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Estudo de caso controle para avaliar o impacto do abuso sexual infantil nos transtornos alimentares

A case-control study to assess the impact of childhood sexual abuse on eating disorders

Resumos

CONTEXTO: O objetivo deste estudo foi investigar se antecedente de abuso sexual na infância (ASI) está associado com transtornos alimentares na vida adulta. MÉTODOS: Realizou-se um estudo de caso controle (N = 120) comparando mulheres com transtornos alimentares tratadas em ambulatório universitário especializado com um grupo controle de pacientes de clínica não psiquiátrica (ambulatório de oftalmologia). RESULTADOS: Este estudo encontrou maior prevalência de ASI na anorexia nervosa (AN) comparada ao grupo controle (50% versus 14,8%; OR = 5,8 IC 95% = 1,3-25,6; p < 0,05), entretanto não identificou diferença estatística entre os grupos comparando com casos de bulimia nervosa (BN) (26,7% versus 27% no grupo controle; OR = 0,99; IC 95% = 0,24-4,1) e com transtorno de compulsão alimentar periódica (TCAP), apesar da maior prevalência de ASI observada neste último em relação ao grupo controle (43,7% versus 27,3%; OR = 2,1 IC 95% = 0,5- 8,1). Considerando-se a presença de dois ou mais episódios de ASI, observou-se também maior prevalência em AN (35,7% versus 3,7% nos controles; OR = 14,4 IC 95% = 1,5-140,8; p < 0,05). CONCLUSÃO: Este estudo mostrou forte associação da anorexia nervosa com antecedentes de abuso sexual na infância.

Abuso sexual; anorexia; bulimia; transtorno de compulsão alimentar periódica; caso controle


BACKGROUND: The aim of this study is to evaluate if exposure to childhood sexual abuse (CSA) is related with eating disorders in adult life. METHODS: A case-control study was performed comparing women with diagnoses of eating disorders - from PROATA (acronym in Portuguese meaning Eating Disorders Program) of Federal University of São Paulo - and non-psychiatric clinic patients as control group at Ophthalmology Centre. RESULTS: The prevalence of CSA for binge-eating disorder was 43.7%, whilst in the control group it was 27.3% (OR = 2.1; CI 95% = 0.5- 8.1). The prevalence of CSA for bulimia nervosa was 26.7% and, 27% in control group (OR = 0.99; CI 95% = 0.24-4.1). The prevalence of CSA in anorexia nervosa was 50%, whilst in control group it was 14.8% (OR = 5.8; CI 95% = 1.3- 25.6; p < 0.05). Taking into account only the history of two or more CSA episodes, those patients with anorexia nervosa had 35.7% CSA prevalence, and 3.7% in control group (OR = 14.4; CI 95% = 1.5-140.8; p < 0.05). CONCLUSION: This study has shown a strong association between anorexia nervosa and childhood sexual abuse.

Sexual abuse; anorexia nervosa; bulimia nervosa; binge eating disorder; case-control


ARTIGO ORIGINAL

Estudo de caso controle para avaliar o impacto do abuso sexual infantil nos transtornos alimentares

A case-control study to assess the impact of childhood sexual abuse on eating disorders

Felipe Paraventi; Angélica de Medeiros Claudino; Christina Marcondes Morgan; Jair de Jesus Mari

Programa de Atendimento aos Transtornos Alimentares (PROATA), Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Felipe Paraventi Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psiquiatria Rua Borges Lagoa, 570, 7° andar, conjunto 71 Vila Clementino - 04038-020 - São Paulo, SP E-mail: fparaventi@gmail.com

RESUMO

CONTEXTO: O objetivo deste estudo foi investigar se antecedente de abuso sexual na infância (ASI) está associado com transtornos alimentares na vida adulta.

MÉTODOS: Realizou-se um estudo de caso controle (N = 120) comparando mulheres com transtornos alimentares tratadas em ambulatório universitário especializado com um grupo controle de pacientes de clínica não psiquiátrica (ambulatório de oftalmologia).

