Acessibilidade / Reportar erro

O impacto do uso de álcool em pacientes admitidos em um pronto-socorro geral universitário

The impact of alcohol use in patients attended in the emergency room of a university general hospital

Resumos

CONTEXTO: O uso abusivo de bebidas alcoólicas é um dos fatores provocadores significativos de causas externas em pacientes atendidos na emergência. OBJETIVOS: Investigar o padrão de uso de álcool em pacientes atendidos nos serviços de pronto-socorro (PS) e analisar a associação desse consumo com os motivos da procura ao serviço. MÉTODOS: Trata-se de um estudo transversal. A amostra foi constituída por 418 pacientes que procuraram o PS do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HCUFU/MG), no período de outubro de 2003 a março de 2004. Os procedimentos consistiram na coleta de informações sociodemográficas e de dados gerais sobre o motivo da procura ao serviço de saúde e na aplicação de um questionário de rastreamento de abuso de álcool, o AUDIT. RESULTADOS: Encontrou-se prevalência de uso problemático de álcool em 36,2% (N = 151) pacientes. O consumo maior foi em vítimas de atropelamentos (60%), (N = 9), acidente de trânsito (40%), (N = 40) e acidentes gerais (44%), (N = 51), entre indivíduos do sexo masculino, solteiros, com idade entre 18 e 44 anos (mediana 36). A análise de regressão logística indicou que embora o uso abusivo de álcool esteja mais associado ao grupo de traumas físicos, essa relação é especialmente importante com os pedestres (OR = 1,05 IC 95%: 1,01-1,09) e os acidentes gerais (agressões, quedas, afogamentos, entre outros) (OR = 1,03 IC 95%: 1,00-1,05). CONCLUSÕES: O consumo abusivo de bebidas alcoólicas entre os pacientes atendidos neste serviço de PS em decorrência de acidentes de transporte e outros tipos de acidentes é elevado, especialmente no que diz respeito aos atropelamentos. Nesse sentido, são indispensáveis medidas preventivas para diminuir o custo individual e social do consumo de álcool e a reincidência desses eventos.

Consumo de bebidas alcoólicas; pronto-socorro; acidentes; AUDIT


BACKGROUND: The abusive alcoholic beverage use is one of significant the provoking factors of external causes in patients taken care of in the emergency. OBJECTIVES: To describe the patterns of alcohol use among patients attended at the Emergency Department and to investigate the association of patterns of alcohol use and the reasons for seeking the emergency health care. METHODS: It is a transversal study. A sample was made of 418 patients who seek treatment at the emergency room of Federal University of Uberlândia (HCUFU/MG), from October 2003 through March 2004. The procedures consisted of gathering some socio demographic figures, general figures about the main reasons to search for health service and a tracing questionnaire for alcohol abuse developed by World Health Organization, the AUDIT - The Alcohol Use Disorders Identification Test. RESULTS: The prevalence of harmful alcohol use among the sample was 36.2% (N = 151). Higher rates of alcohol abuse were found among run over victims (60%), (N = 9), victims of motor accidents (40%), (N = 40), victims of general accidents (44%), (N = 51), and were related to being male, single, and aged 18 to 44. The analysis of logistic regression indicated that, though harmful alcohol use is associated with all trauma groups investigated, this relation was particularly significant for run over victims (OR = 1,05 IC 95%: 1,01-1,09) and victims of general accidents (OR = 1,03 IC 95%: 1,00-1,05). DISCUSSION: Alcohol consumption is high among patients seen at emergency rooms due motor vehicle and other kinds of accidents, particularly for run over victims. In this sense it is of paramount importance to implement preventive measures to decrease individual and social costs that alcohol consumption imposes to its users.

