição de renda e possibilitar a plotagem na curva de concentração ou curva de Lorenz no plano cartesiano, no qual as abscissas são as partes acumuladas do número de pessoas, a começar daquelas de menor renda em direção às de maior renda, e posicionado nas ordenadas as frações de acúmulo de renda total auferida (Hoffmann, Duarte 1972Hoffmann, R., e Duarte, J. C. 1972. “A distribuição da renda no Brasil.” Revista de administração de empresas 12(2), 46-66.).

De acordo com Hoffmann (2004Hoffmann, R. 2004. “Decomposition of Mehran and Piesch inequality measures by factor components and their application to the distribution of per capita household income in Brazil.” Brazilian Review of Econometrics 24(1), 149-171.), diretamente associadas à área da curva de Lorenz e à linha de desigualdade perfeita (φ=p), podem ser definidas três formas de mensurar a desigualdade com o uso do Índice de Gini (G), o Índice de Mehran (M) e o Índice de Piesch (P). Esses indicadores são demonstrados da seguinte maneira:

G = 2 n i = 1 n 1 ( p i φ i ) (2)

M = 6 n i = 1 n 1 ( 1 p i ) ( p i φ i ) (3)

P = 3 n i = 1 n 1 p i ( p i φ i ) (4)

Deve-se mencionar que o Índice de Mehran possui uma diferença entre a ordenada da linha de igualdade perfeita e a ordenada da curva de Lorenz, que é ponderada por 1-P i , tornando esse indicador moderadamente mais sensível às mudanças na parte inferior da distribuição, no comparativo com o índice de Gini. Já o Índice de Piesch, o ponderador é P i , o que o torna moderadamente mais sensível com as mudanças que ocorrem na parte superior da distribuição (Hoffmann 2004Hoffmann, R. 2004. “Decomposition of Mehran and Piesch inequality measures by factor components and their application to the distribution of per capita household income in Brazil.” Brazilian Review of Econometrics 24(1), 149-171.).

4. Resultados

A apresentação das informações estatísticas das características gerais encontradas dentre os participantes da pesquisa ao longo de 2020 iniciam-se pela Tabela 1.6 6 Para fins de comparação, consta na Tabela A1 do Apêndice, as características gerais dos músicos, profissionais das ciências e intelectuais e todos os ocupados de acordo com a PNAD-Contínua do IBGE para a cidade de Belo Horizonte, no ano de 2020. O grupo Profissionais das Ciências e Intelectuais foi selecionado como grupo de comparação no estudo citado, uma vez que a ocupação de músicos integra este grupo e, guarda, portanto, similaridades com o mesmo. Não há muita distinção no que tange à composição por sexo e idade. E, considerando o total de músicos pela PNAD-C (2130 ocupados), o número de respondentes desta pesquisa (380) é bastante representativo, cerca de 18%.

Tabela 1
Características gerais dos músicos belorizontinos

Os resultados encontrados destacam que, em média, os músicos são predominantemente brancos, homens, com idade média de aproximadamente 37 anos, solteiros ou divorciados e sem filhos. No que se refere à origem dos músicos residentes em Belo Horizonte, observou-se que 42,37% são naturais de outras cidades. Os migrantes são provenientes, em maior medida, de Contagem (MG), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ).

Em relação à educação formal é constatado que 51,05% dos músicos possuem ensino superior completo em alguma área do conhecimento. Dentre aqueles que declararam ter o ensino superior completo, 32,37% são graduados especificamente em música. Nota-se que 27,37% atuam como músicos e se classificam como autodidatas.

Chama a atenção o percentual de músicos com ensino superior em áreas distintas da música. Os dados retratam que 20% possuem formação em nível médio ou técnico profissionalizante e somente 2,10% se autodeclaram sem instrução ou com o fundamental completo.

No que diz respeito à experiência no campo de trabalho dos entrevistados, tem-se a informação de que, em média, os participantes desta amostra atuam no campo da música há aproximadamente dezoito anos. Já o início da trajetória profissional ocorre nos primórdios da juventude, com dezoito anos de idade, sendo na música o primeiro ou segundo (67,17%) posto de trabalho.

