DEBATES
Comentário XI
Solange Ferraz de Lima; Vânia Carneiro de Carvalho
Divisão de Acervo e Curadoria do Museu Paulista da USP
As primeiras experiências com a informatização de acervos no Museu Paulista ocorreram como conseqüência do novo direcionamento dado à instituição em 1989 na gestão de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (Depto. de História da FFLCH/USP). Um Plano Diretor estabelecia os parâmetros do novo perfil do museu: as atividades de pesquisa, docência e difusão deveriam, dali em diante, ser norteadas por três linhas de pesquisa definidas a partir da especificidade do acervo e do potencial de pesquisa no campo da cultura material. O Plano Diretor partia de uma noção de curadoria que tinha como foco superar as tradicionais compartimentações entre as atividades de documentação de acervos, pesquisa e difusão. Foi com essa noção solidária de curadoria que, no início da década de 1990, as equipes de pesquisadores, especialistas e técnicos do Museu Paulista concentraram seus esforços na reorganização dos acervos e na definição das bases para a criação do sistema documental da instituição
No caso específico da iconografia
Nessa ocasião, elaboramos o projeto Banco de Dados Iconográficos, dividido em quatro módulos temáticos (cartões-postais, álbuns de família, caricatura e propaganda 1890 a 1920), cujo principal objetivo era a montagem de um banco de referências iconográficas voltado para o encaminhamento de pesquisas no campo da cultura material. O banco cobriria não só a documentação iconográfica integrante do acervo do museu, mas também de outras instituições, em um esforço de sistematizar referências mais gerais. Como bem afirmou Mendes, a experiência serviu como balão de ensaio para o módulo iconográfico dos acervos do Museu Paulista. O projeto, financiado pelo CNPq, contava com seis bolsistas de iniciação científica e aperfeiçoamento integrados aos módulos temáticos, que dispunham, cada um, de um coordenador do museu e um consultor especialista na tipologia de documentos ou nos seus temas correlatos
Seminários internos sobre textos que discutiam o potencial das fontes iconográficas e as especificidades de sua catalogação, levantamento de acervos e formulação da ficha catalográfica e de um vocabulário controlado mobilizaram a equipe de curadoria de imagens por três anos. Optou-se pela adoção do software Foxplus que, na época, representava uma possibilidade compatível com os recursos financeiros disponíveis além de permitir a inserção de imagens, algo ainda que não fazia parte do escopo do Microisis, o software livre que havia delineado os bancos bibliográficos de muitas instituições nacionais. A alimentação da base contava com um manual de orientação e um vocabulário controlado cuja elaboração pautou-se nas experiências do módulo fotográfico que integrava o banco de dados do Instituto Cultural Itaú e o thesaurus de Arquitetura da FAU/USP.
Em seu projeto inicial, o sistema informatizado do Museu Paulista contava também com catálogos paralelos, relacionados com a base de dados relativa ao acervo que poderia dar conta da contextualização documental de maneira mais ampla: biografias de autores e glossário de técnicas utilizadas, por exemplo. O registro da circulação dos documentos iconográficos com referências inclusive às pesquisas acadêmicas que alimentaram, bem como opções de cruzamento de todos os campos para a recuperação da informação e a impressão de variada tipologia de relatórios completavam a interface com o consulente.
Após quase 15 anos da implementação do sistema, parte das expectativas foi alcançada: a alimentação do módulo iconografia do Sistema Documental Informatizado do Museu Paulista contabiliza hoje 27.000 fichas. No entanto, é preciso frisar que nem todas as unidades desse acervo encontramse documentadas e descritas no mesmo grau. Para as aquisições mais recentes que contaram com patrocínio foi possível executar imediatamente após a compra o projeto de tratamento físico e documental
Do ponto de vista das mudanças tecnológicas, o descompasso foi ainda maior. Embora o sistema tenha contado com atualizações periódicas (atualmente o software utilizado no museu é o Visual Fox 6.0, porém já existe a versão 8.0), elas exigiam tempo de programação e adaptações para a migração dos dados que dependiam exclusivamente de um único programador, Luciano Beraldo, responsável pelo projeto de informatização desde o seu início. À atividade de criação e gerenciamento do sistema somaram-se, nesse período, o aumento vertiginoso do parque informático (eram quatro microcomputadores existentes em 1992 e atualmente são 70), a implementação das inovações trazidas com a expansão da Internet e as possibilidades de servidores capazes de suportar o sistema em rede conectando todos os setores envolvidos com a catalogação de acervos. Se, por um lado, foi possível caminhar com essa face da modernização sem defasagem, por outro, fomos obrigados a assistir a uma desaceleração das atividades voltadas especificamente para a melhoria do sistema de modo a garantir a consolidação dos catálogos mencionados e uma interface para consulta mais elaborada. No momento, o projeto inicial encontrase em fase de reformulação, tendo em vista a disponibilização dos dados na web e a finalização de parte das etapas previstas no início.
