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A proteção aos insanos no Segundo Reinado

The protection of the insane in the Second Empire

PSIQUIATRIA, HISTÓRIA E ARTE

A proteção aos insanos no Segundo Reinado

The protection of the insane in the Second Empire

Antônio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988)

Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, teve participação decisiva na implantação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, que hoje leva seu nome. Junto com outros colegas, em 1972 fundou a Revista de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Prof. Dr. Valentim Gentil Prof. Titular de Psiquiatria da FMUSP Ens. Rua Ovideo Pires de Campos, 785, 1º andar 05403-910 - Fone: (11) 3069-7890. E-mail: vgentil@usp.br

Este texto, inédito, corresponde ao primeiro capítulo de um dos últimos trabalhos do Professor Antonio Carlos Pacheco e Silva, denominado "Memória Histórica sobre a Psiquiatria Brasileira, particularmente em São Paulo" agraciado com o Prêmio de História da Medicina da "Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo", em 1976.

Ele nos mostra por que, como e por quem foram criadas e geridas as primeiras instituições públicas para o atendimento aos doentes mentais no Brasil e menciona aspectos biográficos de alguns dos personagens mais importantes. Ficam claros os objetivos e intenções humanitárias dos que fizeram os primeiros estabelecimentos e assumiram a difícil missão de conduzi-los, em uma época em que o conhecimento médico-científico e os recursos técnicos e terapêuticos eram mínimos.

As concepções a respeito das doenças mentais da época parecem coerentes com a criação de estabelecimentos cujas funções médico-sociais eram de abrigo, proteção, cuidado e recuperação. Como nos países mais desenvolvidos do Ocidente, esperou-se deles resposta que não poderiam dar. Uma vez criados, a falta de prioridade, a crescente demanda e a baixa resolutividade terapêutica levaram rapidamente à superlotação e ao desvirtuamento. Isto, entretanto, é muito distante do que aquelas pessoas desejavam e conceberam. É preciso distinguir entre o que se pretendeu com tais instituições e o que elas se tornaram quando as conhecemos, décadas depois.

Ao se cogitar da história da Psiquiatria Brasileira, cumpre recordar, em largos traços, como eram tratados os alienados durante o período colonial e o papel representado por D. Pedro II, na instalação do Hospício, que recebeu o seu nome, evento que assinala o primeiro grande passo em favor dos doentes mentais no Brasil.

Do descobrimento ao período colonial

Na interessante memória sobre os primórdios de Psiquiatria no Brasil, apresentada ao primeiro Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, realizado de 23 a 25 de agosto de 1916, no Rio de Janeiro, pelo saudoso Professor Juliano Moreira, lê-se: "A gente que para aqui emigrou nos primeiros tempos, além de pouco numerosa, viera preocupada, em geral, com seus sonhos de riqueza".

"Não havia tempo para organizar autos de fé, em perseguição de demoníacos. Demais, era suficientemente vasto o território devoluto por onde pudessem estes passear a sua insânia. Talvez, por essas razões, não pegou nas plagas brasileiras o exemplo que os reinóis dos fins do ano de 1540, deviam ter trazido da tremenda fogueira que a 22 de setembro daquele ano assou vivo, na Praça da Ribeira, em Lisboa, durante três dias, diante do clero, nobreza e povo, um pobre doido acusado de useiro e vezeiro em bruxarias".

Por aí se vê que, por ocasião do descobrimento do Brasil, eram correntes na Europa as mesmas práticas bárbaras da Idade Média, predominando ainda, em certos meios, crenças absurdas de ser o alienado um possuído pelo demônio, e não um doente.

Durante o período colonial, não se cuidou, no Brasil, do problema dos alienados, conquanto o seu número alcançasse cifras mais elevadas, que as registradas na Mãe-Patria, segundo se deduz das crônicas da época.

Tão grande número de casos de alienação mental podia ser atribuído a uma série de fatores que costumam incidir sobre os exploradores de novos continentes. Isso ocorreu, também, com os primeiros colonizadores que chegaram ao Brasil. Não passavam por qualquer tipo de seleção prévia, razão porque, entre eles, vieram muitos elementos considerados indesejáveis.

Aventureiros, desajustados em seus países de origem, ávidos de sensações novas, atraídos pelo desconhecido, buscam sempre que lhes oferece oportunidade, emigrar para outros países, na expectativa de encontrar melhor sorte.

O Brasil atraiu, logo após a sua descoberta, um grande número de europeus, que nele viam uma terra cheia de mistérios, onde o ouro de aluvião, fácil de ser encontrado, oferecia aos exploradores possibilidades de fazer, em pouco tempo, fortunas fabulosas.

Outros emigravam em virtude de não se adaptarem no seu país de origem, na esperança de encontrar, em outras paragens, a almejada felicidade. A vida nômade, as lutas ferozes contra a natureza agreste, os índios bravios com que se defrontavam, as doenças tropicais, os perigos e as privações a que se expunham tudo concorria para despertar violentas emoções, que lhes abalava o sistema nervoso, comprometendo a saúde mental.

Mais tarde, começaram a aqui chegar os escravos da África. Transportados em navios negreiros, maltratados, malnutridos, acorrentados, amontoados nos porões, em péssimas condições sanitárias, padeciam horrivelmente durante a longa viagem.

Ao pisarem terra estranha, tratados como animais e não como seres humanos, sem entender a língua que nela se falava, explorados e seviciados pelos seus senhores, não tardavam a contrair doenças próprias do país, e a ter agravadas as de que já eram portadores, trazidas da África.

