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Avaliação de qualidade de vida e importância dada a espiritualidade/religiosidade/ crenças pessoais (SRPB) em adultos com e sem problemas crônicos de saúde

Resumos

CONTEXTO: Não existem estudos avaliando a associação entre religiosidade e qualidade de vida, comparando pessoas doentes e saudáveis, independentemente do tipo de doença e da idade. OBJETIVO: Verificar a associação entre: (1) presença de uma doença crônica e a importância dada à espiritualidade/religiosidade/ crenças pessoais (SRPB); (2) presença de um problema crônico de saúde e qualidade de vida (QV), ajustada para fatores como idade, nível socioeconômico (NSE) e sintomas depressivos; (3) QV e a importância dada à SRPB, também ajustada para os mesmos fatores. DELINEAMENTO: estudo transversal. Sujeitos: n = 241, sendo 122 pacientes internados e ambulatoriais com alguma doença crônica, provenientes de um hospital universitário, e 119 indivíduos saudáveis membros ativos de comunidades religiosas. Instrumentos: a) WHOQOL-100 (QV); b) BDI (sintomas depressivos); c) WHOQOL-SRPBi - escala de importância dada às facetas do módulo de SRPB do WHOQOL-100 (importância dada à SRPB). RESULTADOS: Pacientes mostraram piores escores que os saudáveis na maioria dos domínios do WHOQOL-100, com exceção do domínio do SRPB. Os pacientes (média = 97,2 ± 13,0) tiveram escores mais altos que os saudáveis (média = 92,9 ± 16,4) na avaliação de importância dada à SRPB (P = 0,03). Usando um modelo de regressão múltipla, a importância dada à SRPB aparece positivamente associada com os domínios geral, psicológico, relacionamento social, ambiente e SRPB do WHOQOL-100 (beta = 0,10; beta = 0,17; beta = 0,12; beta = 0,11; beta = 0,72, respectivamente; P < 0,05), quando ajustado para idade, NSE, sintomas depressivos e a presença de um problema crônico de saúde. CONCLUSÃO: A importância da SRPB aparece positivamente associada com a QV na maioria de seus domínios, independentemente de outros fatores envolvidos. Esse achado pode ser considerado ao se planejarem intervenções para a melhoria da QV de pacientes acometidos por problemas crônicos de saúde.

Qualidade de vida; religiosidade; condições crônicas de saúde; WHOQOL


BACKGROUND: There is a lack of studies seeking to elucidate the association of religiousness with quality of life, comparing sick and healthy people, regardless the type of disease and age group. OBJECTIVE: To examine the association between: (1) presence of a chronic health condition and the importance given to spirituality/ religiousness/personal beliefs (SRPB); (2) presence of a chronic health condition and quality of life (QOL) adjusted for age, socioeconomic level and depressive symptoms; (3) QOL and importance given to SRPB, also adjusted for the same factors. DESIGN: cross-sectional study. Participants: n = 241 consisted of 122 inand outpatients from a university hospital and 119 religious healthy subjects from community. Measurements: a) WHOQOL-100 (QOL); b) BDI (depressive symptoms); c) WHOQOL-SRPBi - scale of importance assigned to the facets of the Spirituality/Religiousness/Personal Beliefs Module of WHOQOL-100 to measure importance given to religiousness. RESULTS: Patients in comparison to healthy subjects showed worse scores in most WHOQOL-100 domains. The patients' mean score of the WHOQOL-SRPBi was 97.2 compared to the healthy subjects' mean score = 92.9 (P = 0.03). After using a multiple regression model, the WHOQOL-SRPBi appears positively associated with the psychological, the social relationships, the environment, the SRPB domains and general QOL (beta = 0.17; beta = 0.12; beta = 0.11; beta = 0.72; beta = 0.10, respectively), when adjusted for age, SEL, BDI and the presence of a chronic health condition. DISCUSSION: The more important is the SRPB for these people, the better is their QOL in most of their domains, independently of other factors involved. This finding may be taken into account when planning interventions to improve QOL of chronic health patients.

Quality of life; religiousness; chronic health conditions; WHOQOL


ARTIGOS ORIGINAIS

Avaliação de qualidade de vida e importância dada a espiritualidade/religiosidade/ crenças pessoais (SRPB) em adultos com e sem problemas crônicos de saúde

Neusa Sica da Rocha; Marcelo Pio da Almeida Fleck

Professora-associada de Psiquiatria, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Neusa Sica da Rocha Av. Iguaçu, 119/201 Petrópolis – 90470-030 – Porto Alegre, RS, Brasil Telefone: (11) 3338-0496. Fax: (51) 2101-8413 E-mail: neusa-rocha@via-rs.net

RESUMO

CONTEXTO: Não existem estudos avaliando a associação entre religiosidade e qualidade de vida, comparando pessoas doentes e saudáveis, independentemente do tipo de doença e da idade.