Alcoholic drinks consumption; casualty departments; accidents; AUDIT


ARTIGO ORIGINAL

O impacto do uso de álcool em pacientes admitidos em um pronto-socorro geral universitário

The impact of alcohol use in patients attended in the emergency room of a university general hospital

Maria Luiza SegattoI; Rebeca de Souza e SilvaII; Ronaldo LaranjeiraIII; Ilana PinskyIV

ICoordenadora do Setor de Atenção às Compulsões da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

IIProfessora adjunta do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

IIIProfessor titular do Departamento de Psiquiatria da Unifesp

IVOrientadora convidada do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da Unifesp

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Maria Luiza Segatto. Av. Engenheiro Diniz, 523 38400-462 Uberlândia, MG E-mail: ml.segatto@uol.com.br

RESUMO

CONTEXTO: O uso abusivo de bebidas alcoólicas é um dos fatores provocadores significativos de causas externas em pacientes atendidos na emergência.

OBJETIVOS: Investigar o padrão de uso de álcool em pacientes atendidos nos serviços de pronto-socorro (PS) e analisar a associação desse consumo com os motivos da procura ao serviço.

MÉTODOS: Trata-se de um estudo transversal. A amostra foi constituída por 418 pacientes que procuraram o PS do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HCUFU/MG), no período de outubro de 2003 a março de 2004. Os procedimentos consistiram na coleta de informações sociodemográficas e de dados gerais sobre o motivo da procura ao serviço de saúde e na aplicação de um questionário de rastreamento de abuso de álcool, o AUDIT.

RESULTADOS: Encontrou-se prevalência de uso problemático de álcool em 36,2% (N = 151) pacientes. O consumo maior foi em vítimas de atropelamentos (60%), (N = 9), acidente de trânsito (40%), (N = 40) e acidentes gerais (44%), (N = 51), entre indivíduos do sexo masculino, solteiros, com idade entre 18 e 44 anos (mediana 36). A análise de regressão logística indicou que embora o uso abusivo de álcool esteja mais associado ao grupo de traumas físicos, essa relação é especialmente importante com os pedestres (OR = 1,05 IC 95%: 1,01-1,09) e os acidentes gerais (agressões, quedas, afogamentos, entre outros) (OR = 1,03 IC 95%: 1,00-1,05).

CONCLUSÕES: O consumo abusivo de bebidas alcoólicas entre os pacientes atendidos neste serviço de PS em decorrência de acidentes de transporte e outros tipos de acidentes é elevado, especialmente no que diz respeito aos atropelamentos. Nesse sentido, são indispensáveis medidas preventivas para diminuir o custo individual e social do consumo de álcool e a reincidência desses eventos.

Palavras-chave: Consumo de bebidas alcoólicas, pronto-socorro, acidentes, AUDIT.

ABSTRACT

BACKGROUND: The abusive alcoholic beverage use is one of significant the provoking factors of external causes in patients taken care of in the emergency.

OBJECTIVES: To describe the patterns of alcohol use among patients attended at the Emergency Department and to investigate the association of patterns of alcohol use and the reasons for seeking the emergency health care.

METHODS: It is a transversal study. A sample was made of 418 patients who seek treatment at the emergency room of Federal University of Uberlândia (HCUFU/MG), from October 2003 through March 2004. The procedures consisted of gathering some socio demographic figures, general figures about the main reasons to search for health service and a tracing questionnaire for alcohol abuse developed by World Health Organization, the AUDIT - The Alcohol Use Disorders Identification Test.

RESULTS: The prevalence of harmful alcohol use among the sample was 36.2% (N = 151). Higher rates of alcohol abuse were found among run over victims (60%), (N = 9), victims of motor accidents (40%), (N = 40), victims of general accidents (44%), (N = 51), and were related to being male, single, and aged 18 to 44. The analysis of logistic regression indicated that, though harmful alcohol use is associated with all trauma groups investigated, this relation was particularly significant for run over victims (OR = 1,05 IC 95%: 1,01-1,09) and victims of general accidents (OR = 1,03 IC 95%: 1,00-1,05).

DISCUSSION: Alcohol consumption is high among patients seen at emergency rooms due motor vehicle and other kinds of accidents, particularly for run over victims. In this sense it is of paramount importance to implement preventive measures to decrease individual and social costs that alcohol consumption imposes to its users.

Key-words: Alcoholic drinks consumption, casualty departments, accidents, AUDIT.