Esses indivíduos sentiam evidente dificuldade de adaptação ao meio, que lhes era extremamente hostil e adverso. Para torná-los mais submissos, passivos e domesticá-los, não faltavam bebidas alcoólicas postas ao seu alcance, as quais ingeriam em excesso, vivendo embriagados a maior parte do tempo.

É evidente que tantos fatores negativos, agindo em ação concorrente, provocavam em muitos deles distúrbios mentais e desordens no comportamento, sem que recebessem qualquer espécie de tratamento.

Os silvícolas, por sua vez, escravizados e seviciados, não recebiam melhor trato. Sujeitos ao emprego de métodos violentos, para lhes abrandar a agressividade latente e facilitar a catequese, que se fazia pela imposição de uma religião estranha, que não compreendiam nem aceitavam.

Obrigados que eram a devastar as matas, a cultivar a terra e a defendê-la contra os invasores, sob o tacão de bota dos brancos, viviam constantemente revoltados e frustrados, sofrendo os efeitos nocivos de todos esses fatores sobre a mente, muitos deles acusavam graves distúrbios psíquicos.

É bem fácil de se imaginar os malefícios da confluência de tantos fatores prejudiciais à saúde mental, a que vinham se juntar outras doenças - a sífilis, a lepra e o paludismo -, suscetíveis também de comprometer o sistema nervoso.

Por sua vez, os três grupos étnicos em fusão - o branco, o índio e o negro -, cujo caldeamento se processava lentamente, em precárias condições higiênicas, em permanente conflito, resultante de diferenças raciais, biológicas, sociológicas, psicológicas e religiosas.

Apesar de o aumento crescente de doenças mentais, que se registrava nessa população heterogênea, exigir tratamento adequado, não chegou, até nós, qualquer notícia de providências tomadas para amenizar o sofrimento desses infelizes, durante todo o período colonial.

Gustavo Barroso e outros historiadores, que se deram ao trabalho de vasculhar, cuidadosamente, os arquivos existentes no Rio de Janeiro e os guardados na Torre do Tombo, em Lisboa, não fazem referência especial a qualquer providência tomada em favor dos alienados.

Influência da chegada de D. João VI

A vinda de D. João VI ao Brasil trouxe grandes benefícios para a Colônia, até então esquecida e abandonada pela Metrópole, que só dela se lembrava para colher benefícios. Com o rei e sua Corte vieram muitos intelectuais, artistas e médicos, os quais muito concorreram para despertar o primeiro surto de civilização em nossas plagas. Muitos deles aqui se radicaram, prestando inolvidáveis serviços à colônia.

Tal episódio viria a se refletir, também, sobre a esfera médico-hospitalar que, até então, se limitava ao emprego de remédios caseiros e tratamentos empíricos, empregados tanto pelos brancos quanto por índios e negros. Mas, ao que parece, pelo menos não se tem notícia de benefícios introduzidos que alcançasse os infelizes alienados, que continuaram reclusos em masmorras imundas, acorrentados, maltratados e judiados, metidos em aparelhos de contenção, os mais primitivos e bárbaros, colocados em troncos, idênticos aos utilizados para castigar os escravos fujões ou recalcitrantes. Tal conduta se explica pelo fato de predominar ainda, naquela época, ideias de possessão demoníaca e castigando o pobre possuído, o demônio também o seria no pensar deles.

Reinado de D. Pedro I

Conta-se que D. Pedro I não era de todo avesso à assistência médica, tanto assim que visitou, por várias vezes, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, interessando-se pela sorte dos nela internados. Lá se encontravam recolhidos, em pavilhão especial, muitos alienados, em condições precaríssimas, porém, ao que consta, Sua Majestade não tomou qualquer providência em favor deles.

Só em 1830, é que o Dr. José Maria da Cruz Jobim, relator da Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, tomou a iniciativa de protestar, energicamente, contra a situação calamitosa em que se encontravam os insanos recolhidos à Santa Casa local, reclamando para eles um estabelecimento próprio, onde cada um pudesse receber tratamento e assistência adequados.

Não obstante, só muitos anos mais tarde, é que a Câmara Municipal da cidade, ao receber um relatório elaborado por uma comissão especial encarregada de visitar prisões e hospitais, insistiu para que fossem tomadas medidas urgentes em favor deles.

Em 1835, o Dr. Sigaud, em artigo publicado no Diário da Saúde, voltou a ocupar-se do abandono em que se encontravam os alienados, presos ou transitando livremente pelas ruas da cidade, apupados e espezinhados pela molecada e, ao mesmo tempo, pondo em risco a segurança da população.

Logo depois, em 1839, o Dr. Luís Vicente de Simone publicou na Revista Medica Fluminense uma interessante e instrutiva memória, intitulada "Importância e necessidade da criação de um manicômio ou estabelecimento para alienados", que teve grande repercussão no meio médico e social, despertando a consciência pública para o problema.

Na mesma época, o Dr. Antônio Luiz da Silva Peixoto, em sua tese inaugural, descreveu e condenou os métodos bárbaros, então utilizados, na assistência aos insanos, reiterando os apelos, anteriormente feitos pelos seus colegas, porquanto as autoridades haviam feito ouvidos moucos aos pedidos feitos. Nesta bem elaborada memória, o seu autor revela bons conhecimentos do assunto, fazendo interessantes e judiciosas considerações para resolver o problema.