OBJETIVO: Verificar a associação entre: (1) presença de uma doença crônica e a importância dada à espiritualidade/religiosidade/ crenças pessoais (SRPB); (2) presença de um problema crônico de saúde e qualidade de vida (QV), ajustada para fatores como idade, nível socioeconômico (NSE) e sintomas depressivos; (3) QV e a importância dada à SRPB, também ajustada para os mesmos fatores.

DELINEAMENTO: estudo transversal. Sujeitos: n = 241, sendo 122 pacientes internados e ambulatoriais com alguma doença crônica, provenientes de um hospital universitário, e 119 indivíduos saudáveis membros ativos de comunidades religiosas. Instrumentos: a) WHOQOL-100 (QV); b) BDI (sintomas depressivos); c) WHOQOL-SRPBi – escala de importância dada às facetas do módulo de SRPB do WHOQOL-100 (importância dada à SRPB).

RESULTADOS: Pacientes mostraram piores escores que os saudáveis na maioria dos domínios do WHOQOL-100, com exceção do domínio do SRPB. Os pacientes (média = 97,2 ± 13,0) tiveram escores mais altos que os saudáveis (média = 92,9 ± 16,4) na avaliação de importância dada à SRPB (P = 0,03). Usando um modelo de regressão múltipla, a importância dada à SRPB aparece positivamente associada com os domínios geral, psicológico, relacionamento social, ambiente e SRPB do WHOQOL-100 (beta = 0,10; beta = 0,17; beta = 0,12; beta = 0,11; beta = 0,72, respectivamente; P < 0,05), quando ajustado para idade, NSE, sintomas depressivos e a presença de um problema crônico de saúde.

CONCLUSÃO: A importância da SRPB aparece positivamente associada com a QV na maioria de seus domínios, independentemente de outros fatores envolvidos. Esse achado pode ser considerado ao se planejarem intervenções para a melhoria da QV de pacientes acometidos por problemas crônicos de saúde.

Palavras-chave: Qualidade de vida, religiosidade, condições crônicas de saúde, WHOQOL.

Introdução

Evidências crescentes têm associado religiosidade com saúde mental. Em uma revisão sistemática de aproximadamente 200 artigos, uma associação positiva foi mostrada em 50% dos casos e uma negativa em 25%. Nessa revisão, a religiosidade foi considerada um fator protetor para suicídio, abuso de drogas e de álcool, comportamento delinquente, satisfação marital, sofrimento psicológico e psicoses1. Alguns investigadores observaram uma religiosidade aumentada durante eventos de vida negativos, incluindo o adoecimento1-4. Por outro lado, a conexão com a religião pode ser uma fonte de alívio ou desconforto, dependendo de como a pessoa se relaciona com ela3,5.

Embora haja muitos estudos relacionados à avaliação da religiosidade, eles apresentam uma série de limitações metodológicas. Revisando o assunto, Sloan et al.6 indicaram que as diferençasgenéticas, comportamentais e variáveis, tais como idade, gênero,grau de instrução, grupo étnico, nível socioeconômico e a presença de uma doença física, podem ser importantes vieses de confusão nesses estudos. Em uma revisão recente7, os autores verificaram que a maioria dos estudos bem-conduzidos sustenta que níveismais elevados de envolvimento com a religião estão associadospositivamente com indicadores de bem-estar psicológico (satisfaçãocom a vida, felicidade, afeto positivo e moral elevado) e com menos depressão, ideação e comportamento suicidas e abuso de drogas e álcool. Geralmente, o impacto positivo do envolvimento religioso na saúde mental é mais exuberante entre pessoas sob circunstâncias de vida estressantes (pessoas idosas, aquelas com alguma inabilidade e aquelas com alguma doença).

Outra dificuldade é como medir a religiosidade. A avaliação da religiosidade é feita de maneiras diferentes nos diversos estudos8,9. Comumente, a variável "religiosidade" é avaliada por meio da afiliação (por exemplo, católico, budista etc.), da prática religiosa (praticante/não praticante) ou da frequência de comparecimento aos cultos religiosos (semanal, mensal etc.). Sabe-se que essas estratégias são inadequadas, por limitarem o estudo de algo tão complexo como a religiosidade na vida de um paciente a apenas uma variável8,10.