RESULTADOS: Este estudo encontrou maior prevalência de ASI na anorexia nervosa (AN) comparada ao grupo controle (50% versus 14,8%; OR = 5,8 IC 95% = 1,3-25,6; p < 0,05), entretanto não identificou diferença estatística entre os grupos comparando com casos de bulimia nervosa (BN) (26,7% versus 27% no grupo controle; OR = 0,99; IC 95% = 0,24-4,1) e com transtorno de compulsão alimentar periódica (TCAP), apesar da maior prevalência de ASI observada neste último em relação ao grupo controle (43,7% versus 27,3%; OR = 2,1 IC 95% = 0,5- 8,1). Considerando-se a presença de dois ou mais episódios de ASI, observou-se também maior prevalência em AN (35,7% versus 3,7% nos controles; OR = 14,4 IC 95% = 1,5-140,8; p < 0,05).

CONCLUSÃO: Este estudo mostrou forte associação da anorexia nervosa com antecedentes de abuso sexual na infância.

Palavras-chave: Abuso sexual, anorexia, bulimia, transtorno de compulsão alimentar periódica, caso controle.

ABSTRACT

BACKGROUND: The aim of this study is to evaluate if exposure to childhood sexual abuse (CSA) is related with eating disorders in adult life.

METHODS: A case-control study was performed comparing women with diagnoses of eating disorders - from PROATA (acronym in Portuguese meaning Eating Disorders Program) of Federal University of São Paulo - and non-psychiatric clinic patients as control group at Ophthalmology Centre.

RESULTS: The prevalence of CSA for binge-eating disorder was 43.7%, whilst in the control group it was 27.3% (OR = 2.1; CI 95% = 0.5- 8.1). The prevalence of CSA for bulimia nervosa was 26.7% and, 27% in control group (OR = 0.99; CI 95% = 0.24-4.1). The prevalence of CSA in anorexia nervosa was 50%, whilst in control group it was 14.8% (OR = 5.8; CI 95% = 1.3- 25.6; p < 0.05). Taking into account only the history of two or more CSA episodes, those patients with anorexia nervosa had 35.7% CSA prevalence, and 3.7% in control group (OR = 14.4; CI 95% = 1.5-140.8; p < 0.05).

CONCLUSION: This study has shown a strong association between anorexia nervosa and childhood sexual abuse.

Keywords: Sexual abuse, anorexia nervosa, bulimia nervosa, binge eating disorder, case-control.

Introdução

Embora os transtornos alimentares sejam doenças relativamente incomuns (prevalência ao longo da vida de anorexia nervosa de 0,9% em mulheres e 0,3% em homens e de bulimia nervosa de 1,5% em mulheres e 0,5% em homens), representam preocupação de saúde pública, por sua frequente associação com outras condições mentais e orgânicas1. Um estudo identificou a presença de diagnósticos psiquiátricos do eixo I (DSM-III-R) em 81,9% dos pacientes internados com transtornos alimentares, e 69% dos pacientes também preencheram critérios diagnósticos para, ao menos, um transtorno de personalidade2. A alta taxa de mortalidade, 10%-15%, encontrada em pacientes anoréxicas é a uma das mais elevadas entre os transtornos psiquiátricos3. Diversos estudos têm sido realizados na tentativa de explorar fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares4-6 e, embora alguns deles - sexo feminino, problemas alimentares na infância, abuso sexual e morbidade psiquiátrica em geral - já tenham sido associados7, os dados disponíveis de pesquisas não são conclusivos quanto aos mecanismos subjacentes ao desencadeamento do transtorno. O modelo mais aceito atualmente, que melhor integra as diversas causas, é o "biopsicossocial": juntando fatores culturais, sociais e familiares com as características individuais - de fisiologia, cognição e personalidade -, apontando ainda a presença de insatisfação com o corpo como base para o aparecimento dos transtornos alimentares8.