Em 1837, o Dr. Antônio Luiz da Silva Peixoto, em sua tese inaugural, descrevia e profligava os métodos bárbaros e cruéis, ainda utilizados naquela época, no trato dos insanos, reiterando os apelos anteriormente feitos por seus colegas, assinalando não ter sido tomada nenhuma providência pelas autoridades responsáveis pelo bem público.

Nesta bem elaborada memória, o seu autor revelava bons conhecimentos do assunto, para a época em que viveu, fazendo interessantes e acertadas sugestões para minorar os sofrimentos dos insanos.

Papel de José Clemente Pereira

Em 1839, o Dr. José Clemente Pereira, então provedor da Santa Casa do Rio de Janeiro, enviou à respectiva mesa um extenso relatório sobre a situação aflitiva dos alienados, insistindo, como já haviam feito os seus antecessores, na adoção de medidas urgentes em favor deles, quando mais não fosse, por um dever de humanidade.

Como essa nova tentativa não surtisse efeito, José Clemente, a quem muito ficou a dever a assistência aos alienados do Brasil, dirigiu, a 15 de julho de 1841, ao Ministro do Império - Conselheiro Cândido José de Araújo Viana - um ofício no qual se lê: "O zelo de melhorar a sorte dos infelizes que, tendo a desgraça de perderem o juízo, não encontram nesta Capital, hospital próprio, onde possam obter tratamento adequado à sua moléstia, por serem insuficientes as enfermarias, onde são recebidos no Hospital da Santa Casa, fez-me lembrar a necessidade de dar-se princípio a um hospital destinado privativamente para tratamento de alienados; e debaixo destas vistas dei princípio a uma subscrição aplicada ao dito fim, que monta já à quantia de 2:500$ e espero que, hoje mesmo, esteja elevada a mais, segundo informações de pessoas encarregadas de a promoverem, em diversos lugares desta província. Felizmente, os meus votos são hoje auxiliados por outra subscrição, que a comissão da Praça do Comércio desta Corte, acaba de pôr à disposição de S. M. o Imperador, para ser aplicado à fundação de um estabelecimento de caridade, que for mais do seu imperial agrado. E, como nenhum outro possa ser mais importante; e S. M. o Imperador se dignasse de declarar-me que deseja ardentemente proteger esta Instituição, apresso-me em pôr à disposição do mesmo Senhor a sobredita quantia, que existe arrecadada, com a qual, junta à da subscrição promovida pela comissão da Praça do Comércio, se pode dar princípio à obra, na certeza de que a piedade dos fiéis lhe dará andamento com generosas esmolas.

E como seja indispensável lugar salubre e apropriado, com terreno suficiente para as comodidades e larguezas, que estabelecimentos de semelhante natureza exigem, poderá o referido estabelecimento fundar-se na chácara que a Santa Casa de Misericórdia possui na Praia Vermelha, denominada do Vigário-Geral, e onde existe já uma enfermaria de alienados, que têm obtido melhoramentos, e alguns até um total restabelecimento; e há a possibilidade de comprar-se uma casa para enfermaria de homens, que se vende por 6:000$. E porque em tais fundações, a construção do edifício é pouco em comparação da despesa ordinária para sustento dos estabelecimentos, a Santa Casa de Misericórdia não terá dúvida em tomar esta a seu cargo, uma vez que se lhe confie a administração, como será de razão, e até conveniente, pois fornecerá o terreno e a subsistência futura de novo hospital; acresce que goza do merecido conceito de administrar bem os seus estabelecimentos, que todos prosperam por uma maneira espantosa. Digne-se V. Ex. de levar todo o referido à soberana presença do S. M. o Imperador, para que haja por bem de ordenar o que for mais do seu imperial agrado; e fará um ato que eternizará o fausto dia da sagração e coroação do mesmo augusto Senhor, a fundação de um hospital de alienados que poderia bem tomar o nome de Hospício Pedro II. D. G. a V. Ex. Santa Casa de Misericórdia, 15 de julho de 1841, Ilmo. Exmo. Sr. Cândido José de Araújo Vianna, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império. José Clemente Pereira".

D. Pedro II - grande benfeitor dos alienados

A sugestão feita ao Ministro Araújo Vianna foi encaminhada a S. M. o Imperador Pedro II, que se mostrou extremamente sensível à feliz lembrança do Provedor da Santa Casa, tanto assim que, a 18 de julho de 1841, data em que ocorreu a coroação e a sagração de um monarca, filho do fundador do Império e neto do primeiro rei que veio ao Brasil, nesse dia em que começava um novo reinado, foi assinado o decreto fundando um hospital destinado privativamente ao tratamento dos alienados, com a denominação de Hospício Pedro II.

Vale a pena reproduzir aqui, na íntegra, os termos desse mesmo decreto:

"Desejando assinalar o fausto dia da minha sagração com a criação de um estabelecimento de pública beneficência: hei, por bem, fundar um hospital destinado, privativamente, para tratamento de alienados com a denominação de Hospício de Pedro II, o qual ficará anexo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia desta Corte, debaixo da minha imperial proteção, aplicando desde já para princípio da sua fundação o produto das subscrições promovidas por uma comissão da Praça do Comércio, e pelo provedor da sobredita Santa Casa, além das quantias com que eu houver, por bem, contribuir. Cândido José de Araújo Vianna, do meu Conselho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, o tenha assim entendido e faça executar, com os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro, 18 de julho de 1841, 20º da Independência e do Império. Com a rubrica de S. M. o Imperador. Cândido José de Araújo Vianna."

Já a 6 de agosto, o Ministro do Império dirigia um ofício ao provedor da Santa Casa de Misericórdia remetendo-lhe a cópia do Decreto nº 82 do mesmo ano, que cogitava do assunto.