Independentemente de seu efeito na evolução das doenças, essa área da vida dos pacientes tem sido identificada como muito relevante e como um importante domínio a ser levado em conta na avaliação da qualidade de vida11-16. Como um exemplo de reconhecimento da importância da dimensão espiritual, a Organização Mundial de Saúde incluiu um domínio de espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais17 em seu instrumento para avaliação da qualidade de vida (WHOQOL)14.

Uma vez que a maioria dos estudos refere-se à população de pacientes idosos, com doenças crônicas ou terminais, faltam estudos que procurem elucidar a associação da religiosidade com qualidade de vida, comparando pessoas doentes e saudáveis, independentemente do tipo de doença e da faixa etária, usando um conceito mais definido de atitudes e crenças com relação à dimensão não material. O Centro Brasileiro do Grupo do WHOQOL encontrou interessantes resultados utilizando a técnica dos grupos focais. A maioria dos pacientes e dos grupos religiosos destacou a importância de estudar questões espirituais/religiosas na assistência à saúde. Entretanto, os profissionais de saúde e os grupos ateus discordaram dessa ideia. Os brasileiros têm uma forte fé em Deus e na dimensão espiritual; isso se torna evidente tendo em vista a diversidade de envolvimento com a religião que eles têm18. Muitas pessoas no Brasil creditam sua melhora de saúde mais às forças espirituais que ao tratamento médico recebido. Seria de grande interesse verificar se esse tipo de comportamento pode melhorar a qualidade de vida deles.

Os objetivos do presente estudo são examinar a associação entre: (1) presença de uma doença crônica e a importância dada à religiosidade; (2) presença de uma doença crônica e a qualidade de vida; (3) QV e importância dada à religiosidade, ajustado para idade, nível socioeconômico e sintomas depressivos.

Metodologia

O levantamento de dados foi executado nas enfermarias e nos ambulatórios do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e na comunidade, baseada nos centros religiosos, durante um período de três meses. Após ser obtido o consentimento informado, os entrevistadores fizeram uma breve entrevista com os participantes, coletando informações demográficas e relacionadas à saúde. As outras informações foram obtidas mediante questionários autoaplicáveis, sob a supervisão dos entrevistadores.

O desenho foi de um estudo transversal.

A amostra foi selecionada por conveniência tanto para os pacientes como para o grupo saudável. Para o grupo de pacientes, a equipe de pesquisa contatou a enfermeira sênior da unidade (clínica, ambulatório ou cirúrgica), que forneceu uma lista dos indivíduos elegíveis, que eram selecionados se tivessem condições clínicas para responder aos questionários. Para o grupo de indivíduos saudáveis, a técnica da "bola de neve" foi utilizada (cada indivíduo selecionado indicava um participante19 que participa de templos e lugares de oração perto do hospital). Cada indivíduo saudável foi pareado (idade, gênero e religião) com um paciente para garantir o emparelhamento.

A escolha das religiões foi feita baseada na prevalência dos grupos religiosos entre a população brasileira. As porcentagens das religiões no Brasil são: 72% de católicos, 15% de protestantes (evangélicos), 5% de espíritas, 3% de religiões afro-brasileiras e 5% de ateus20.

Critérios de inclusão para o grupo de pacientes com doença crônica: Pacientes adultos (18 anos ou mais), escolhidos entre aqueles vistos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, nas unidades de internação e ambulatório, nas várias especialidades clínicas (por exemplo, Medicina Interna, Cardiologia, Nefrologia, Neurologia, Psiquiatria etc.) e cirúrgicas, que apresentaram condições clínicas e concordaram em participar do estudo.

Critérios de inclusão para o grupo de indivíduos saudáveis: Indivíduos adultos da comunidade (18 anos ou mais), da área geográfica próxima ao hospital, que não tiveram nenhuma doença clinicamente detectável. Os indivíduos que responderam afirmativamente a alguma das perguntas abaixo foram excluídos da amostra:

– Você tem alguma doença crônica?

– Você usa atualmente alguma medicação regularmente?

– Você consultou algum médico ou profissional de saúde durante o último mês (à exceção de cuidado preventivo como o check-up ginecológico)?

A afiliação e a prática religiosas foram definidas por autoavaliação, independentemente de o indivíduo provir do grupo de indivíduos saudáveis ou de pacientes. No caso dos ateus, eles deveriam considerar-se como tal.

