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Comentário VII

DEBATES

Comentário VII

Francisco Régis Lopes Ramos

Doutor em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor da Universidade Federal do Ceará e diretor do Museu do Ceará. E-mail: <regisufc@gmail.com>

Quando terminei a primeira leitura de Vendo o Passado, pensei sobre a peculiaridade dos verbos conjugados no futuro do pretérito e lembrei-me da literatura do moçambicano Mia Couto. Mais especificamente, recordei-me de Rosalinda, a personagem tida como "nenhuma" no terceiro conto do livro Cada homem é uma raça. É com ela e o seu destino que começo o meu comentário.

No tempo da juventude, Rosalinda era daquelas mulheres que "explicam o amor". Mas, depois do casamento, ficou feia, desconjuntada, triste. Apanhava do marido, que, além de beber muito e ter outras, chegou a lhe dizer: "Teu nome, Rosalinda, são duas mentiras. Nem rosa, nem linda". Quando se tornou viúva, percebeu, nas visitas ao cemitério, que finalmente realizava o verdadeiro casamento com Jacinto. Sentia que ele era somente seu, exclusivo. E assim passou a viver, "em subterrâneo namoro".

Pode-se dizer que Rosalinda encontrou, ao seu modo, um jeito de "usar o passado". Percebo, nesse sentido, confluências entre a ficção de Mia Couto e a reflexão teórica de Manoel Luiz Salgado. Ambos, por vias e questões que lhes são próprias, levam-me a pensar sobre as vestes e os vestígios do tempo, sobre os modos de articular sentidos na insustentável leveza da memória.

Para continuar – nesse exercício de comentar um texto historiográfico com a ajuda da narrativa ficcional –, volto ao destino de Rosalinda, que, como era de se esperar, não sustentou por muito tempo a leveza de sua memória. Veio a surpresa, exatamente quando ia, mais uma vez, acomodar flores no túmulo do esposo. Apareceu, de repente, uma moça "bela e ligeirenta": "– Essa deve ser Dorinha, a outra última dele". Obviamente, eu não vou revelar o fim do conto, mas não posso deixar de citar a solução que Rosalinda encontrou para provocar novas utilizações no espaço do patrimônio tumular:

Rosalinda se decidiu, pronta e toda. Dirigiu-se ao serviço funerário e solicitou que mudassem o lugar do caixão, trocassem o "aqui jaz".

— A senhora pretende transladar os restos mortais?

E, logo, o funcionário lhe mostrou os longos papéis que a superavam. A viúva insistiu: era só uma mudançazita, uns metritos. O empregado explicou, havia as competências, os deferimentos. A viúva desistiu. Mas apenas se fingiu vencida. Pois ela se enchera de um novo pensamento. Voltou à noitinha, trazendo Salomão, o sobrinho. Às vistas da intenção, o miúdo se assustou:

— Mas, tia, é para fazer o quê? Desenterrar o titio Jacinto?

Não, sossegou ela. Era só para trocarem as inscrições dos vizinhos túmulos. [...]

Jacinto, translapidado, devia de se admirar daquelas andanças. Agora, só eu sei qual é sua verdadeira tabuleta, malandro. Rosalinda sacudiu as mortais poeiras, se administrou o devido perdão. Que esse gesto de aldrabar a intrusa lhe fosse minimizado por Deus. A outra paraviúva, que dedicasse seus ranhos ao vizinho, o de morte anexa. Porque aqueles olhos de Jacinto, aqueles olhos que a terra se abstinha de comer, só a ela, Rosa e Linda, estavam destinados (COUTO, 1990, p. 53).

Rosalinda voltou a se reconciliar com uma memória sustentável. O túmulo voltou a ser o "vestígio de um passado controlado", termo usado por Manoel Luiz Salgado para discutir o muro de Berlim, que se transmutou, como ele bem ressalta, em "peça de museu aberto, exposto à visitação pública, [...] objeto de uma assepsia que o afasta das inúmeras experiências dramáticas a que esteve ligado".