Reunida a mesa da Irmandade da Santa Casa, a 24 de agosto de 1841, o provedor José Clemente leu o ofício do Ministro do Império e caminhou o Decreto nº 82, a quem deu o direito.

A Mesa da Santa Casa aceitou, desde logo, a anexação do Hospício D. Pedro II, com a condição de que viesse a servir unicamente ao tratamento dos alienados, e nunca para outro destino diverso. Aprovou também uma resolução para que se criasse uma repartição separada, denominada Administração do Hospício de D. Pedro II, composta de escrivão, tesoureiro e procurador; que o novo edifício fosse construído na Chácara da Praia Vermelha, pertencente ao patrimônio do Hospital; que o Irmão provedor e a Mesa ficassem autorizados para comprar e fazer incorporar quaisquer prédios rústicos ou urbanos para a construção do Hospício, o qual seria mantido com o rendimento da Santa Casa de Misericórdia.

Em 3 de setembro de 1842, foi lançada a primeira pedra do Hospício de D. Pedro II e já no dia 5 começaram as obras.

No ano de 1846, o cidadão José Ribeiro Monteiro ofereceu a S. M. o Imperador a Chácara da Capela da Praia Vermelha e outros terrenos contíguos por ele comprados, para ser metade incorporada ao Hospício, ficando a outra metade à disposição do mesmo augusto senhor.

Em aviso do Ministro do Império, datado de 14 de setembro, ordenava o Imperador fosse incorporada, ao patrimônio do Hospício, a Chácara do Vigário-Geral, situada na Praia Vermelha.

A 10 de julho de 1850, era assinado um decreto concedendo vinte loterias em benefício das obras do Hospício e da manutenção dos alienados. Nesse mesmo ano, a 19 de junho, a Assembleia Provincial do Rio de Janeiro, incluía no seu orçamento duas loterias destinadas às obras daquele pio estabelecimento. A 30 de novembro de 1852, ocorreu a sagração da Capela do Hospício e a benção de todo o edifício. O Imperador compareceu pessoalmente à cerimônia, prestigiando-a.

A inauguração do Hospício D. Pedro II

Cinco dias mais tarde, com a presença do Imperador, dos Ministros de Estado, do corpo diplomático, dos irmãos da Santa Casa e de grande número de convidados, inaugurou-se, solenemente, o estabelecimento. O ato pontifical foi iniciado pelo vigário-geral do bispado, Monsenhor Narciso da Silva Nepomuceno, que, já muito idoso, teve uma perturbação súbita durante a celebração do ato sagrado e não pode terminá-lo. Seguiu-se um sermão pregado pelo principal dos Franciscanos, o padre mestre Frei Antônio do Coração de Maria.

Durante a cerimônia tocou uma orquestra dirigida pelo mestre da Capela Imperial, Francisco Manoel da Silva. Concluído o ato religioso, o Dr. Tomaz José Pinto de Cerqueira, escrivão da Santa Casa, leu as duas atas das sessões da Mesa Conjunta da Irmandade, que se encarregara da construção do Hospital, decidindo também, ali colocar uma estátua do Imperador, para perpetuar a memória da fundação, estátua essa que foi descerrada logo a seguir na sala imperial. Vários discursos foram então pronunciados, destacando-se o do provedor José Clemente Pereira, o do Professor José Martins da Cruz Jobim, então diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e o do Dr. Francisco de Paula Cândido, na qualidade de membro da Imperial Academia de Medicina.

Já a 8 de dezembro começava a funcionar o Hospício, com 143 internados, 67 dos quais foram removidos da enfermaria provisória, que havia sido construída na Praia Vermelha e 73 que se encontravam no Hospital da Misericórdia.

Conquanto o Imperador tivesse sempre revelado particular interesse pela situação dos alienados, teve ele, nesse gesto, como inspirador e assessor a José Clemente Pereira. Diz Moreira de Azevedo, em cujos escritos foram colhidos muitos dados para escrever este trabalho, que: "Na Praia Vermelha, denominada outrora de Santa Cecília, vê-se um edifício de arquitetura severa, um palácio construído em dez anos, levantado pela caridade pública; é o primeiro monumento da cidade, é o Hospício de D. Pedro II. Vendo os alienados encerrados em um corredor térreo do velho Hospital da Misericórdia, recolhidos em enxovias e tratados não como enfermos, porém, como animais ferozes, tendo o chão frio por leito, o pão duro por alimento e o azorrague como remédio, o provedor José Clemente Pereira, inspirado pela luz da caridade, resolveu alevantar um hospital, aonde os doudos tivessem asilo decente e pudessem achar lenitivos a seus males. Vimos os esforços que fez para erguer o Hospício de Pedro II. Deus favoreceu a obra do homem caridoso".

