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Prêmio Nobel: dinamite, neurociências e outras ironias

Nobel Prize: dynamite, neurosciences and other ironies

PSIQUIATRIA, HISTÓRIA E ARTE

Prêmio Nobel: dinamite, neurociências e outras ironias

Nobel Prize: dynamite, neurosciences and other ironies

Paulo Clemente Sallet

Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Paulo Clemente Sallet Instituto de Psiquiatria – HCFMUSP Rua Ovídio Pires de Campos, 785 05403-903 – São Paulo, SP E-mail: pcsallet@usp.br

Criada em 1895 pelo cientista sueco Alfred Nobel, a Fundação Nobel passou a premiar personalidades internacionais com destaque no âmbito da Física, da Química, da Medicina, da Literatura e da promoção da paz a partir de 1901. Nobel, embora celebrado como cientista, empreendedor e pacifista, como todos sabem, tem no seu currículo o mérito de ter inventado a dinamite. Nada tão escandaloso quanto Mikhail Kalashnikov ser cogitado para o Nobel da Paz, mas ainda assim uma ironia. E as ironias não param aqui.

Já na primeira edição do Prêmio Nobel, em 1901, Golgi fora cogitado para receber o prêmio em Fisiologia ou Medicina pelo comitê de professores do Instituto Karolinska (Estocolmo). Camillo Golgi (1843-1926), nascido em Corteno (montanhas próximas à Brescia, norte da Itália), estudou Medicina na Universidade de Pavia, cujo Instituto de Psiquiatria na época era dirigido por Cesare Lombroso (1835-1909). Golgi também trabalhou no laboratório de patologia de Giulio Bizzozero (1846-1901), professor de Histologia e Patologia, ao qual, entre outros aportes, atribui-se o descobrimento das propriedades hematopoiéticas da medula óssea. Entretanto, foi somente em 1906 que Golgi recebeu o Nobel, pela primeira vez na história da premiação compartilhado com outro cientista, o espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) (Figura 1). Cajal nasceu em Petilla de Aragon, teria preferido seguir a carreira artística, mas por influência de seu pai (professor de Anatomia) formou-se em Medicina na Universidade de Saragoza. Em 1887, foi nomeado professor de Histologia e Anatomia em Barcelona e, em seguida, ocupou a mesma cadeira em Madri (1892).


Os conhecimentos atuais sobre estrutura e função neuronais, em grande parte, baseiam-se nos princípios da localização funcional e na chamada doutrina do neurônio, ambos estabelecidos a partir do século XIX. Por localização funcional entende-se que diferentes partes do cérebro se ocupam de funções diversas. As evidências da localização funcional foram obtidas por meio de diversos estudos clínicos e experimentais realizados ao longo do século XIX. Por outro lado, tal como proposta pelo anatomista alemão von Waldeyer-Hartz (1836-1921), a doutrina do neurônio implica que cérebro e medula vertebral sejam constituídos por unidades funcionais (o termo neurônio foi cunhado por ele) e por suas respectivas estruturas de suporte. Os neurônios podem se tocar, mas não se fundem. A bem da verdade, essa proposição só foi confirmada em caráter definitivo mais recentemente com a microscopia eletrônica. Entretanto, a doutrina do neurônio contrasta com as teorias reticulares da organização nervosa então vigentes. Desde a proposição da teoria celular, a partir de 1830 (Schleiden, Schwann, Wirchow, entre outros), Joseph von Gerlach e Otto Deiters sugeriam que o sistema nervoso obedecesse a uma dinâmica especial na medida em que as células nervosas não eram unidades independentes, mas sim constituíam uma espécie de sincício ou rede contínua (Glickstein, 2006).

A doutrina do neurônio baseava-se em duas contribuições fundamentais: no método de coloração de Golgi e nos estudos histológicos de Cajal. A técnica de coloração de Golgi talvez represente o avanço tecnológico mais importante no estudo do sistema nervoso. Na sua denominada reazione nera, Golgi enrijecia blocos de tecido nervoso com potássio bicromado e os imergia em solução de nitrato de prata. Quando as lâminas eram vistas sob microscopia, células nervosas inteiras podiam ser observadas com suas arborizações dendríticas e axônios (Figura 2).


Embora contasse com o método que provaria o contrário do que ele pensava, Golgi estava convencido de que o processo essencial de funcionamento no sistema nervoso se desse por meio de uma rede intricada de axônios fundidos entre si, o que constituía a estrutura integrativa fundamental do cérebro, atribuindo aos dendritos uma função secundária puramente nutritiva.

Em 1887, o jovem anatomista Cajal, em visita a seu colega madrilenho Don Luis Simarro (que estava experimentando novos métodos de coloração histológica), ficou impressionado com a aparência das lâminas coradas pelo método de Golgi. Cajal começou a utilizar o método de Golgi imediatamente, publicando estudos sobre o cerebelo e a retina. Nesses estudos, Cajal confirmou alguns dos achados já descritos por Golgi, mas chegou a uma conclusão fundamentalmente oposta com relação à maneira pela qual as células nervosas estão interconectadas: para Cajal, os nervos eram unidades individuais, tocavam-se sem se fundir. Embora na época poucos cientistas tivessem levado a sério essa proposição, o psiquiatra italiano Eugenio Tanzi (1856-1934) acolheu a hipótese da natureza individual das células nervosas e formulou uma concepção da função dos neurônios no processo de aprendizado. Essa formulação foi mais tarde retomada por Donald Hebb (1904-1985) e Francis Crick (1916-2004, Nobel em 1962), respectivamente, cerca de cinco e dez décadas mais tarde.