Introdução

Apenas recentemente, o Brasil começou a ter alguma tradição de estudos sobre o consumo de álcool. Grave problema de saúde pública, o uso dessa substância psicotrópica tem sido medido em nosso país por intermédio de vários indicadores1-3. No entanto, existem poucos estudos nacionais que avaliam a correlação desse consumo com acidentes fatais e não fatais, ainda que existam indícios da importância dessa associação.

Exemplo disso é o índice de mortes decorrentes de trauma, que no Brasil é de aproximadamente 130.000/ano, sendo o álcool um dos maiores fatores de risco4. De maneira semelhante, a freqüência de situações de feridos e mortos decorrentes de acidentes de trânsito e eventos violentos no Brasil sugere outro relevante problema5. Os dados do Subsistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM) nos permitem verificar o impacto desses acidentes especificamente em jovens: 72,1% das mortes de jovens brasileiros no ano de 2004 foram atribuídas às causas externas6.

Estudo recentemente concluído em Diadema, São Paulo, com a participação de mil veículos no período de um ano, constatou que entre 11% e 18% dos motoristas apresentavam concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei. Durante o carnaval, esse índice oscilou entre 21% e 27% da amostra7. Em outra pesquisa, dados do Ministério da Saúde apontam que jovens entre 15 e 24 anos foram considerados as principais vítimas e autores de crimes violentos, e as bebidas alcoólicas, consideradas facilitadoras do cometimento de homicídios8.

No que se refere especificamente a PS, um dos estudos pioneiros nessa área foi realizado em 1989, mediante observação de 593 pacientes vítimas de acidentes de transporte na emergência de um Hospital Geral de Porto Alegre (RS). Desse total, 24,5% apresentavam alcoolemia positiva9. Mais recentemente, um estudo retrospectivo transversal analisou as fichas de atendimento com relato de consumo de álcool, no ano 2000 (1.901 casos), num PS Municipal de Taubaté. Nesses pacientes, confirmou-se a relação do uso de álcool e conseqüências negativas. Os efeitos diretos do álcool foram encontrados em 80,38% dos pacientes, por exemplo, traumas em 28,56%, distúrbios gastrintestinais e/ou metabólicos em 27%, infecções em 6,42% e distúrbios carenciais em 5,94%10. Em outro estudo, desenvolvido com uma amostra de 464 indivíduos em um centro urbano de atenção ao trauma da cidade de São Paulo, encontrou-se prevalência de alcoolemia positiva de 28,9%11 . Os autores concluem que os dados reforçam a importância da associação entre consumo de álcool e ocorrência de trauma.

Diferentemente do Brasil, essa relação entre consumo de álcool e ferimentos é bastante estudada na literatura internacional. Nos últimos 20 anos, diversos estudos avaliaram o crescente número de atendimentos nos serviços de emergência associado direta ou indiretamente ao uso de álcool12-15.

Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde (OMS) por meio do projeto Emergency Room Collaborative Alcohol Analysis Project (ERCAAP), realizou 28 estudos em 16 países (N = 8.423), inclusive o Brasil, sobre a prevalência de traumas físicos relacionados ao uso de álcool em pacientes atendidos no PS. Apesar das diferenças sociodemográficas entre os países, 24% dos pacientes com traumatismos apresentaram alcoolemia positiva. Dessa maneira, esse estudo confirmou a associação entre trauma e consumo de álcool e ressaltou a importância de programas voltados para os bebedores sociais, para a implantação de rotinas de rastreamento do uso de álcool nos PS e para a adoção de políticas legislativas de controle16.

Em vista desses indicadores preocupantes e dos poucos dados que o Brasil ainda tem nessa área, o presente estudo pretende investigar o padrão do uso de álcool em pacientes atendidos em um serviço de PS geral universitário e analisar a associação desse consumo com os motivos da procura ao serviço.