Entre o muro de Berlim e o túmulo de Jacinto há, então, uma biografia comum, apesar de constituírem acontecimentos distintos em vários sentidos. Ambos são indícios do passado vivido a partir de determinados procedimentos para compor maneiras de viver a passagem e a paragem do tempo, o trânsito e o pouso dos ausentes.

A tática de Rosalinda, como diria Michel de Certeau, fez-se no aperto do cotidiano, em nome do presente vivido. Ela cruzou a Religião do Pai (escrita) com a Religião do Filho (imagem), para manipular a capacidade de ver da "ligeirenta", que invadia o seu museu particular de fantasias. Rosalinda fez a sua "assepsia" na calada da noite, porque os mecanismos mais profundos de manipulação do passado não costumam se expor à luz do dia, não estão nos deferimentos da burocracia.

Em certa medida, o passado é manipulável, ou sustentável, porque morreu, e vai morrendo ainda mais, na medida em que a história se faz presente. Aliás, é exatamente isso que Certeau (1982) apresenta sobre a escrita da história: é uma maneira de dar túmulo ao passado e, dessa maneira, abrir espaço aos vivos. A abertura, como mostra Rosalinda, faz-se de tensões.

A abordagem proposta por Manoel Luiz Salgado explora, com a beleza e o movimento do caleidoscópio, maneiras de usar o passado, formas de tornar visível o invisível. Não se trata, portanto, de um recorte que reduz a produção sobre o pretérito ao sentido acadêmico, científico, metódico ou coisa parecida. Pelo contrário, pois o que interessa ao autor é entender a história da memória, sem esquecer da memória da história e sem desprezar as forças de sentido que constituíram distinções e junções entre história e memória, inclusive entrando na complexa questão dos antiquários, que foi desprezada em nome de outras maneiras de captar (ou capturar) o pretérito. Há, de modo profundo, o desenvolvimento de discussões sobre as formas pelas quais são construídas as presenças do passado, com ênfase na historicidade dos acordos e conflitos entre imagem e palavra, entre objeto e escrita.

Pergunto-me, então, sobre a necessidade atual da palavra para o controle das imagens do passado residentes em determinada materialidade. Túmulos, monumentos, peças de museus, estátuas em praça pública, tudo isso depende de placas informativas?

Hoje, é possível pensar em patrimônios sem placas? Tudo indica que não. A relação entre palavra e objeto é muito vasta nesse campo patrimonial, mas não consigo deixar de citar aqui mais um escrito de Mia Couto, no romance O outro pé da sereia, que trata de um modo específico de "emplacar":

A mulher se espantou: o adivinho mudara de aparência dos pés à cabeça. As tranças deram lugar a um cabelo curto e penteado de risca, a túnica fora substituída por uma blusa desportiva. Debaixo do braço trazia uma tabuleta e foi assim, surpreendido e meio torcido, que saudou a visitante:

— Acabo de chegar de Vila Longe! Fui lá buscar esta tabuleta que mandei fazer para colocar aqui, na entrada do estabelecimento.

Colocou a tábua no chão de modo a que o letreiro se tornasse legível. Estava escrito: "Lázaro Vivo, notável das comunidades locais, curandeiro, e elemento de contacto para ONGS" (COUTO, 2006, p. 21).

Ao referir-se à exposição comemorativa dos 750 anos de Berlim, Manoel Luiz cita o trecho de um catálogo. Indício da relação entre museus e suas "informações", suas artimanhas para direcionar o olhar, preparar o visitante para se posicionar em certo ângulo. É claro que catálogos e placas não controlam a percepção, mas tentam.

E no caso dos chamados "livros didáticos"? Como fica a relação entre escrita e imagem na construção de visualidades do passado? Qualquer resposta teria de examinar peculiaridades, porque, além das recepções variadas, as produções editoriais seguem certos modelos, relacionados com a teoria da história, mas também vinculados às demandas do mercado.

Com o intuito de investigar o problema da "sensibilidade antiquária", Stephen Bann (1994) também recorre ao uso da escrita (inclusive placas informativas), como documento e acontecimento que caracterizam posições diante do passado. Hoje, seria possível analisar os afetos (e os desafetos) dos antiquários sem documentação escrita?

