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Para uma política da mente: ferramentas conceituais desde o recurso à filosofia, à experiência e à vida enquanto bios

For a mind policy: conceptual tools from the resource to philosophy, to experience and to life as bios

PONTO DE VISTA

Para uma política da mente: ferramentas conceituais desde o recurso à filosofia, à experiência e à vida enquanto bios

For a mind policy: conceptual tools from the resource to philosophy, to experience and to life as bios

Mauro Aranha de Lima

Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e Faculdade de Filosofia de São Bento

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mauro Aranha de Lima Alameda Lorena, 1304, cjs.1610/13 01424-001 – São Paulo, SP E-mail: mauro.aranha@uol.com.br

Nous vondrions montrer au contraire que la pathologie mentale exige dês méthodes d'analyse différentes de la pathologie organique, et que c'est seulement par um artífice de langage qu'on peut prêter lê même sens aux "maladies du corps" et aux "maladies de l'esprit".

Michel Foucault, 19541

À la limite la vie (...) c'est qui est capable d'erreur (...) la vie aboutit avec l'homme à un vivant qui ne se trouve jamais tout à fait a sa place, à un vivant qui est voué à "errer" et a "se tromper".

Michel Foucault, 19842

O genuíno filosofar não é dogmático e exige livre mudança e troca de idéias.

Mario Bunge, 19993

1. A Filosofia tem sua história. Mas, caberá a cada um de nós, que com ela nos maravilhamos, fazer a sua escolha singular (no mais das vezes, por critérios imponderáveis) dos conceitos que vão pautar e referenciar proposições acerca de um tema qualquer que se pretenda fundamentar. Antes, já a escolha do tema me parece ser, em parte, fruto do acumulado em experiência, nem sempre lúcida ou meditada, que se teve in loco nos desvãos da vida, ou mesmo pelas cifras da história, mediante os livros percorridos. Antes mesmo, contudo, ainda que a academia ofereça-nos o seu cânone indispensável de leituras, escolhemos sempre as nossas mais íntimas preferências, intuídas ante os livros que buscamos e explicitadas naqueles que relemos.

Mas voltemos aos temas de nossa predileção. A mim me parece, como acenei acima, que, antes dos livros que houvemos lido, já éramos movidos por seus temas, pois que destes estamos encarnados no momento mesmo em que existimos. Antecedem os livros, porque, sobretudo, antecedem o pensamento e as palavras.

Vale dizer: mais do que o escolhemos, o tema nos recolhe, a nós, em meio à voragem do tempo interior.

Ocorre, no entanto, que, a partir de um dado momento, ansiamos por mais soberania ante tão inescapável labirinto. Ainda que a Filosofia fosse meramente um jogo, sem compromisso com a verdade. Contudo, se a filosofia fosse um jogo, seria aquele que se faz com pensamento e com palavras. Como todo jogo, faz-se com regras e fundamentos previamente estipulados. E tem um propósito, um alvo previamente estipulado. Pode o alvo ser real ou convencionado, mas a totalidade do jogo que se jogou deve exibir consistência lógica entre as partes intermediárias e destas com a sua totalidade.

É o que pretendo aqui, no presente texto.

Quanto ao tema, fui escolhido por ele. Por um lado, é já parte constituinte de minha identidade. A experiência clínica desdobrada em angústias filosóficas. Medicina e Filosofia mais propriamente aqui reunidas, no campo da história do pensamento e das práticas médicas que, desde há muito, bordejam a ideia de natureza humana, de forma a balizar-lhe teoria e ação em prol da saúde física e psíquica do homem. Por outro lado, sua dimensão política se dá a mim porque, afinal, é na polis que vivemos. E somos, até quando em silêncios reflexivos, bios politikos.

A forma de abordar o tema procurará dar conta, ao menos, da coerência interna de que falei acima.

Só mesmo a finalidade deste trabalho configura uma certa ousadia: contribuir para um melhor diálogo das partes que, na polis contemporânea, pensam e agem sobre a saúde mental dos seus pares, seres humanos. São eles: médicos e outros profissionais envolvidos em ações preventivas ou terapêuticas concernentes a indivíduos portadores de transtorno mental ou sofrimento psíquico; e legisladores e gestores de políticas públicas em prol da saúde mental dos indivíduos e da coletividade.