Método

Trata-se de um estudo epidemiológico, do tipo coorte transversal. O local da pesquisa foi o PS do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (PS/HCUFU/MG). A cidade de Uberlândia possui 600 mil habitantes e os serviços públicos de PS são realizados, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em sete Unidades Municipais de Atendimento Integral (UAIs) e nos hospitais gerais, sendo o HCUFU o maior deles, prestando atendimento também de média e alta complexidade, na cidade e na região.

A amostra total de pacientes foi selecionada, aleatoriamente, a partir de períodos de 12 horas, distribuídos no decorrer de seis meses, nos fins de semana (sexta à noite, sábado e domingo). Foram incluídos para o estudo pacientes com idade mínima de 13 anos, de ambos os sexos, com diferentes tipos de queixas, abrangendo traumas e clínica geral.

A pesquisa foi realizada no período de setembro de 2003 a março de 2004. Do total de 441 pacientes, 23 (5,1%) foram excluídos da amostra devido à recusa em responder ao questionário, à deficiência cognitiva evidente ou a problemas físicos ou psíquicos graves (por exemplo: delírios, alucinações) que os impossibilitaram de participar.

Os procedimentos consistiram em coleta de dados sociodemográficos e dados gerais sobre o motivo da procura ao PS. Em seguida, foi aplicada a escala AUDIT (Alcohol Use Disorder Identification Test) para avaliar o uso de álcool em todos os pacientes. Essa escala é um instrumento desenvolvido pela OMS, cuja finalidade é identificar pessoas com consumo de risco, uso nocivo e dependência de álcool. O AUDIT consiste de dez questões que avaliam o consumo desta substância nos últimos 12 meses. O escore varia de 0 a 40, e uma pontuação igual ou superior a oito indica a necessidade de um diagnóstico mais específico. É um teste que tem sido extensivamente testado nos serviços primários de saúde e em PS, na população geral, em estudantes universitários e adolescentes. A aplicação não requer treinamento especializado e foi realizada pelo pesquisador principal17-18.

As entrevistas foram realizadas durante a permanência do paciente no PS. Os participantes foram argüidos após os cuidados médicos de rotina e avaliação sobre o estado de sobriedade, caso houvesse ingerido bebidas alcoólicas antes da ocorrência. Todos os entrevistados foram informados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento de Participação, aprovado pelos Comitês de Ética da UFU/MG e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/SP). Em pacientes menores de idade, foi solicitada aos pais ou responsáveis assinatura do termo.

A análise estatística foi realizada no programa STATA 6.0. Realizou-se a análise descritiva dos dados e, para a verificação de presença de associações estatísticas significativas (p < 0,05), realizou-se a análise simples por intermédio do teste de X² Pearson. Para a análise múltipla, utilizou-se a regressão logística. Num primeiro momento, apenas o escore AUDIT foi incluído no modelo. Em seguida, o modelo foi elaborado adicionando-se ao modelo original as variáveis sexo e idade.

Resultados

A tabela 1 apresenta as variáveis sexo, idade e os escores da escala AUDIT, segundo os motivos da procura ao PS, os quais foram agrupados em quatro categorias: acidentes gerais, acidentes de trânsito, pedestres e clínica geral. Excluímos dessa tabela as variáveis escolaridade e estado civil, pois, nessa amostra, não estavam associadas significativamente com as causas do problema. A idade dos sujeitos da amostra variou entre 13 e 86 anos (média de 38,3 ± 16,0; mediana 36), 78% (N = 325) do sexo masculino, 63% (N = 263) não-casados (solteiros, viúvos e divorciados) e 62% (N = 259) cursaram até o ensino fundamental.

Em relação ao padrão de uso de álcool, verificou-se uma prevalência de 36% dos participantes com escore do AUDIT > 8, ou seja, são pessoas que fazem uso de risco, nocivo ou dependente de álcool. Na análise do comportamento de consumo de álcool dos pacientes, verificou-se que 61% relataram uso de algum tipo de bebida alcoólica, sendo a cerveja a preferida em 37% dos casos, e 47% consumiram bebidas alcoólicas numa freqüência de duas ou mais vezes por semana.