Em relação à trajetória profissional, conseguiu-se captar que a maior parte dos entrevistados, após iniciarem a carreira no campo da música, ficou totalmente sem trabalho remunerado por algum período (55,53%). O tempo médio de maior duração como inativo na ocupação de músico foi de 8,25 meses.

No âmbito da proteção social do trabalho, verifica-se que 41,84% contribui para a previdência social como músico e 39,47% são músicos que contribuem para a previdência social com outra ocupação. As estatísticas que descrevem os músicos atuantes em Belo Horizonte, em linhas gerais, vão ao encontro dos achados por Hennekam e Bennet (2017Hennekam, S., Bennett, D. 2017. “Creative industries work across multiple contexts: common themes and challenges.” Personnel Review 46 (1), 68-85.), Campbell (2018), Alacovska e Gil (2019Alacovska, A., e Gill, R. 2019. “De-westernizing creative labour studies: The informality of creative work from an ex-centric perspective.” International Journal of Cultural Studies 22(2), 195-212.) para o conjunto de trabalhadores das artes e da cultura em outros países.

A Tabela 2 apresenta as medidas centrais dos rendimentos do músico, o rendimento familiar e o rendimento de todas as fontes.

Tabela 2
Rendimentos - medidas centrais

A partir destas informações, tem-se que os músicos com dedicação exclusiva recebem remuneração por hora trabalhada 83% superior àqueles que não possuem dedicação exclusiva na música. Os dados ainda permitem observar que a diferença entre o rendimento médio de todas as fontes é superior aos rendimentos derivados da música nos três grupos observados.

Ainda observando os resultados sobre a remuneração com o trabalho, constata-se que o rendimento médio como músico (sem dedicação exclusiva) representa 35,12% do rendimento de todas as fontes, indicando que o salário derivado da música é inferior à remuneração que o músico recebe em atividades não relacionadas com a música. Para este grupo, a racionalidade econômica estabelece que eles não forneceriam mão de obra ao campo de trabalho musical, mas gastariam mais do seu tempo oferecendo a sua força de trabalho a um trabalho não musical. Esses resultados são similares aos mencionados em pesquisas empíricas por Throsby (1994Throsby, D. 1994. “A work-preference model of artist behaviour.” In Cultural economics and cultural policies. Kluwer Academic, Dordrecht, 69-80.) e Robinson e Montgomery (2000Robinson, M. D.; Montgomery, S. S. 2000. The time allocation and earnings of artists. Industrial Relations: A Journal of Economy and Society, v. 39, n. 3, p. 525-534.), em que a remuneração fora do campo de trabalho artístico é superior à auferida no trabalho artístico.

As diferentes atividades declaradas pelos músicos entrevistados indicam que o músico atuante em Belo Horizonte é qualificado e pode atuar em diferentes áreas de trabalho, utilizando as suas habilidades ou conhecimentos musicais. Para descrever as ocupações, tanto principais quanto secundárias, dentro da música, a Tabela 3 e a Tabela 4 reportam as principais atividades realizadas pelos músicos atuantes em Belo Horizonte.

Tabela 3
Atividades como músico profissional

Os dados evidenciam que os músicos atuantes em Belo Horizonte acumulam, em média, mais do que duas atividades simultâneas, envolvendo principalmente shows e atuações ao vivo (como apresentações em bares, restaurantes e cerimoniais), ensino de música e gravação. Esse achado aponta ainda que a maioria dos músicos atua como instrumentistas e professores de música.

Tabela 4
Outra atividade remunerada envolvendo música

Entre as atividades secundárias remuneradas envolvendo música, a atividade de professor e gravação estão entre as mais citadas. Em média, os músicos acumulam mais do que uma atividade remunerada envolvendo música ou conhecimentos musicais.