Medidas

– WHOQOL-SRPBi: É uma medida da importância dada às facetas do WHOQOL-SRPB. Esse valor é calculado pela soma total das pontuações dadas às questões relacionadas com o grau de importância atribuído a suas facetas. Foi usado aqui para avaliar a importância dessa dimensão. O WHOQOL-SRPB é um instrumento transcultural autoaplicável desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) envolvendo mais de 15 centros em todo o mundo, para avaliar a religiosidade, a espiritualidade e as crenças pessoais relacionadas à QV usando oito facetas: conexão com um ser ou força espiritual, paz interior/serenidade/harmonia, sentido da vida, admiração, totalidade/integração, força espiritual, fé e esperança/otimismo. O estudo piloto com uma análise psicométrica preliminar demonstrou correlações entre as facetas entre 0.51 e 0.91 e alfa total = 0.9117. O WHOQOL-SRPB mede SRPB relacionada à QV e o WHOQOL-SRPBi mede a importância dada pela pessoa aos aspectos medidos pelo WHOQOL-SRPB.

– WHOQOL-100: Instrumento transcultural autoaplicável organizado pela OMS para avaliar a QV por meio de seis domínios: físico, psicológico, ambiental, relacionamentos sociais, nível de independência e espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais17,21,22.

– Escalas de Depressão (BDI) e de Desesperança (BHS) de Beck: Instrumentos autoaplicáveis, validados e traduzidos para o português, que avaliam os sintomas depressivos (BDI) e a desesperança (BHS) nas semanas que precedem seu uso23,24.

– Critério de Classificação Econômica – Brasil: Essa classificação avalia o nível econômico do indivíduo, considerando bens de consumo e o nível educacional. Nessa classificação, cada bem de consumo (por exemplo, o refrigerador, a televisão, o telefone etc.) recebealgum valor, e a contagem final é a soma desses valores mais o valor relacionado ao nível educacional. Essa contagem final também pode ser classificada nas classes econômicas, que podem variar entre A, B, C, D e E. Segundo esse critério, 71% da população da cidade onde este estudo foi realizado pertencem às classes econômicas pobres25. Esse instrumento foi aplicado pelos entrevistadores.

Todos os indivíduos convidados a participar do estudo assinaram um consentimento escrito que apresenta os objetivos do estudo.O Comitê de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) aprovou o projeto.

Análise estatística

Os seguintes testes foram usados: teste T de Student para comparar médias; qui-quadrado de Pearson, com correção de Yates quando necessário, para comparar as proporções das variáveis categóricas; regressão linear múltipla para controlar fatores confundidores e covariáveis. O nível de significância considerado foi de 5% para a maioria de testes, à exceção da regressão múltipla, em que foi considerado significativo o nível de 10%. O programa estatístico usado foi o SPSS 10.0.

Resultados

As características principais da amostra são apresentadas na tabela 1. Os problemas de saúde apresentados mais frequentemente pelos pacientes foram: hipertensão 18%, cardiopatias 15.6%, neoplasias 13.1%, diabetes mellitus 13.1%, enfisema/asma/bronquite 11.5%, doenças autoimunes 8.2%, e doenças crônicas renais 8.2%.

Os pacientes tiveram as médias significativamente mais baixas na maioria dos domínios de QV, incluindo QV em geral, à exceção do domínio de SRPB, em que os pacientes tiveram uma média ligeiramente mais alta, mas essa diferença não foi estatisticamente significativa, como mostrado na tabela 2.

Comparando pacientes e indivíduos saudáveis acerca da medida da importância dada à espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais (WHOQOL-SRPBi), os pacientes tiveram escores significativamente mais elevados do que indivíduos saudáveis.

Uma vez que, a despeito do pareamento, havia diferenças significativas entre pacientes e indivíduos saudáveis nas principais variáveis de interesse (idade, nível socioeconômico, estado marital e escores de BDI) e estas podem ser correlacionadas à religiosidade (r2 idade = 0.19; r2SNE = -0.14; r2BDI = -0.08; P < 0.05), as diferenças encontradas na religiosidade foram controladas estatisticamente por meio de um modelo de regressão linear múltipla.

Somente a variável "nível socioeconômico" foi incluída no modelo. Os anos do estudo e o nível de instrução foram excluídos por razões de colinearidade. A mesma lógica foi usada para incluir a variável do escore BDI e excluir a do BHS (Inventário de Desesperança de Beck).

A importância dada à SRPB está associada positivamente com a maioria dos domínios de qualidade de vida do WHOQOL-100, incluindo a qualidade de vida em geral, mesmo quando outros fatores, tais como a idade, o NSE, os sintomas depressivos e a presença de uma doença crônica, são levados em conta. As correlações mais elevadas foram encontradas entre o domínio de SRPB (beta = 0,72; P < 0,0001) e o domínio psicológico (beta = 0,17; P < 0,0001), seguido pelos domínios de relacionamentos sociais (beta = 0,12; P < 0,05), ambiental (beta = 0,11; P < 0,10) e qualidade de vida em geral (beta = 0,10; P < 0,10).