Muitas pesquisas tentam demonstrar a influência do abuso sexual no desenvolvimento da anorexia ou bulimia nervosa. Comportamentos compulsivos por limpeza foram identificados em indivíduos com antecedentes de abuso sexual, o que pode representar uma tentativa de purificação do próprio corpo em virtude do trauma anterior9. Esse mecanismo se relaciona com a insatisfação corporal, que age como mediador em todo o processo, sendo elo entre o abuso sexual na infância e os transtornos alimentares10. Foi demonstrado que mulheres que alegaram abuso físico durante a infância eram mais propensas a sofrer de sintomas de transtornos alimentares4. Essa relação era ainda mais evidente naquelas que alegaram abuso físico e também sexual, preenchendo inclusive os critérios diagnósticos (DSM-IV) para transtorno alimentar4. A complexidade desse assunto tem aumentado com diversos estudos; alguns autores encontraram 30% dos pacientes numa clínica de transtornos alimentares (a maioria com anorexia nervosa) com história pregressa de abuso sexual na infância11. Entretanto, como os eventos de estresse são fatores de risco para desenvolvimento de psicopatologia em geral12, a associação entre abuso sexual na infância e transtornos alimentares pode ser semelhante à associação desse evento estressor com outros transtornos psiquiátricos.

A relação entre bulimia nervosa e abuso sexual na infância aparenta ser mais forte e constante quando comparada com a relação observada na anorexia nervosa, ainda controversa. Pacientes bulímicos contaram mais história de abuso emocional, sexual ou físico do que a população em geral, enquanto os anoréxicos não mostraram qualquer relação com os fatores investigados13. Pesquisando apenas o abuso sexual, indivíduos que relataram um único episódio tinham risco 2,5 vezes maior de desenvolver um transtorno bulímico, enquanto os que relataram dois ou mais episódios tinham risco 4,9 vezes maior. Nesse mesmo trabalho, a análise em relação à anorexia nervosa não evidenciou qualquer risco aumentado14. Por outro lado, encontrou-se história de abuso sexual infantil antecedendo o início dos sintomas em aproximadamente 48% dos pacientes com anorexia nervosa. Além disso, mostrou-se também que a maior parte desses indivíduos encontrava-se no subtipo purgativo da doença, em vez do subtipo restritivo, denotando maior grau de psicopatologia no grupo mais afetado15. Uma explicação plausível é que comportamentos de purgação possam ajudar a modular estados internos negativos, que se assemelham aos efeitos emocionais do abuso15.

Essas grandes divergências de resultados nos trabalhos de abuso sexual infantil e anorexia nervosa são explicadas por diferenças nas amostras, na metodologia ou mesmo na definição de abuso que cada pesquisador procurou15, o que acaba por prejudicar a interpretação e a comparação dos achados. Tais considerações metodológicas já haviam sido alertadas quando se apontou que o modo como as informações de abuso sexual na infância são coletadas é um ponto de extrema importância e impacto para a evolução do estudo. As formas autoadministráveis ofereceriam privacidade e anonimato, enquanto entrevistas teriam a vantagem de ajudar a esclarecer detalhes envolvidos no abuso sexual na infância (ASI)16. Diante disso, o objetivo deste estudo foi investigar se o antecedente de ASI está associado com transtornos alimentares na vida adulta.

Método

Procedimentos

Por se tratarem de condições relativamente raras, foi realizado um estudo retrospectivo do tipo caso controle buscando evidenciar a presença ou não de relação entre o abuso sexual na infância e os transtornos alimentares - anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar periódica.

Os participantes recrutados para o grupo de casos foram indivíduos maiores de 18 anos, do sexo feminino, que haviam recebido, ao longo de seu acompanhamento em serviço psiquiátrico especializado no tratamento de transtornos alimentares, o diagnóstico clínico de algum transtorno alimentar (anorexia nervosa, bulimia nervosa ou transtorno de compulsão alimentar periódica), com base nos critérios do DSM-IV. O grupo controle foi formado pareando-se sexo e idade, considerando-se diferença de dois anos de idade. Os participantes foram selecionados de clínica não psiquiátrica (ambulatório de refração ocular do Departamento de Oftalmologia - Universidade Federal de São Paulo) e, posteriormente, inquiridos sobre presença de tratamento psiquiátrico atual ou pregresso, uso de medicações psiquiátricas ou existência de algum diagnóstico psiquiátrico em qualquer fase da vida. Os indivíduos com qualquer desses antecedentes foram excluídos da pesquisa.