Em referência ao detalhamento do campo de atuação dos músicos em Belo Horizonte, as informações primárias ainda retratam que a maior parte dos músicos exerce sua profissão em banda ou solo (assim como músicos de bar, violão e voz, etc.), tendendo a acumular funções e atuar em mais de um tipo de conjunto/atuação musical.

Ao constatar as particularidades do campo de trabalho do músico atuante em Belo Horizonte, busca-se avançar no detalhamento da diversidade de estilos musicais produzidos localmente, assim como nos estudos prévios, como o realizado pela Fundação João Pinheiro (2010) e nas descrições de Martins (2009Martins, B. V. 2009. Som imaginário - A reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 156p.), de Medeiros (2011) e de Alves (2018Alves, V. A. 2018. A relação do musico com o trabalho: quando o trabalho do musico passa de trabalho improdutível para trabalho produtível em Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, p. 166.).

Tabela 5
Tipo de conjunto e estilo musical de atuação

As informações obtidas ao longo de 2020 vão ao encontro de estudos prévios, evidenciando a MPB como o principal estilo musical de Belo Horizonte, sendo citado por 55,12% dos entrevistados. O rock e o pop estão nas colocações subsequentes. Como destacado na Tabela 5, os músicos entrevistados atuam, em média, em mais de três estilos musicais diferentes, sugerindo que a construção da carreira do músico local é instituída por profissionais multiespecializados, com capacidade para ocupar espaços em diferentes estilos musicais de modo a assegurar a permanência na ocupação.

Constata-se na literatura especializada (Throsby 2001Throsby, D. 2001. Economics and Culture. Cambridge University Press.; Menger 2006Menger, P. M. 2006. “Artistic labor markets: Contingent work, excess supply and occupational risk management.” Handbook of the Economics of Art and Culture 1, 765-811.) que o excesso de oferta de mão de obra é recorrente no campo de trabalho artístico e tem como seus principais indicadores os baixos rendimentos, distribuição de renda distorcida e baixo impacto da educação formal sobre os rendimentos. Sob essa ótica, no caso dos músicos de Belo Horizonte, 54,33% têm a percepção de excesso de oferta de músicos no campo de trabalho.

Ao aprofundar essas informações, os resultados primários ressaltam que as principais atividades remuneradas fora do ramo da música, listadas na Tabela 6, sinalizam que os músicos belorizontinos desenvolvem até cinco atividades diferentes fora da música, sendo que a principal delas é a de Professor (em outras áreas). O exercício de uma única atividade paralelamente à atividade de músico é o resultado mais encontrado na amostra.

Dentre as mais citadas, também estão as de ator e fotógrafo, além de atividades que podem estar relacionadas a uma cadeia produtiva criativa das artes e da música, tais como design gráfico, produção cultural, artes gráficas, marketing digital, edição de vídeos e planejamento de marketing em redes sociais.

Tabela 6
Principais atividades remuneradas fora da música nos últimos 4 meses

Destaca-se que 26,5% dos entrevistados relataram algum período totalmente sem trabalho remunerado no primeiro quadrimestre de 2020. Ademais, observa-se que o trabalho como músico sem remuneração ocorre, em ao menos algum período, para uma parcela de 46,19% dos entrevistados.

A equação minceriana, ou equação de salários, é um arcabouço teórico concebido por Mincer (1974Mincer, J. 1974. Schooling, experience and earnings. New York: National Bureau of Economic Research, Columbia University, 152p.) que associa os rendimentos a fatores explicativos como nível de instrução, idade e experiência, bem como a outras características individuais e do posto de trabalho. Com o método aplicado ao campo de trabalho dos músicos, busca-se trazer evidências sobre os diferenciais de rendimento. Portanto, a formalização do modelo empírico testado nesta seção se dá da seguinte forma:

ln w = β 0 + β 1 S e x o + β 2 C o r o u R a ç a + β 3 O r i g e m + β 4 Pr e v i d ê n c i a + β 5 M ú s i c a c o m o r e n d a p r i n c i p a l + β 6 E n sin o sup e r i o r e m m ú s i c a + β 7 N í v e l d e e s c o l a r i d a d e + β 8 I d a d e + β 9 Pr i m e i r o o u s e g u n d o e m p r e g o n a m ú s i c a + β 10 I d a d e d o p r i m e i r o e m p r e g o + β 11 Í n d i c e d e s a t i s f a ç ã o g l o b a l + ε (5)