A tabela 1 também apresenta os dados da diferença entre as médias das variáveis sexo, idade e escore de AUDIT entre os grupos. O teste de qui-quadrado em uma primeira análise geral mostrou-se significante (F = 6,03; p < 0,001), indicando que as médias dos quatro grupos diferem entre si em relação aos acidentes gerais, acidentes de trânsito, atropelamentos e clínica geral. Dessa maneira, procedeu-se o teste de qui-quadrado partido para verificar entre quais grupos encontravam-se as principais diferenças.

A tabela 1 apresenta ainda os dados sobre a percentagem de pacientes com escore AUDIT > 8 para os quatro motivos da procura de ajuda no PS. Como se vê, 25% (N = 51) da amostra de clínica geral teve escore > 8, ou seja, não fazia uso de risco de álcool, enquanto os valores do escore AUDIT para acidentes gerais, de trânsito e atropelamentos foram, respectivamente, de 44% (N = 51), 46% (N = 40) e 60% (N = 0,9). Tendência semelhante constatou-se no que diz respeito ao sexo, como visto na tabela 1. Constatadas essas diferenças entre o grupo de problemas clínicos e os três grupos de traumas, optou-se por excluir o primeiro grupo das análises seguintes. É importante salientar que o grupo com problemas clínicos apresentou maior número de mulheres, 32% (N = 66 ), do que os outros três grupos de problemas.

Na análise multivariada por regressão logística (OR), o escore AUDIT é significante, ou seja, há uma associação entre o uso de álcool e a ocorrência de acidentes, especialmente, no grupo de pedestres (OR 1,04, p = 0,023) e acidentes gerais (quedas, brigas, homicídios, suicídios e outros) (OR 1,03, p = 0,017), com mostra a tabela 2. E quando controlado pelas variáveis sexo e idade, numa magnitude muito próxima, o escore AUDIT continuou-se mantendo significante isoladamente, ou seja, é importante por si próprio (pedestres p = 0,055; acidentes gerais p = 0,077). Dessa maneira, quanto maior o escore AUDIT, maior a probabilidade estimada de ocorrer um acidente geral ou atropelamento (Tabela 3).

Ao contrário, nos acidentes de trânsito, verificou-se que o escore AUDIT não se mostrou significante isoladamente (Tabela 2), tampouco quando controlado pelas variáveis sexo e idade (Tabela 3). Nesse estudo, o que explicou a ocorrência do acidente de trânsito é ser do sexo masculino (OR 0,34, p > 0,001) e jovem (OR 0, 95, p > 0,001).

Discussão

O presente estudo teve como objetivo investigar o padrão do uso de álcool em pacientes atendidos nos serviços de PS e analisar a associação desse consumo com os motivos da procura ao serviço. Os sujeitos entrevistados, que procuraram o serviço com diferentes queixas clínicas, foram agrupados em quatro categorias: acidentes gerais, acidentes de trânsito, atropelamentos (pedestres) e clínica geral. Não surpreendentemente, o uso mais pesado de bebidas alcoólicas ocorreu com mais freqüência entre homens e jovens, ou seja, em 36,2% (N= 151) do total dos pacientes atendidos.

Entre esses usuários de risco, nossos dados corroboram os poucos estudos brasileiros disponíveis. Por exemplo, estudo realizado num serviço de emergência de um hospital-escola de Campinas (SP) avaliou a prevalência de alcoolemia positiva em vítimas de causas externas. Entre 100 pacientes selecionados aleatoriamente, 36% apresentaram alcoolemia positiva (concentração de álcool no sangue), que variou de 19% em vítimas de quedas a 42,9% em vítimas de agressões. Dos exames com alcoolemia positivo, 75% apresentaram níveis de, pelo menos, 0,5 g/l20. Noutro estudo com o mesmo tipo de população, apresentou-se também prevalência de alcoolemia positiva de 36%21. Esses resultados são compatíveis com os encontrados por Cherpitel em sua revisão de estudos semelhantes realizados em serviços de emergência, em que as prevalências encontradas variaram de 6% a 34%, com 1% a 24% dos casos apresentando níveis de alcoolemia > 1,0 g/l. Essa variação é esperada, visto que há diferenças entre os serviços, públicos ou não, e sua localidade, bem como entre as características sociodemográficas, culturais e políticas das populações admitidas22.