Todos os participantes foram convidados a ingressar na pesquisa, preenchendo termo de consentimento livre e esclarecido. Nessas condições, em dia de consulta de rotina e enquanto aguardava o atendimento (sendo, portanto, desnecessário que os pacientes se deslocassem em novo dia ou horário ao ambulatório), foi entregue o conjunto de questionários aos pacientes, sendo estes respondidos em ambiente reservado e devolvido na mesma data, em envelope opaco e lacrado.

Instrumentos

Os sujeitos que concordaram em participar da pesquisa e que preen-cheram o termo de consentimento foram solicitados a preencher os seguintes questionários:

a) Dados sociais e demográficos, como sexo, idade, etnia, estado civil, escolaridade e atividade profissional.

b) Questionário sobre a saúde mental - o Self Report Questionnaire (SRQ) -, que é um questionário binomial de 20 questões, validado para rastrear sintomas psiquiátricos na atenção primária17. O ponto de corte 7/8 é usado para classificar probabilidade de caso de transtorno afetivo menor.

c) EDE-Q (Eating Disorders Examination - Questionnaire) ou Questionário para Avaliação dos Transtornos Alimentares18, sendo utilizada sua 6ª edição19, previamente traduzida por dois coautores deste artigo e colaboradores (CM e AMC). O instrumento contém 28 questões mensurando intensidade ou frequência de sintomas e comportamentos alimentares e solicita estimativas de peso/estatura, presença de menstruação nos últimos quatro meses e uso de pílula anticoncepcional. O questionário permite calcular um escore global dos sintomas alimentares, além de possibilitar o cálculo de quatro subescores específicos - "preocupação com o peso", "preocupação com a forma", "preocupação com a alimentação" e "comportamentos restritivos". Todos esses escores foram utilizados como forma de comparação entre os grupos nos aspectos de sintomas alimentares.

d) Questionário de Investigação de Abuso Sexual na Infância16 - questiona situações consideradas como abuso sexual, todas em idade menor que 16 anos. O questionário permite graduar os episódios de acordo com a frequência de acontecimento (nunca/uma vez/mais de uma vez), bem como informar a idade em que ocorreram, as relações sociais da criança com os habitantes de sua residência na época e o violentador, possibilitando caracterizar e correlacionar presença e frequência dos eventos com as doenças atuais.

Análise estatística

Os pacientes com transtornos alimentares foram agrupados por diagnóstico, e os grupos foram comparados ao grupo controle em relação às variáveis demográficas, escores médios no SRQ, no EDE-Q e à frequência de episódios de abuso sexual. Foram utilizados testes t e de qui-quadrado para comparar casos e controles. A relação procurada entre abuso sexual na infância e cada transtorno alimentar foi realizada por meio de crosstabs, por valores de odds-ratio, com intervalos de confiança estabelecidos em 95%. Todo o processo de análise estatística foi executado com base no programa SPSS versão 17.0.

Resultados

Características dos participantes

Apenas uma paciente do grupo de transtornos alimentares recusou-se a participar do estudo; dessa forma, esse grupo totalizou 45 participantes distribuídos da seguinte maneira: 14 com diagnóstico de AN, 15 com diagnóstico de BN e 16 com diagnóstico de TCAP. Já no grupo controle, ao serem convidados para ingressar no estudo apenas, 2 indivíduos negaram sua participação, de modo que 75 totalizaram esse grupo, distribuídos em 27 para formar grupo controle da AN, 26 para BN e 22 para TCAP, conforme pareamento de sexo e idade.

Observando a semelhança entre os dois grupos, conforme disposição das tabelas 1 e 2, a idade média dos participantes, bem como as características de estado civil e escolaridade, não diferiram entre casos e controles dos três transtornos alimentares estudados. A variável etnia comportou-se de maneira semelhante, com exceção do grupo TCAP, no qual quatro participantes eram negras no grupo controle e nenhuma no grupo de casos, trazendo diferença estatística considerável entre os dois grupos, com valor de p < 0,01. As diferenças de pontuação no EDE-q foram estatisticamente significantes para todas as doenças, sendo maiores no grupo de casos que no de controles. Analogamente, a pontuação do SRQ-20 teve mesmo resultado, novamente com exceção do grupo TCAP, que não diferiu estatisticamente entre pontuação total dos seus casos e controles.

