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Tecido urbano e mercado imobiliário em São Paulo: metodologia de estudo com base na Décima Urbana de 1809

Resumos

Este artigo apresenta uma metodologia inédita de espacialização da Décima Urbana, primeiro imposto predial estabelecido para as cidades brasileiras. Focaliza o caso de São Paulo, em 1809. Os dados recolhidos na documentação textual foram processados em banco de dados e cartografados na primeira planta cadastral da cidade, elaborada pelo engenheiro Carlos Bresser, entre 1844-1847, e confrontados com a documentação iconográfica dos viajantes e de Militão Augusto de Azevedo, de modo a precisar as informações obtidas. A Décima Urbana de 1809 contém informações sobre a localização dos imóveis, seus proprietários, inquilinos, tipologias (casas térreas, sobrados, lojas), finalidades (uso próprio, aluguel), usos (residencial, comercial, misto) e valor, que hoje nos permitem reconstituir hipoteticamente o velho tecido urbano da cidade de São Paulo e aspectos da dinâmica do seu mercado imobiliário em fins do período colonial.

São Paulo; Décima Urbana; Tecido Urbano; Mercado imobiliário rentista; Período Colonial


This article presents a new spatialisation methodology for the Décima Urbana, the first property tax established in Brazilian cities. The case of São Paulo in 1809 is studied. The data gathered from textual documentation was processed in a database and cartographed on the first official city plan, elaborated by engineer Carlos Bresser between 1844-1847, and then confronted with the iconographic documentation produced by visiting travellers and by photographer Militão Augusto de Azevedo, so as to cross-reference the information obtained. The Décima Urbana of 1809 contains data about the siting of buildings, their proprietors, tenants, typology (single and two-storey houses, shops), finalities (own use, rent), uses (residential, commercial, mixed) and value. This allows for the present day hypothetical reconstruction of old São Paulo's urban mesh and of aspects of the real estate market dynamics at the end of the colonial period.

São Paulo; Décima urbana; Urban mesh; Property Rent Market; Colonial Period


ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL

Tecido urbano e mercado imobiliário em São Paulo: metodologia de estudo com base na Décima Urbana de 1809

Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

RESUMO

Este artigo apresenta uma metodologia inédita de espacialização da Décima Urbana, primeiro imposto predial estabelecido para as cidades brasileiras. Focaliza o caso de São Paulo, em 1809. Os dados recolhidos na documentação textual foram processados em banco de dados e cartografados na primeira planta cadastral da cidade, elaborada pelo engenheiro Carlos Bresser, entre 1844-1847, e confrontados com a documentação iconográfica dos viajantes e de Militão Augusto de Azevedo, de modo a precisar as informações obtidas. A Décima Urbana de 1809 contém informações sobre a localização dos imóveis, seus proprietários, inquilinos, tipologias (casas térreas, sobrados, lojas), finalidades (uso próprio, aluguel), usos (residencial, comercial, misto) e valor, que hoje nos permitem reconstituir hipoteticamente o velho tecido urbano da cidade de São Paulo e aspectos da dinâmica do seu mercado imobiliário em fins do período colonial.

Palavras-chave: São Paulo. Décima Urbana. Tecido Urbano. Mercado imobiliário rentista. Período Colonial.

ABSTRACT

This article presents a new spatialisation methodology for the Décima Urbana, the first property tax established in Brazilian cities. The case of São Paulo in 1809 is studied. The data gathered from textual documentation was processed in a database and cartographed on the first official city plan, elaborated by engineer Carlos Bresser between 1844-1847, and then confronted with the iconographic documentation produced by visiting travellers and by photographer Militão Augusto de Azevedo, so as to cross-reference the information obtained. The Décima Urbana of 1809 contains data about the siting of buildings, their proprietors, tenants, typology (single and two-storey houses, shops), finalities (own use, rent), uses (residential, commercial, mixed) and value. This allows for the present day hypothetical reconstruction of old São Paulo's urban mesh and of aspects of the real estate market dynamics at the end of the colonial period.

Keywords: São Paulo. Décima urbana. Urban mesh. Property Rent Market. Colonial Period.

Reconstituir hipoteticamente a velha tessitura da cidade de São Paulo e os agentes sociais envolvidos na sua produção, em fins do período colonial, foi um dos desafios assumidos neste artigo, parte de uma pesquisa em andamento1 1 . Esta pesquisa é parte de um Projeto Temático financiado pela Fapesp, intitulado Urbanização dispersa e mudanças no tecido urbano. Estudo de caso: Estado de São Paulo, que está sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação (LAP), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, sob a coordenação geral do Prof. Dr. Nestor Goulart Reis Filho. Dentro dos objetivos do projeto temático, sob nossa coordenação, subtema específico contempla o velho tecido urbano da cidade de São Paulo em paralelo ao estudo da dinâmica do seu mercado imobiliário. Se propõe a analisar a questão numa perspectiva histórica, de longa duração, enfocando de 1809 a 1950. Por não se tratar de um período homogêneo, dividimos a pesquisa em três módulos: 1809 a 1870; 1870 a 1930; 1930 a 1950. Neste artigo, apresentaremos algumas conclusões referentes ao período colonial, com base em documentação pouco utilizada pelos historiadores, geógrafos, arquitetos, urbanistas e economistas, de extrema relevância para pesquisas dessa natureza. . Ao espacializarmos uma documentação inédita, a Décima Urbana de 1809, pudemos constatar aspectos surpreendentes da cidade de São Paulo, jamais enfocados pela historiografia. Verificamos que boa parte do tecido urbano era produto da iniciativa privada e 50% das casas destinadas à renda de aluguel. Constatamos a existência de um mercado imobiliário "rentista" na São Paulo colonial e considerável concentração de imóveis nas mãos das ordens religiosas, em especial dos beneditinos, detentores de 61 prédios. No entanto, se individualmente foram as ordens religiosas os principais agentes detentores do patrimônio imobiliário urbano paulistano, no conjunto, 81% dos prédios eram patrimônio laico, envolvendo nomes conhecidos como os dos Coronéis Luiz Antônio de Souza e Jozé Arouche de Toledo, bem como outros menos famosos de comerciantes e negociantes.2 2 . Foi critério da autora manter a grafia de nomes dos proprietários como são citados na Décima Urbana de 1809.

A elite tinha muitas vezes dupla morada, em geral gozando de chácaras nos arredores da cidade e de amplos sobrados nas ruas centrais. No entanto, em 1809, os célebres sobrados dos quatro cantos pertencentes aos Prados e Jordãos ainda não haviam sido construídos. Também o sobrado de ângulo, na esquina das ruas do Ouvidor e São Bento, pertencente ao futuro Brigadeiro Luiz Antônio não estava lá; correspondia ainda a uma simples loja e um lanço – a Casa Souza – onde o proprietário praticava um dos seus importantes negócios.

Não foi tarefa fácil espacializar a Décima, sendo fundamental a eleição de um mapa-base contemporâneo à documentação manuscrita – a planta cadastral de Carlos Bresser (1844 -1847) –, sendo igualmente árduo simular o percurso do fiscal inventariante – responsável pela atribuição do imposto –, por vezes pouco objetivo. A metodologia de pesquisa consistiu portanto de quatro procedimentos associados: 1) compilação dos dados da documentação manuscrita localizada no Arquivo do Estado de São Paulo; 2) aplicação das informações obtidas na Décima, lote a lote, no mapa-base escolhido; 3) confrontação dos dados com a iconografia dos viajantes contemporâneos ao período – Ender (1817), Pallière (1821), Edmund Pink (1823), Burchell (1827) – e com as fotos de Militão Augusto de Azevedo; 4) verificação de alguns imóveis sabidamente pertencentes a certas famílias, via fontes secundárias. Nesse sentido, a tese de doutorado de Paulo Garcez Marins foi de extrema valia, além das fichas do Fundo Aguirra do Museu Paulista, que ainda merecem estudo mais detido.

A documentação iconográfica de viajantes para a cidade de São Paulo é escassa e parcial, focalizando especialmente os largos da Sé, Misericórdia e do Colégio. Ao contrário, as fotos de Militão Augusto de Azevedo são muito mais fartas e espacialmente abrangentes. Embora correspondam à segunda metade do século XIX, tais fotografias nos permitem entrever as velhas casas térreas e sobrados de beirais largos, vergas retas ou de arco abatido, com rótulas e muxarabis do período colonial, em meio às edificações alteadas, maquiadas de platibandas, ferragens e vidraças. A interpretação da documentação iconográfica precisa, portanto, a volumetria sugerida pela Décima de 1809.

Possivelmente ocorreram imprecisões, mas alguns aspectos de conjunto podem ser inferidos desde já. Trata-se de uma cidade concentrada na colina entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, predominantemente térrea (86%) e residencial (86%), com sobrados localizados em determinadas ruas de uso misto, correspondendo às áreas mais valorizadas da cidade.

Ao descortinarmos os proprietários e inquilinos das casas e lojas, surgiu o perfil da população urbana e o cenário ganhou vida, permitindo elucidar aspectos obscuros da historiografia, inferir outros e vislumbrar futuras linhas de pesquisa ainda inexploradas sobre a velha São Paulo.

A historiografia

Divulgada nos estudos de Raquel Glezer, mas ainda inexplorada desse ponto de vista, a Décima Urbana foi o primeiro imposto predial, estabelecido para a Corte e principais vilas, cidades e lugares notáveis da faixa litorânea, pago à Fazenda Real, correspondendo a 10% do rendimento líquido de todos os bens de raiz, incidindo sobre proprietários e inquilinos, com exceção daqueles pertencentes às Santas Casas de Misericórdia. Ampliado em sua área de abrangência, por Alvará emitido ainda em 3/6/1809, o tributo foi estendido a todas as povoações, para além da faixa costeira, mantendo as mesmas isenções do texto anterior e reforçando a exigência de pronto pagamento.