2. Permitam-me, de início, conceituar o que aqui tomo por "política": "política" como ação individual ou coletiva que, mediante o diálogo dado por crenças, fundamentos e expectativas, visa a um acordo entre falantes ou ao convencimento de um pelo outro (o que, ipso fato, também é um acordo) e de tal forma que cujo resultado será um poder constituído a legitimar diretrizes e intervenções voltadas ao bem comum.

Disso resulta que: "política da mente" será o diálogo e a ação em torno e em prol do que se considera e do que se quer, para uma dada comunidade, como boa saúde da mente.

O que me remete à necessária consideração do que seja "saúde" e do que seja "mente".

3. Tomo por "saúde" a acepção indireta e decorrente do contraponto à sua negatividade: a partir do contraste por vezes tênue entre o normal e o patológico. Canguilhem4 afirmou que a doença "é uma norma de vida, mas é uma norma inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma"4. Destarte, ter "saúde" é ter a capacidade de regular-se num meio, mediante um outro registro funcional, em que flutuações e novas exigências lhe são impostas ou até inerentes. Pensando no humano: não se trata de pensarmos em uma norma supraindividual e estatística que lhe defina a saúde, mas numa norma que rege este ou aquele indivíduo humano considerado singular e sucessivamente em seu tempo e em seu habitat que lhe sejam intrínseca ou extrinsecamente próprios. Assim, 40 batimentos cardíacos por minuto numa pessoa em repouso não estão a indicar a priori uma "doença"; pode tratar-se de uma pessoa com excelente condicionamento físico, porém, se tal frequência cardíaca se mantém, invariável, mesmo quando essa pessoa é submetida à vigência de regime maior de esforço físico (por exemplo, subir uma escada), aí, sim, podemos dizer: está "doente". Vejamos aqui que não se trata de afirmarmos que haja nesse caso uma lesão estrutural do tecido cardíaco, mas certamente uma disfuncionalidade que requer tratamento. A considerar-se, é claro, que subir uma escada faz parte inevitável de nossas vidas de humanos, assim como, em épocas primevas, havíamos de ser aptos a subir montanhas.

4. E "mente", como defini-la? Aqui, é preciso dizer que estamos condenados para sempre, nós psicopatologistas, a operar tão somente com a expressão fenomênica e, no limite, irredutível, dos processos mentais que estudamos, a operar com o que estes produzem e não propriamente com o que são.

Sabemos apreender a angústia, por meio das narrativas e expressão corporal de nossos pacientes, mas não lhes tocamos o fundamento último: a experiência própria e ao bios que lhes cabe, e que, também no limite, são inefáveis e intransferíveis. Sabemo-lhes os fatos, não a experiência mesma que tiveram dos fatos; sabemo-lhes, eventualmente, alguns dos signos com que significam a experiência vivida (sonhos, imagens, atos falhos etc.), mas não lhes sabemos a abrangência exaustiva dessa experiência (posto que algumas subsistem ocultas e reprimidas), e nem mesmo a hermenêutica extensiva e segura de seus significados.

Todavia, "mente", e, mais ainda, "mente saudável" será: a configuração apreensível (de espessura ontológica real, ainda que imaterial), estável e sistêmica, dada pelo conjunto de percepções, juízos, sentimentos e volições, em interação dinâmica e homeostática com o seu mundo (extensão física e cultural em que está inserida).

5. Daí, então, "saúde mental": norma funcional da mente em equilíbrio homeostático e criativo no meio em que se vive. Funcional, aqui, não se refere a qualquer vezo utilitarista extrínseco à livre determinação do indivíduo, isto é, não se refere ao cumprimento eficaz das tarefas dadas heteronimamente a ele, mas, sim, ao funcionamento mental eficaz, harmônico e criativo, que cada um dos indivíduos autonomamente estabelecem para si, como fruição e metas de suas vidas. Se, entre essas metas, inclui-se a necessidade de viver bem junto aos outros, isso implicará acolher diferenças, não restringir-se a si mesmo, adiar ou reformular intenções próprias, mas aqui, repetimos, não como imposição extrínseca, mas como desdobramento necessário a contemplar a vontade própria empreendida: viver bem com os outros será, então, exigência implícita para viver bem consigo próprio.