Tal como apontado por Mendes, é forçoso concordar que "é o desafio administrativo o ponto de maior dificuldade de ataque", sobretudo no tocante ao número de integrantes da equipe responsável pelo gerenciamento dos acervos e à formação requerida para tal. A experiência do Museu Paulista é, infelizmente, exemplar desse desafio. Tratando-se de um museu universitário, essa formação não se restringe a um mero treino de gerenciamento de ambientes digitais, mas implica relações estreitas com a atividade de pesquisa, na qual a permanente atualização é fundamental. Essa atualização se faz por meio de leituras, discussões organizadas por seminários internos, participação em congressos e encontros que fornecem o escopo necessário às decisões que devem integrar planejamentos de médio e longo prazos. A política restritiva de recursos humanos compromete a curadoria. E nesse ponto toca-se na questão principal levantada por Mendes: "como o horizonte digital acelera essa ação 'natural' de modelagem do passado que toda coleta e organização de dados e objetos, informações e documentos implica" e a gravidade de seus desdobramentos perante as restrições por que passam os trabalhos institucionais como as apontadas. É assim que, independente do horizonte instrumental, curadores e conservadores de acervos sempre moldam um passado. O ato seletivo e valorativo de colecionar funda-se na retirada do objeto de seu contexto de uso para promover a sua inserção num conjunto que adquire novas funções de caráter simbólico, social, político e, por que não, econômico. Na arena institucional, desde o momento em que são formalmente estabelecidas, as ações de coleta e organização implicam construção do documento.
Portanto, partindo dessa premissa, o ponto principal é evidenciar os critérios e o norte das escolhas que definem essa construção. Em outras palavras, tornar claro, e tão acessível quanto os próprios acervos organizados, o processo de feitura, o todo ou a articulação pretendida que dá sentido às ações sobre as unidades do conjunto preservado. O curador relaciona-se com doadores de toda sorte e variada gama de comerciantes. Da aquisição (doação ou compra) ao acondicionamento final, o processo de integração de uma unidade iconográfica envolve inúmeras relações sociais, sujeitas às subjetividades a elas inerentes. Impossível suprimir esse dado.
Tomemos aqui, a título de exemplo, a etapa inicial de entrada do acervo no museu. No momento da aquisição nasce para o curador o primeiro esboço biográfico do objeto que se tornará documento. A troca inicial documentada pelo laudo já determina o tipo de filiação da curadoria ao campo da cultura material, as informações sobre o valor e a posição da unidade material na vida do proprietário, a trajetória e, por fim, a motivação de integrá-la a um acervo institucional. A preocupação em entender a relação do proprietário com a coleção contribui para suprimir a indesejável dicotomia entre sujeito e objeto.
Significa identificar possíveis correspondências entre a escala de valores daquele indivíduo e a constelação material da qual o objeto doado faz parte
Simultânea à necessidade de biografar as formas de apropriação e circulação do documento é a necessidade do contato direto do pesquisador com o objeto em questão, no intuito de melhor conhecer técnicas e materiais empregados, conforme exposto por Mendes. A caracterização morfológica indica uma rota importante, mas infelizmente pouco perseguida. No caso específico da fotografia, os critérios de seleção dos documentos relevantes para a historiografia da cultura visual são outro problema a ser enfrentado. A produção fotográfica comercial a prática dos fotógrafos não conhecidos que compõe a grande maioria das coleções particulares formadoras da narrativa familiar das camadas médias da população impõe os desafios de recuperar contextos de consumo completamente esquecidos. A valorização do conteúdo da imagem e de sua autoria, na tentativa de dotar a fotografia da mesma importância de outras artes visuais, deslocou o interesse para longe das condições de produção e circulação maciças, lacunas que ainda estão por ser superadas.
Um bom exemplo de como caminhar nessa direção mais uma vez exige trabalho de pesquisa. Recentemente, um colecionador autorizou a reprodução de um catálogo impresso de materiais fotográficos datado de 1917.
Esse catálogo traz, em suas últimas páginas, uma vasta tipologia dos papéis utilizados para o acondicionamento da fotografia fôlderes e passe-partouts com seus nomes e relação de preços. Boa parte dessa tipologia encontra-se representada no acervo fotográfico do Museu Paulista. Tal tipo de informação abre uma importante senda para entender o universo gráfico nacional: esses papéis eram produzidos aqui? E sua ornamentação, quem eram os produtores, quais os modelos e repertórios utilizados? Mais importante ainda: com base na variação de preços, está claro que esse segundo suporte definia o preço final da fotografia de estúdio, resultando, portanto, em diferenciações sociais e de ocasiões. Haveria associações de tipologias ornamentais ou de papéis com ritos registrados? A formulação de questões dessa natureza integra a pesquisa no campo da cultura material, sobretudo quando nos preocupamos com aspectos da circulação no intuito de entender a fotografia não só como mensagem e signo, mas na sua dimensão de artefato.
- 7 A tentativa de superar a separação epistemologicamente indesejável entre sujeito e objeto, substituindo-a por uma noção sintética denominada condutas motoras, é sistematizada por WARNIER, 1999a, p. 107-117, 1999b, p. 9-15.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Ago 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2004