Para fins de tributação, resultou no arrolamento, em livro específico, de todos os prédios circunscritos no perímetro urbano, então definido para tanto, bem como na primeira numeração dos edifícios da cidade. Nesse sentido, contém informações preciosas sobre a localização dos imóveis, seus proprietários, inquilinos (em caso de imóvel de aluguel), tipologias, finalidades, usos e valor (do prédio e do aluguel), que hoje nos permitem reconstituir o velho tecido urbano do atual centro histórico da cidade de São Paulo, em 1809, e entender aspectos do seu mercado imobiliário.

Convém salientar que a Décima Urbana teve longa vida, apesar dos percalços iniciais para sua cobrança. Sua escala de abrangência e alíquota foram alteradas em 1867:

[...] cobrança de12% na décima adicional dos prédios das corporações de mão morta, os prédios dos bancos, companhias e sociedades anônimas, e associações pias, beneficentes ou religiosas, incluindo no valor locativo o do terreno anexo (GLEZER, 1992, p.102-103).

A Décima Urbana tornou-se sinônimo de área urbana. Por ser sinônimo de área urbana, presta-se de maneira exemplar à reconstituição da sua tessitura.

Embora muito tenha sido escrito sobre a cidade de São Paulo, escassa é a literatura sobre essas questões. Do ponto de vista do traçado planimétrico e volumétrico, os estudos recentes de Nestor Goulart Reis Filho (2004) e Benedito Lima de Toledo (2004) muito acrescentaram ao já conhecido.

Do ponto de vista dos agentes sociais, produção e vivência do espaço urbano, no que diz respeito à casa comum, à exceção do capítulo "Sociabilidades paulistanas", ainda inédito, da tese de Paulo Garcez Marins (1999), com base nos inventários post-mortem e na iconografia, raros foram os estudos de conjunto a descortinar essas questões. Pioneiro na localização e estudo do perfil social dos moradores das famosas casas térreas e sobrados de rótulas estampados nas fotos de Militão Augusto de Azevedo, o autor desenvolveu minuciosa metodologia de pesquisa, envolvendo o confronto de fontes documentais diversas – inventários, cartografia, iconografia, antigas numerações das ruas da cidade de São Paulo e a Décima Urbana de 1872.

Na mesma linha, mais recentemente, o doutorado de Maria Luiza Ferreira de Oliveira (2003) contemplou aspectos das relações sociais, do cotidiano dos setores médios e do mercado imobiliário "rentista" na cidade de São Paulo, entre 1870-1900, também com base nos inventários de família.

Em relação a pesquisas sobre a história do mercado imobiliário na cidade, acreditava-se que o mesmo fosse inexistente no período colonial. À exceção dos trabalhos pioneiros de Fania Fridman (1999) e Nireu Cavalcanti (2004), circunscritos ao caso carioca, nada foi escrito sobre patrimônio e mercado imobiliário urbano em tempos tão recuados.

Os estudos de João Luís Fragoso (1998) apontaram para a questão ao demonstrar que a maioria das propriedades imobiliárias do centro do Rio estavam concentradas nas mãos de ricos comerciantes. No entanto, apenas Fania Fridman – com base na documentação oficial dos Arquivos da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – e Nireu Cavalcanti – com base nos Livros da Décima Urbana da Corte de 1809 a 1812 – caracterizaram a sua existência, natureza e dinâmica específica.

Outros estudos foram desenvolvidos sobre a matéria, enfocando no entanto períodos mais recentes. Convém destacar as dissertações de mestrado do historiador Reinéro Lérias (1988) e da geógrafa Mônica Silveira Brito (2000) – ambas com foco em São Paulo na Primeira República – e do arquiteto Walter Pires (2003) – com foco específico nas estruturas fundiárias dos atuais bairros do Cambuci, Jardim da Glória e Chácara Klabin, entre 1876 e 1904.

Para as questões relacionadas às transformações urbanísticas na área central da cidade de São Paulo, correspondente à antiga Freguesia da Sé, na Primeira República (1889-1930), é fundamental a tese de doutorado de Heloisa Barbuy (2001) que enfoca as mudanças nos hábitos de consumo do paulistano em paralelo às mudanças nos usos e tipologias dos edifícios, bem como os agentes sociais envolvidos. Igualmente importantes são as teses de Cândido Malta Campos Neto (2002) e José Geraldo Simões Jr (1985), focalizando as intervenções urbanísticas induzidas ou patrocinadas pelas administrações de Antônio Prado, Raimundo Duprat e demais prefeitos na zona do triângulo histórico (formado pelas ruas 15 de Novembro, São Bento e Direita), na Rua Líbero Badaró e no Vale do Anhangabaú.

A metodologia de pesquisa

Para obtermos alguns produtos da Décima Urbana de 1809, elaboramos um banco de dados específico para a pesquisa, contendo os seguintes campos:

• Cidade.

• Ano do inventário.

• Freguesia.

• Logradouro, número.

• Nome do proprietário (indicação se leigo ou religioso, particular, institucional, ordem religiosa, irmandade, padre secular).

• Nome dos inquilinos.

• Tipologia do imóvel (sobrado, casa térrea, assobradado).

• Subtipologia do imóvel (casa térrea de um a quatro lanços, loja, sobrado de um a três lanços, com ou sem loja, de um, dois ou três andares).

• Uso (residencial, comercial, misto).

• Finalidade (aluguel, uso próprio, cedido, em obras, outros).

• Valor do imóvel.

• Valor do aluguel/mês.

• Valor da Décima Urbana.

Alimentamos o banco de dados com todas as informações coletadas no Livro de 1809 e obtivemos alguns relatórios parciais, que nos permitiram tecer considerações sobre os principais proprietários de imóveis urbanos, localização dos prédios, montante investido em patrimônio imobiliário urbano e natureza específica do mercado imobiliário vigente em fins do período colonial, a saber: a) relatório geral contendo a quantificação dos imóveis catalogados por tipologia, tipo de proprietário, usos e finalidades; b) lista da quantidade de imóveis por proprietário e valor total do montante imobilizado em patrimônio imobiliário urbano por eles; c) lista de proprietários contendo os endereços de todos os seus imóveis; d) lista decrescente do valor dos imóveis e respectivos endereços.

Para a reconstituição de aspectos concretos do tecido urbano de São Paulo, em 1809, cartografamos todas as informações arroladas no inventário da Décima na primeira planta cadastral da cidade – Mappa da Cidade de São Paulo offerecido a sua Magestade... – elaborada pelo engenheiro Carlos Bresser, entre 1844-1847, eleita mapa-base para essa etapa da pesquisa. As informações nele cartografadas, resultaram em quatro pranchas inéditas: Prancha I – tipologias predominantes (casas térreas ou sobrados); Prancha II – finalidade dos imóveis (uso próprio ou aluguel); Prancha III – usos (residencial, comercial ou misto); Prancha IV – principais agentes detentores de patrimônio imobiliário urbano (leigos e religiosos).

Convém ressaltar que as informações disponibilizadas no inventário de 1809 foram confrontadas com outros três mapas de São Paulo datados de 1810, a saber: Planta da Cidade de S. Paulo [...] levantada em 1810 pelo Engenheiro Rufino Felizardo e Costa (REIS FILHO, 2004: p. 86); Planta da Imperial Cidade de São Paulo, levantada em 1810 pelo Engenheiro Rufino Felizardo e Costa e copiada em 1841 com todas as alterações (REIS FILHO, 2004, p. 119) e Carta da capital de São Paulo que o Exmo. Snr. Barão de Caxias mandou executar pelo Engenheiro da Columna José Jacques da Costa Ourique, Fortificador da capital, 1842 (REIS FILHO, 2004, p. 121).

Na preparação dos mapas, em Adobe Photoshop, contamos com a colaboração de Marcos Fernandes Calixto Rios, bolsista de iniciação científica do Projeto Temático, que sob nossa orientação está desenvolvendo pesquisa específica sobre a Rua 15 de Novembro, de 1809 a 1954, aprofundando questões referentes às transações imobiliárias e mudanças arquitetônicas e de uso na área central da cidade.

Em paralelo, também com o auxílio gráfico do aluno Marcos Rios, preparamos as pranchas focalizando aspectos de algumas ruas e largos da cidade de São Paulo no período, com base na Décima de 1809 e na iconografia disponível, nomeando os proprietários das casas e dando vida ao cenário. Apresentaremos aqui o caso do Largo da Sé, confrontando imagens de Thomas Ender (1817), Edmund Pink (1821-1833), William John Burchell (1827) e Militão Augusto de Azevedo com os dados fornecidos pela Décima. Para tanto, foi essencial o recurso ao Fundo Aguirra3 3 . Fundo pertencente ao Serviço de Documentação Textual e Iconográfica do Museu Paulista-USP, desde 1962, contém uma preciosa coleção de fichas, mapas, cadastros, livros e fotografias, organizadas por João Baptista de Campos Aguirra, em mais de 20 anos de pesquisa nos cartórios da cidade, envolvendo informações sobre as transações imobiliárias realizadas do período colonial à Primeira República, rua a rua. que possibilitou a checagem da localização dos imóveis.

O exame do livro da Décima Urbana de 1809 e o mapeamento das informações – em planimetria e volumetria – nos permitiu reconstituir aspectos do espaço intra-urbano da cidade de São Paulo, bem como esboçar um quadro do seu patrimônio e mercado imobiliário rentista, predominante em todas as cidades coloniais e imperiais brasileiras, ao menos até os anos 70 do século XIX, dando subsídios para comparações futuras com os períodos subseqüentes e casos afins.

Essa metodologia piloto será aplicada aos demais registros da Décima Urbana disponíveis sobre São Paulo, 1829 e 18724 4 . Em parceria com Paulo Garcez Marins. , e sobre Santos (1814, 1835-1836, 1836-1837 e 1837-1838), viabilizando o aprofundamento de questões aqui esboçadas.