Dizer-se com mente saudável será sentir-se em livre movimento a cumprir o que se dá, a si próprio, metas e ações de vida.

Aqui, H. Arendt5, ao descrever as formas do agir humano, nos parece fundamental. Distingue-as em três eixos que caminham juntos: labor, trabalho e ação.

− Labor se refere à sobrevivência do indivíduo e da espécie, e implica, entre outros, o bom funcionamento biológico do indivíduo e dos sistemas orgânicos que o compõem;

− Trabalho refere-se à produção material de coisas próprias de nossa mundanidade, ou seja, cria a técnica e os artefatos humanos; e

− Ação (prattein), medida mesma da liberdade humana, refere-se à atuação interativa entre os homens e que não necessita de mediação material, ou seja, o que funda e preserva a cultura e os corpos políticos, "cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história"5.

Fundamental que, nos três eixos (labor, trabalho e ação), o andamento dos aparatos e produtos da mente se faça de forma a cumprir, já num regime aristotélico, o ergon (a função) e o telos (a finalidade) específicos de cada eixo, dados como condição ôntica da espécie e dos indivíduos humanos, a resultar numa vida feliz (eudaimon), quando do seu cumprimento/plenitude (areté), próprios e coerentes à sua função e à sua causa final: o homem que sobrevive como indivíduo e espécie, que produz e conserva artefatos para sua utilidade ou fruição e que produz cultura e história, sua dimensão mais expansiva e imaterial e que, por isso, é a que mais se prolonga no tempo interior da vida, em memórias e esperanças: estas, as criações realmente livres e indestrutíveis do engenho humano.

6. Ocorre, no entanto, que as proposições e conceitos acima e até aqui definidos me são caros e os adoto como ferramentas. Mas não são todos os que assim o fazem. Pensam diferente e usam diferentes ferramentas. Porque se nutrem de e praticam uma ontologia e uma epistemologia diversas. Senão vejamos:

Não foi à toa que necessitei, em algum momento, utilizar-me de Aristóteles. Utilizei-me, assim, de uma ontologia realista para fundamentar a função do humano e suas peculiaridades próprias.

Aristóteles era um realista. Diante de cada um dos homens pensava-os como "este" homem (tode ti), mas "neste" homem via a expressão contingenciada de algo não contingente e universal: a natureza humana. Para ele, vige, em cada um dos homens, uma natureza intrínseca, operada em graus diversos de potência e ato. Essa natureza é real e única para a espécie, independentemente das diferenças entre indivíduos de cada espécie. Define-a como destinação a exercer-se num registro de vida autárquica e da atividade da alma conforme a razão. E, se todo homem é bios politikos, é também conforme a razão não apenas bastar-se e encerrar-se em si mesmo, mas também atuar pela consecução e autarquia da polis.

Já H. Arendt amplia a designação "natureza humana" para "condição humana", esta um prolongamento do significado impresso por Aristóteles à anterior: seja no labor, no trabalho ou na ação, há um balizamento necessário e invariável que se dá em torno à razão e à autarquia. Todos os homens se utilizam da razão autárquica para a preservação de seu patrimônio biológico, instrumental e cultural. As três instâncias (labor, trabalho e ação) são imanentes ao homem, constitutivas de sua condição.

Então, dizemos: H. Arendt ou professa, ou acolhe o realismo ontológico quando acena à vigência de uma "condição" comum e transcendente a todos os homens.

Ela mesma, H. Arendt, faz um inventário intelectual do Ocidente desde a fundação, por Descartes, da Filosofia Moderna até a nossa contemporaneidade. De como o pensamento filosófico do Cogito foi mais e mais se distanciando do realismo ontológico. Cito-a: "dois pesadelos rondam a filosofia de Descartes (...) Num deles, a realidade – a realidade do mundo e da vida humana – é posta em dúvida (...) O outro tem a ver com a condição humana geral, tal como revelada pelas novas descobertas e pela impossibilidade de confiarmos nos sentidos e na razão; em tais circunstâncias, parece muito mais plausível a ideia de um espírito mau, um Dieu trompeur, que deliberada e rancorosamente trai o homem (...)5