Descrição do Hospício Pedro II

"No curto espaço de dez anos, José Clemente concluía a sua missão: ergueu, no Rio de Janeiro, o primeiro hospital de alienados. O Hospício de Pedro II acha-se construído em uma superfície de 1.562 braças quadradas. É majestoso o frontispício desse monumento. O pórtico revestido de cantaria apresenta uma escadaria de dez degraus. Quatro colunas de granito com capitéis dóricos sustentam uma balaustrada de mármore. Há três portas entre as colunas. No segundo pavimento erguem-se outras quatro colunas de ordem jônica, coroando o corpo um frontão reto e havendo no tímpano as armas imperiais trabalhadas em mármore. Há, entre as colunas, três janelas. Os corpos laterais constam de vinte janelas de peitoril do primeiro pavimento, já a arquitetura é da ordem dórica do teatro de Marcelo, em Roma. O segundo pavimento é da ordem jônica, sob o sistema do templo de Minerva Políada da Grécia. Tem vinte janelas, das quais treze têm sacadas de grades de ferro e sete são arqueadas e têm, todas, varões de ferro. Um ático ornado de estátuas e de vasos de mármore oculta o telhado do edifício, dando mais beleza ao prospecto do monumento. Há, nas faces laterais, treze janelas em cada pavimento. As sete janelas do segundo pavimento têm sacadas de grades de ferro. Vêem-se, no fundo, quatro torreões com três janelas em cada pavimento; no centro a rotunda da capela, e ligando os torreões, corpos de um só pavimento com seis janelas cada um. O desenho desse palácio foi dado pelo engenheiro arquiteto Domingos Monteiro, exceto o pórtico, que é do engenheiro Guilhobel. O engenheiro, Sr. Major José Maria Jacinto Rebello, fez algumas modificações no plano primitivo do monumento.

No vestíbulo, cujo pavimento é ladrilhado de mármore, se erguem sobre pedestais as estátuas em gesso dos sábios Esquirol e Pinel. Foram trabalhados pelo escultor Pethrich, que é o autor de todas as estátuas que ornam o palácio.

A escadaria é eliminada por uma cúpula primorosamente construída sob a direção do arquiteto Rebello. A capela é de um gosto simples e grave; não tem ornatos de luxo. A construção severa desse recinto impressiona o cristão, que penetrando ali, só pensa na majestade de Deus e vai orar. Tem quatro tribunas de cada lado, de onde vêm ouvir missa os doudos que podem assistir a esse ato. O altar está encerrado em uma rotunda e sobre ele se venera a imagem de S. Pedro de Alcântara. Esta imagem de mármore custou cinco contos de réis. É do escultor Pethrich".

Organização e funcionamento

Digno de nota é o fato de possuir, o estabelecimento, uma casa de banhos, com dez banheiras de mármore, chuveiros e banho de vapor, o que para a época representava um progresso notável.

Nos pátios internos foram construídos jardins, que eram cuidadosamente tratados, com pequenos tanques e chafarizes. Já a esse tempo se cogitava de entreter os doentes com trabalhos manuais. As mulheres se entregavam a trabalhos de costura e confeccionavam flores de pano, cestas de contas, que eram expostos à venda em uma sala de exposição, disputados por numerosos compradores, feitos, que eram, com perfeição e delicadeza.

A pedido do médico do Hospício, Dr. Manoel José Barbosa, José Clemente autorizou a criação de algumas oficinas de alfaiataria, sapataria, marcenaria e uma seção destinada a desfiar estopa. Favoreceu, também, a aquisição de instrumentos musicais para a formação de uma orquestra, "como início de distração e, talvez, de cura".

A sala de visitas, primorosamente decorada, pertencia à ordem coríntia e era ornada de pilastras caneladas com capitéis dourados, com o seu respectivo entablamento. Era decorada a claro-escuro com arabescos simples, tendo no teto dois ovais com as armas imperiais, lendo-se em um: 18 de julho de 1841 e, no outro, 5 de setembro de 1842.

Em um dos extremos da sala, junto a um nicho, erguia-se sobre alto pedestal de granito a estátua de mármore de D. Pedro II, de cetro e capa. No pedestal da estátua lia-se uma inscrição em latim, cuja tradução textual é a seguinte: "A Pedro II - honra e defesa do Brasil - e deste Hospício - protegido pela gloriosa sombra do seu nome - Fundador: Este testemunho de um ânimo agradecido, os irmãos do Hospital da Misericórdia - levantaram - no ano do senhor de 1852 - em 15 de dezembro".

Homenagem a José Clemente Pereira

Mais tarde, em frente da estátua do Imperador, foi colocada a de José Clemente Pereira, de pé, com o balandrau e a vara de provedor da Misericórdia. A estátua de mármore branco repousava sobre um pedestal, tendo como única inscrição: "Decreto de 13 de março de 1854".

José Clemente Pereira faleceu a 10 de março de 1854. Três dias depois era promulgado o seguinte decreto: "Querendo dar um testemunho pessoal do apreço em que tenho aos serviços prestados à humanidade, do falecido provedor da Santa Casa de Misericórdia, José Clemente Pereira, hei por bem que pela mordomia da minha imperial casa, se mande fazer a sua estátua, que será colocada na frente da minha, na sala do hospício do meu nome. José Maria Velho da Silva, do meu Conselho, mordomo interino de minha imperial casa, o tenho assim entendido. Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de março de 1854. 33º da Independência e do Império. Com a rubrica de Sua Majestade o Imperador. José Maria Velho da Silva".

A estátua a que se refere este decreto, erguida para perpetuar a memória de José Clemente Pereira, foi inaugurada em 19 de junho de 1857, com a presença de S. M. o Imperador que, depois de orar na Capela do Hospício, dirigiu-se à sala onde se achava a estátua, envolvida em damasco verde. O provedor da Misericórdia, o veador Camillo Faro, pronunciou uma alocução de agradecimento à S. M. o Imperador e o escrivão da Santa Casa, o F. Tomaz José Pinto de Cerqueira, fez o elogio de José Clemente Pereira.