Algumas constatações

Quando comparamos os dados estatísticos relativos ao velho tecido urbano da cidade de São Paulo e seu mercado imobiliário no início do século XIX com os dados referentes à megalópole do século XXI, surpreende-nos a dinâmica do seu processo de urbanização. Hoje falamos em "dispersão" para caracterizar as novas configurações atuais. No entanto, a mancha urbanizada, composta pela região metropolitana de São Paulo e seus 39 municípios, correspondia aos limites (o Termo) do município nas suas origens. O que hoje chamamos de centro histórico correspondeu, do século XVI ao último quartel do XIX, à area efetivamente urbanizada da cidade. A antiga Freguesia da Sé oscilava em torno de 7.000 habitantes em princípios do oitocentos e o município em torno de 24.000 habitantes. Hoje, a área municipal abriga um total de 11 milhões de pessoas, e a região metropolitana gira em torno dos 17 milhões.

Nossa memória não alcança aspectos significativos do espaço intra-urbano nas suas origens. Recuamos no tempo, portanto, para caracterizá-lo.

São bastante conhecidas as descrições dos viajantes, como as de Saint-Hilaire, que apontam aspectos de São Paulo em princípios do século XIX (1819 e 1822):

Eu não saberia dizer qual é o número de casas da cidade de São Paulo, mas Spix e Martius nos informam que, em 1815, quando o distrito de que a cidade era sede ainda compreendia 12 paróquias, havia ali um total de 4142 famílias; segundo Eschwege, haveria em 1820 nesse distrito, já reduzido a 11 paróquias, 4017 famílias, finalmente, de acordo com Daniel Pedro Müller, as 9 paróquias e a sucursal de que se compunha o distrito contariam, em 1839, com um total de 4168. Eschwege, supondo que as cifras relativas a todo o distrito se referem unicamente à cidade de São Paulo, afirma existirem nessa cidade 6 pessoas por casa. [...]

Funcionários de todas as categorias, artesãos de variadas profissões, numerosos negociantes, proprietários de casas urbanas e de terras – os quais, ao contrário de Minas Gerais, não moram nas suas fazendas – compõem a população da cidade de São Paulo [...]

A cidade fica situada [...] numa elevação [...]. Seu contorno é bastante irregular e de forma ligeiramente alongada, situando-se ela no delta formado pelos córregos Anhangabaú e Tamanduateí, os quais [...] vão desaguar no Tietê" [...]

As casas, feitas de taipa e bastante sólidas, são todas caiadas e cobertas de telhas. Nenhuma delas sugere opulência, mas vê-se um grande número de sobrados, que chamam atenção por seu aspecto vistoso e limpo. Os telhados não se projetam muito para fora, apenas o suficiente para darem sombra e protegerem as paredes da chuva, e as janelas não são tão juntas umas das outras, como se vê comumente no Rio de Janeiro. As dos sobrados são quase todas envidraçadas, com postigos pintados de verde e com sacadas. As casas de um só pavimento têm gelosias que se abrem de baixo para cima e são feitas de paus cruzados em diagonal (SAINT-HILAIRE, 1976, p.126 -128).

Se os dados sobre a população de São Paulo são pouco precisos na fala dos viajantes, com base no Recenseamento de 1776 e nas informações fornecidas por Afonso de Freitas, em 1822, sabemos que a cidade passou de 2.026 habitantes e 574 prédios para 6.920 habitantes apenas no distrito da Sé e 24.000 no município (REIS FILHO, 2004, p. 70/80). Os dados arrolados na Décima Urbana de 1809 nos permitem precisar o quadro esboçado acima, recorrentemente invocado pela historiografia.

Podemos afirmar que o perímetro urbano da capital paulista se constrangeu de 1554 a c.1870 na estreita colina formada pelo curso dos rios Anhangabaú e Tamaduateí, com pouquíssimas ramificações na várzea, compondo-se de, segundo a Décima de 1809, um total de 34 ruas (Boa Vista, S. Bento, Jogo da Bola, da Bua (sic) , do Comércio, Cadeia, Carmo, Cachoeira, Cemitério, Direita, Esperança, S. Ifigênia, da Freira, das Flores, São Francisco ao Jogo da Bola, S. Gonçalo, Guacû, do Hospital, de S. José, S. João, Lorena, Luz, Ouvidor, Príncipe, Pombal, Piques, Quartéis, Rosário a Boa Vista, Rego, Sé, Sé para S. Teresa, Tabatinguera, S. Teresa, Tanque), 13 travessas (do Bexiga, da Boa Vista, Casinhas, Comércio, Cemitério, do Colégio, S. Ifigênia, Fundição, da Lapa, do Príncipe, do Pombal, dos Quartéis e de S. Teresa), um beco (Beco do Barbas) e quatro largos (Largo da Sé, Largo do Colégio, Largo de São Gonçalo e Largo do Bexiga).

Nesse perímetro urbano foram inventariados 1.281 imóveis para fins de tributação. Desses, 81,64% estavam concentrados nas mãos de leigos e 18,27% nas mãos das ordens religiosas, irmandades e padres seculares.

São Paulo era uma cidade predominantemente térrea. Dos 1.211 imóveis cadastrados no item tipologia, apenas 161 eram sobrados (159 de um andar; um de dois andares e um de três andares), totalizando 13,29% do conjunto do casario. As 1.047 edificações restantes eram casas térreas, correspondendo a 86,45% do tecido urbano (Figura 1).


Entre as casas térreas havia subtipologias, tais como: térreas simplesmente; térrea de uma loja; térrea de um lanço; térrea de dois lanços; térrea de três lanços; térrea de um lanço e uma loja; térrea de dois lanços e uma loja; térrea de uma loja e um corredor; térrea de um lanço e um corredor; térrea de um lanço e um "sotio"; térrea de dois lanços e um mirante. Entre os sobrados também, a saber: sobrado de um andar; sobrado de um lanço e um andar; sobrado de três lanços e um andar; sobrado de uma loja e um andar; sobrado de duas lojas e um andar; sobrado de três lojas e um andar; sobrado de quatro lojas e um andar; sobrado de cinco lojas e um andar; sobrado de seis lojas e um andar; sobrado de uma loja, um lanço e um andar; sobrado de um lanço, três lojas e um andar; sobrado de uma loja, dois corredores e um andar; sobrado de uma loja de primeiro e segundo andares; sobrado de três andares. No conjunto foram identificadas duas casas assobradadas, que supomos tratar-se de sobrado de um lado e térrea do outro, decorrente do desnível do terreno.

Cabe explicar que segundo Antenor Nascentes, no seu Dicionário da língua portuguesa, a expressão "lanço" significava "extensão do pano de um muro, de uma parede, de uma fachada". Com base na iconografia, interpretamos a expressão "casa de um lanço" como uma moradia, térrea ou sobrado, de um único cômodo frontal, com janela-porta-janela, uma porta e duas janelas ou, simplesmente, porta e janela5 5 . Em caso de imóvel de uso misto ou exclusivamente comercial, com lojas na frente, em lugar das janelas observamos a presença de duas a três portas. . Já uma casa de dois lanços seria composta de dois cômodos frontais e assim sucessivamente, cada lanço resultaria no acréscimo de um cômodo ou extensão de fachada correspondente. O lanço seria portanto o módulo que orientava a atribuição de valor aos imóveis, com base na medição das testadas. Sendo a São Paulo colonial uma cidade predominantemente de taipa de pilão, talvez o lanço equivalesse a dois taipais, totalizando 4,40 m, uma vez que o taipal media uma braça (i.e. 2,20 m). O critério de avaliação dos imóveis urbanos envolvia também outras variáveis, tais como o número de pavimentos. Não por acaso, a medição dos imóveis para fins de taxação era atribuição de dois mestres carpinteiros e um mestre-pedreiro, funcionários da Junta da Décima6 6 . A " Junta da Décima da Cidade de São Paulo", em 1809, era composta pelo Escrivão da Executoria Antonio Xavier Ferreira; pelo Fiscal e Bacharel Manuel Joaquim de Ornellas; pelo Louvado Nobre o Tenente Coronel Francisco Alvares Ferreira do Amaral; pelo Louvado do Povo Lourenço da Silva Barros; pelos Carpinteiros José Ferreira e José Joaquim de Carvalho e pelo Pedreiro Manuel Roiz. Em 15/11/ 1809, o Louvado do Povo foi substituído por Thomé Manuel de Jezus Varella. Em 13/12/1809, o Fiscal e Bacharel Manuel Joaquim de Ornellas foi nomeado Superintendente da Décima, em lugar do Desembargador Miguel Antonio Azevedo da Veiga – Ouvidor Geral Corregedor e Juiz Executor da Real Fazenda. Desde então, o posto de Fiscal da Décima foi encabeçado pelo Bacharel Miguel Carlos Aires de Carvalho, provável proprietário da famosa chácara de mesmo nome, nas imediações da cidade. O lançamento do imposto incidiu sobre todos os prédios urbanos, e o inventário teve início na Rua Direita (Freguesia da Sé), em 10/11/1809, e conclusão na Rua do Tanque (Tanque do Zuniga, Freguesia de S. Ifigênia), em 30/12/1809. A soma do imposto recolhido, em 1809, totalizou 1:302 $241rs (um conto, trezentos e dois mil, duzentos e quarenta e um réis). Segundo Maria Lucília Viveiros de Araújo, 1% dos 10% do imposto era embolsado pelo Coronel Luiz Antonio de Souza, encarregado de supervisionar a sua cobrança em São Paulo. .

Quanto à destinação, dos 1.269 imóveis arrolados nesse item, 638 (50,27%) eram de aluguel; 462 (36,40%) de uso próprio; 44 (3,46%) encontravam-se cedidos de favor; 68 (5,35%) estavam fechados; 41 (3,23%) em obras; e 15 (1,18%) não foram taxados por serem considerados "insignificantes", "arruinados" ou por estarem "em conserto" (Figura 2).


Muitos imóveis de aluguel apresentavam vários inquilinos, por exemplo quando se tratava de uma casa térrea de vários lanços (um inquilino por lanço) ou sobrados de uso misto com mais de uma loja.