Ora, a filósofa alemã explicita que, após a descoberta do telescópio no século XVII por Galileu, possibilitando a confirmação do heliocentrismo copernicano, Descartes funda uma epistemologia racionalista para quem o que parece real (o sol girando ao redor da terra) não é o real. É só uma aparência. Só podemos ter acesso ao real pela razão e não pelos sentidos. Ora, a fundação e radicalização dessa epistemologia, no seio egodirigido do Cogito, remanescem e se aprofundam ao longo da filosofia moderna e ultimam-se em algumas das filosofias contemporâneas, propiciando equivocadamente um desvio (não logicamente necessário) do idealismo epistemológico radical para o nominalismo ontológico (em que a dúvida metodológica se torna dúvida mesmo da existência do mundo objetivo).

Esse nominalismo, quando dogmático, pode afetar as ciências da mente como flecha envenenada, dado que pode negar desde a realidade de uma natureza ou condição humana subsistentes em si mesmas, assim como negar a configuração geral e universal da mente humana (pois que toda ciência não se faz senão do geral), ou negar até mesmo a possibilidade da prática clínica ou de políticas públicas, que só se fazem ante uma realidade norteadora (referência mínima) do que seja uma saúde mental humana a ser oferecida às pessoas com ou sem transtorno mental.

7. Em verdade, adentramos agora mais propriamente o campo da política da mente.

Para os nominalistas radicais, não existiria um ou outro transtorno mental a se comportar com a mesma ou similar evolução natural em indivíduos diferentes, seja em locais diversos do planeta, ou em tempos distintos da história da humanidade. Negam, por vezes, até mesmo a existência de transtornos mentais: tratar-se-iam apenas de uma aparência. Para eles, existem apenas "sofrimentos mentais", e não classes distintas e mórbidas de tais sofrimentos. Assim, a "esquizofrenia" que, independentemente da nomeação que lhe queiramos dar, sabemos apresentar um ou outro grupamento homogêneo de sinais e sintomas (clusters), com similar evolução natural para indivíduos de um mesmo cluster, não seria uma realidade clínica; apenas aparência, miragem, assim como outras doenças ou diagnósticos da nosologia psiquiátrica, todos eles seriam meras palavras, "flatus vocis", ainda que as experiências e relatos clínicos da história da Psiquiatria coincidam, desde há muito, em seus clusters e respectivas evoluções naturais, e em suas respectivas respostas terapêuticas homogêneas a psicofármacos, a partir da década de 1950 e que, desde lá, têm se aperfeiçoado no sentido de mais eficácia e menos efeitos colaterais. É certo que, para uma dada apresentação empírica abstraída pela razão, existe uma configuração nuclear que, no mínimo, poderíamos chamar de esquizofreniforme, ressalvadas as várias apresentações e gradações particulares (patoplastias) que possam exibir, dadas pelos distintos conglomerados de condições genéticas, bioquímicas, caracterológicas ou culturais que plasmam a identidade de cada uma das pessoas.

8. Foucault dedicou uma boa parte de sua vida ao estudo das representações possíveis da "doença mental". Não lhe negava eventuais bases físico-químicas, mas o mais evidente de seus esforços é fazer recair sobre ela a seguinte acusação: após o final do século XVIII e início do XIX, a "loucura" é erigida pelo pensamento dominante e pelo pensamento médico a "uma essência, uma entidade específica descoberta pelos sintomas que a sinalizam, mas anterior a eles"; erigida à figura de "doença mental", como que abstraída à maneira de um "postulado naturalista que a erige a uma espécie botânica" 6; e que estaria a serviço de uma episteme própria a uma época autoritária, que legitimaria a exclusão e o encerramento dos loucos, agora também identificados aos libertinos, aos pais dissipadores, aos criminosos, aos sifilíticos etc., a todos que deveriam ser punidos, ou adestrados, ou corrigidos pelos interesses escusos e insidiosos do Poder vigente.