A minha indagação reside exatamente sobre a necessidade da escrita para se chegar a certos sentidos do objeto. Isso seria a permanência dinâmica e contraditória da Religião do Pai (escrita) dando ordens à Religião do Filho (imagem)?

Não estou defendendo, com isso, uma centralidade inevitável e teleológica da escrita, mas apenas sugerindo que, entre palavra e imagem, foram constituídas muitas articulações e conflitos, uma complexa rede de dependências. E, nesse sentido, a pequena placa de identificação em um museu (ou em qualquer outro lugar de memória) é muito mais do que uma informação. Trata-se de uma maneira de delimitar campos de sentido que, além de direcionar leituras, é o indício da própria relação de dominação da letra diante do artefato. Seria possível, então, fazer um museu sem palavras?

Fala-se, atualmente, em discurso museológico, textos feitos não com palavras e sim com objetos, luzes, músicas, ambientações, cenografias. Mas tudo sempre vem de mãos dadas com as identificações emplacadas. Nomes e mais nomes, a começar pelo nome do museu e da exposição.

Mesmo na chamada "arte contemporânea", nunca vi ausência total de placas museológicas, até porque esse mundo, apesar de arroubos críticos, está no capitalismo, cultiva a existência do autor (afinal, alguém tem de receber os dividendos!). Há sempre identificação de autores, mesmo quando se informa que se trata de "obra coletiva". Há sempre cercamentos nominais diante das obras, mesmo as que querem ser "anti" alguma coisa, inclusive antimemória, ou proclamar alguma tipo de fim, como o fim da história, fim do patrimônio. A plaquinha "sem título", nesse sentido, fica até cômica. Também não conheço estátuas públicas sem dados sobre o estatuado. E assim por diante.

Por diversas razões, vinculadas sempre a certos posicionamentos políticos e procedimentos interpretativos, o destino atual do patrimônio é ser cada vez mais emplacado. Diante da astúcia de Rosalinda, ressalto a indagação de Manoel Luiz Salgado ao abordar questões sobre a transição da Religião do Pai (escrita) para a Religião do Filho (imagem): "Como então compatibilizar escrito e imagem como possibilidades iguais de acesso a uma verdade, antes concebidas apenas pelo caminho do escrito, lugar da verdade?"

Em lugares de memória, a situação fica ainda mais tensa, pois a imagem, com todo seu poder monumental, continua carecendo do alfabeto. Como estudar a força das palavras diante dos chamados "objetos musealizados"? Está em jogo, então, a imposição da palavra na exposição de objetos, a proposição da escrita para posicionar restos e vestígios em espaços de lembrança.

Nesse sentido, seria possível argumentar que, nos processos de musealização, a Religião do Filho já estaria cercada pela Religião do Pai? Parece que sim. Mas qualquer resposta deve levar em consideração serem variadas as relações que podem ser estabelecidas com o passado por meio de objetos, inclusive com graus variados de dependência diante da escrita, da oralidade ou de outros objetos. Está em discussão, portanto, o ato de nomear e, a esse respeito, penso que um bom ponto de partida para se pensar sobre a atual (im)possibilidade de um museu sem palavras é a primeira página de Cem anos de solidão:

Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo (MARQUEZ, 1970, p. 7).

Imagino, também a partir dos enfoques de Manoel Luiz Salgado e Mia Couto, que os usos do passado guardam íntima relação com os modos de encarar a morte. Na medida em que se faz a distinção entre passado e presente (uma das bases da idéia de progresso), é preciso definir a fronteira dos ausentes, inclusive para aberturas e fechamentos diante do futuro. O caráter explicativo da história é também uma estratégia pacificadora, para colocar o caos de fragmentos no seu devido lugar. Lugar que, a partir da história científica, sempre deve explicações, que está sempre em débito e, por isso mesmo, abre as mais variadas portas para as muitas maneiras de densenvolver reflexão crítica. Por outro lado, a potência reflexiva não elimina, apesar de sua tendência conflitiva, a acomodação de sentidos e mesmo a produção de esquecimento.