Esses dados contrariam a visão corrente da historiografia que considera o investimento em casas de aluguel uma tônica apenas do último quartel século XIX. Segundo Raquel Rolnik:

A construção de salas e casas para alugar cresceu no começo da década de 1870, ainda que muito antes, junto com os grandes sobrados, já marcassem a paisagem do Triângulo. Em 1822, o viajante Auguste de Saint-Hilaire comentava sobre a existência de casas e salas para alugar: pequenas construções muito baixas de barro e paredes de sarrafo, com tetos cadentes, chãos de pisos sujos nos trechos mais pobres das ruas São Francisco, Rosário ou Boa Vista. Muitas ficavam ao lado dos grandes sobrados; é o caso da esquina da rua do Rosário com a Travessa do Colégio e da Senador Vergueiro com a rua Direita, no coração do triângulo central.

Evidentemente a dimensão desse tipo de investimento era bastante restrita, considerando sobretudo o número irrisório de consumidores potenciais – assalariados não proprietários – em um contexto onde imperava o trabalho escravo. Estes, desprovidos de recursos para adquirir um abrigo próprio, mesmo sem vínculos compulsórios com as casas senhoriais, moravam muitas vezes "de favor", ou sem pagar nada em casas ou cubículos de propriedade das famílias abastadas. Maria Odila Dias relata grande número de casos em que ex-escravos herdaram pequenas casas de morar de seus senhores, ou de homens e mulheres livres e pobres vinculados às casas senhoriais por redes de compadrio ou serviço que habitavam não no interior das casas grandes, mas em casinhas cedidas em suas proximidades" (2003, p. 102).

Subestimando o número de casas de aluguel no tecido urbano, Raquel Rolnik insinua que muitos viviam de favor. Ao contrário do que disse a autora, contabilizamos apenas 3% de moradias cedidas nessa condição em oposição a 50% de casas alugadas.

Observamos que as verificações de Maria Odila da Silva Dias são verdadeiras, já que boa parte das casas cedidas de favor o eram a parentes próximos ou ex-escravos. No entanto, ao contrário do que afirma Rolnik, numa sociedade escravista, havia sim setores médios de não proprietários capazes de alimentar um mercado locatício bastante intenso.

As tabelas seguintes, referentes à distribuição da população por grupos ocupacionais, em 1818, e aos profissionais recenseados na cidade de São Paulo, em 1593, 1793, 1836, podem nos dar uma idéia das camadas médias existentes no cenário urbano da cidade de São Paulo nesse período.

Alguns outros dados saltam à vista quando analisamos o Livro da Décima Urbana de 1809. Por exemplo, o valor total atribuído ao imóvel número 1 da Rua Direita – 71$440rs – é praticamente igual ao do aluguel anual do imóvel vizinho – 50$000rs –, tipologicamente idêntico (um sobrado de uma loja e um primeiro andar):

Freguezia da Sé – Rua Direita

Lado Esquerdo

No. 1 Propriedade de cazas do Guarda-mor Vicente Ferreira de Oliveira, que consta de huma logea, e hum primeiro andar, q foi avaliada em setenta e hum mil quatrocentos e quarenta, de q abatidos dez por cento vem para a Décima sinco mil quinhentos e vinte nove reis, com que sahe 5$529.

No. 2 Propriedade do Reverendo Bartholomeu Pereira Mendes, que consta de huma logea e hum primeiro andar, e da qual he Inquilino o Capitão Antonio Jozé Brito, que jurou ter alugado annualmente pela quantia de cincoenta mil reis, de que vem para a décima quatro mil e quinhentos reis com que sae 4$500.

Nesse aspecto, provavelmente era o potencial locatício anual o orientador do valor atribuído ao imóvel, em caso de venda, num mercado imobiliário de base rentista como esse.

Quanto aos usos, 86,78% do tecido urbano eram compostos de imóveis residenciais; 2,14% exclusivamente comerciais e 10,90% de uso misto (Figura 3). Ou seja, de um total de 1.211 imóveis cadastrados nessa categoria, 1.051 eram residenciais, 26 comerciais e 132 de uso misto.


São Paulo, em 1809, era portanto uma cidade predominantemente térrea, residencial e com boa parte dos seus habitantes vivendo em casas alugadas.

Tratava-se de uma cidade concentrada e com espaços pouco especializados, na qual as principais funções urbanas – residência, comércio, serviços, instituições civis e religiosas – mesclavam-se numa mesma área.

Também era uma cidade pouco complexa na medida em que seu tecido urbano se definia a partir da relação entre edifícios privados (casas, lojas, igrejas de irmandades laicas e ordens terceiras – restritas aos seus membros –, conventos, mosteiro) e públicos oficiais (Palácio dos Governadores, Casa de Câmara e Cadeia, Quartel das Tropas de Militares, Casa de Fundição, etc.), em meio a espaços públicos de uso coletivo como ruas e largos. Em termos de infra-estrutura, os esforços da administração pública concentravam-se nas pontes que davam acesso à colina, no calçamento de certas vias e largos e no abastecimento de água por meio de fontes e chafarizes.

Embora constrangida na colina histórica, com espaços pouco especializados, públicos de uso coletivo ou privados, em 1809, apresentava áreas mais e menos valorizadas em termos imobiliários. Espécie de esquema centrípeto, as zonas mais caras eram aquelas junto aos Largos da Sé, Largo do Palácio (atual Pátio do Colégio) e ruas de uso misto a eles contíguas, concentrando o comércio da cidade.

Segundo listagem fornecida pelo banco de dados, os imóveis mais caros encontravam-se situados nas Ruas do Carmo, do Comércio, na Travessa das Casinhas, Rua do Rosário, Rua Direita, Rua de S. Bento, Rua do Ouvidor, Rua da Boa Vista e Rua de S. Teresa (Figura 4).


Em contrapartida, os imóveis mais baratos ficavam junto das várzeas ou além rios. Na Rua do Piques oscilavam entre 1$440rs e 1$200rs; na Rua de Santa Ifigênia também; na Rua da Luz 1$200rs; nas Ruas do Rego, da Cachoeira e do Tanque (junto ao Tanque do Zuniga, na Freguesia de S. Ifigênia) variavam de $120rs a 1$000rs.

A casa mais valorizada, em 1809, era 853 vezes mais cara que a menos valorizada; a primeira situando-se numa das principais ruas residenciais – a Rua do Carmo –, junto da Rua de S. Tereza (atual Roberto Simonsen); a outra nas bordas do perímetro urbano. Seria o equivalente a compararmos a residência de Josef Safra, aproximadamente avaliada em torno de R$ 30 milhões, com a casa de um mutirão, avaliada em torno de R$ 10 mil; hoje a diferença oscilaria em 3.000 vezes.

Nas devidas proporções, com dinâmicas urbanas extremamente diversas, a cidade de 1809 e a de 2005 parecem esboçar uma tônica recorrente da história da urbanização brasileira, a da segregação social nos espaços urbanos. Malgrado pouco especializado, o espaço intra-urbano da cidade colonial, embora aparentemente mais democrático, configurava no seu tecido uma nítida segregação social e espacial dos menos favorecidos.

Havia uma concentração de sobrados nas Ruas Direita, do Ouvidor, do Comércio, do Rosário, de São Bento, de Santa Tereza, do Carmo, no Largo da Sé e no Largo do Colégio, tratando-se da área nobre da cidade. À exceção das Ruas do Carmo e de Santa Tereza, predominantemente residenciais, as demais supracitadas caracterizavam-se por um conjunto significativo de imóveis de uso misto ou exclusivamente comerciais. Nas extremidades, distribuía-se um casario térreo e residencial (Figuras 1 e 3).

Ao contrário da concentração verificada quanto às tipologias e usos, observamos que se misturavam no tecido urbano os imóveis de uso próprio e aqueles de aluguel (Figura 2).

De um total de 1.281 imóveis cadastrados:

  • 1.041 eram propriedades de leigos;

  • 233 distribuíam-se nas mãos das ordens religiosas;

  • 41 pertenciam às irmandades;

  • 192 aos padres seculares.

Dos 748 proprietários registrados, o Mosteiro de São Bento possuía 61 imóveis; o Dr. Antonio Soares Calheiros, 24; o Convento do Carmo, 22; o Coronel Jozé Arouche de Toledo, 18; o Recolhimento de Santa Tereza, 15; a Irmandade de São Gonçalo, 14; o Capitão Manuel da Luz Tralhão e o Capitão Antonio Alvarez dos Reis, 13; o Capitão Gabriel Jozé Roiz ,11; a Câmara de São Paulo, D. Mariana Fortes e Jozé Antonio da Silva Paulista, 10; a Irmandade do Rosário dos Pretos, nove; o Coronel Anastácio de Freitas Trancozo, oito; o Coronel Luiz Antonio de Souza, o Coronel Jozé Vaz de Carvalho, Dionizio Ereopagita e o Reverendo Ignácio Francisco de Moraes, sete. Dos demais proprietários, seis possuíam seis imóveis; dez dispunham de cinco imóveis; 19 detinham quatro imóveis; 34 eram proprietários de três imóveis e 86 de até dois imóveis.

Portanto, dos 748 proprietários arrolados, apenas 24 detinham cerca de 1/4 (302 imóveis) dos 1.281 inventariados, configurando uma enorme concentração de prédios urbanos nas mãos de poucos; algo muito semelhante aos dias atuais. Um total de 173 proprietários detinham mais de dois imóveis e 575 apenas um imóvel.

Nem sempre quantidade significava qualidade. Os 20 proprietários com mais capital investido em imóveis na cidade de São Paulo, em 1809, nem sempre eram os detentores da maior quantidade de unidades. A localização mais central, junto às ruas comerciais ou à Sé, garantia melhores preços aos imóveis (Figura 5).


Assim como no Rio de Janeiro, os beneditinos ocupavam posição de destaque, dispondo de significativo patrimônio imobiliário urbano, na sua maioria casas térreas de um lanço, construídas para renda de aluguel, que em média eram alugadas por 12$000rs, chegando a atingir a cifra dos 19$000rs nas melhores localizações. Também se destacaram como empresários urbanos no período colonial, construindo conjuntos de casas de aluguel na área envoltória aos mosteiros, envolvendo inclusive projetos aprovados pelos superiores hierárquicos da Ordem, sediada no Mosteiro de Tibães, em Braga. Em São Paulo, em 1787, foi construído um conjunto de casas de aluguel pelos monges no trecho inicial da atual Rua Florêncio de Abreu, indicado na época como "Rua Nova de São Bento, chamada Rua da Alegria" (REIS FILHO, 2004, p. 78-79). O projeto, hoje, encontra-se localizado no Arquivo Distrital de Braga (Figura 6). Sabemos que as casinhas de aluguel foram construídas, pois figuram na imagem de Pallière, referente a São Paulo, em 1821. Na lateral do mosteiro, observa-se o portão de acesso à várzea do Tamanduateí e os quintais murados de algumas das casas (Figura 7).