Essa Razão despótica conferiria à loucura "o frágil status de acidente patológico", reduzindo-a e desarmando-a, numa verdadeira captura pelo saber dominante, tal qual o da Psiquiatria, que lhe teria capturado as "imagens que jamais foram poesia, tantos fantasmas que jamais alcançaram as cores da vigília"6. E, de tal forma que "a percepção que busca compreendê-las ["as dores concretas (...) as palavras insensatas"] no estado selvagem pertence necessariamente a um mundo que as capturou". Ou ainda: "a liberdade da loucura só se ouve do alto da fortaleza que a aprisionou"6.

9. Duro golpe este desferido à Psiquiatria da época. Desde então, a Psiquiatria esteve vigiada sob olhares de suspeita. A tese de Foucault é muito bem construída, uma tese sociológico-política, mediante o método histórico-filosófico, farta e oportunamente documentada. Foucault estava certo? Em alguns dos desvãos da História, sim. O poder dominante de uma época procura impor-se às consciências; se necessário, o faz de maneira ostensiva, mas se possível e preferencialmente o faz de maneira sub-reptícia, pois que assim não alardeia suas ilegítimas pretensões que, sem uma resistência desperta e organizada, não as pode combater. O poder se espraia no subterrâneo da experiência e da vida, cria uma linguagem e uma episteme próprias à sua intenção. Cristaliza uma tal estrutura no mundo da história e da Cultura que sutil e irremediavelmente nos aprisiona, e mais prisioneiros ficamos porque não sabemos que o estamos.

O erro é integrante tácito da vida. Mas, a teoria (o esforço contemplativo do homem) nos instiga e nos anima desde os gregos. Trata-se aqui, no entanto, no esforço de fazê-lo dentro mesmo, e situado, no campo da experiência que inclua também a presença do bios, no campo do bios que inclua a experiência. A experiência, guiada e meditada sob a luz de fatos e valores, instrui melhor a razão teórica (de novo, Aristóteles!). A razão teórica, que pensa o invariável, direciona e redireciona a práxis e novas experiências possíveis: torna-se razão prática, ação, ação que, mediante novas práxis, instruirá novas configurações teóricas, e assim sucessiva e interminavelmente. Os erros do passado poderiam assim ser corrigidos em novas postulações teóricas.

A vida é tudo quanto escolhemos e o que não escolhemos também. Exige-se determos em nós mesmos qualquer voluntarismo heroico, e pretensioso, para nos darmos conta de que não temos o domínio sobre as amplas dimensões do que poreja e transborda na vida como fenômeno, assim como naquela sua parcela que é e não aparece. "Natureza ama ocultar-se"7, escreveu Heráclito. Seres de razão, deveríamos evocá-la (a razão) para saber o que sabemos, para saber o muito que não sabemos, e isso porque, às vezes, nem sabemos o que não sabemos. Sócrates e Platão instigaram-nos a consciência, mais com aporias, e menos com certezas. "Saber que" é uma coisa; "conhecer", uma outra coisa.

Nesse longo e espinhoso caminho entre o "saber que" e o "conhecer", remanescem a filosofia, as ciências e as artes, mediante seus acessos, abrangências e limites próprios. Nenhum desses caminhos deve, no entanto, ser omitido, se quisermos, como em H. Arendt, ultrapassar os esforços básicos do labor e do trabalho, e se quisermos exercer o quinhão possível de liberdade que ainda nos cabe. Se quisermos contribuir para com o movimento irrefreável do mundo, devemos percebê-lo em movimento. Podemos até imaginá-lo parado "mas, no entanto, ele se move"*.

Hoje sabemos que uma parcela das pessoas com transtorno mental (ou sofrimento psíquico) reproduz de forma similar o que Foucault denunciou na segunda metade do século passado. São pessoas com "sofrimento mental" (algumas dessas com transtorno mental) oprimidas por e excluídas de um "sistema" que resiste em acolhê-las. Isso não quererá dizer, se usarmos os instrumentos lógicos e experimentais mais simples, que mesmo essa parcela de pessoas não se beneficiariam do uso de psicofármacos. Até pelo contrário, retornadas às suas possibilidades mais "saudáveis" e funcionais, poderiam, mediante a psicoterapia ou a um desenvolvimento exclusivamente autônomo, ter mais possibilidade de enfrentamento das forças e condições cotidianas externas que as cerceiam.

