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Apresentação

Foreword

Este número de Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material conta com duas inovações de ordem editorial. A primeira refere-se à publicação bilíngue de dois dossiês, visando ampliar o processo de internacionalização do periódico, graças à obtenção de verbas provenientes do Programa Editorial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Brasil). A segunda remete-se ao aumento significativo de artigos que compõem a seção Museus. Comumente menos numerosos do que os artigos que compõem a seção Estudos de Cultura Material, neste volume, a seção Museus é constituída por 12 trabalhos, dos quais 9 integram os dossiês relacionados a eixos de pesquisa do Projeto Temático Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento.3 3 Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo 17/07366-1), sob coordenação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC/USP).

Os estudos do dossiê “Pintura de História no Museu Paulista” se concentram exclusivamente nas obras artísticas produzidas em finais do Oitocentos e nas primeiras décadas do século XX, que ingressaram na instituição e, por meio de determinadas representações do passado, conformaram imaginários sociais, ora contextualizados e discutidos. Carlos Lima Júnior e Pedro Nery analisam a transformação narrativa pela qual passou o Salão Nobre desde sua inauguração, em 1895, até 1922, quando o Museu foi reaberto com novas exposições em face das comemorações do centenário da independência; Eduardo Polidori debruça-se sobre a encomenda e a musealização da obra Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto; Michelli Christine Scapol Monteiro dedica-se ao estudo da aquisição e das apropriações da tela Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva, e Ana Paula Nascimento examina as matrizes e a veiculação de quatro retratos realizados por José Wasth Rodrigues.

Já o dossiê “Métodos interdisciplinares de análise em acervos museológicos” reúne estudos de pesquisadores que, partindo de prismas diferentes - mas articulados - das áreas de História, História da Arte, Arqueologia, Física, Química, Conservação e Restauro, trabalharam em conjunto para ampliar os conhecimentos sobre materiais, datações, autorias e procedências de objetos museais ou de coleções privadas. Fazem parte do conjunto as pesquisas de Ana Gonçalves Magalhães e Márcia de Almeida Rizzutto sobre o autorretrato de Amedeo Modigliani do acervo do MAC-USP; de Maria Aparecida de Menezes Borrego, Bernardo Luís Rodrigues de Andrade, Gregório Cardoso Tápias Ceccantini, Milena de Godoy Veiga, Fillipe Rocha Esteves, Pedro Henrique Bulla e Gabriel Bustani Valente acerca do processo de reconstituição digital de uma canoa do Museu Paulista-USP; de Jorge Pimentel Cintra e Rodrigo Gonçales, responsáveis pela aplicação das tecnologias laser scan e aerofotogrametria por drone no edifício histórico do Museu do Ipiranga. Márcia Rizzutto também assina artigos com Rogério Ricciluca Matiello Félix acerca da aplicação da arqueometria em peças de mobiliário do Museu Paulista e com Francis Melvin Lee e Thierry Thomas sobre o emprego de fluorescência de raios X nas primeiras experiências fotográficas realizadas por Hercule Florence no século XIX, pertencentes ao Instituto de mesmo nome.

Se considerarmos as etapas do ciclo curatorial como parâmetros, os demais artigos que integram a seção Museus poderiam ser alocados nas fases de identificação/ processamento dos acervos e de difusão do conhecimento produzido sobre eles. No primeiro caso, enquadra-se o trabalho de Álea Santos de Almeida e Aparecida Marina de Souza Rangel, que apresentam os métodos empregados e as soluções encontradas para a catalogação dos cômodos da Fundação Casa de Rui Barbosa, tomados como objetos museológicos. No segundo, inserem-se, por um lado, a reflexão de Maria de Simone Ferreira e de Isabela Maria Oliveira Borsani sobre o uso da virtualidade como recurso expográfico para exibir os achados arqueológicos do sítio Matadouro Público de São Cristóvão no Museu Histórico Nacional, em exposição inaugurada em 2017, e, por outro, o artigo de Clovis Carvalho Britto, Fernando José Ferreira Aguiar e Janaína Couvo Teixeira Maia de Aguiar sobre os usos e apropriações de acervos afrorreligiosos em instituições museais públicas, tendo como estudo de caso a conformação da sala de Exu no Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, em Laranjeiras.

A Seção Estudos de Cultura Material reúne pesquisas de escopo variado tal como o é o próprio campo de investigação, mas que neste número dos Anais concorrem para um profícuo diálogo pelas abordagens e/ou temáticas eleitas.