No Rio de Janeiro, os beneditinos foram responsáveis por conjuntos de moradias de aluguel de natureza semelhante. Na também recém-aberta rua Nova de São Bento (atual rua do Quartel de Bragança, hoje, Conselheiro Saraiva), os beneditinos construíram um conjunto de casas de aluguel, de ambos os lados, contratando para tanto os mestres carpinteiros Bento Coelho e Francisco Rabelo de Almeida, que seguiram o "risco" assinado pelos monges. Como menciona Nireu Cavalcanti, tratava-se de um comitente qualificado, espécie de empresário urbano do período colonial, com longa experiência em construção, possuidor de pedreiras e olarias que abasteceriam o canteiro de obras. Tratava-se também de uma obra complexa, abrangendo a abertura de um logradouro e construção, em ambos os lados, de prédios térreos e sobrados, num período previsto de quatro anos, cabendo aos mestres carpinteiros a edificação de "todas as moradas de casas". Sem dúvida, para a época, correspondia a um ousado empreendimento imobiliário realizado por uma instituição particular, com recursos próprios, voltado para o mercado locatício. Os prédios e a rua, não por acaso alcunhada de Nova de São Bento, foram projetados portanto pelos próprios monges beneditinos. A rua tinha 928 palmos de comprimento (204 m) e 30 palmos de largura (6,6 m). À exceção dos prédios de esquina que não faziam parte do contrato, todos os outros foram construídos com tipologias idênticas, de acordo com o "risco". Segundo menciona Nireu Cavalcanti, com base nas especificações do contrato, cada unidade apresentava um programa e uma planta-tipo – no pavimento térreo "uma sala, uma camarinha, armazém e varanda", com "as portas que lhe forem necessárias para os cômodos"; no fundo do quintal, "encostado ao muro, sua cozinha e chaminé e despensa, com um cano para saírem as águas para uma e outra parte da cerca do Mosteiro". Sobre parte do térreo, a partir da sala, levantava-se um sótão, chamado no contrato de "sobrado", dividido em sala, dotado de duas janelas abertas sobre a varanda e dois quartos "fechados com portas para a sala". No fundo de cada prédio deveria ser construído um muro de 15 palmos (3,3 m) de altura, delimitando os quintais com os terrenos da horta e a sede do mosteiro. Também foram especificados os materiais e processos construtivos, nos mínimos detalhes. Longe de sermos anacrônicos, nas devidas proporções, tratava-se de um negócio imobiliário destinado ao mercado locatício, com projeto detalhado, especificações técnicas, empreiteiros especializados, nos moldes dos modernos empreendimentos dos nossos dias (CAVALCANTI, 2004, p. 343-344).

No que diz respeito às irmandades laicas, surpreende o fato de a Ordem Terceira do Carmo e da Ordem Terceira de São Francisco disporem apenas de um imóvel cada, em São Paulo, alugados por 3$840rs e 2$400rs anuais, respectivamente, quando os estudos de Fania Fridman as apontavam entre os mais ricos proprietários do Rio de Janeiro e ativos empreendedores imobiliários.

De qualquer forma, as ordens religiosas – beneditinos, carmelitas e Recolhimento de Santa Teresa – e a Irmandade do Rosário dos Pretos figuravam entre os mais ricos proprietários urbanos de São Paulo em 1809. As demais Irmandades – das Almas (três prédios = 56$320rs), de Santa Ifigênia (um prédio = 7$680rs), do Rosário dos Brancos (três prédios = 21$120rs), do Santíssimo Sacramento (quatro prédios = 47$040rs), do Senhor Jesus de Nazareth (um prédio = 25$200rs), dos Passos do Carmo (um prédio = 8000rs), dos Remédios (um prédio = 20$480rs) e do Santíssimo Sacramento da Vila de Santos (um prédio 31$000rs), não chegavam a totalizar montantes muito expressivos, à exceção das Irmandades de São Gonçalo (14 prédios = 63$360rs) e de São Pedro (três prédios = 82$880rs).

Entre os leigos institucionais, destacava-se exclusivamente a Câmara, senhora de 10 "cazinhas" na famosa travessa de mesmo nome – especializada no abastecimento da cidade –, arrematadas por José Mendes, cada uma por 24$000rs, totalizando um montante de 240$000rs anuais.

Entre os particulares laicos destacam-se o Coronel Arouche de Toledo e o Coronel Luiz Antonio de Souza – futuro Brigadeiro Luiz Antonio –, sem dúvida, o homem mais rico de São Paulo e uma das maiores fortunas da Colônia no período (ARAÚJO, 2003).

Na análise dos dados fornecidos no Livro da Décima Urbana sobressaem algumas curiosidades como a de que o engenheiro-militar João da Costa Ferreira possuía dois valorizadíssimos imóveis, um sobrado de dois lanços e um andar na Rua de São Gonçalo, n. 34 (atrás da Sé, alugado por 38$400rs anuais) e uma "logea" na Travessa das Casinhas, n. 3, alugada a 24$000rs anuais. Também o célebre mestre pedreiro Joaquim Thebas era possuidor de um imóvel, situado à Rua do Rego, n. 40 (próxima à Ponte do Lorena), que por estar em obras o obrigava a residir de aluguel na casa térrea vizinha, pagando 9$600rs anuais.

Outra curiosidade é que o Bispo Diocesano (Mateus de Abreu Pereira) habitava num sobrado de dois lanços e um andar – o mais caro de São Paulo, situado na Rua do Carmo, n. 49 –, pagando 102$400rs de aluguel anual ao testamenteiro de D. Francisca Maria de Mattos. Não contente com isso, alugava também idêntico sobrado vizinho, n. 48, pertencente ao Convento do Carmo, pagando mais 40$000rs anuais. Sabemos que também era proprietário da Chácara da Glória, correspondente aos atuais bairros Vila Deodoro e Cambuci.

É interessante anotar que os homens mais ricos da cidade, em geral, possuíam chácaras no perímetro urbano, que nessa altura englobava o antigo "rossio"7 7 . Rossio = área envoltória às vilas pertencente à Câmara Municipal. Patrimônio público, administrado pelas Câmaras, destinava-se à pastagem de animais, coleta de madeira e lenha, expansão da cidade e obtenção de renda com a concessão de terras. Cf. MARX, 1991. , tal como nos mostra a Planta da Cidade de São Paulo, levantada em 1810, pelo engenheiro Rufino José Felizardo e Costa (Figura 8) . Esse é o caso do Coronel Luiz Antonio de Souza – proprietário de uma chácara junto da Rua da Consolação (esquina com a atual Avenida S. Luís) – , do Coronel Francisco Xavier dos Santos – vizinho do anterior –, de D. Marianna Fortes, do Coronel Arouche e do Coronel Gavião (futuro Brigadeiro Bernardo José Pinto Gavião Peixoto, pai do Capitão José Maria Gavião Peixoto). Todos parecem desfrutar das suas chácaras por puro conforto, como uma espécie de segunda residência, na medida em que acreditamos ainda não se tratar de um investimento para especulação imobiliária, como o será mais tarde.


No entanto, em geral, a maioria desses mesmos personagens dispõe também de moradias no perímetro urbano. A Décima de 1809 nos fornece os endereços residenciais urbanos de alguns deles. Por exemplo, o Coronel-Inspector Jozé Arouche de Toledo possuía um sobrado residencial na R. de São Bento, n. 21 (de dois lanços e um andar) e D. Marianna Fortes possuía um sobrado (de dois lanços e um andar) na Rua de Trás da Sé, n. 6. Já o Coronel Luiz Antonio parece residir na chácara, pois no local do seu futuro sobrado (esquina das ruas do Ouvidor e São Bento) possuía apenas uma "loja e um lanço", onde estabelecera a "Casa Souza", e seus outros seis imóveis estavam alugados.

À exceção de D. Ursula Maria Luiza das Virgens (tia de Francisco de Paula Xavier de Toledo) que morava na Travessa do Colégio, n. 10, num sobrado de um andar exclusivamente residencial, os outros grandes detentores de patrimônio imobiliário na cidade de São Paulo, em 1809, apresentavam endereços que atestavam suas atividades predominantes. Jozé Antonio da Silva Paulista residia na Rua do Rosário, n. 46, num sobrado de uma loja e dois lanços; o Capitão Manuel da Luz Tralhão, na Rua do Ouvidor n. 6, num sobrado de uma loja e um andar; o Coronel Joze Vaz de Carvalho, na Rua Direita n. 31, num sobrado de uma loja e um andar; o Dr. Antonio Soares Calheiros, no Largo do Bexiga n. 1, num sobrado de uma loja e um andar; D. Josefa Maria do Espirito Santo, na Rua do Comércio n. 1, num sobrado de duas lojas e um andar; Joaquim Jozé da Silva, na Rua do Rosário n. 13, num sobrado de cinco lojas e um andar; o Capitão João Lopes França, na Rua do Rosário n. 59, num sobrado de uma loja e um andar; o Capitão Gabriel Jozé Roiz, no Largo da Sé n. 4, num sobrado de uma loja e um andar; D. Anna de Almeida, na Rua do Comércio n. 25, num sobrado de cinco lojas e um andar (quatro alugadas e quiçá uma, mais o andar, de uso próprio). A localização e tipologia dessas residências de uso misto, é indicativa das suas atividades como importantes negociantes e comerciantes da cidade.