Quanto ao perfil dos pacientes que apresentaram maiores prevalências de consumo de risco de álcool, também é semelhante aos estudos nacionais e internacionais, ou seja, é encontrado em períodos noturnos, fins de semana, do sexo masculino, solteiros, na faixa etária entre 18 e 46 anos2,3,10-16. Nesse sentido, o PS apresenta-se como um importante espaço de identificação de usuários abusivos de álcool. Vale destacar ainda que alguns estudos apontam o PS como uma janela de oportunidades, seja para identificar os usuários abusivos e dependentes de álcool, seja para realizar intervenções23. Como exemplos, citam-se estudos norte-americanos recentes que avaliaram a eficácia das intervenções breves de base motivacional em indivíduos alcoolizados no PS, com resultados otimistas. Em um estudo com jovens entre 18 e 19 anos atendidos no PS por problemas relacionados ao consumo de álcool, o grupo que recebeu a intervenção motivacional apresentou uma incidência significativamente mais baixa de beber e dirigir, de violações do tráfego e de ferimentos após seis meses de seguimento24.

O questionário AUDIT é um instrumento eficaz no rastreamento desses pacientes, pois é simples, rápido, não requer treinamento especializado e pode ser usado em diferentes modalidades de intervenção nos serviços de atenção à saúde17-19. Diante desse quadro, as triagens configuram-se em um método importante para a detecção de pacientes que apresentam uso nocivo de álcool, podendo ser utilizadas como precursoras de intervenções terapêuticas por profissionais na saúde.

Em relação aos tipos de ocorrência, os traumas físicos apresentaram uma associação significativa com o consumo abusivo de álcool. Essa associação foi especialmente importante em nossa amostra no que diz respeito aos pedestres (p = 0,023). Como os atropelamentos são via de regra analisados junto do grupo de acidentes de trânsito, é freqüente desconsiderar sua contribuição para a questão dos problemas relacionados às bebidas alcoólicas. Entretanto, a associação entre consumo de álcool e acidentes seguidos de trauma com pedestres é relevante. Por exemplo, num estudo em 13 centros de tratamento de trauma em Los Angeles, nos Estados Unidos, durante o ano de 2003, observou-se que em 1.042 pacientes avaliados, 34% haviam consumido álcool antes da ocorrência, sendo os pedestres e ciclistas o grupo de pacientes com mais complicações físicas e óbitos que os demais25. Dessa maneira, há de salientar a necessidade de implantação de programas educativos, bem como de políticas de saúde direcionadas para essa população26-28.

Os resultados também sugerem que o uso excessivo de bebidas alcoólicas está associado a situações de agressões auto e heteroinfligidas, intencionais ou não, ou seja, os acidentes gerais (agressões, quedas, tentativas de homicídio e suicídio). Segundo o informe técnico da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (2006), nas últimas décadas, o Brasil experimentou mudanças no perfil epidemiológico dos agravos, tanto em relação às doenças infecciosas (com o surgimento de novos agentes patogênicos), como às não infecciosas, por exemplo, os acidentes e violências. A comparação desses dados com os de outros países mostra que as taxas brasileiras são muito altas - terceiro lugar para os homicídios e quinto lugar para os acidentes de trânsito - e que o consumo de álcool tem uma participação significativa nessas ocorrências29. Nesse sentido, esse estudo reforça as evidências de que o uso de bebidas alcoólicas figura-se como um dos problemas de saúde no Brasil1-11,30.

Por fim, é importante salientar que o estudo apresenta limitações. Primeiro, as entrevistas foram realizadas em um único hospital da cidade de Uberlândia (MG); por essa razão, a generalização dos resultados deve ser feita com cautela. A segunda diz respeito a possíveis vieses de informação: mesmo garantindo o sigilo, alguns pacientes podem não ter revelado o uso de álcool, assim, as estimativas de uso obtidas podem ser inferiores aos valores reais. Em terceiro lugar, outros tipos de transtornos mentais e comportamentais não foram avaliados, o que pode alterar os resultados.