A articulação entre materialidade e construção de memórias tem sido um instrumental eficaz para se refletir tanto sobre o vivido pretérito como sobre as perspectivas do presente sobre o passado. Sendo a memória um componente fundamental da vida social, seu controle pelos grupos dominantes tem sido cada vez mais estratégico para o reforço das afirmações identitárias, e, por outro lado, também o têm sido os esquecimentos e silêncios por eles orquestrados.4 4 Le Goff (1994, p. 496). A dimensão material da memória no espaço público e nos interiores de bens edificados pode ser captada em vários estudos aqui publicados.

Monique Félix Borin analisa os embates e a conjugação de ações do poder municipal e dos habitantes da cidade de São Paulo para a implantação dos equipamentos viários - calçamento das ruas e construção de passeios - na virada do século XIX para o XX; Joelmir Marques da Silva, Ana Rita Sá Carneiro, Wilson de Barros Feitosa Júnior e Maria Eduarda Dantas de Oliveira Rolim discutem a bibliografia produzida sobre o jardim da Praça de Casa Forte, em Recife, projetado por Burle Marx na década de 1930, com vistas a subsidiar as ações contemporâneas de conservação do conjunto; Helder do Nascimento Viana problematiza a imposição da memória republicana no espaço urbano de Natal no início do Novecentos por meio da criação e nomeação de logradouros públicos, instalação de conjuntos escultóricos e identificação de sítios e objetos ligados ao movimento; neste mesmo contexto, Fabíola Cristina Alves aborda o histórico de construção do Palácio Tiradentes, a antiga sede da Câmara dos Deputados situada no Rio de Janeiro, e o programa iconográfico concebido para a decoração de seu interior, elegendo a obra Assinatura da Constituição de 1891, de Eliseu Visconti, como objeto de estudo; e Renata Rendelucci Allucci e Maria Cristina da Silva Schicchi discutem as estratégias do uso do imaginário fundacional da cidade São Luiz do Paraitinga, localizada no Vale do Paraíba (SP), tanto para subsidiar os processos de tombamento do Centro Histórico, como Patrimônio Cultural Nacional, como para a reconstrução do conjunto arquitetônico após as enchentes que assolaram a região em 2010.

A cultura material é igualmente fundamental para se pensar nos papéis assumidos pelos artefatos como produtos do trabalho humano, mediadores de relações pessoais e conformadores de práticas sociais, tal como preconizado por Ulpiano Bezerra de Meneses.5 5 Meneses (1983, 2005). Nesse sentido, tomando os objetos como testemunhos das transformações socioeconômicas e artísticas, dois artigos voltados ao estudo do século XVIII mineiro se aproximam. Tarcísio de Souza Gaspar joga luzes sobre o Palácio Velho de Ouro Preto, primeira casa dos governadores da capitania mineira criada em 1720, a fim de identificar as tentativas de construção de um espaço cortesão, incapaz de obscurecer os traços da sociedade colonial escravista nele impregnados. Já Aziz José de Oliveira Pedrosa analisa os retábulos da igreja Matriz de Santa Luzia, procurando não só captar filiações com a talha setecentista luso-brasileira, mas estabelecer relações com outros exemplares congêneres da própria região de Minas Gerais.

Vânia Carneiro de Carvalho aprofunda o debate em torno das dimensões da cultura material, tomando-a como plataforma de observação de uma dada realidade social e instigando-nos a pensar sobre as diferentes formas de interação entre corpos e artefatos. Já tendo se debruçado sobre a incorporação de formas de distinção social e de gênero por meio do emprego de objetos domésticos em São Paulo em inícios do século XX,6 6 Cf. Carvalho (2001, 2008, 2011). neste volume a historiadora nos brinda com um artigo sobre a constituição da identidade feminina associada à exibição do corpo a partir da análise de esculturas de porcelana com cenas que remetem a representações da aristocracia francesa - as chamadas fetês galantes - produzidas até os dias atuais, mas cuja matriz visual remonta ao século XVIII.

