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Apresentação

Foreword

Em 2018, Anais do Museu Paulista inauguram uma nova política editorial. Após publicarmos dois números anuais entre 2005 e 2015, o periódico teve três edições em 2016 e em 2017 e agora passamos a ter apenas um número a cada ano, voltando à periodicidade original, anual, e que faz jus ao seu próprio título. Tal decisão institucional ocorre em função das novas possibilidades de veiculação de artigos em fluxo contínuo no meio virtual, que permite a publicação dos mesmos logo após o término de sua editoração, favorecendo o acesso rápido dos leitores à produção de nossos autores.

Este ano, nosso periódico publica, em sua seção Estudos de Cultura Material, a segunda parte do dossiê “Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos”, organizado por José Newton Coelho Meneses e Maria Aparecida de Menezes Borrego, que dá sequência ao conjunto de artigos publicados em 2017.1 1 Com artigos de Leila Mezan Algranti, Isabel dos Guimarães Sá, Mariza de Carvalho Soares, Dante Martins Teixeira, José Carlos Vilardaga, Gregorio Saldarriaga, Angela Brandão, Maria Aparecida de Menezes Borrego e de Rodrigo da Silva e Carlos Eduardo França de Oliveira. Ver: <http://www.revistas.usp.br/anaismp/issue/view/10253>. Márcia Almada explora a identificação de técnicas e materiais de pintura em documentos históricos, revendo a terminologia de “desenho aquarelado”, especialmente por meio do exame de representações das viagens científicas. Já Régis Clemente Quintão concentra-se nos artefatos vinculados à sociedade do Distrito Diamantino e às suas práticas de extração, enquanto Sheila de Castro Faria concentra-se na cultura material da fluminense Cantagalo, que nasceu com a mineração do ouro. Luís Frederico Dias Antunes atenta para a pouquíssima conhecida circulação de tecidos asiáticos no mundo luso-brasileiro, especialmente de colchas, enquanto Gloria Kok finaliza o dossiê problematizando a apropriação da cultura material de povos indígenas em museus brasileiros e examinando sua integração numa cultura de representações que se manifestava tanto em nossos museus, quanto em exposições universais e na circulação de imagens fotográficas.

A sessão Estudos de Cultura Material continua com um conjunto bastante amplo de artigos em vária, em que se destacam alguns núcleos temáticos. No âmbito dos estudos patrimoniais, Renata Campello Cabral e Paola Berenstein Jacques revolucionam as narrativas das ideias de preservação nacional no Brasil ao atribuírem o documento inédito de 1930 denominado “Bases para a Criação e Organização do Departamento de Defesa e Conservação do Patrimônio Artístico do Brasil” a Oswald de Andrade, que aqui aparece pioneiro em relação ao célebre anteprojeto de 1936, de seu conterrâneo Mário de Andrade. Maria Tarcila Ferreira Guedes mantém nossa atenção nos primórdios das práticas de preservação no Brasil e em suas articulações internacionais, por meio da inserção do país na Segunda Conferência e na Convenção de Haia (1907 e 1954), bem como no Pacto de Röerich, de 1935, do qual o Brasil foi signatário na VII Conferência Pan-Americana em 1933. Marcus Granato, Emanuela Sousa Ribeiro, Victor Emmanuel Teixeira Mendes Abalada e Bruno Melo de Araújo problematizam procedimentos de inventário de coleções de objetos de ensino em Portugal e no Brasil, países que também constituem o universo de interesse de Darlan de Mamann Marchi e Maria Leticia Mazzucchi Ferreira, que estabelecem um estudo comparativo entre as gestões patrimoniais do centro histórico de Évora e de São Miguel das Missões, que integra a região missioneira jesuítica da bacia do Prata. Essa região é também abordada por Alejo Ricardo Petrosini por meio dos debates em torno da preservação das ruínas jesuíticas na Argentina, especialmente em torno da polêmica proposta formulada em 1900 por Eduardo Schiaffino, historiador da arte e primeiro diretor do Museu Nacional de Belas Artes, de trasladar-se um pórtico das ruínas da missão de San Ignacio Miní para Buenos Aires. Denise Fernandes Geribello volta-se para as questões conceituais e metodológicas específicas de salvaguarda do patrimônio industrial que permanece em funcionamento, por meio do exame da usina hidrelétrica de Itatinga, situada no sopé da Serra do Mar, em Bertioga.