Concluímos que é amplo o espectro de intervenções possíveis nessa área, especialmente no PS e em casos de atropelamentos (pedestres) e acidentes gerais (agressões, quedas, afogamentos, entre outros). No Brasil, ainda são tímidos os estudos com intervenção breve, principalmente, em PS. Futuras pesquisas devem ser realizadas, pois além de encontrar altas prevalências de uso de álcool e ocorrência de alcoolismo, observaram-se dificuldades no estabelecimento de rotinas de identificação e intervenção em pacientes sob efeito de álcool no PS. Nesse sentido, ações em saúde devem ser planejadas visando reduzir danos e consumo de álcool nessa população.

Recebido: 04/03/2008

Aceito: 28/04/2008

  • 1. Galduróz JCF, Noto AR, Nappo SA, Carlini EA. Uso de drogas psicotrópicas no Brasil: pesquisa domiciliar envolvendo as 107 maiores cidades do país. Rev Latinoam Enfermagem. 2005;13:888-95.
  • 2. Galduróz JC, Noto AR, Nappo SA, Carlini EA. Comparações dos resultados de dois levantamentos domiciliares sobre o uso de drogas psicotrópicas no Estado de São Paulo nos anos de 1999 e 2001. J Bras Psiquiatr. 2003;52(1):43-51.
  • 3. Nery Filho A, Medina MG, Melcop AG, Oliveira EM. Impacto do uso de álcool e outras drogas em vítimas de acidentes de trânsito. Brasília (DF): Associação Brasileira dos Departamentos Estaduais de Trânsito (ABDETRAN). 1997.
  • 4. Gallotti R, Mahfuz D. O paciente alcoolista na emergência. São Paulo: Editora Atheneu, 2003.
  • 5. Pinsky I, Laranjeira R. O fenômeno do dirigir alcoolizado no Brasil e no mundo: revisão de literatura. Rev ABP-APA. 1998;20(4):160-5.
  • 6. Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2006 - Os Jovens do Brasil. Brasília: Editor(es): Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura - OEI. Ministério da Saúde, 2006.
  • 7. Dualibi SM, Pinsky I, Laranjeira R. Prevalência do beber e dirigir em Diadema, estado de São Paulo. Rev Saúde Pública. 2007;41(6):1058-61.
  • 8. Lima RS, Paula L. Juventude, temor e insegurança no Brasil. In: Pinsky I, Bessa MA (orgs.). Adolescência e drogas. São Paulo: Editora Contexto; 2004. p. 92-105.
  • 9. Chaves AG, Pereira EA, Anicete GC, Ritt AG, Melo ALN, Nunes CA, et al. Alcoolemia em acidentes de trânsito. Rev HPS. 1989;35(1):27-30.
  • 10. Ferri-de-Barros JE, Winter DH, Cesar KG, et al. Alcohol consume related disturbs in 1901 patients attended in Taubate's Municipal Emergency room in 2000: a contribution for sociocentric medical education. Arq Neuropsiquiatr. 2004;62(2a):307-12.
  • 11. Gazal-Carvalho C, Carlini-Cotrim B, Silva AO, Sauaia N. Prevalência de alcoolemia em vítimas de causas externas admitidas em centro urbano de atenção ao trauma. Rev Saúde Pública. 2002;36:47-54.
  • 12. Gmel G, Bissery A, Gammeter R, Givel JC, Calmes JM, Yersin B, et al. Alcohol-attributable injuries in admissions to a Swiss emergency room - an analysis of the link between volume of drinking, drinking patterns, and preattendance drinking. Alcohol Clin Exp Res. 2006;30(3):501-9.
  • 13. O'Farrell A, Allwright S, Downey D, Bedford D, Howell F. The burden of alcohol misuse on emergency in-patient hospital admission among residents from a health region in Ireland. Addiction. 2004; 99: 1279-85.
  • 14. Baune BT, Mikolajczyk RT, Reymann G, Duesterhaus A, Fleck S, Kratz H, et al. A 6-months assessment of the alcohol-related clinical burden at emergency rooms (ERs) in 11 acute care hospitals of an urban area in Germany. BMC Health Services Research. 2005;5:73.