Para esta análise, dois modelos econométricos foram estimados. O primeiro modelo, além das variáveis características do objeto de análise, considera, também, as variáveis explicativas convencionais encontradas em equações mincerianas. O segundo modelo econométrico inclui somente as variáveis explicativas relacionadas aos indícios encontrados na literatura que tendem a explicar os diferenciais de rendimento, no caso dos músicos7 7 Para fins de comparação, constam nas Tabelas A2-A5, do Apêndice, as estimativas para músicos, profissionais das ciências e intelectuais e todos os ocupados no Brasil pela PNAD-Contínua do IBGE, entre 2019 e 2021. Devido ao tamanho da amostra, não foi possível realizar as estimativas apenas para a cidade de Belo Horizonte. Os rendimentos foram deflacionados pelo deflator disponibilizado pelo IBGE para a PNAD-Contínua Trimestral, com referência temporal do último trimestre de 2021. A equação de salários considera as seguintes variáveis explicativas: sexo, cor, idade, escolaridade, contribuição para a previdência e dummies de ano. .

No questionário, também são feitas perguntas sobre a satisfação no trabalho e com a remuneração. A partir dessas informações, a avaliação dos resultados encontrados no questionário de satisfação tem por base uma escala do tipo Likert de seis pontos, assim como Robertson, Cooper e Willians (1990Robertson, I. T.; Cooper, C. L.; Willians, J. 1990. The validity of the occupational stress indicator. Work & Stress, v. 4, n. 1, p. 29-39.), traduzido para o português por Swan, De Moraes e Cooper (1993Swan, J. A., De Moraes, L. F. R., e Cooper, C. L. 1993. “Developing the occupational stress indicator OSI) for use in Brazil: a report on the reliability and validity of the translated OSI.” Stress Medicine 9(4), 247-253.), aplicados por Martinez (2002Martinez, M. C. 2002. “As relações entre a satisfação com aspectos psicossociais no trabalho e a saúde do trabalhador.”, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Departamento de Saúde Ambiental, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Disponível: https://www.researchgate.net/profile/Maria-Martinez-7/publication/34734425_As_relacoes_entre_a_satisfacao_com_aspectos_psicossociais_no_trabalho_e_a_saude_do_trabalhador/links/5593e9da08ae5af2b0ecd152/As-relacoes-entre-a-satisfacao-com-aspectos-psicossociais-no-trabalho-e-a-saude-do-trabalhador.pdf Acesso em 11 de fevereiro de 2022.
https://www.researchgate.net/profile/Mar...
), adaptado e aplicado por Marqueze e Moreno (2009Marqueze, E. C., e Moreno, C. R. D. C. 2009. “Satisfação no trabalho e capacidade para o trabalho entre docentes universitários”. Psicologia em estudo 14(1), 75-82.). A combinação dos resultados das duas dimensões de satisfação é traduzida no Índice Global de Satisfação, uma das variáveis explicativas do modelo.

Na Tabela 7, estão os resultados estimados para a equação de salários. A princípio, os resultados destacam que as variáveis sexo, cor, origem e contribuição para a previdência social, que tradicionalmente são encontradas em estudos que descrevem os diferenciais de rendimento no campo de trabalho convencional, não foram estatisticamente significativas para explicar as diferenças de rendimento.

Tabela 7
Resultados das estimações da equação de salários

Os músicos que possuem ensino superior em música também não apresentaram uma correlação estatisticamente significativa com a renda. Entretanto, as variáveis categóricas que destacam o nível de educação formal (generalista) são significativas.