Outros beneméritos

Ao lado da estátua inaugurada, figuravam os bustos de Tomé Ribeiro de Faria, depois barão de Guapy-mirim, e o de Joaquim Babo da Silva. O primeiro, grande do Império, nascido em Portugal, além de diversos donativos, contribuiu com a quantia necessária para se concluir e decorar a sala imperial do Hospício de Pedro II, tendo legado em testamento vinte e oito contos para a Misericórdia e seis para o Hospício. Joaquim Babo da Silva, natural do Minho, legou à Misericórdia 32 prédios, cujo rendimento deveria ser aplicado do seguinte modo: "1/3 para dotes de órfãos que se casarem nos dias 10, 11 e 12 de novembro de cada ano, em memória dos dias em que o benfeitor aportou ao Brasil; 2/9 para o sustento dos enfermos do Hospital; 2/9 para o recolhimento dos órfãos e 2/9 para os alienados do Hospício de Pedro II".

Regulamentos e administração

No primeiro regulamento deste estabelecimento lê-se: "O Hospício de D. Pedro II é destinado, privativamente, para asilo, tratamento e curativo dos alienados de ambos os sexos de todo o Império, sem distinções de condições, naturalidade ou religião".

A sua primeira administração foi confiada ao Dr. Diogo Soares da Silva de Bivar, como escrivão do Barão de Bonfim, como tesoureiro, e de Francisco José da Rocha Júnior, como procurador.

O serviço médico foi confiado, desde logo, a três facultativos, um dos quais escapou de ser assassinado por um internado, pelo fato de lhe ter sido negada a alta, ele o agrediu com uma tesoura, ferindo o enfermeiro que se interpôs entre o médico e o agressor.

Os indigentes eram admitidos gratuitamente, bem como os escravos de senhores que não possuíssem mais de um, e que não tivessem meios para pagar as despesas com o tratamento. Os marinheiros de navios mercantes também nada pagavam. Os que podiam pagar eram admitidos como pensionistas. A lotação era de 350 alienados.

Não faltou, naquela época, quem, não podendo atingir o Imperador, procurasse ridicularizar o ex-provedor José Clemente Pereira, julgando o hospital com lotação exagerada, achando também inútil erguer-se um palácio para encerrar doudos. Mas, como diz Moreira de Azevedo: "a indiferença, o sarcasmo e a incredulidade de alguns, não abalaram o ânimo de José Clemente Pereira. Inspirado pela caridade, continuou na sua missão, e em dez anos construiu o Hospital de alienados".

Um estabelecimento modelar

Os que visitavam o Hospício se surpreendiam com o asseio, a ordem e a disciplina; os alienados eram tratados com humanidade e andavam decentemente vestidos. O estabelecimento podia ser visitado aos domingos.

Um dos cronistas da época escreveu: "Já passou o tempo em que ninguém se atrevia a entrar em um hospital de doudos, temendo penetrar nesses subterrâneos, nessas gaiolas de ferro, onde eram encerrados os alienados, como se fossem animais ferozes. Considerados como não pertencendo à espécie humana, eram esses infelizes acorrentados, presos ao tronco, tendo uma masmorra por hospital. Há, hoje, mais caridade com os loucos; têm, eles, casa própria e decente, e são empregados os meios que a filosofia e a ciência ensinam, ou para minorar-lhes os sofrimentos, ou para restabelecê-los, restituindo os órgãos ao seu estado normal".

Vê-se, pois, que, graças ao Imperador Pedro II, a assistência a psicopatas no Brasil, se antecipou, de muito, aos métodos da moderna assistência a psicopatas, constituindo um exemplo digno de ser imitado por outros países.

Juliano Moreira, ao destacar a importância da criação do Hospício D. Pedro II, disse com muita propriedade: "Interessante é que em matéria de boa hospitalização de alienados precedemos alguns países da Europa. É, assim, que o próprio Portugal, só em 1848, mandou dar agasalho especial aos seus alienados, no velho casarão de Rilhafolles".

Inaugurado o Hospício D. Pedro II, não tardou a ficar superlotado, contando-se grande número de insanos recolhidos, provenientes das províncias. Para obviar a esse inconveniente, a 4 de setembro de 1854, o Ministro do Império baixou portaria, proibindo a remessa de alienados das províncias, sem prévia autorização do mesmo ministério, ouvida a provedoria da Santa Casa.

Laborterapia

A laborterapia, que não era ainda adotada na grande maioria dos hospitais psiquiátricos do mundo, foi introduzida no Hospício D. Pedro II, por iniciativa do Dr. Manoel José Barbosa, que propôs a criação das oficinas de sapataria e alfaiataria, no que foi prontamente atendido. Havendo, também, entre os internados, quatro músicos profissionais, ordenou o provedor a aquisição de uma rabeca, uma flauta, uma clarineta e uma requinta, "como meio de distração ou talvez de cura". Assim, é que, ao lado da laborterapia, foi adotado, em boa hora, a musicoterapia, no Hospital recém-criado.

As condições de limpeza e asseio observadas no Hospício eram impecáveis, a julgar pelas impressões de um jornalista, que teve ocasião de visitá-lo naquela época. "As enfermarias eram enceradas e os internados usavam chinelos de solas de flanela e, ao transitarem de um para outro lado, iam polindo o assoalho, que conservava brilho permanente".

Entre as instituições criadas no Segundo Reinado, por decreto especial de S. M. o Imperador Pedro II, destaca-se, este estabelecimento, modelo para a época, a justificar plenamente, ter sido o segundo Imperador do Brasil, considerado "o grande protetor dos alienados".