Outro aspecto de discordância entre as concepções de Golgi e Cajal remete ao papel das espinhas dendríticas. Quando coradas pelo método de Golgi, as células cerebrais aparecem cobertas por estruturas semelhantes a espinhos. Golgi e a maioria de seus contemporâneos desprezaram tais achados, sugerindo que resultassem de artefato da coloração, enquanto Cajal tratou de demonstrar a existência concreta das espinhas dendríticas. Para tal, argumentou que, fossem as espinhas resultantes de artefato, por que elas não estariam presentes também noutras estruturas que não os dendritos, tais como axônios e corpos neuronais? Ademais, modificações do método de Golgi utilizando mercúrio exibiam as mesmas imagens em espinho e na mesma topografia, ou seja, na superfície dos dendritos. Cajal finalmente conseguiu demonstrar as espinhas dendríticas por meio de coloração com a técnica do azul de metileno, de modo que tanto a técnica de coloração pelo método de Golgi quanto as espinhas dendríticas foram gradualmente sendo aceitas pela comunidade científica da época (Figura 3).


O achado de Cajal sobre as espinhas dendríticas mostrou-se de grande relevância no progresso da neurociência. Estima-se que 90% das conexões cerebrais excitatórias ocorram nas espinhas dendríticas, que, por sua vez, têm sido implicadas em uma ampla gama de funções, como aumento da superfície dos dendritos, concentração de segundos-mensageiros como o cálcio e sede de fenômenos como depressão e potenciação em longo prazo associados com o aprendizado (Nimchinsky et al., 2002).

Portanto, embora Golgi tenha rejeitado a teoria da polarização dinâmica do neurônio em prol de uma teoria da rede neuronial difusa, a polarização dinâmica foi aprimorada por Cajal graças ao método de coloração de Golgi e permanece como princípio fundamental à compreensão da estrutura organizacional do sistema nervoso. O princípio da separação entre os neurônios levou Sir Charles Sherrington (1857-1952, Prêmio Nobel em 1932) a cunhar o termo sinapse e descrever a junção entre duas células nervosas, tanto quanto subsequentemente levou outros cientistas à próxima pergunta: como um neurônio excita ou inibe uma célula adjacente?

De modo irônico, Cajal e Golgi dividiram o mesmo Prêmio Nobel em 1906, usando a mesma técnica e chegando a concepções teóricas fundamentalmente opostas sobre a organização do sistema nervoso. É curioso que, durante o discurso de aceitação do prêmio, Golgi tenha decidido defender obstinadamente a antiga hipótese reticular difusa do sistema nervoso, mesmo à luz de inúmeras evidências em contrário. Insistiu que os dendritos não tinham nenhum papel na comunicação neuronial em si, mas que estavam meramente associados à nutrição. Por sua vez, no seu discurso de aceitação, Cajal contradisse todas as premissas anteriormente assumidas pelo colega. Em 1932, Cajal escreveria sobre "a cruel ironia de gêmeos siameses unidos pelos ombros [método de coloração de Golgi[ terem chegado à condição de adversários científicos em aspectos tão contrastantes". Mais do que ironia, é possível que essa história traga consigo um sábio ensinamento: para "escutar a natureza", assumindo que esta tenha um conhecimento a revelar, não basta a objetividade dos sentidos; é preciso ter presente a intenção ou as ideias da consciência que a investiga.

Recebido: 2/4/2008

Aceito: 22/4/2008

  • Glickstein M. Golgi and Cajal: the neuron doctrine and the 100th anniversary of the 1906 Nobel Prize. Current Biology.. 2006;16(5):147-51.
  • Golgi C. The Nobel Prize in Physiology or Medicine, 1906. Nobel Lecture, December 11, 1906. The neuron doctrine Theory and facts (http://nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/1906/golgi-lecture.html).
  • Nimchinsky E, Sabatini B, Svoboda K. Structure and function of dendritic spines. Annu Rev Physiol. 2002;64:313-53.
  • Nobel A. The man behind the Nobel Prize (http://nobelprize.org/alfred_nobel/).
  • Ramón y Cajal. Charlas de café. Pensamientos, anécdotas y confidencias. 4. edicion corregida y aumentada. Tipogtafia Artística, Madrid, 1932.
  • Santiago Ramón y Cajal. The Nobel Prize in Physiology or Medicine, 1906. Nobel Lecture, December 12, 1906. The structure and connexions of neurons (http://nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/1906/cajal-lecture.html).
  • Endereço para correspondência:
    Paulo Clemente Sallet
    Instituto de Psiquiatria – HCFMUSP
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    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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