Embora entenda-se que o conhecimento adquirido nas estruturas convencionais de educação não contribua de modo direto para o avanço das suas habilidades como músico, tem-se indícios de uma relação positiva, mas não linear, entre renda e nível de ensino formal (em áreas do conhecimento distintas da música). Essa constatação tem por base os resultados encontrados para os músicos com Ensino Médio (ou Técnico) completo. Tais resultados são maiores do que os observados para indivíduos com Ensino Superior ou Pós-Graduação completa (especialização, mestrado, doutorado).

Esses resultados estão de acordo com os relatos descritos por Haak (2005Haak, C. 2005. “Künstler zwischen selbständiger und abhängiger Erwerbsarbeit.” Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB). Discussion Paper 2005-107) e Bille e Jansen (2018Bille, T., e Jensen, S. 2018. “Artistic education matters: survival in the arts occupations.” Journal of Cultural Economics 42(1), 23-43.), ao exporem que os diferentes níveis de educação formal são importantes para minimizar os riscos econômicos da carreira, diminuir barreiras para a entrada e, também, auxiliar na permanência, mas estes atributos não explicam linearmente os diferenciais de rendimento, assim como ocorreu nos achados deste artigo. Portanto, confirma-se a hipótese de que os retornos pecuniários derivados da ocupação de músico não acompanham linearmente o aumento dos anos de estudo. Os achados retratam uma relação linear e positiva entre retornos pecuniários e idade. Conforme destaca Menger (1999Menger, P. M. 1999. “Artistic labor markets and careers.” Annual review of sociology 25(1), 541-574.), artistas jovens e com pouca experiência aceitam ocupar postos de trabalho com baixa remuneração pecuniária para aprimorar os seus conhecimentos sobre o campo de atuação e melhorar as suas aptidões artísticas, passando por um processo de aprendizado.

Os resultados para o Brasil vão ao encontro dos obtidos nas estimativas para Belo Horizonte (Tabela A2 do apêndice). As variáveis de sexo e cor não apresentam significância estatística para os músicos, mas são estatisticamente significativas para explicar os diferenciais de rendimento dos profissionais das Ciências e Intelectuais e de todos os ocupados. Por sua vez, o Ensino Superior contribui para o aumento dos rendimentos dos músicos e dos grupos de comparação, com menor expressão para os músicos. Embora os resultados apontem uma relação linear e positiva entre o rendimento e a idade, para os músicos mais jovens não houve significância estatística. E, por fim, o rendimento tende a aumentar para aqueles que contribuem para a previdência, com maior destaque para os grupos de comparação.

A sensibilidade em relação aos rendimentos é constatada nas estimativas, quando se identificam relações positivas e inversamente proporcionais entre a renda e a idade do primeiro posto de trabalho na música. Ou seja, os diferenciais de rendimentos, em parte, podem ser explicados pela entrada “precoce ou tardia” no campo de trabalho como músico. Em relação aos resultados obtidos com a satisfação com o trabalho, tem-se que músicos tidos como satisfeitos em amplos aspectos da sua trajetória profissional estão propensos a terem rendimentos 58% superiores aos dos insatisfeitos.

Em uma análise geral para observar a distribuição de renda dos músicos atuantes em Belo Horizonte, tem-se, no Gráfico 1, a Curva de Lorenz para o rendimento dos músicos, sob o ponto de vista da perfeita igualdade de rendimento, representada pela reta com 45o graus de inclinação. O comportamento encontrado na Curva de Lorenz8 8 A curva de Lorenz encontra-se entre a linha central (com inclinação em 45o) de perfeita igualdade e de extrema desigualdade. Portanto, quanto mais próxima ela estiver da linha de perfeita igualdade mais igualitária é a distribuição de renda do perfil observado, e, quanto mais afastada a curva de Lorenz estiver da diagonal plotada no Gráfico 1, maior será a concentração de renda entre os músicos entrevistados. indica a existência de desigualdades de rendimentos entre os músicos ao longo da distribuição. Chama a atenção o formato da inclinação da curva que ocorre mais ao alto da distribuição, sugerindo que há concentração e desigualdades de rendimentos na parcela de músicos com as maiores remunerações.