Anorexia nervosa

De acordo com a tabela 3, em relação ao abuso sexual na infância, 85,2% das pacientes do grupo controle não referiram qualquer histórico desse antecedente, havendo, portanto, exposição positiva em 14,8% dos casos. Nesse grupo, 3,7% das pacientes contavam história de dois ou mais episódios de abuso sexual na infância. Por outro lado, no grupo de casos, metade das pacientes apresentava história positiva e metade não, e do total, 35,7% contavam ter sido abusadas sexualmente mais de uma vez na infância. Esses valores resultam em uma associação positiva do abuso sexual infantil com a anorexia nervosa, sendo o odds-ratio, para ao menos um episódio do evento, igual a 5,8 (IC 95% = 1,3-25,6, p < 0,05). Quando se considerou a presença de dois ou mais episódios do evento, o odds-ratio elevou-se para 14,4 (IC 95% = 1,5-140,8, p < 0,05).

Bulimia nervosa

Analisando-se a tabela 4, o antecedente de abuso sexual infantil foi semelhante entre casos e controles (73%), sendo maior no grupo de casos somente a prevalência de história de dois ou mais episódios (13,3% versus 7,7%). Dessa maneira, não se encontrou associação dessa variável com a doença, sendo o odds-ratio, para antecedente positivo de abuso sexual infantil, igual a 0,99 (IC 95% = 0,24-4,1, não significante) e, para mais de um episódio, igual a 1,85 (IC 95% = 0,23-14,7, não significante).

Transtorno de compulsão alimentar periódica

Conforme a tabela 5, a prevalência de história positiva para abuso sexual infantil foi maior no grupo de TCAP (43,7%) do que no grupo controle (27,3%). No grupo de TCAP também se encontrou maior prevalência de pacientes com história de abuso por duas vezes ou mais (18,8% para TCAP e 13,6% para controle). Isso implicou odds-ratio de 2,1 (IC 95% = 0,5-8,1, não significante), considerando-se ao menos um episódio dos eventos na infância, e odds-ratio igual 1,5 (IC 95% = 0,3-8,4, não significante), considerando-se presença de dois ou mais episódios na infância.

Discussão

Neste estudo, identificou-se um risco aumentado para anorexia nervosa em indivíduos com antecedente de ASI quando comparados com grupo controle, formado por amostra clínica não psiquiátrica. Apesar de artigos pregressos identificarem associação entre ASI e bulimia nervosa13, nosso estudo não confirmou tal achado. Entretanto, identificou-se maior prevalência de ASI em outro transtorno do tipo bulímico, o TCAP, embora essa associação não tenha demonstrado significância estatística.

Aspecto de grande relevância obtido neste estudo diz respeito à alta frequência de abuso sexual infantil encontrada em nossa amostra; não somente na população de transtornos psiquiátricos - o que inferíamos previamente ao estudo -, mas afetando uma parcela significativa da população não psiquiátrica (embora também representantes de amostra clínica). Além disso, em grande parte das vezes, a história não é de um evento isolado, mas sim de episódios recorrentes, denotando maior exposição a esse importante evento estressor. No grupo de transtornos alimentares, essa prevalência alcançou 42% da amostra total e metade daqueles com AN; enquanto no conjunto de pacientes da oftalmologia, atingiu até 30% deles, ressaltando que os pacientes com doença psiquiátrica foram excluídos desse grupo, sendo assim, o percentual poderia ser até acrescido caso tais condições não fossem desconsideradas.

Em consequência da magnitude encontrada de abuso sexual e embora as prevalências tenham sido altas também nos controles, comprovou-se que a relação desse antecedente com os transtornos alimentares existe e mostrou-se alta para a AN - sendo o risco 5,8 vezes maior nesses indivíduos com qualquer história de ASI.