Não se trata também de dizermos que a prática da ciência biológica não carrega consigo ideologias. Carrega-as, sim. Da mesma forma que, por vezes, a pertinente lucidez de seus críticos também não estará imune às suas próprias ideologias. Detenhamo-nos um pouco aqui: "ideologia", em sua acepção menos rigorosa, pode ser definida como "um sistema de declarações factuais e juízos de valor que inspira algum movimento social ou alguma política social"3. Ora, se movidos por ideologias (político-partidárias ou não) que honestamente (falo de honestidade intelectual) aspiram à possibilidade de um conjunto harmônico de ações, dado pela justa interação de fins equilibrados entre a autonomia da pessoa e o bem comum, e sem o sacrifício exclusivo de qualquer uma das partes, por que não podemos buscar esse equilíbrio em um acordo, um mútuo consentimento de crenças, saberes e hábitos, principalmente quando o confronto entre as partes não levará a resultados contraditórios a uma ou à outra, seja quanto às aspirações de procedimento ou às de fins, assim como quanto à nobreza de valores que as inspiram?

10. Senão, vejamos: A eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento eficaz, disponível desde 1938 para alguns transtornos mentais graves. Pode tratar, sem qualquer tipo de efeito colateral permanente ou sequela, um estado depressivo dramático que, por dadas manifestações clínicas, sabemos-lhe responsivo a ele. O paciente às vezes emagrecido, desnutrido, com pensamentos deliroides de ruína e com ideação e intenção suicidas incoercíveis, pode ser salvo, com restitutio ad integrum, após uma a seis aplicações de ECT, dentro de técnicas modernas, com anestesia e sedação prévias, com todos os controles necessários e exigidos por resolução do Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM 1640/02) e consentimento livre informado assinado pelo paciente, ou por responsável legal, em caso de incapacidade de compreensão e deliberação.

Pois bem, esse procedimento não é pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso país. O argumento para tal negativa seria o de que a ECT teria sido usada num passado recente como instrumento de tortura de dissidentes políticos. É fato que por vezes o foi. Assim como se usam armas brancas para matar e nem por isso o Estado deve proibir que as utilizemos junto ao garfo, à mesa, em nossas singelas e cotidianas refeições.

No caso da ECT, o Coordenador Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde do Brasil, o Sr. Pedro Gabriel Godinho Delgado, prefere proibir a realização da ECT. Essa medida acaba recaindo sobre os desvalidos e suas famílias, sem outra possibilidade senão a do tratamento gratuito e de abrangência universal do SUS.

Existiria aqui a conciliação, o acordo moral entre as partes que se opõem? A meu ver sim, até por evocar Max Weber em que essa deliberação pela realização da ECT deveria constituir-se em uma ação racional orientada a fins (ao fim e ao cabo, o paciente estará tratado, sem riscos consideráveis, podendo reassumir sua vida e o controle sobre seus próprios atos e sentimentos); constituir-se-ia até numa ação racional orientada a valores (na medida em que aqui estão implicados o valor da liberdade, a liberdade e decisão afirmativa e autônoma pelo principal interessado, o paciente, ou, quando incapaz para decidir, a liberdade que este readquirirá ao fim do tratamento (a consumarem-se, também aqui, os valores da beneficência e da autonomia, na escolha terapêutica ora proposta pelo médico e aceita pelo responsável legal do paciente, devidamente sopesados a eventuais contraindicações).

E tudo isso, ainda, sem falar na verdade como valor. A ciência busca a verdade, como horizonte ao fundo. É certo que o sol nos ilumina e nos aquece e, no entanto, não o tocamos; assim, é a verdade para o cientista: talvez intangível, mas, para ele, enquanto hipótese de verdade, submete-a, pronto a reformá-la, ante a evidência da prática e da experiência.

A autoridade pública acima nomeada agiu por uma ação irracional: proíbe todos as ECTs na rede SUS. Segundo categorias de Weber, age por ação irracional afetiva ou ação irracional tradicional, movida pela indignação de que no passado era costume aplicar-se eletrochoque em pacientes indisciplinados (indignação justa e partilhada por todos nós, quando se trata desse específico fim)8.