Gráfico 1
Curva de Lorenz para o rendimento dos músicos - para rendimentos não nulos

A investigação sobre as desigualdades intragrupo nos induz a observar estes diferenciais em dois grandes grupos: 1 - Rendimentos como músico sem dedicação exclusiva; 2 - Rendimentos como músico com dedicação exclusiva. A desigualdade de rendimento médio entre os percentis se repete ao longo de toda a distribuição, conforme destaca a Tabela 8.9 9 A distribuição de rendimentos para os músicos e grupos de comparação para o Brasil consta na tabela A3 do apêndice.

Tabela 8
Distribuição de renda dos músicos

Sabendo que uma das desvantagens dos Índices de Gini, Mehran e Piesch é não considerar as desigualdades de oportunidades, a fim de minimizar estas partes não captadas pelos indicadores propostos, os resultados encontrados direcionam esta análise em diferentes grupos para além da inserção, considerando distintas faixas etárias e, também, níveis de escolaridade. Essas informações constam na Tabela 9.

Tabela 9
Desigualdade de rendimento entre os músicos - rendimentos não nulos

Constatou-se que, entre o grupo dos músicos sem dedicação exclusiva, ocorrem os rendimentos médios mais baixos (R$ 1.142,85), quando comparados aos músicos com dedicação exclusiva (R$ 3.605,43). A faixa etária entre os músicos sem dedicação exclusiva demonstra estar em relação direta com a renda, ou seja, quanto maior a faixa etária, maior foi o rendimento médio. Em contrapartida, a faixa etária acima de 44 anos relata os maiores níveis de desigualdade computados pelos indicadores. Ainda que a faixa etária de até 29 anos apresente os menores níveis de desigualdades ao longo da distribuição, observa-se, também, nessa faixa de idade, os menores rendimentos médios mensais. Considerando os diferentes níveis de escolaridade, tem-se que os maiores níveis de desigualdade ocorrem entre os músicos com ensino superior em música. Já os músicos autodidatas possuem menores níveis de desigualdade, mas são aqueles que percebem os menores rendimentos.

Ao se observar o grupo dos músicos com dedicação exclusiva à música, confirma-se que não há uma relação direta entre renda e idade, sendo que os maiores níveis de desigualdade ocorrem na faixa de 30 a 36 anos de idade. Entretanto, os resultados encontrados para os diferentes níveis de escolaridade retratam que os graduados em música são os de maiores salários médios e, também, são aqueles com maiores níveis de desigualdade encontradas.

Ao contrapor ambos os grupos de análise, compreende-se que existem maiores níveis de desigualdade entre os músicos com dedicação exclusiva, com destaque para aqueles com ensino superior em música e na faixa etária de 30 a 36 anos de idade, que apresentam os maiores rendimentos médios encontrados nesta análise (R$ 5.885,31 e R$ 5.092,81, respectivamente). Essas são as características observadas que possuem as maiores variações de renda em relação à média observada e, deste modo, são os perfis com maiores desigualdades10 10 Os rendimentos médios e os indicadores de desigualdade de acordo com a idade e escolaridade para o Brasil dos músicos e grupos de comparação encontram-se nas tabelas A4 e A5 do apêndice. Os resultados para os músicos no Brasil corroboram os observados para Belo Horizonte para faixa etária e escolaridade. . Já os músicos autodidatas, com dedicação exclusiva ou não, encontram-se em distribuição menos desigual quando comparados aos demais níveis de escolaridade. Embora o nível de desigualdade seja menor, a remuneração média é a mais baixa, refletindo, assim, as menores perspectivas de variação de renda.