O achado de que, ao aumentar a exposição - eventos repetidos de abuso durante a infância -, se eleva o risco para 14,4 vezes fortalece ainda mais tal associação.

Estudos anteriores investigando diversos fatores de risco para a AN já haviam mostrado que o ASI mostra-se associado com aumento de risco das doenças psiquiátricas de forma geral20. Posteriormente, outros trabalhos com achados negativos para tal associação deixaram menos claro qual o impacto do ASI para a anorexia nervosa14. Este estudo reforça, portanto, o papel do ASI como fator de risco, alinhando-se com a hipótese de que o ASI seria relevante também para a anorexia nervosa15, e não apenas para a bulimia nervosa, como vinha sendo descrito13.

Algumas limitações deste estudo restringem o poder dos achados, em especial o fato de que o número de participantes é restrito, podendo não configurar uma amostra representativa da população geral. Apesar de ter sido selecionado um grupo clínico de controle vindo do ambulatório de refração (para evitar indivíduos com problemas psicossomáticos em qualquer área), o instrumento utilizado permite rastrear transtorno mental, mas não afastá-lo por completo, o que dependeria de entrevista psiquiátrica mais estruturada. Além disso, por se estudarem certos fatores com possíveis baixas prevalências - como episódios repetidos do abuso sexual -, foram encontrados resultados estatísticos não significantes ou com amplo intervalo de confiança, possivelmente em decorrência do tamanho de nossa amostra. Apesar de envolver maior número de categorias diagnósticas e, portanto, ser um estudo mais abrangente, o número de portadores de transtorno alimentar por diagnóstico ficou restrito, o que prejudicou a análise. Essas limitações podem justificar a inconsistência de alguns de nossos resultados com a literatura pesquisada, dentre eles o fato de não termos detectado risco aumentado para pacientes com diagnóstico de bulimia nervosa, como apontado previamente13,14. Estudos com amostras maiores podem ajudar a esclarecer o papel do ASI para um transtorno alimentar específico.

Apesar das limitações, esta pesquisa é inovadora na medida em que estuda também a associação entre ASI e o diagnóstico de TCAP. Trabalhos anteriores investigaram a relação entre ASI e sintomas compulsivos, ou ainda com a obesidade21 - que se trata de condição distinta embora frequentemente associada ao TCAP22. Essa linha de estudo mostra relação positiva de eventos adversos estressores na infância com a obesidade e alterações da alimentação21, e tanto o abuso infantil físico quanto sexual elevaram os riscos de obesidade e depressão na vida adulta23, porém algumas vezes interroga-se se a associação é dada por causas outras que não psiquiátricas24. Dessa maneira, é evidente que pensar no abuso sexual como fator de risco para TCAP é campo ainda pouco explorado, merecedor de maiores investigações.

Esta pesquisa amplia a discussão dos fatores de risco para desenvolvimento de transtornos alimentares na vida adulta, que para ser elucidada depende de estudos menos abrangentes, com maiores amostras e bem padronizados quanto à definição de abuso sexual. Contudo, mesmo não se tendo certeza do verdadeiro impacto do abuso sexual na infância especificamente para os transtornos alimentares, as prevalências encontradas podem ser consideradas alarmantes na óptica da saúde pública, pois demonstram que o abuso sexual infantil - fator de risco estabelecido para psicopatologia geral12 - está presente em nossa população e talvez não esteja sendo abordado de maneira adequada, no âmbito terapêutico, social, judicial e preventivo.

Agradecimentos

Nossos agradecimentos à secretária Rosa Maria Gonçalves (PROATA) e à tecnóloga Samoa Aparecida Guidil Ribeiro Silva, pelo apoio às fases de estudo no CERESO - oftalmologia. Felipe Paraventi recebeu bolsa de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (processo de número 2009/09193-0). Jair de Jesus Mari é pesquisador I-A do CNPq.

Recebido: 27/12/2010

Aceito: 13/5/2011

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      27 Dez 2010
    • Aceito
      13 Maio 2011
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