Sobre isso, não consigo evitar a sedução de citar Mário de Andrade, exatamente quando ele descreve a cena central do conto Peru de Natal. O pai estava ausente na ceia, ausência velada, incomodando, com sua figura cinza, "alcochoado no medíocre". Era desprezível em vida e, depois de morto, continuava estragando o final do ano. Estava ali, finado e como assunto proibido, uma questão sem solução e silenciosamente estridente.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente destruidora.

— Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso (ANDRADE, 1978, p. 101).

De qualquer modo, isso é outra questão: a relação das imagens com a oralidade, que, assim como a escrita, cumpre papéis no sentido de organizar o passado em sintonia com necessidades do presente. Os ausentes, enfim, dão trabalho. E os historiadores, que não devem viver sem refletir sobre as muitas temporalidades, não podem desprezar esse trabalho que os ausentes necessariamente provocam.

Sem entrar em discussões mais específicas da arqueologia, que trabalha com a falta da escrita, cito um trecho da biografia de São Luis publicada por Le Goff, que mostra a necessidade de placas para se chegar a certas figurações mínimas:

O destino do coração de São Luis perturbou os eruditos do século XIX. Durante obras na Saint-Chapelle, em 1843, descobriram-se fragmentos de um coração perto do altar. Levantou-se a hipótese de que se tratava do coração do santo rei e uma viva polêmica opôs muitos dos principais eruditos da época. Faço minha a opinião de Alain Erlande-Brandenburg: "A ausência de qualquer inscrição, o fato de que as crônicas jamais tenham mencionado esse depósito, o esquecimento em que teria caído essa preciosa relíquia são suficientes para descartar tal identificação". Acrescento que não há como pôr em dúvida a inscrição que ainda no século XVIII se podia ler sobre o túmulo de São Luis em Saint-Denis: "Aqui estão guardadas as vísceras de São Luis, rei de França", e como as entranhas estavam em Monreale na Sicília, só pode o coração que, vimos acima, Filipe III, na Tunísia, tinha decidido enviar a Saint-Denis com os ossos (LE GOFF, 2002, p. 276).

Fica em pauta, portanto, não a dependência evidente ou necessária do objeto diante da palavra, mas como a necessidade de tal (de)pendência foi se constituindo para as atividades (co)memorativas ou a escrita de um historiador como Le Goff. Está em jogo uma história das crenças. Crenças acerca da própria existência do passado e do tratamento que o presente deve dar ao que se passou. Além de pensar a respeito da fé no passado, é preciso, então, investigar como a crença se sustenta, como constrói rituais, provas e argumentos confiáveis. Na sua capacidade de ordenar vestígios, a história seria um ato de fé. Fé na potência desconcertante da crítica ou no poder construtivo do exemplo.

É com isso que Mia Couto faz sua ficção: as crenças constitutivas do tempo, impregnadas na maneira de juntar e separar acontecimentos, como mostra a epígrafe do conto Rosalinda, a nenhuma:

É preciso que compreendam: nós não temos competência para arrumarmos os mortos no lugar do eterno.

Os nossos defuntos desconhecem a sua condição definitiva: desobedientes, invadem-nos o quotidiano, imiscuem-se no território onde a vida deveria ditar sua exclusiva lei.

A mais séria conseqüência dessa promiscuidade é que a própria morte, assim desrespeitada pelos seus inquilinos, perde o fascínio da ausência total. A morte deixa de ser a mais incurável e absoluta diferença entre os seres (COUTO, 1990, p. 47).

Mia Couto sabia que as dominações eram variadas e o seu foco aproxima-se sobretudo das dominações e das resistências sobre o ato de memorar. Sua literatura está vinculada à atual "cultura da memória", que institucionaliza defesas do passado, mas o seu enfoque também se alimenta de críticas aos poderes que procuram dominar os mundos africanos por meio de estratégias gerenciadoras de heranças e maneiras de lidar com o tempo. Os emplacamentos, ele sabe muito bem, não são inocentes. Estão fincados em um ponto central: no lugar da crença. Não qualquer crença, mas exatamente aquela que dá sentidos ao tempo.