5. Considerações Finais

Como primeiras considerações acerca dos diferenciais de rendimento encontrados no campo de trabalho dos músicos, constata-se a hipótese de que os rendimentos dos músicos não apresentam uma relação linear com os diferentes níveis de educação formal, assim como retrata a literatura especializada no campo de trabalho artístico. Algo ressaltado na revisão da literatura deste artigo.

Ao testar a hipótese de que o trabalho dos músicos é dotado de uma distribuição de renda bastante concentrada, com poucos indivíduos percebendo remunerações muito altas, verifica-se que 55,27% dos músicos da amostra recebem rendimentos abaixo da média observada.

Através da leitura das estatísticas descritivas sobre os rendimentos dos músicos, observam-se desigualdades de rendimentos latentes e, conforme preconiza Throsby (1994Throsby, D. 1994. “A work-preference model of artist behaviour.” In Cultural economics and cultural policies. Kluwer Academic, Dordrecht, 69-80.), em que há bem-estar do indivíduo trabalhar em ocupações artísticas, as análises das desigualdades intragrupo foram direcionadas para serem observadas em dois diferentes grupos: i) músicos sem dedicação exclusiva; ii) músicos com dedicação exclusiva.

Considerando que um dos fatos estilizados do trabalho artístico é de que poucos indivíduos se sobressaem e alcançam rendimentos extraordinários, nota-se que, nesses dois grandes grupos, os maiores níveis de desigualdade, além dos encontrados na literatura especializada, se referem à faixa etária e ao nível de escolaridade.

Os resultados apontados pelos indicadores de desigualdade mostram que os músicos com dedicação exclusiva concentram maiores rendimentos médios e, também, possuem os maiores níveis de desigualdade em algumas categorias específicas, como na faixa etária de 30 a 36 anos e com ensino superior em música. Os músicos autodidatas apresentaram os menores níveis de desigualdade, no entanto, seus rendimentos são os mais baixos observados nesta análise. Tal resultado poderia ser reflexo do que foi proposto por Baumol e Bowen (1966Baumol, W. J.; Bowen, W. G. 1966 Performing Arts, the Economic Dilemma: A Study of Problems Common to Theatre, Opera, Music and Dance. [S.l.]: MIT Press), mas, destarte, estaria se assumindo que os autodidatas são menos produtivos e, por isso, auferem rendimentos mais baixos, algo não incorporado na análise empírica deste artigo e, portanto, sujeito à controvérsia.

Em adição como parte complementar dos diferenciais de rendimentos, constatou-se a relação da satisfação do músico com o seu trabalho como um princípio explicativo dos diferenciais de rendimentos, visto que os retornos pecuniários são superiores para os músicos que se classificam como satisfeitos perante os insatisfeitos.

Em relação à hipótese de uma distribuição de renda distorcida no universo de trabalho dos músicos, observou-se que a maior parte dos músicos aufere rendimentos inferiores à média geral. Sabendo que os artistas possuem utilidade em trabalhar em ocupações artísticas e ocupações não artísticas (Throsby 1994Throsby, D. 1994. “A work-preference model of artist behaviour.” In Cultural economics and cultural policies. Kluwer Academic, Dordrecht, 69-80.) e que grande parte dos músicos da amostra em Belo Horizonte são graduados em ao menos alguma área do conhecimento, a análise intragrupo se direcionou para observar o comportamento em dois grandes grupos: músicos com e sem dedicação exclusiva.

Ainda que o ano de 2020 tenha sido atípico em razão da pandemia da covid-19 e seus efeitos deletérios tenham repercutido sobre a remuneração e a distribuição de rendimentos dos músicos na cidade de Belo Horizonte, os resultados corroboram que a categoria ocupacional está sujeita a vulnerabilidades, tornando o retorno pecuniário fruto de variáveis muitas vezes não observáveis como talento e não observadas neste estudo, como histórico de vida familiar, estilo de vida e a inserção na rede. Políticas públicas para desconcentrar a distribuição devem priorizar editais e fundos que prestigiem os mais jovens, com formação musical e que residam em áreas periféricas na cidade.