Ao contrário do que afirma Raquel Rolnik (2003, p. 102), a propriedade imobiliária não era irrelevante do ponto de vista da composição da riqueza. Os estudos de Zélia Cardoso de Mello (1985) e Maria Lucília Viveiros de Araújo (2003) – para o caso de São Paulo – e de Fania Fridman (1999), João Luís Fragoso (1998) e Nireu Cavalcanti (2004) – para o caso do Rio de Janeiro – desmentem tais considerações feitas sem base empírica, calcadas, em exemplos genéricos:

A propriedade imobiliária até a década de 1870 era muito pouco relevante do ponto de vista da composição da riqueza. Lembremo-nos que quando o barão de Iguape faleceu, em 1875, sua neta Ana Brandina da Silva Prado, casada com Antonio Pereira Pinto Jr. a contragosto da família, foi deserdada e recebeu como herança a casa do avô, velho sobrado de taipa situado nos Quatro Cantos, isto é, na rua de São Bento, esquina com a rua Direita, um dos vértices do Triângulo. Sua irmã Anésia, neta predileta, foi contemplada com uma cômoda!.

Um inventário de 1868 também demonstra a insignificância das propriedades imobiliárias em relação a outras formas de riqueza: 10 mil metros quadrados de terreno perto da cidade (atual rua dos Guaianazes) – 100$000 réis; um sobrado de taipa de pilão na rua Boa Vista, no coração da cidade – 1000$000 réis, Chácara Pacaembú (incluindo os atuais bairros de Perdizes, Pacaembú e parte da Barra Funda, Lapa e Várzea do Tietê) – 2400$000 réis; escravos que iam de Maria, 60 anos, 40$000 réis, a Faustino, 35 anos, mulato, alfaiate, 600$000 réis; piano 100$000 réis; bacia de cobre 60$800, etc. Um piano valia tanto quanto um terreno de 10 mil metros nos arredores da cidade; um escravo jovem e com ofícios valia quase tanto como um grande sobrado no centro da cidade.

Como vimos no capítulo 1, essa situação se alterou no final do século, resultado sobretudo do deslocamento do capital imobilizado no escravo para a terra e da possibilidade aberta pelos estabelecimentos bancários de lastrear empréstimos para lavoura e outros negócios através de hipotecas. Era possível também levantar outras hipóteses de constituição de um mercado imobiliário na cidade: por um lado, a quebra do Banco Mauá, uma das mais sólidas casas bancárias do Império, teria gerado receio entre os capitalistas de guardar dinheiro em estabelecimentos bancários. Por outro lado, Raffard apontava a espetacular conversão de imóveis urbanos em investimentos altamente valorizados dos fazendeiros, antes empregados na construção de ferrovias [...]. Os fazendeiros também temiam a depreciação de suas propriedades agrícolas ou quaisquer outros títulos, em conseqüência da abolição da escravatura e da proclamação da República. De qualquer forma, o crescimento demográfico, a imigração e a presença na cidade de contingentes cada vez maiores de assalariados, artesãos e comerciantes, aliada à disponibilidade de capitais para investimentos, tornavam o mercado de imóveis não só possível como altamente rentável (ROLNIK, 2003, p. 102).

Certamente o fenômeno assume outras proporções após a abolição da escravidão e a Proclamação da República, mas não era inexistente no período anterior. A sua natureza é que muda – de "rentista" à "capitalista" –, bem como sua área de abrangência – produzindo a primeira expansão urbana além rios Tamanduateí e Anhangabaú.

No que diz respeito ao período 1809 a 1870, o estudo de Maria Lucília Viveiros Araújo (2003) dos inventários post-mortem dos membros das famílias mais ricas da cidade de São Paulo nos permite aferir o peso da propriedade imobiliária (rural e urbana) nas suas fortunas:

  • Coronel – futuro Brigadeiro – Luiz Antonio de Souza (negociante e fazendeiro português) = 12% imóveis rurais e urbanos; 39% bens profissionais; 29% dívidas ativas; 12% escravos (613).

  • Coronel Francisco Pinto Ferraz (negociante e fazendeiro português), casado com Ana Francisca Novaes de Magalhães = 23% imóveis rurais e urbanos; 63% dívidas ativas (empréstimo de dinheiro a juros); 2% escravos.

  • Francisco Inácio de Souza (português, sobrinho e genro do Brigadeiro Luís Antônio; negociante e fazendeiro) = 40% imóveis rurais e urbanos (26); 39% escravos (229); 5% animais.

  • Coronel – futuro Brigadeiro – Manoel Rodrigues Jordão (negociante e fazendeiro) = 17 % imóveis rurais e urbanos (17); 28% escravos (281); 27% dívidas ativas.

  • Coronel Joaquim José dos Santos (negociante de escravos, fazendeiro e pai do Barão de Itapetininga) = 53% imóveis rurais e urbanos (12 imóveis, dentre os quais 10 casas na capital); 35% escravos (87 escravos = 32 urbanos e 45 rurais).

  • Dr. Rodrigo Antônio Monteiro de Barros (Ouvidor e Desembargador, mineiro; negociante e fazendeiro) = 15% imóveis rurais e urbanos; 43% dívidas ativas; 23% rendas diversas; 10% escravos.

  • Coronel Anastácio de Freitas Trancoso (negociante e fazendeiro) = 61% imóveis; 6% bens profissionais; 17% escravos (26); 7% animais.

  • Marechal de Campo Manoel de Oliveira Cardoso (negociante de fazendas secas) = 59% bens imóveis; 34% dívidas ativas.

  • José Pinto Tavares (negociante português) = 18 propriedades (7 casas na capital).

  • Capitão Manoel da Luz Tralhão (negociante; pardo, solteiro e natural de Cuiabá) = 35% (15 propriedades urbanas; maior quantidade de casas alugadas na cidade); 2% escravos (5).

À exceção dos três últimos, os demais eram todos negociantes e fazendeiros. Ao grupo somava-se José Vaz de Carvalho, sogro do Dr. Francisco José de Sampaio Peixoto, que encabeçava junto do genro o négocio de muares, sendo arrematante do contrato de Curitiba entre 1799 e 1805.

São, portanto, homens cuja fortuna advém sobretudo de atividades urbanas – negócios, comércio, empréstimo de dinheiro a juros e renda de aluguel.

Os estudos realizados para o caso do Rio de Janeiro, por Fragoso e Cavalcanti, ao menos no que diz respeito aos homens essencialmente urbanos (os ricos comerciantes de "grosso trato", voltados para o comércio internacional), apontam que tais fortunas se ancoravam em grande parte no patrimônio imobiliário "rentista" urbano.

Com base nos inventários post-mortem, Zélia Cardoso de Mello (1985, p. 126) caracterizou o perfil empresarial de alguns dos ricos proprietários de imóveis urbanos integrantes da lista dos 20 mais ricos de São Paulo. Por exemplo, o Capitão João Lopes França possuía além de casas de aluguel em São Paulo, uma chácara, um sítio na Freguesia do Juqueri, 15 escravos e uma sociedade com negócio de açúcar, bestas e escravos. Seus rendimentos provinham dos aluguéis, empréstimos e negócios realizados. Também o futuro Barão de Itapetininga (1877), homônimo e filho do Coronel Joaquim Jozé dos Santos (negociante de escravos), figurava entre os "empresários" paulistas mais prósperos da segunda metade do oitocentos. Embora não apresentasse fortuna de origem propriamente agrária, possuía valorizados bens dessa natureza. Anotado em todos os almanaques do período como "proprietário e capitalista", fazia jus à qualificação, chegando a possuir 32 casas de aluguel em São Paulo, terrenos e chácaras. Além disso foi proprietário de três fazendas, somando 2.000 alqueires com 398.000 pés de café, casa de máquinas, engenho e mais de 200 escravos. Suas receitas provinham de aluguéis, café e empréstimo de dinheiro a juros. Entre os bens recebidos por herança relacionam-se 14 casas em São Paulo, "terras no Chá" (herdadas do primo Francisco Xavier dos Santos) e escravos.

Por sua vez, o Livro da Décima nos traz informações curiosas sobre um certo Dr. Antonio Soares Calheiros, dono do Largo do Bexiga, já que detentor das 12 casas que o compunham, residindo no n. 1, num sobrado de uma loja e um lanço. Possuía um patrimônio de 24 casas, ocupando a 11ª posição na lista dos 20 maiores proprietários de imóveis urbanos.

Sobre o Tenente-Coronel Anastácio de Freitas Trancozo, segundo dados fornecidos pelo Livro da Décima, possuía um patrimônio de oito casas, sete delas alugadas, situadas nas ruas do Comércio (um), São Gonçalo (duas), Travessa de Santa Tereza (três) e Rua do Príncipe (duas), totalizando um montante de 102$880rs. Residia na Rua de S. Teresa, num sobrado de dois lanços. Pai de Francisco Pinto do Rego, combinava atividades comerciais à produção agrícola. Seu sítio na Freguesia do Ó, às margens do Rio Tietê, deu origem, mais tarde, ao bairro de Vila Anastácio. Tinha três filhas solteiras que residiam reclusas na Rua do Carmo (MARINS, 1999, p. 221), mantidas pelos cabedais do pai.

Em relação às mulheres, as mais ricas em imóveis de renda parecem ser, em geral, as solteiras. Além das filhas do Tenente-Coronel Anastácio, nos referimos às irmãs Toledo Rendon e D. Marianna Angélica Fortes Bustamante Sá Leme. Esta última ganhou luz nos trabalhos de Paulo Garcez Marins (1999, p. 236; 2002), não só como a rica trineta de Fernão Dias Paes, irmã de D. Anna Leoniza de Abilho Fortes, mas sobretudo pelo grande infortúnio sofrido pelo fato de ter tido um filho natural bastardo do Governador da Capitania Bernardo José de Lorena, chegando a receber um "patético atestado da Câmara" ressaltando que, junto da irmã, residia "recolhida" em sua casa "com muita distincção e lei de nobreza". Rica porém celibatária, D. Marianna Fortes possuía além das 11 casas de aluguel, uma chácara junto da Rua de Santa Ifigênia.