Diante disso, penso em outras perguntas, relacionadas especificamente aos objetos dos antiquários. Como se relacionavam com a escrita? Como usavam placas de identificação diante de tantos pedaços do passado? Como controlavam esses fragmentos do passado por meio de textos? Manoel Luiz não trata diretamente dessa questão, mas oferece uma pista valiosa para se fundamentar melhor as respostas, na medida em que seu texto reflete, de modo profundo, sobre os estereótipos simplificadores que foram constituídos em torno do colecionismo por aqueles que desejavam compor novas relações com os restos de outrora.

Para encaminhar investigações sobre isso, deve ser levada em consideração a argumentação de Stephen Bann a respeito da tendência de se anular o "estímulo original oferecido pela imagem" pela "existência de uma narrativa forte", como acontece, por exemplo, no desenvolvimento do "romance histórico" (1994, p. 164). O contrário também pode ser uma hipótese de trabalho: a palavra como fonte de interesse pelos objetos memoráveis, por meio de romances, poemas, tratados, placas, catálogos. Trata-se de uma abordagem que interpreta a palavra na qualidade de construtora do passado que pode haver em determinados objetos.

Em certa medida, o sentido do antiquário persistiu, ganhou resistência nos espaços de defesa da memória que se definem como "históricos". Refiro-me, por exemplo, às práticas de Gustavo Barroso no Museu Histórico Nacional ou de Eusébio de Sousa no Museu Histórico do Ceará. Ambos misturaram colecionismo com patriotismo, fragmentos com o todo, particularidades únicas com o sentido de progresso, história científica com filosofia da história. Extrapolando as fronteiras nacionalistas de Gustavo Barroso, Eusébio de Sousa criou outras zonas de ambigüidade, que parecem não apenas beber em tratados oficiais mas também nas tradições orais que valorizam "curiosidades" vindas de antanho, como se certos fragmentos do passado devessem entrar nos espetáculos de circo, junto com o homem que engole fogo ou a mulher que vive no meio das cobras. É preciso levar em consideração que os colecionadores não foram simplesmente cortados do mapa. Pelo contrário, na contemporaneidade apresentam um vigor que se diversificou ainda mais.

Mas a tendência de superação ou renovação em nome de uma história crítica, ou uma história-problema, encontrou entraves mais ou menos inesperados: os casamentos entre a valorização da memória e a sociedade de consumo.

Como bem ressalta Manoel Luiz, "mais lembrança, como parte das demandas de nossa contemporaneidade, não implica necessariamente em mais conhecimento do passado e, muito menos uma compreensão crítica dessas experiências pretéritas". Esse, no meu entender, é o ponto fulcral para qualquer relação entre política de memória e escrita da história. É esse o fundamento que terá potência para enfrentar a moda dos museus do tipo google, que é uma espécie de remake pelo avesso da "sensibilidade antiquária". Moda que tudo inventa em nome da chamada interatividade, e despreza, sem pudores, o estudo de acervo. Os recursos expositivos, com a ajuda da técnica do shopping center, transformam-se em finalidade última e, em nome do passado, exibem mais um produto de consumo, que pode ser acervo ou cópia.

O "dever da memória" entra, com força crescente, no mundo das mercadorias, sobretudo porque o turismo é catalogado na categoria de indústria promissora. Está aí, certamente, uma dimensão primordial para a "inflação da lembrança", juntamente com o caráter "ligeirento" e "midiático" que ocupa a cabeça dos administradores da superficialidade. Daí pode sair tudo: da valorização da cultura popular ao elogio de grandes nomes do passado. Mas, obviamente, não é esse aspecto de mercadoria que fica evidente nas justificativas mais ou menos oficiais e sim a "valorização da história".

Vivemos hoje no tempo da lan house museológica. Espaços sedutores de antiquários virtuais, sem (muitos) objetos de acervo, mas infestados de imagens do passado.

