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Avaliação diagnóstica de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social: transtorno de conduta, transtornos de comunicação ou "transtornos do ambiente"?

Diagnostic evaluation of children and adolescents in situation of social risk and vulnerability: conduct disorders, communication disorders or "context disorders"?

CARTA AO EDITOR

Avaliação diagnóstica de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social: transtorno de conduta, transtornos de comunicação ou "transtornos do ambiente"?

Diagnostic evaluation of children and adolescents in situation of social risk and vulnerability: conduct disorders, communication disorders or "context disorders"?

Sandra ScivolettoI; Luciene StivaninII; Simone Tozzini RibeiroII; Christian César Cândido de OliveiraII

IProfessora do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) na área de Psiquiatria da Infância e Adolescência, coordenadora do Programa Equilíbrio

IIFonoaudiólogos do Programa Equilíbrio - Instituto e Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Profa. Dra. Sandra Scivoletto. Programa Equilíbrio, Departamento e Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP. Rua Ovídio Campos Pires Campos, 785, 3º andar - 05403-010 - São Paulo, SP, Brasil. Telefax: (+55-11) 3069-6962. E-mail: sscivoletto@uol.com.br.

Ao se iniciar as avaliações diagnósticas e os atendimentos multidisciplinares de crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social (dos quais, usuários de drogas e vítimas de abuso físico e sexual), atendidos pelo Programa Equilíbrio, os profissionais envolvidos, dentre eles psiquiatras, pediatra, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, psicopedagogos, fisioterapeuta, perceberam que uma série de adaptações deveria ser feita para realizar a abordagem e a anamnese dessa população.

As alterações de comportamento, com agressividade física e verbal, inúmeras vezes, pareciam substituir o comportamento e a comunicação socialmente estruturados. Iniciar intervenções psicoterápicas ou mesmo orientar crianças a não gritarem e mostrar a elas que se consegue alcançar o respeito das pessoas quando se utiliza uma comunicação e um comportamento menos agressivos, é praticamente impossível se não for feita uma sensibilização antes a essas crianças. No entanto, minimizar a função das ameaças e do gritar é um ledo engano. Essa forma de expressão nas ruas é fundamental e, inúmeras vezes, está relacionada à sobrevivência e a uma importante possibilidade de expressão do sentimento de ser ignorado pela sociedade - é uma forma de ser visto e ouvido em suas necessidades e desejos. Também em abrigos, os episódios de agitação psicomotora podem ser interpretados como manifestações claras da necessidade de atenção individualizada. Assim, tem-se de considerar que essa forma de comportamento e expressão, física e verbal, faz parte do processo de interação dessas crianças com o mundo à sua volta e tem sua função.

Imaginar que deixarão de serem agressivas ou que terão um comportamento "mais educado e adequado" é impossível, pois esse é o comportamento esperado e adaptado ao ambiente agressivo em que se encontram. Querer que essas crianças abandonem a linguagem transmitida por suas famílias e entorno social seria como apagar parte de suas histórias. É inviável o trabalho de prevenção, a promoção de saúde ou a reabilitação de algum transtorno físico, psíquico, emocional ou fonoaudiológico, quando o meio onde essas crianças vivem não valoriza e não respeita os indivíduos que não gritam ou não são agressivos. Assim, quando deixam as ruas e são acolhidas em abrigos, o trabalho terapêutico multidisciplinar tem como objetivo inicial ajudá-las a se adaptarem a esse ambiente mais favorável para seu desenvolvimento, um contexto menos agressivo e ameaçador, no qual podem parecer desajustadas inicialmente, levando a diagnósticos precipitados, como transtornos de conduta, transtornos de impulso, transtornos de desatenção e hiperatividade, que não se mantêm ao longo do tempo.

Uma criança que sai de casa aos 6 anos de idade e vive até os 11 anos nas ruas de uma grande cidade está adaptada para viver em um ambiente assim, mas poderá ficar bastante inadequada em uma sala de aula. Na rua, ela desenvolveu recursos necessários para sobreviver neste contexto: reage rapidamente, não fica muito tempo parada em um mesmo local, é impulsiva e percebe alterações mínimas no ambiente ao seu redor, especialmente se essas alterações representam ameaças. Se colocada em uma sala de aula, provavelmente terá dificuldade para permanecer sentada e atenta ao professor, se distrairá com estímulos externos irrelevantes para seus colegas, mas que para ela são desconhecidos e de difícil compreensão. Se por ventura se sentir insegura, se tornará agressiva física e verbalmente. Essa criança tem alguma patologia? Talvez não. Provavelmente se trata de uma criança que era saudável, que saiu de sua casa em busca de um ambiente menos violento e estressante, mas que foi obrigada a se adaptar a um ambiente totalmente desfavorável para seu desenvolvimento. Justamente por ter muitas habilidades, adaptou-se bem a um ambiente violento, estressante, que a impede de dormir - nas ruas as crianças cochilam, não dormem! Mas em um ambiente tranquilo, muito provavelmente apresentaria sérios problemas de comportamento e interação social, sugerindo a presença de diagnósticos psiquiátricos. Mas será que uma criança que viveu até os 11 anos em uma família estruturada, que ia regularmente à escola, também não teria sérios problemas se fosse para as ruas? Poderia aparentar possível depressão ou até mesmo um transtorno de desenvolvimento, com isolamento e dificuldade de comunicação. Portanto, na avaliação diagnóstica inicial em psiquiatria infantil, mas especialmente em relação a crianças que vivem em ambientes desfavoráveis, é fundamental avaliar se o problema está na criança ou se ela está bem adaptada a um ambiente problemático e inadequado para seu desenvolvimento normal. É preciso verificar se o "transtorno" está na criança, nas pessoas à sua volta ou se estava adaptada a um ambiente "transtornado". Para que a avaliação diagnóstica seja realizada de maneira mais adequada, é preciso, inicialmente, auxiliar a criança a se adaptar a este novo ambiente, mais calmo, protegido e adequado às suas necessidades. O trabalho inicial da equipe multidisciplinar deve estar orientado a facilitar o processo de adaptação, para, então, proceder a avaliação diagnóstica posteriormente.

Por exemplo, o trabalho fonoaudiológico, que visa a estimulação cognitiva e linguística, possibilitando expressão oral e escrita mais organizada e compartilhada por um maior número de pessoas, passa a ser mais uma possibilidade de expressão dos sentimentos, vontades e insatisfações, proporcionando ganhos sociais e emocionais. Esta abordagem, somada às abordagens psicoterápicas, auxilia no desenvolvimento de ferramentas emocionais e no treinamento de habilidades de autocontrole, que são fundamentais para o controle da agressividade e da impulsividade, criando condições para interações e relacionamentos sociais mais adequados ao novo ambiente em que passaram a viver. Após esse período de adaptação, e também observando a forma como esse processo ocorre, tem-se as condições adequadas para observar a existência de eventuais sintomas e o impacto desses na vida dessas crianças - aspecto fundamental na avaliação em psiquiatria infantil.

Para reintegrá-los à sociedade, é essencial que a equipe que trabalha com tais crianças consiga estimular o desenvolvimento de recursos emocionais e fortalecer a autoestima, assim como os sonhos que devem ser buscados. Portanto, avaliar o contexto em que vivem, auxiliá-las na adaptação a novos ambientes mais adequados e estimular novos recursos de comunicação são estratégias iniciais fundamentais nas intervenções direcionadas a essa população de crianças e adolescentes que vivem em ambientes de extrema violência urbana.

Recebido: 20/3/2009

Aceito: 24/3/2009

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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