Entre os trabalhos que privilegiam o campo conceitual para discussão de temáticas afeitas à cultura material, este volume conta com os artigos de Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior que historiciza o debate acadêmico em torno das expressões visual turn, pictorial turn e iconic turn, e o estado atual da arte; de Eliane Baader de Lima e Rodrigo Almeida Bastos, que analisam um conjunto arquitetônico rural em Santa Catarina, construído em madeira por artífices imigrantes, a partir do pensamento estético de John Ruskin, assentado no conceito de “fantástico paradoxo”; de Joana Beleza, Juliana Müller e Cláudia da Silva Pereira, sobre a importância das pesquisas realizadas em torno das interações entre pessoas e objetos, com base em acervos museológicos, narrativas ficcionais e históricas, para a compreensão da sociedade de consumo contemporânea. Atenta às questões de precisão e mutação terminológica, a pesquisadora francesa Beatrice Grondin discute as transformações semânticas e de competências do decorador de inícios do século XX que, ao longo dos anos, viria a se tornar o arquiteto de interiores. Escrito originalmente em francês, o texto se encontra aqui disponível também na língua portuguesa.

No âmbito dos estudos sobre as práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, Renata Cabral dá continuidade às suas investigações sobre a atuação de intelectuais e artistas no período antecedente à criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937. Se no volume anterior dos Anais, em parceria com Paola Berenstein Jacques, a arquiteta se dedicou a analisar o papel de Oswald Andrade como um dos agentes da constituição de uma cultura preservacionista no país nos anos 1920 e 1930,7 7 Cf. Cabral; Jacques (2018). neste número ela privilegia a figura do baiano José Wanderley de Araújo Pinho, apontando-o como um dos responsáveis pela introdução da proteção legal de bens no Brasil nos primórdios das ações preservacionistas.

Por fim, também inserido no quadro das pesquisas sobre os bens patrimoniais brasileiros, a Seção Conservação encerra este volume de Anais do Museu Paulista, apresentando o artigo de Soraya Almeida, voltado à obra de engenharia setecentista conhecida como a Ponte dos Jesuítas. Localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, a construção foi alvo, em 1938, de um dos primeiros tombamentos realizados pelo SPHAN, bem cultural esse que aqui é abordado a fim de que se possam detectar as intervenções realizadas nos seus elementos constitutivos e as decorrentes transformações em seus traços originais.

REFERÊNCIAS

  • CABRAL, Renata Campello; JACQUES, Paola Berenstein. O antropófago Oswald de Andrade e a preservação do patrimônio: um "devorador" de mitos?. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 26, e32, 2018. Disponível em <Disponível em https://bit.ly/373FFl2 >. Acesso em: 13 nov. 2019.
    » https://bit.ly/373FFl2
  • CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e cultura material: uma introdução bibliográfica. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material. São Paulo, vol. 8/9, n. 9, p. 293-324, 2001 [2003].
  • CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008.
  • CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura material, espaço doméstico e musealização. Varia Historia Belo Horizonte, vol. 27, n. 46, p. 443-469, jul./dez. 2011.
  • LE GOFF, Jacques. História e Memória Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
  • MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História São Paulo, n. 115, p.103-117, 1983.
  • MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Rumo a uma “História Visual”. In: MARTINS, José de Souza; ECKERT, Cornelia; NOVAES, Sylvia Caiuby. O imaginário e o poético nas Ciências Sociais Bragança Paulista: EDUSC, p. 33-56, 2005.
  • 3
    Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo 17/07366-1), sob coordenação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC/USP).
  • 4
    Le Goff (1994LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1994., p. 496).
  • 5
    Meneses (1983MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História. São Paulo, n. 115, p.103-117, 1983., 2005MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Rumo a uma “História Visual”. In: MARTINS, José de Souza; ECKERT, Cornelia; NOVAES, Sylvia Caiuby. O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bragança Paulista: EDUSC, p. 33-56, 2005.).
  • 6
    Cf. Carvalho (2001CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e cultura material: uma introdução bibliográfica. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material. São Paulo, vol. 8/9, n. 9, p. 293-324, 2001 [2003]., 2008CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008. , 2011CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura material, espaço doméstico e musealização. Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 27, n. 46, p. 443-469, jul./dez. 2011.).
  • 7
    Cf. Cabral; Jacques (2018)CABRAL, Renata Campello; JACQUES, Paola Berenstein. O antropófago Oswald de Andrade e a preservação do patrimônio: um "devorador" de mitos?. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 26, e32, 2018. Disponível em <Disponível em https://bit.ly/373FFl2 >. Acesso em: 13 nov. 2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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