12. Evoco Max Weber9 novamente, quando este sustenta a complementaridade possível entre os tipos ideais éticos: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. No caso acima descrito, ante uma política pública controversa, somos, todos nós, seres de paixão e esperança pelo florescer de grandes causas humanitárias, e mesmo assim divergimos quanto ao método empreendido para alcançá-las e temos convicções, por vezes inamovíveis, ainda que reconheçamos o papel civilizador das propostas que se nos opõem.

Porém, se o Estado não disponibiliza a ECT para pessoas enfermas, não se garante com isso que doravante não mais haverá o risco de que essa seja retomada para sanções ou castigos. Proibi-la é muito mais um libelo do que propriamente essa garantia; e o arraigar-se dogmático dessa postura que proíbe a ECT dificulta e, por vezes, abole o direito (constitucional, inclusive) de pessoas que clamam por assistência equânime e criteriosa às suas saúdes abaladas.

Ou seja, neste caso, a convicção particular de uma e outras pessoas que comandam o Estado está a macular-lhes a própria responsabilidade, posto que devem boas condições de cuidado à saúde à sociedade civil que as elegeu.

Haveria soluções alternativas racionais que lhes propiciariam a confluência de convicção e responsabilidade, como, entre outras, a fiscalização da pertinência técnica e ética das indicações de ECT.

13. Nesse texto, que ora termino, procurei valer-me de três eixos conceituais do pensamento filosófico ocidental, dados por Aristóteles, Hannah Arendt e Max Weber. O tema abordado foi o de como situar-se politicamente ante conflitos éticos em Medicina da mente e que nos remetem a um uso possível da razão deliberativa da ação, possibilidade essa contingenciada pela característica intrinsecamente instável da natureza dos fenômenos em tela, fenômenos móveis e em constante transformação, pois que dados pela vida enquanto bios e enquanto cultura, vida total compreendida como o pleomorfismo resultante da mistura amalgamada dos planos interdependentes biológico/psicológico/sociológico (sempre em constante e imprevista poiesis).

Difícil tarefa, pois que idealmente exigiria uma linguagem e uma filosofia plásticas, a tal ponto que fundassem categorias intercambiantes para realmente dar conta do movimento da vida total. A experiência que ora exponho procura nutrir-se de filosofias suficientemente expressivas e compreensivas, compatíveis para se esboçar uma tentativa de acolher a diversidade, multiplicidade e complexidade do campo em estudo. Fica-me, no entanto, por um lado, a impressão de que estamos muito longe de esclarecer o que foi apenas intuído.

Todavia, permanece a forte intuição de que a mente humana não tem um tempo cronológico e um lugar delimitado, porque sua complexidade e pleomorfismo parecem indicar, por fim, que tudo é um. Manto inconsútil. E que os fundamentos biológicos, psicológicos e sociológicos que o constituem parecem ser modos distintos de uma só substância, a que afinal e precariamente chamamos homem.

Recebido: 10/2/2009

Aceito: 18/5/2009

  • 1. Foucault M. Maladie mentale et psychologie. Paris: PUF; 2005. p. 12.
  • 2. Agamben G. La inmanencia absoluta. In: Giorgi G, Rodriguez F (compiladores). Ensayos de biopolítica excesos de vida. Buenos Aires: Paidós; 2007. p. 60.
  • 3. Bunge M. Dicionário de Filosofia. (trad. Gita Guinsburg). São Paulo: Editora Perspectiva; 2002. p. 183; 286.
  • 4. Canguilhem G. O normal e o patológico. (trad. Maria Thereza Barrocas). Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1982. p. 146.
  • 5. Arendt H. A condição humana. (trad. Roberto Raposo) 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. p. 16-7; 289.
  • 6. Foucault M. Maladie mentale et psychologie; 2005. p. 7; 157-8.
  • 7. Heráclito. Os pensadores. São Paulo: Abril cultural.
  • 8. Saint-Pierre HL. Max Weber, entre a paixão e a razão. Campinas: Editora Unicamp; 2004.
  • 9. Weber M. A política como vocação. In: Ciência e política duas vocações. (Hegenberg L, Mota O, trad.). São Paulo: Cultrix, s/ data.
  • Endereço para correspondência:

    Mauro Aranha de Lima
    Alameda Lorena, 1304, cjs.1610/13
    01424-001 – São Paulo, SP
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    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2010
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