O velho Hospital da Praia Vermelha serviu ao Rio de Janeiro até ainda há bem pouco tempo. A expansão da cidade tornou imprópria a localização do estabelecimento, além de difícil manutenção, razão pela qual motivou a transferência dos alienados que lá se encontravam para outros hospitais, na periferia da cidade.

O edifício do antigo hospício foi inteiramente reformado, mas conservadas todas as suas características primitivas, tanto as estátuas quanto as placas comemorativas e demais adornos. Nele foi instalada a Reitoria da Universidade do Brasil.

A Psiquiatria nos fins do Segundo Reinado e nos primeiros tempos da República

De 1853 a 1881, o Hospício D. Pedro II foi dirigido, sucessivamente, pelos Drs. Manoel José Barbosa, Joaquim Antonio de Araújo Silva, José Teodoro da Silva Azambuja, José Ludovino da Silva, Ignácio da Silva Goulart e Gustavo Balduíno de Moura.

Em 1881, o provedor Visconde de Jaguari, em vista das constantes reclamações feitas pelo Mordomo Conselheiro Pertence, houve por bem, nomear para diretor daquele estabelecimento um professor da Faculdade de Medicina, tendo a escolha recaído sobre o Dr. Nuno de Andrade, que nele permaneceu por pouco tempo, substituído pelo seu colega, Professor Souza Lima.

A 21 de fevereiro de 1887, este cargo passou a ser ocupado pelo Professor Teixeira Brandão, já então alienista do Hospício. Pela primeira vez era a direção daquele estabelecimento confiada a um especialista. Uma das primeiras iniciativas do novo diretor foi a de criar lugares para estudantes internos, obrigados a residir no Hospício, no propósito de formar um corpo de alienistas, de que tanto se ressentia o país.

Muitas e radicais reformas foram feitas por Teixeira Brandão, sobretudo nas seções de balneoterapia e eletroterapia.

O estabelecimento superlotado e em más condições sanitárias era obrigado a receber, sem exceção, os alienados enviados pelas autoridades policiais. A situação era calamitosa, e o diretor não teve outra alternativa senão a de suspender a entrada de novos doentes.

Refere Juliano Moreira que data daí "uma fase de verdadeira retrogradação no belo movimento de progresso, iniciado com a criação do Hospício. O governo, deixando-se privar de um direito que sempre lhe assistiu, o de requisitar a internação de alienados, consentiu em que, pouco a pouco, se fossem enchendo de loucos o Asilo de Mendicidade e até as prisões. Era contra o horrível estado de cousas daí resultante, que, em 1886, protestava o Professor Teixeira Brandão, com a energia do homem de coração e a consciência de alienista que era. Trezentos e cinquenta alienados chegou a ter o antigo Asilo de Mendicidade, cuja lotação era de duzentas pessoas. E isso sucedia porque as portas do Hospício, fundado pelos poderes públicos, para o tratamento de alienados, só se abriam aos favorecidos pela proteção dos poderosos ou para os que podiam pagar".

Proclamada a República, o Ministro Aristides Lobo, capacitado da necessidade urgente de melhorar os serviços de assistência aos doentes mentais, providenciou para que fosse desanexada a Santa Casa de Misericórdia do Hospício D. Pedro II, que passou a ser denominado Hospital Nacional de Alienados. A substituição do nome de seu fundador e protetor foi, sem dúvida, uma medida injusta e infeliz. A instalação do novo regime levou muitos republicanos, no afã de apagar as realizações da Monarquia, a assim proceder, sem atentar para a injustiça cometida.

A 15 de fevereiro de 1890, aprovado o Decreto nº 206, este deu novas instruções e anexou ao Hospital Nacional às colônias já então existentes na Ilha do Governador.

A 21 de julho do mesmo ano, era baixado o Decreto nº 598, que nomeava o Professor João Carlos Teixeira Brandão, diretor-geral da Assistência a Alienados, e o Dr. Domingos Lopes da Silva Araújo para dirigir as colônias anexas aquele estabelecimento. Esse mesmo decreto dava novo regulamento aos serviços recém-criados.

Entre as providências então tomadas, figurou o afastamento das irmãs de caridade dos trabalhos de enfermagem da seção dos homens, as quais foram substituídas por enfermeiras leigas. Inconformadas, as religiosas abandonaram o Hospital em sinal de protesto contra aquela medida, sob a alegação de que se sentiram diminuídas na sua autoridade, e impossibilitadas de continuar a trabalhar. Foram elas substituídas por enfermeiras de asilos franceses, contratadas para reorganizar os serviços de enfermagem.

Em virtude de muitos doentes recolhidos ao Hospício não acusarem distúrbios psíquicos que justificassem a internação, e, atendendo a um pedido de Teixeira Brandão, o governo da República autorizou a construção de um pavilhão de observação. De acordo com o regulamento que passou, então, a vigorar, nenhum doente poderia, a partir daí, ser recolhido ao Hospício sem prévio exame psiquiátrico, que comprovasse a existência incontestável de doença mental. Nesse mesmo pavilhão eram, também, ministradas as aulas de clínica psiquiátrica, cuja cadeira havia sido recentemente criada.

Em julho de 1892, um novo decreto determinava a instalação do museu de anatomia patológica, entregue à competente direção do Dr. Mário Nunes Galvão, que havia se especializado no serviço do notável Professor Kolliker, em Viena.

No mês de outubro de 1893, o quadro de alienistas do Hospício foi ampliado, com a criação de um cargo de oftalmologista e outro de diretor do serviço sanitário do estabelecimento.