Entre os comerciantes, embora não figurando na lista dos 20 mais, destacava-se também o lisboeta Joaquim Jozé de Oliveira, residente na Rua Direita, n. 3, num sobrado de uma loja e um andar, no valor de 38$400rs. Possuía um patrimônio de seis imóveis urbanos (totalizando 72$960rs), seqüestrados em 1810 pela Junta da Cruzada da Corte do Rio de Janeiro (MARINS, 1999, p. 218), dado que suas dívidas excediam seu patrimônio no momento do seu inventário.

Quanto ao Coronel Luiz Antonio de Souza, futuro Brigadeiro Luiz Antonio, destacava-se como ilustre fazendeiro no oeste paulista, com múltiplas atividades urbanas. Chefe do prestigioso clã dos Souza Queiroz, seus filhos notabilizaram-se como os futuros Barões de Limeira e de Souza Queiroz. Era casado com D. Genebra de Barros Leite, irmã do 1º Barão de Piracicaba, Antonio Pais de Barros. Detinha cinco imóveis só na Rua do Ouvidor e, embora o de n. 34 correspondesse ao local do seu futuro sobrado (na esquina com a Rua de S. Bento), em 1809, não passava de uma loja e um lanço, destinada ao comércio – "Casa Souza". Como já dissemos, nessa época provavelmente a família residisse na chácara.

Também os famosos sobrados do Barão de Iguape e do Brigadeiro Jordão, situados nos Quatro Cantos, famosa esquina das Ruas Direita e S. Bento, ainda não haviam sido construídos em 1809. Nem mesmo Antônio da Silva Prado figurava entre os proprietários de imóveis urbanos em São Paulo nesse período, talvez residindo em Jundiaí, envolvido com o comércio do açúcar, escravos e algodão, estabelecendo-se em São Paulo apenas a partir de 1816 (BRITO, 2000, p. 77-78). Entre os membros dessa prestigiosa família, destaca-se, em 1809, apenas um dos filhos do Capitão - Mor Martinho da Silva Prado, o Capitão Eleutério da Silva Prado, negociante, residente na Rua de S. Bento n. 22, num sobrado de dois lanços e um andar, e dispondo de dois imóveis que totalizavam 22$080rs.

Dos membros da futura elite paulistana do século XIX, figuram no Livro da Décima apenas os nomes de Jaime da Silva Telles, proprietário de quatro casas, mas residente num sobrado alugado, pertencente à Irmandade de São Pedro, no Largo da Sé n. 2. Além dele, destaca-se o nome do Coronel Manuel Rodriguez Jordão – futuro Brigadeiro Jordão e pai do Barão do Rio Claro – ainda não residente no famoso sobrado dos Quatro Cantos da Rua Direita com S. Bento, mas quiçá no seu único imóvel, um sobrado de duas lojas e um andar, sito à Rua de S. Bento, n. 13, avaliado em 24$000rs. Também o Dr. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro aparece timidamente como possuidor de um único imóvel, sua provável residência, situada na Rua Direita e avaliada em 30$720rs. O Coronel Francisco Xavier dos Santos aparece como proprietário de seis casas, quatro na Rua de São José (n. 7, 38, 39 e 40) e duas na Rua Direita (n. 26 e 27), totalizando um patrimônio de 92$160rs, além de figurar na planta da cidade de 1810 como o proprietário da chácara do "Chá".

Convém apresentar uma breve comparação com o caso do Rio de Janeiro, no mesmo período. Segundo Fania (FRIDMAN, 1999, p. 47), os beneditinos, entre 1651 e 1750, chegaram a ser proprietários de 37 terrenos e 48 casas de aluguel. Com recursos provenientes dos aluguéis e do gado, a área em torno ao mosteiro foi loteada, sacrificando parte de sua horta. Sua atuação urbana foi ampliada (FRIDMAN, 1999, p. 63-64) e somente no período entre 1743 e 1775 foram erigidas 29 casas na "Rua Nova de São Bento", como vimos aberta para tanto. De 1751 a 1850, a Ordem acumulou mais de 203 casas de aluguel e 29 terrenos foreiros (FRIDMAN, 1999, p. 71). No período colonial, na capital do Brasil, os foros e aluguéis recebidos pelas propriedades no núcleo central da cidade chegavam a superar a renda proveniente dos engenhos, fazendas, denotando o surgimento de uma atividade urbana – a imobiliária – sobretudo nas áreas nobres.

Tal como em São Paulo, embora monopolizassem boa parte do tecido urbano da cidade, as ordens religiosas e irmandades não chegaram a ultrapassar, em número, o montante do patrimônio imobiliário laico – sobretudo concentrado nas mãos de homens urbanos, ricos negociantes de "grosso trato" vinculados ao comércio internacional ou negociantes ligados ao comércio regional e local. De longe, no conjunto, os leigos foram os maiores agentes produtores do espaço urbano carioca, ao menos em princípios do século XIX, e outros menos importantes, mas igualmente negociantes e comerciantes, os produtores e detentores de boa parte do tecido urbano de São Paulo. Portanto, embora individualmente as ordens religiosas e irmandades laicas (no caso do Rio de Janeiro) imperassem como os maiores investidores em imóveis urbanos no período colonial, não chegavam a sobrepor os particulares nas somas de conjunto.

Implementada por meio do Alvará de 27/6/1808, a Décima Urbana incidiu também nos imóveis da Corte sobre as Freguesias da Sé, Candelária, Santa Rita, parcialmente São José (no trecho que se estendia pelo bairro da Glória e do Catete, indo até a atual Praça José de Alencar, penetrando pelo caminho de Laranjeiras, em direção às Paineiras). Também incluiu pequeno trecho do Engenho Velho, correspondente ao caminho de Mataporcos (atual bairro do Estácio), terminando às margens do Rio Comprido. Esse vasto perímetro urbano foi divido em dois setores – Sé, São José, Engenho Velho; Candelária e Santa Rita –, sendo a área da Freguesia da Candelária a com maior taxa de ocupação e de verticalização. Ao contrário de São Paulo, em que todos os imóveis foram registrados num único livro, a tributação da Décima no caso do Rio de Janeiro resultou em vários volumes. O primeiro aberto em 4/1/1809 (Sé, São José e Engenho Velho) e o terceiro aberto em 12/7/1810, compreendendo as outras freguesias. Entre 1808 e 1810 foram cadastrados 146 logradouros (CAVALCANTI, 2004, p. 259-263), 46,6% catalogados como ruas.

As tipologias das edificações variavam entre casas térreas, sobradinhos, sobrados de um, dois ou três andares (com ou sem lojas no térreo). Além dos pavimentos, outros complementos como sótãos e trapeiras também foram registrados. Além das casas, observa-se um maior detalhamento quanto aos outros tipos de imóveis e seus usos: casa de vivenda, loja, sobreloja, armazém, açougue, trapiche, cocheira, senzala, telheiro, casa de banho, pardieiro, corredor, quartos, rótulas, casas com hortas ou quintal, chácaras e terrenos ("chãos", "terreno devoluto" ou simplesmente "terreno") (CAVALCANTI, 2004, p. 264), diferentemente do caso paulista, menos detalhado nesse sentido.

Tal como em São Paulo, foi estabelecida pela primeira vez uma numeração. Critérios subjetivos orientaram os pontos de partida da numeração, o que hoje dificulta muito o mapeamento dos dados.

No Rio de Janeiro, dos 7.548 imóveis arrolados, mais da metade, 4.878, correspondia a edificações de um único pavimento. A capital do Brasil também era uma cidade predominantemente de prédios baixos; 65% horizontal. As edificações térreas predominavam nas extremidades (Engenho Velho, Sé, Santa Rita e São José). A área verticalizada e mais adensada estava concentrada na Freguesia da Candelária, totalizando um conjunto de 858 sobrados, que predominavam sobretudo nas ruas mais importantes, nas proximidades do Largo do Paço, da zona comercial e portuária, no trecho entre a Ponta do Calabouço e o Arsenal da Marinha. A Freguesia da Candelária também abrigava os logradouros e prédios mais importantes – grandes estabelecimentos comerciais dos atacadistas exportadores e importadores. Segundo Nireu (CAVALCANTI, 2004, p. 267), com base no Almanaque de 1794, dos 127 negociantes mais importantes da cidade, 114 tinham seu comércio na Candelária; 67 deles (59%) instalados só na Rua Direita, a principal da cidade. Os imóveis registrados exclusivamente para cocheiras ou de uso misto para tanto – residencial ou comercial – eram pouquíssimos, só 52. Possuir uma cocheira era indicativo de "status" social e somente os comerciantes de "grosso trato" as possuíam em área urbana valorizada; eram os estacionamentos da época.

Os prédios não-residenciais eram poucos: oito trapiches, 40 armazéns, duas lojas e 26 telheiros, num total de 76 edificações. Numerosíssimos eram os imóveis de uso misto, 1.456 com lojas e 16 com armazéns. O Almanaque de 1799 atesta a existência de 1.311 lojas de varejo ou oficinas, quantia muito próxima das 1.456 edificações citadas pela Décima. Segundo Nireu, o número reduzido de prédios de uso exclusivamente comercial seria uma conseqüência da não especialização dos espaços urbanos, algo também observável em São Paulo (CAVALCANTI, 2004, p. 271). Foram registrados 26 terrenos – sete deles "devolutos" –, ao passo que em São Paulo, apenas um. A vinda da Corte, induziu o parcelamento das chácaras e uma crescente especulação imobiliária nos arrabaldes da cidade; em São Paulo tal fenômeno é apenas observado a partir de meados do século, intensificando-se com a chegada dos imigrantes.