Wanessa Asfora Nadler dedica-se ao estudo das formas de apropriação de artefatos enquanto práticas geradoras de sentidos, ao examinar, como grande criatividade metodológica, a classificação a que um manuscrito atribuído a Apício foi submetido na Biblioteca Medicea Laurenziana, de Florença, transitando de sua condição de livro de cozinha para a de tratado médico.

As questões de atribuição e precisão terminológica estimularam Carlos Adriano a problematizar um carretel de mutoscópio produzido em 1901 e que contém 1.399 cartões fotográficos com imagens de Santos Dumont, objeto que hoje integra a coleção do Museu Paulista. Registrado no passado como um cinedoscópio e uma roda cinematográfica, o artefato foi corretamente identificado e restaurado pelo pesquisador, que produziu ainda o filme Santoscópio = Dumontagem, base para suas reflexões sobre a reapropriação do filme e do próprio artefato. Esse artigo insere-se também em um conjunto temático em torno da produção e circulação de fotografias, ao qual se vinculam também os artigos de Rogério Pereira de Arruda e de Lucas Mendes Menezes, ambos sobre a produção de imagens em Minas Gerais. O primeiro, concentrado nos álbuns ilustrados produzidos por Raymundo Alves Pinto e pelos irmãos Francisco e Augusto Soucasaux, o segundo, atento à prática da fotografia amadora nas décadas de 1940 e 1950 em Belo Horizonte, relacionando-a tanto à proliferação de automatismos quanto à criação do Foto Clube de Minas Gerais. Já Patricia Camera divulga resultados de sua pesquisa de pós-doutorado, realizada no Museu Paulista, relacionada ao Fundo Foto Bianchi, pertencente à Casa da Memória Paraná, em Ponta Grossa, abordando tanto as tratativas de sua aquisição em 2001 como o projeto de curadoria desse conjunto, que potencializou sua condição de documento histórico. O artigo de Rômulo de Paula Andrade volta-se para a produção e veiculação de imagens divulgadas por órgãos de imprensa favoráveis à construção da rodovia Belém-Brasília, durante a gestão de Juscelino Kubitschek, em que os enfrentamentos com a natureza e a Floresta Amazônica e sua configuração como inimigas da civilização fizeram parte de práticas de propaganda governamental nas quais as imagens cumpriram papel privilegiado.

As representações em torno da natureza são também o objeto de Roseli Maria Martins D’Elboux, autora de um artigo anterior sobre a difusão das palmeiras-imperiais no sudeste brasileiro, publicado em Anais do Museu Paulista em 2006.2 2 Cf. D’Elboux (2006). Disponível em: <https://bit.ly/2DBqEeU>. 2 Neste novo estudo, D’Elboux atenta agora para as chamadas figueiras-bravas, por meio de sua presença de nas cidades paulistas de Lorena e de São Paulo, onde se constituíram como marcos importantíssimos da paisagem urbana, a ponto de serem recorrentes em cartões postais da cidade vale-paraibana ou na toponímia da capital. Diversos são os artigos que, como esse, abordam diferentes aspectos da cultura material de São Paulo, por meio de recortes temáticos e disciplinares distintos. Sheila Schneck reconstrói o processo de formação e ocupação do bairro do Bexiga, observando por meio de sua sociotopografia e das formas de sociabilidade a heterogeneidade de um espaço recorrentemente associado a estereótipos generalizantes. Em metodologia semelhante, Philippe Arthur dos Reis aborda o bairro do Brás, comumente lembrado como bairro fabril, mas revelado pelo autor como mais misto e heterogêneo, por meio do exame de suas construções e das funções comerciais, de serviços e habitacionais ali presentes.