  • 15. Charalambous MP. Alcohol and the accident and emergency department: a current review Alcohol and Alcoholism. 2002;37(4):307-12.
  • 16. Cherpitel CJ, Ye Y, Bond J, Rehm J, Poznyak V, Macdonald S, et al. Emergency Room Collaborative Alcohol Analysis Project (ERCAAP) and the WHO Collaborative Study on Alcohol and Injuries. Multi-level analysis of alcohol-related injury among emergency department patients: a cross-national study. Addiction. 2005;100(12):1840-50.
  • 17. Lima C, Freire ACC, Silva APB, Teixeira RM, Farrell M, Prince M. Concurrent and construct validity of the AUDIT in an urban Brazilian sample. Alcohol Alcohol 2005;40: 584-9.
  • 18. Babor TF, Fuente JR, Saunders J, Grant M. AUDIT. The alcohol use disorders identification test: guidelines for use in primary health care. WHO (World Health Organization)/PAHO. 1992;4:1-29.
  • 19. Babor TF, Higgle-Biddle JC. Intervenções breves para uso de risco e nocivo de álcool: manual para uso em atenção primária. Tradução CM Corradi, Ribeirão Preto, PAI-PAD. 2003.
  • 20. Ministério da Saúde. DATASUS: Dados de mortalidade de 1998. Disponível em http://www.datasus.gov.br [2001 fev 1]
  • 21. Mantovani M, Baccarin V, Raskin E, Zambrones FAD, Mello SM, Fernandes MD. Etanolemia no traumatizado. Medical Master: Anais Atual Méd. 1993;1:203-6.
  • 22. Cherpitel CJ. Alcohol and injuries: a review of international emergency room studies. Addiction. 1993;88:923-37.
  • 23. D'Onofrio G, Degutis L. Preventative care in the emergency department: screening and brief intervention for alcohol problems in the emergency department: a systematic review. Academic Emergency Medicine. 2002;9:627-38.
  • 24. Monti PM, Colby SM, Barnett MP, Spirito A, Rohsenow DJ, Myers M, et al. Brief intervention for harm reduction with alcohol-positive older adolescents in a hospital emergency department. J Consult ClinPsychol. 1999;67:989-94.
  • 25. Jernigan DH. Thirsting for markets: the global impact of corporatealcohol. San Rafael: The Marin Institute for the Prevention of Alcoholand Other Drug Problems. 1997.
  • 26. Plurad D, Demetriades D, Gruzinski G, Preston C, Chan L, Gaspard D, et al. Pedestrian injuries: the association of alcohol consumption with the type and severity of injuries and outcomes. J Am Coll Surg. 2006;202(6):919-27.
  • 27. Toro K, Hubay M, Sotonyi P, Keller E. Fatal traffic injuries among pedestrians, bicyclists and motor vehicle occupants. Forensic Sci Int. 2005;16:151(2-3):151-6.
  • 28. Ostrom M, Eriksson A. Pedestrian fatalities and alcohol. Accid Anal Prev. 2001;33(2):173-80.
  • 29. O impacto dos acidentes e violências nos gastos da saúde. Rev Saúde Pública. São Paulo. 2006;(40)3. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php
  • 30. Galduróz JCF, Caetano R. Epidemiologia do uso de álcool no Brasil. Rev Bras Psiquiatria. 2004;26(l.1):3-6.
  • Endereço para correspondência:
    Maria Luiza Segatto.
    Av. Engenheiro Diniz, 523
    38400-462 Uberlândia, MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      28 Abr 2008
    • Recebido
      04 Mar 2008
    Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Rua Ovídio Pires de Campos, 785 , 05403-010 São Paulo SP Brasil, Tel./Fax: +55 11 2661-8011 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: archives@usp.br