Quanto ao perfil dos proprietários, Nireu contabilizou 2.668 nomes para 7.548 imóveis. Em São Paulo eram 748 nomes para 1.281 imóveis. Do total registrado na Corte, 86,6% pertenciam a pessoas físicas (aí incluídos os padres seculares), 0,4% à Fazenda Real e 12,7% a instituições predominantemente religiosas (ao passo que em São Paulo 81,64% estavam concentrados nas mãos de leigos – 10 imóveis só nas mãos da Câmara – e 18,27% nas mãos das Ordens Religiosas, Irmandades e Padres Seculares). Para o autor, nas somas de conjunto, pouco expressivo era o patrimônio imobiliário concentrado nas mãos das 55 Ordens Religiosas, Irmandades ou Confrarias (Santa Casa de Misericórdia aí inclusa). Pela Décima (1809-1812) verifica-se que esses 55 proprietários institucionais de cunho religioso possuíam 956 imóveis, a saber: Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (186); Mosteiro de São Bento (163); Convento do Carmo (125); Santa Casa de Misericórdia (104) (CAVALCANTI, 2004, p. 272-273). No caso de São Paulo a ordem era: Mosteiro de São Bento (61), Convento do Carmo (22), Recolhimento de Santa Tereza (15) e Irmandade do Rosário dos Pretos (9). Como já dissemos, individualmente, destacavam-se as ordens religiosas e irmandades; no conjunto destacavam-se os leigos.

Dos 7.549 imóveis arrolados, 6.535 estavam nas mãos de 2.585 proprietários particulares. Nota-se uma forte concentração, estando 61,1% de posse de um único imóvel; 17,8% de dois imóveis e 7,6% (ou seja 197 indivíduos) com cinco ou mais imóveis. Maioria esmagadora pertencia ao sexo masculino; 145 eram religiosos (senhores de 273 imóveis) e quatro religiosas (com 12 imóveis). Um conjunto de 89 proprietários (3,4% dos individuais) concentrava 20,7% do total dos imóveis urbanos e deles auferia a vultosa receita anual de 131.863$873rs, equivalente a 42,2% da receita da Alfândega da Capitania do Rio de Janeiro, que em 1806 arrecadara 312632$430rs. Destes, 34 eram negociantes atacadistas. Dos 36 negociantes listados como os mais expressivos nos Almanaques de 1799 e 1811, dez faziam parte da lista dos 89 maiores proprietários de imóveis urbanos do Rio de Janeiro (CAVALCANTI, 2004, p. 274). A mesma concentração nas mãos de poucos, muitos deles negociantes, foi observada em São Paulo.

Isso atesta que investimentos no setor imobiliário eram considerados promissores e seguros. A receita sob forma de aluguéis foi a opção de investimento adotada por ricos comerciantes cariocas, tais como os herdeiros de José Caetano de Araújo (41prédios = 8.267$035rs); Cleto Marcelino Ferreira (22 prédios = 5.962$476rs); os herdeiros de Antonio Leite (54 prédios = 4.891$006rs); Manoel Alvares da Fonseca Costa (62 prédios = 4.060$800rs); José Francisco do Amaral (48 prédios = 3.728$160rs); José da Costa Araújo Barros (22 prédios = 3.016$993rs); Domingos Francisco de Araújo Rozo (31 prédios = 2.772$920rs); Antonio José Ribeiro Guimarães (nove prédios = 2.638$240rs); Brás Carneiro Leão (oito prédios = 2.590$400rs); a viúva Francisca Maria da Conceição (52 prédios = 2.501$760rs); Bernardo Francisco de Brito (20 prédios = 2.365$052rs); a viúva Maria Luiza de Souza Dias (nove prédios = 2.318$840rs); Francisco Xavier Pires (20 prédios = 2.302$200rs); Manoel Caetano Pinto (32 prédios = 2.116$542rs) e por fim José Rodrigues de Carvalho (19 prédios = 2.062$200rs). Os montantes dos maiores proprietários paulistas são ínfimos quando comparados aos da Corte; os imóveis e os aluguéis valiam bem mais no Rio de Janeiro; certamente pelo fato de se tratar da capital do Brasil, com solo urbano mais valorizado, além de dispor de edificações em pedra e cal, mais altas e maiores em área útil.

Observam-se 221 edificações em construção, ao passo que em São Paulo se registraram 41 em obras; algo considerável, se compararmos a dinâmica e a demanda (chegada da Família Real e comitiva) entre cidades tão diversas. Dos fogos da Candelária, 86% eram ocupados por inquilinos, significando que o imóvel para aluguel se tornava mais atraente e lucrativo à medida que se aproximava da zona central, do comércio, dos grandes negócios, etc. Nireu calculou que a rentabilidade média era de 6,8%; portanto, mais elevada que os 5% permitidos por lei se a mesma quantia em dinheiro fosse emprestada a juros. No Livro n. 144 do 2º Ofício de Notas – pertencente ao Arquivo Nacional –, no período entre 1807 e 1809, 76 escrituras referentes a transações imobiliárias de imóveis urbanos foram localizadas por Nireu Cavalcanti, correspondendo a negócios envolvendo 43 prédios térreos, 19 sobrados, cinco chácaras e nove terrenos, movimentando um montante de 95608$000rs – cifra cinco vezes maior que o valor obtido com as exportações da Capitania do Rio de Janeiro no mesmo período (CAVALCANTI, 2004, p. 278-280).

Pesquisa semelhante precisa ser realizada para o caso de São Paulo, com intuito de avaliar comparativamente a dinâmica do seu mercado imobiliário. De qualquer forma é possível afirmar que em fins do período colonial era bom negócio empatar capital em casa de aluguel – 1,8% mais rentável que emprestar dinheiro a juro, sobretudo resultando em bem menos riscos. Aspecto pouco contemplado pela historiografia nos seus estudos sobre a cidade colonial brasileira, procuramos enfatizar que boa parte do tecido urbano das cidades brasileiras, desde as suas origens, foi um produto socialmente construído, fruto da iniciativa privada, sendo o solo urbano e o casario passíveis de mercantilização desde tempos muito remotos.

Finalizando, apresentamos a prancha com a reconstituição do tecido urbano e cenário do Largo da Sé, de acordo com os dados cadastrados no Livro da Décima, confrontados com as fichas do Fundo Aguirra e a iconografia disponível, incluindo o nome dos proprietários dos imóveis. Trata-se de uma amostragem de um trabalho que envolveu também a reconstituição das ruas Direita, S. Bento, Ouvidor, Comércio, Rosário, Santa Tereza, Carmo e dos largos do Palácio e de S. Gonçalo. É interessante observar que o cenário ganhou vida ao descortinarmos, por detrás das fachadas, os atores sociais envolvidos na produção daqueles espaços (Figura 9).


Artigo apresentado em 03/2005. Aprovado em 06/2005.

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  • 1
    . Esta pesquisa é parte de um Projeto Temático financiado pela Fapesp, intitulado
    Urbanização dispersa e mudanças no tecido urbano. Estudo de caso: Estado de São Paulo, que está sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação (LAP), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, sob a coordenação geral do Prof. Dr. Nestor Goulart Reis Filho. Dentro dos objetivos do projeto temático, sob nossa coordenação, subtema específico contempla o velho tecido urbano da cidade de São Paulo em paralelo ao estudo da dinâmica do seu mercado imobiliário. Se propõe a analisar a questão numa perspectiva histórica, de longa duração, enfocando de 1809 a 1950. Por não se tratar de um período homogêneo, dividimos a pesquisa em três módulos: 1809 a 1870; 1870 a 1930; 1930 a 1950. Neste artigo, apresentaremos algumas conclusões referentes ao período colonial, com base em documentação pouco utilizada pelos historiadores, geógrafos, arquitetos, urbanistas e economistas, de extrema relevância para pesquisas dessa natureza.
  • 2
    . Foi critério da autora manter a grafia de nomes dos proprietários como são citados na Décima Urbana de 1809.
  • 3
    . Fundo pertencente ao Serviço de Documentação Textual e Iconográfica do Museu Paulista-USP, desde 1962, contém uma preciosa coleção de fichas, mapas, cadastros, livros e fotografias, organizadas por João Baptista de Campos Aguirra, em mais de 20 anos de pesquisa nos cartórios da cidade, envolvendo informações sobre as transações imobiliárias realizadas do período colonial à Primeira República, rua a rua.
  • 4
    . Em parceria com Paulo Garcez Marins.
  • 5
    . Em caso de imóvel de uso misto ou exclusivamente comercial, com lojas na frente, em lugar das janelas observamos a presença de duas a três portas.
  • 6
    . A "
    Junta da Décima da Cidade de São Paulo", em 1809, era composta pelo Escrivão da Executoria Antonio Xavier Ferreira; pelo Fiscal e Bacharel Manuel Joaquim de Ornellas; pelo Louvado Nobre o Tenente Coronel Francisco Alvares Ferreira do Amaral; pelo Louvado do Povo Lourenço da Silva Barros; pelos Carpinteiros José Ferreira e José Joaquim de Carvalho e pelo Pedreiro Manuel Roiz. Em 15/11/ 1809, o Louvado do Povo foi substituído por Thomé Manuel de Jezus Varella. Em 13/12/1809, o Fiscal e Bacharel Manuel Joaquim de Ornellas foi nomeado Superintendente da Décima, em lugar do Desembargador Miguel Antonio Azevedo da Veiga – Ouvidor Geral Corregedor e Juiz Executor da Real Fazenda. Desde então, o posto de Fiscal da Décima foi encabeçado pelo Bacharel Miguel Carlos Aires de Carvalho, provável proprietário da famosa chácara de mesmo nome, nas imediações da cidade. O lançamento do imposto incidiu sobre todos os prédios urbanos, e o inventário teve início na Rua Direita (Freguesia da Sé), em 10/11/1809, e conclusão na Rua do Tanque (Tanque do Zuniga, Freguesia de S. Ifigênia), em 30/12/1809. A soma do imposto recolhido, em 1809, totalizou 1:302 $241rs (um conto, trezentos e dois mil, duzentos e quarenta e um réis). Segundo Maria Lucília Viveiros de Araújo, 1% dos 10% do imposto era embolsado pelo Coronel Luiz Antonio de Souza, encarregado de supervisionar a sua cobrança em São Paulo.
  • 7
    . Rossio = área envoltória às vilas pertencente à Câmara Municipal. Patrimônio público, administrado pelas Câmaras, destinava-se à pastagem de animais, coleta de madeira e lenha, expansão da cidade e obtenção de renda com a concessão de terras. Cf. MARX, 1991.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      Jun 2005
    • Recebido
      Mar 2005
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