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  • JELClassificatin

    Z10, Z19, J01
  • 1
    Ao observar a série histórica dos dados da PNAD-Contínua, observa-se que, desde 2016, as proporções de músicos belorizontinos autônomos ou sem assinatura de carteira de trabalho concentram taxas próximas ou superiores a 80%, exceto para o ano de 2019. O recorte pela PNAD-Contínua tem por base a Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares, com o grupo base, 2652 - Músicos, cantores e compositores.
  • 2
    De forma sucinta, classe criativa para Richard Florida (2002) diz respeito aos trabalhadores com, no mínimo, ensino superior completo em qualquer campo do conhecimento.
  • 3
    Número aproximado informado pela Ordem dos Músicos do Brasil de Belo Horizonte.
  • 4
    O questionário e TCLE foram submetidos ao Comitê de Ética em Pesquisa - CEP da Universidade Federal de Minas Gerais, no dia 22/11/2019.
  • 5
    Ressalta-se que a pesquisa não descreve o universo dos músicos em BH, mas sim a situação dos respondentes.
  • 6
    Para fins de comparação, consta na Tabela A1 do Apêndice, as características gerais dos músicos, profissionais das ciências e intelectuais e todos os ocupados de acordo com a PNAD-Contínua do IBGE para a cidade de Belo Horizonte, no ano de 2020. O grupo Profissionais das Ciências e Intelectuais foi selecionado como grupo de comparação no estudo citado, uma vez que a ocupação de músicos integra este grupo e, guarda, portanto, similaridades com o mesmo. Não há muita distinção no que tange à composição por sexo e idade. E, considerando o total de músicos pela PNAD-C (2130 ocupados), o número de respondentes desta pesquisa (380) é bastante representativo, cerca de 18%.
  • 7
    Para fins de comparação, constam nas Tabelas A2-A5, do Apêndice, as estimativas para músicos, profissionais das ciências e intelectuais e todos os ocupados no Brasil pela PNAD-Contínua do IBGE, entre 2019 e 2021. Devido ao tamanho da amostra, não foi possível realizar as estimativas apenas para a cidade de Belo Horizonte. Os rendimentos foram deflacionados pelo deflator disponibilizado pelo IBGE para a PNAD-Contínua Trimestral, com referência temporal do último trimestre de 2021. A equação de salários considera as seguintes variáveis explicativas: sexo, cor, idade, escolaridade, contribuição para a previdência e dummies de ano.
  • 8
    A curva de Lorenz encontra-se entre a linha central (com inclinação em 45o) de perfeita igualdade e de extrema desigualdade. Portanto, quanto mais próxima ela estiver da linha de perfeita igualdade mais igualitária é a distribuição de renda do perfil observado, e, quanto mais afastada a curva de Lorenz estiver da diagonal plotada no Gráfico 1, maior será a concentração de renda entre os músicos entrevistados.
  • 9
    A distribuição de rendimentos para os músicos e grupos de comparação para o Brasil consta na tabela A3 do apêndice.
  • 10
    Os rendimentos médios e os indicadores de desigualdade de acordo com a idade e escolaridade para o Brasil dos músicos e grupos de comparação encontram-se nas tabelas A4 e A5 do apêndice. Os resultados para os músicos no Brasil corroboram os observados para Belo Horizonte para faixa etária e escolaridade.

Apêndice

Tabela A1
Características gerais dos músicos e grupos de comparação, Belo Horizonte, 2020
Tabela A2
Resultados das estimações da equação de salários, músicos e grupos de comparação, Brasil, 2019-2021
Tabela A3
Distribuição de renda dos músicos e grupos de comparação, Brasil, 2019-2021
Tabela A4
Desigualdade de rendimento entre os músicos e entre os grupos de comparação, Brasil, 2019-2021
Tabela A5
Indicadores de desigualdade de rendimento, músicos e grupos de comparação, Brasil, 2019-2021

Editor Responsável:

Fábio Waltenberg

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Aceito
    22 Set 2023
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