Dois outros artigos igualmente são dedicados ao estudo das residências paulistanas, sob ângulos diversos. Ricardo de Souza Rocha indaga as relações arquitetônicas entre as produções iniciais de Grigori I. Warchávtchik (Gregori Warchavchik) e Wladímir Konstantinóvski (Wladimiro Acosta). Nascidos em Odessa, então no Império Russo, e radicados, respectivamente, no Brasil e na Argentina, ambos foram formados em Roma e desempenharam um papel destacado na recepção, difusão e interpretação das linguagens modernas nesses países sul-americanos, sendo Warchavchik autor tanto da pioneira Casa Modernista da Vila Mariana quanto daquela da rua Itápolis, examinada por Rocha. Explorando detalhes arquitetônicos como a presença de cactos em jardins e persianas em residências dos dois arquitetos, o autor evidencia as relações intra-continentais entre seus autores, ao mesmo tempo em que as relaciona com os referenciais europeus do período. Com a mesma atenção à circulação de referências arquitetônicas, Sabrina Studart Fontenele Costa focaliza a introdução e difusão dos apartamentos duplex no Brasil a partir de experiências pioneiras no Rio de Janeiro e em São Paulo, cidade em que arquitetos como os irmãos Roberto, Niemeyer, Vital Brasil e Eduardo Knesse de Mello implantaram releituras dessa tipologia, nascida na Rússia soviética e difundida em projetos erguidos na Alemanha, França e Suíça. Anais do Museu Paulista expandem assim suas publicações no âmbito das tipologias de apartamentos, tema ainda pouco estudado no Brasil, e que já foram objeto de artigos anteriores de Maria Lúcia Bressan Pinheiro e de Joana Mello.3 3 Referimo-nos aos artigos de Pinheiro (2008), disponível em: <https://bit.ly/2DjQNhl> e de Silva (2013), disponível em: <https://bit.ly/2OEJkeV>.

Dois artigos se dedicam a técnicas e expressões artísticas que marcaram a materialidade de nossas cidades nos últimos dois séculos. A difusão do grafite na cidade de São Paulo é o tema de Elena Moraes Pires e Fábio Alexandre dos Santos, em que essa linguagem hiper contemporânea, de grande visibilidade no exterior, é examinada por meio das estratégias de legitimação da arte mural e de relacionamento com o mercado. Já o artigo de Márcia Lopes Lamas, Orlando Celso Longo e Vicente Custódio de Souza aborda uma produção artística em declínio no Brasil - os ladrilhos hidráulicos - e os desafios da salvaguarda de seus métodos de produção. Comuns em muitos prédios brasileiros dos séculos XIX e XX - inclusive no Museu Paulista, que tem muitos de seus pisos ladrilhados com painéis Villeroy & Boch - os ladrilhos hidráulicos são hoje produzidos em pequenas indústrias que procuram manter a qualidade de materiais e técnicas de fabricação.

A construção de territórios é abordada neste número de Anais do Museu Paulista por diferentes enfoques metodológicos, atentos às normas para o regramento espacial das cidades ou a suas formas de representação. A atuação da Câmara de Belém em práticas como o aforamento, o alinhamento e a arrumação é o tema de Paula Vanessa Luz de Abreu, José Júlio Ferreira Lima e Luly Rodrigues da Cunha Fischer, que examinam a cidade no século XIX, quando a municipalidade assumiu um papel determinante de produtora do espaço urbano e de difusora de novas formas de ocupação do lote. Voltado à compreensão da configuração do território colonial por meio de caminhos de água e de terra, o artigo de Maria Angélica da Silva, Bianca Machado Muniz e Catarina Agudo Menezes volta-se às representações que figuraram o sul da Capitania de Pernambuco, hoje Alagoas, bem como ao surgimento de três de suas vilas principais, Marechal Deodoro (antes Alagoas), Porto Calvo e Penedo, e àquela que lhes roubara a primazia, Maceió, sua capital atual, que nascera em torno do porto de Jaraguá. Os caminhos fluviais também constituem o tema do artigo de Jorge Pimentel Cintra, José Rogério Beier e Lucas Montalvão Rabelo, que examinam duas diferentes versões do mapa da viagem de Luis de Céspedes Xeria em 1628, com a representação do caminho fluvial entre a vila de São Paulo de Piratininga e Ciudad Real de Guairá, na Província do Paraguai. Os autores confrontam esses documentos seiscentistas com o a cópia encomendada em 1917 por Affonso Taunay, então Diretor do Museu Paulista, atentando para as aproximações e diferenças entre essas três representações.