Mundo virtual que, nos projetos de patrimônio, fazem sucesso e incentivam financiamentos, afinal dinheiro não gosta do dito "fundo perdido". Nesse sentido, turismo virou palavra mágica, que abre e fecha as portas da esperança. O autêntico, tão valorizado por antiquários e histórias científicas, passou para o mercado de pretéritos juntamente com outro valor, completamente oposto e, ao mesmo tempo, complementar: a cópia. Quando se pensa em destinar "verbas para a cultura", a capacidade de copiar, ou de recriar coisas no plano virtual, transformou-se em mania E, quando se tem oportunidade, o horizonte de possibilidades passa a ser, de modo dissimulado ou descarado, a Disneylândia, que é a mesma coisa de copilândia. Ela copia dos outros, copia dela mesma e os outros copiam as cópias que ela faz, tudo em nome de salvadores, como tecnologia de ponta, interatividade ou renovação dos museus. Aqui no Brasil, exemplos disso já existem e são diversificados.

Baudrillard, com sua cortante ironia, chegou a dizer: "Na Disneyworld, na Flórida, constrói-se uma maquete gigante de Hollywood, com os bulevares, os estúdios, etc. Uma espiral a mais no simulacro. Um dia, eles irão reconstruir a Disneylândia em Disneyworld" (1995, p. 68).

Por outro lado, nunca é demais lembrar a provocação de Beatriz Sarlo: "Ao mesmo tempo, [...] vivem milhões de pessoas pobres paras as quais os computadores e o correio eletrônico são tão irreais como os cenários de um telefilme" (2005, p. 96).

Arnaldo Momigliano falava que o antiquário "se interessa pelos fatos históricos sem se interessar por história" (2004, p. 85). Há aí uma certa disputa com o colecionismo, em nome de uma nova forma de configurar o passado, mas aproveito esse raciocínio para afirmar que, em outro sentido, pode-se inferir que boa parte dos fundamentos das políticas de patrimônio na atualidade se interessa pelos fatos históricos sem se interessar por história. A disputa, nesse caso, não é mais com a suposta fragmentação do passado tornado presente em pedaços que sobreviveram à corrosão do tempo. A história também não é mais filosofia da história ou a prática de ideais historicistas, românticos ou positivistas. O conflito passa a ser entre a venda do passado empacotado e a interpretação diante do passado (história-problema). O alvo da história passa a ser não somente a memória, mas também o comércio das lembranças. O preço do pretérito deixou de ser somente uma figura de retórica para assumir a condição de força motriz no mundo das mercadorias, literalmente entre sapatos, blusas, filmes, livros (didáticos ou não) e lanches do McDonalds.

Foi com muito gosto que Sérgio Buarque (2004, p. 108) repetiu uma mesma citação em dois artigos do início da década de 1950, que recentemente foram inseridos na coletânea Para uma nova história. Trata-se da observação que Marc Bloch fez ao amigo Henri Pirenne, quando ambos chegaram a Estocolmo: "Se eu fosse um antiquário, só me interessariam as coisas velhas. Mas sou historiador".

Sérgio Buarque argumenta que o historiador não é um receptáculo de ruínas do pretérito, na medida em que vai ao passado pelo presente. Repete-se, desse modo, o confronto com os antiquários, que hoje pode ser entendido em outra dimensão, como destaca Manoel Luiz Salgado. Por outro lado, o interesse (e o desinteresse) pelas "coisas velhas" ampliaram o foco. A chamada "preservação do patrimônio" no Brasil, que pouco consegue diante da especulação imobiliária e da repartição do orçamento estatal ou privado, não está apartada das relações capitalistas.

O culto da saudade, que era a grande utopia de Gustavo Barroso, entrou em outras redes de sentido. A saudade passou a ser cultuada nos templos do consumo, adquirindo outras dimensões. No meu entender, a recorrente falta de verba pública não deveria simplesmente curvar-se aos argumentos empresariais que pretendem salvar a memória com o modelo do "patrocínio", do "museu auto-sustentável" ou do "trabalho voluntário". Não estou, desse modo, apenas apoiando a idéia da vinculação pública. Defendo, e sem restrições, a existência de museus em universidades públicas, que, em certa medida, já são dotadas de estruturas de pesquisa, ensino e programas de interação com os movimentos sociais.

O que poderia fazer a escrita da história diante disso? Criar oposição, por meio das mais variadas formas, inclusive interagindo com o mundo dos objetos de lembrança, mas sem esquecer que, apesar das semelhanças, o estudo da história não deve confundir-se com as produções de memória.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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