A presença de uma doença crônica foi correlacionada negativamente ao domínio físico, ao nível de independência e à qualidade de vida em geral (beta = -0,32; beta = -0,48; beta = -0,22, respectivamente).

Outro achado importante foi a participação de sintomas depressivos em correlações negativas em todos os domínios de QV26.

O nível socioeconômico parece ser correlacionado negativamente somente aos domínios de relacionamentos sociais e do ambiente.

Discussão

O presente estudo mostrou diferenças na importância dada à SRPB entre grupos dos pacientes e indivíduos saudáveis. Essa diferença pode ser subestimada neste estudo, uma vez que os indivíduos saudáveis eram membros praticantes de uma religião e consequentemente tenderiam a ter escores mais elevadas de religiosidade do que a população em geral. Portanto, a diferença pode ser explicada pela: 1) necessidade aumentada de suporte apresentada pelos pacientes, a fim de enfrentar as exigências associadas ao adoecimento3,27-30, 2) possibilidade de que os indivíduos doentes procurem um sentido ou uma explicação para o fato de terem ficado doentes31, ou 3) uma tentativa de cura por meio da fé32. Visto que todos os pacientes estão em tratamento em um hospital, todas as explicações possíveis não são mutuamente excludentes.

A respeito da QV, pode-se ver que a presença de uma doença crônica pode ser associada com piora na maioria dos domínios, exceto o domínio de SRPB. Neste, os escores são mais elevados em pessoas doentes. Este achado sugere que o domínio de SRPB pode não ser apropriado para demonstrar as diferenças entre os indivíduos saudáveis e os doentes17,33.

É interessante notar que, quando se analisa o impacto da religiosidade sobre os diferentes domínios da qualidade de vida, observa-se que esta pode ser associada positivamente com a maioria de seus domínios. A importância da espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais (medida pelo WHOQOL-SRPBi) foi correlacionada positivamente aos domínios psicológico, de relacionamentos sociais, de ambiente, à QV e, obviamente, à SRPB, mesmo após o ajuste para o nível socioeconômico, os sintomas depressivos, a idade e a presença de uma doença crônica. Esse achado está de acordo com a literatura atual, que mostra a relação entre a religiosidade e melhores relações sociais1,34. Além disso, no que diz respeito ao domínio psicológico, é sabido o quanto a religiosidade pode estar associada com níveis mais baixos de depressão35,36, a índices mais elevados de esperança e bem-estar37, o que também pode explicar a correlação positiva com a qualidade de vida em geral.

O papel do nível socioeconômico nos resultados faz-nos buscar explicações. No Brasil, as pessoas com um nível socioeconômico mais baixo muitas vezes têm acesso aos centros religiosos mais facilmente do que aos serviços de saúde38. Além disso, as pessoas com menor nível socioeconômico podem ter menos modelos explicativos, que competem com a religião, devido a um problema de nível cultural associado.

Os dados do estudo indicam que, entre a religiosidade e a presença de uma doença crônica, existem variáveis que se inter-relacionam e, portanto, um modelo linear de causa e efeito, bem como uma abordagem transversal, não se aplica à complexidade do fenômeno.

Com base em nossos dados e naqueles encontrados na literatura, o estudo das atitudes e crenças relacionadas com a dimensão não material da vida é claramente complexo. Mesmo tendo ajustado estatisticamente nossos resultados mediante um modelo de regressão múltipla, é necessário ter uma abordagem longitudinal para avaliar todos os fatores de confusão e de causalidade reversa que podem explicar as correlações encontradas.

Os dados apresentados sugerem que as crenças e atitudes relacionadas à dimensão material devem ser consideradas como um fator importante no processo saúde-doença. Nossos achados apontam para a importância da religiosidade na vida dos pacientes durante esse processo. Isso pode ser levado em conta quando do planejamento da intervenção, visando melhorar a qualidade de vida deles. É evidente que a religiosidade é um aspecto relevante a ser considerado na avaliação da QV. Nesse contexto, recomenda-se que outros instrumentos genéricos de QV, que não incluem essa faceta em seu modelo conceitual, sejam revisados, para incorporar a avaliação das atitudes relacionadas a essa dimensão única.

Agradecimentos

Este estudo foi parcialmente financiado pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e pela Fundação Fetzer.

Recebido: 20/10/2009

Aceito:15/4/2010

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Out 2009
    • Aceito
      15 Abr 2010
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