O lugar de inspetor-geral de assistência aos alienados, encarregado de superintender e supervisionar a parte científica e administrativa dos serviços já existentes no país, embora criado havia muito, só foi preenchido em fevereiro de 1897.

Por iniciativa do Professor Teixeira Brandão, o Presidente da República de então, Prudente de Moraes, houve, por bem enviar duas mensagens ao Congresso Nacional, solicitando os créditos indispensáveis para melhorar e ampliar os estabelecimentos psiquiátricos, no que foi atendido.

Durante o governo de Campos Salles, em 1899, a situação econômica do país, extremamente grave, exigiu cortes substanciais em todas as verbas. O Hospício de Alienados não escapou a tal medida imposta pela necessidade de economias severas. Isso concorreu para dificultar, sobremaneira, os serviços psiquiátricos em geral, que passaram a se ressentir grandemente da falta de pessoal para atender ao elevado número de pacientes internados, que aumentava progressivamente.

Em 1902, foi nomeado diretor do Hospício, em substituição ao Dr. Pedro Dias Carneiro, que se aposentara, o Professor Antonio Dias de Barros, antigo interno do mesmo estabelecimento, que nele permaneceu por pouco tempo, em virtude da lei que não permitia a acumulação de cargos.

Juliano Moreira é nomeado diretor

Em fins de 1902, 110 governo Rodrigues Alves, o Ministro J. J. Seabra nomeou, para o lugar vago com o afastamento do Professor Dias de Barros, interinamente ocupado pelo Professor Mareio Nery, o Dr. Juliano Moreira, professor substituto da Clínica Psiquiátrica da Faculdade da Bahia.

O novo diretor, que se destacara em Salvador como especialista renomado, havia visitado, pouco antes, vários hospitais especializados, em diferentes países da Europa. Foi, então, apontado como a pessoa mais indicada para assumir aquele cargo. Empossado, Juliano não tardou em propor uma série de reformas no velho Hospício, a fim de colocá-lo à altura das exigências da psiquiatria hodierna. Em longa exposição endereçada ao Ministro do Interior, em julho de 1903, o novo diretor insistia na imediata transformação, em lei, de um projeto de reforma da assistência aos alienados, que aguardava, havia mais de seis anos, aprovação do Senado. Propôs, também, fosse dada nova regulamentação aos serviços sob a sua direção, os quais estavam a exigir verbas suplementares para as alterações que se faziam mister. O hospício, além de atender aos doentes do Distrito Federal, em número crescente, era ainda obrigado a recolher, também, os provenientes de outros estados do Brasil, onde não existiam estabelecimentos psiquiátricos.

Juliano propôs, outrossim, a criação de uma colônia destinada, exclusivamente, aos epilépticos, e outra para os alcoólatras, fazendo ver a inconveniência de serem mantidos, esses doentes, em promiscuidade. Demonstrou, por outro lado, a importância da instalação de pavilhões isolados para o recolhimento de tuberculosos e portadores de doenças contagiosas, suscetíveis de contaminarem os demais internados.

Não escapou à sagacidade de Juliano a conveniência da criação de um lugar de pediatria, com conhecimentos especializados em psiquiatria infantil, para atender às crianças, já então em grande número, as quais estavam a exigir assistência condigna, separadas dos adultos, cujo convívio lhes era sobremodo prejudicial.

O Presidente da República não teve dúvida em atender aos justos reclamos de Juliano Moreira. Enviou ao Congresso Nacional uma mensagem acompanhada de um projeto, que não tardou a ser transformado em lei.

Foram nomeados, nessa época, alienistas do Hospício, os Drs. Francisco Cláudio de Sá, Lúcio Joaquim de Oliveira, Júlio Afrânio Peixoto, Antônio Austregésilo, Rodrigues de Lima e Humberto Gotuzzo, todos eles especialistas experimentados. Para o cargo de pediatra foi designado o Dr. Antônio Fernandes Figueira, que já se dedicava ao estudo da pedopsiquiatria.

O cargo de médico de moléstias infecciosas e intercorrentes foi preenchido pelo Dr. Miguel da Silva Pereira, grande figura da medicina brasileira, mais tarde catedrático da Faculdade de Medicina.

Juliano viu, com isso, realizada a sua maior aspiração: conseguiu os recursos de que carecia para proceder a uma grande reforma no velho Hospício, que passou a contar, desde aí, com colaboradores dos mais capazes, o que permitir-lhe-ia realizar os planos estabelecidos para colocar o estabelecimento no mesmo nível dos que visitara na Europa.

Infelizmente, mal começara a pôr em execução os seus planos, caiu, o eminente psiquiatra, gravemente doente, sendo obrigado a afastar-se do cargo. Indicou para substituí-lo o Professor Afrânio Peixoto, que se revelou, não só especialista competente, como administrador diligente, probo e zeloso, dando continuação às obras iniciadas, visando a incrementar o desenvolvimento da psiquiatria científica nacional e melhorar os serviços de assistência aos doentes internados.

Juliano, após longo período de ausência, já restabelecido, retomou o cargo do qual se licenciara e pode concluir a obra por ele iniciada. Ocupou, até 1930, o cargo de Diretor da Assistência a Psicopatas, ano em que foi aposentado compulsoriamente pela Revolução.

Recebido: 24/9/2008

Aceito: 24/9/2008

Trata-se do primeiro dentre uma série de textos que serão publicados em partes. O texto foi agraciado com o Prêmio História da Medicina, 1976, da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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    Prof. Dr. Valentim Gentil
    Prof. Titular de Psiquiatria da FMUSP Ens.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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