As encomendas realizadas por Affonso Taunay para o Museu Paulista são também o tema de Carlos Lima Junior, que problematiza os diálogos visuais entre fontes oitocentistas e telas a óleo, nelas inspiradas, realizadas por Oscar Pereira da Silva. Suas pinturas oscilaram entre réplica e criação, equação associada ao esforço operado por Taunay para mobilizar fontes iconográficas que pudessem inspirar seu discurso visual, sem que se tolhesse o que ele e seus artistas julgasse ser necessário alterar. A importância dos discursos visuais nas narrativas históricas ligadas ao passado paulista está igualmente presente no artigo de David William Aparecido Ribeiro, que analisa a exposição História de São Paulo no quadro da história do Brasil, organizada pelo historiador Jaime Cortesão como parte das comemorações do IV Centenário de São Paulo, em 1954. Apoiada em numerosa documentação primária textual e iconográfica vinda de instituições brasileiras e portuguesas, a exposição ainda continha vários painéis encomendados a artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Clóvis Graciano e obras do pintor português Manuel Lapa, incluindo um políptico seu do qual restam quatro partes, hoje pertencentes ao acervo do Museu Paulista, e cuja procedência e autoria a pesquisa de David Ribeiro permitiu identificar.

A sessão Museus apresenta três artigos que focalizam instituições brasileiras. Eduardo Augusto Costa reconstrói a importância e as dificuldades de implantação do laboratório fotográfico do Museu Paulista na década de 1930, período em que a reprodução de obras de arte e documentos ganhou imensa difusão graças a técnicas de impressão que facilitavam a inclusão de imagens, o que tornava esse laboratório estratégico para inserção do Museu nas práticas de cultura visual do período. Já Emerson Dionisio Gomes de Oliveira dedica-se a refletir sobre as práticas de documentação e reexposição de instalações realizadas em três museus recentes de arte contemporânea - Museu de Arte de Ribeirão Preto (Marp), Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) e o Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul (Marco) - todos criados na década de 1990 e externos ao eixo Rio - São Paulo. A criação do Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi, localizado no bairro de São Braz, em Belém do Pará, é focalizado por Lilian Suescun Florez, Nelson Sanjad e Wanda Okada a partir de quatro narrativas - comunicacional e educativa, científica, lazer e sociabilidade, doméstica - por meio das quais os autores exploram diferentes representações do museu, seus usos e a construção social e museal de sua própria identidade.

Por fim, na seção Documentos, Taiguara Villela Aldabalde se debruça sobre os manuscritos de Fernando Pessoa na Casa que leva seu nome, situada em Lisboa. Os critérios institucionais de guarda são aqui examinados, de modo a problematizar os procedimentos de gestão dessa documentação, em meio às bem-sucedidas práticas de difusão da obra do escritor na contemporaneidade.

Anais do Museu Paulista inauguram, assim, uma nova etapa de sua periodicidade com uma amplíssima cobertura de temas, abordagens metodológicas, reflexões conceituais e, sobretudo, pesquisas altamente inovadoras, capazes de estimular novas fronteiras da produção científica ligada à cultura material, à história dos museus e suas ações de curadoria.

REFERÊNCIAS

  • D’ELBOUX, Roseli Maria Martins. Uma promenade nos trópicos: os barões do café sob as palmeiras-imperiais, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.14, n.2, p.193-250, 2006.
  • PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Arquitetura residencial verticalizada em São Paulo nas décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.16, n.1, p.109-149, 2008.
  • SILVA, Joana Mello de Carvalho e. Habitar a metrópole: os apartamentos quitinetes de Adolf Franz Heep. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.21, n.1, p.141-157, 2013.
  • 1
    Com artigos de Leila Mezan Algranti, Isabel dos Guimarães Sá, Mariza de Carvalho Soares, Dante Martins Teixeira, José Carlos Vilardaga, Gregorio Saldarriaga, Angela Brandão, Maria Aparecida de Menezes Borrego e de Rodrigo da Silva e Carlos Eduardo França de Oliveira. Ver: <http://www.revistas.usp.br/anaismp/issue/view/10253>.
  • 2
    Cf. D’Elboux (2006)D’ELBOUX, Roseli Maria Martins. Uma promenade nos trópicos: os barões do café sob as palmeiras-imperiais, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.14, n.2, p.193-250, 2006.. Disponível em: <https://bit.ly/2DBqEeU>.
  • 3
    Referimo-nos aos artigos de Pinheiro (2008)PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Arquitetura residencial verticalizada em São Paulo nas décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.16, n.1, p.109-149, 2008., disponível em: <https://bit.ly/2DjQNhl> e de Silva (2013)SILVA, Joana Mello de Carvalho e. Habitar a metrópole: os apartamentos quitinetes de Adolf Franz Heep. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.21, n.1, p.141-157, 2013., disponível em: <https://bit.ly/2OEJkeV>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2018
  • Data do Fascículo
    2018
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