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Isotretinoína, depressão e suicídio

Isotretinoin, depression and suicide

CARTA AO EDITOR

Isotretinoína, depressão e suicídio

Isotretinoin, depression and suicide

Nuno MadeiraI; Tiago SantosII; Zulmira SantosI; António Reis MarquesI

IServiço de Psiquiatria, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), Coimbra, Portugal

IIDepartamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Hospital Infante D. Pedro (HIP), Aveiro, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Nuno Gonçalo Gomes Fernandes Madeira Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra Praceta Mota Pinto 3000-075 - Coimbra, Portugal Telefone: 239 400 650. Telefax: 239 403 950 E-mails: nunogmadeira@gmail.com; nunomadeira@huc.min-saude.pt

A isotretinoína é um derivado da vitamina A que atua por ligação aos receptores retinoides, sendo utilizada em formas severas de acne. Entre seus efeitos secundários foram reportados sintomas neuropsiquiátricos que justificaram apreciação pela agência norte-americana Food and Drug Administration; esta reportou a possibilidade de a isotretinoína causar depressão e, raramente, ideação suicida ou comportamentos suicidários. Não obstante, um consenso da Academia Americana de Dermatologia concluiu que os dados disponíveis não consubstanciavam tal associação1. Permanecem, pois, controvertidos os efeitos psiquiátricos desse fármaco.

Da nossa pesquisa de evidências de psicopatologia associada ao uso da isotretinoína, assinalamos relatos de casos, dados de registros institucionais de efeitos adversos e estudos predominantemente retrospectivos2,3. Relatos de casos, úteis para sugerir hipóteses, não estabelecem a ocorrência de depressão dita iatrogênica. Dados de sistemas de notificação de efeitos adversos têm também fornecido relatos de efeitos psiquiátricos atribuíveis à isotretinoína, em particular depressão e ideação suicida3. Na base de dados da FDA, esta se encontra no quarto lugar dos 10 fármacos mais frequentemente associados à depressão, sendo a única substância não psicotrópica dessa lista. Em termos de estudos epidemiológicos, uma investigação retrospectiva não encontrou prevalência aumentada de depressão ou comportamentos suicidários numa amostra de 7.535 indivíduos medicados com isotretinoína, por comparação com doentes sob antibióticos para acne4. Outro estudo retrospectivo (n = 18.183) reportou risco aumentado para depressão sob isotretinoína; risco relativo ajustado estimado em 2,685. Outros estudos foram conduzidos com resultados também contraditórios. A quase totalidade dessas publicações foi prejudicada por limitações metodológicas como reduzidas amostras, ausência de controlos, deficiente avaliação da psicopatologia em termos clínicos e psicométricos e patrocínio dos ensaios por empresas farmacêuticas6. Em 2007, foi realizado um estudo prospectivo controlado que não encontrou associação positiva entre isotretinoína e depressão, relevando-se a escassa amostra: 100 indivíduos7.

Em termos fisiopatológicos, sabe-se que existem abundantes receptores retinoides cerebrais, nomeadamente na amígdala, hipocampo e córtex pré-frontal. A atuação dos retinoides no sistema nervoso central encontra-se mal esclarecida, havendo relatos de alterações bioquímicas e estruturais similares às ocorridas na depressão. O ácido retinoico parece influenciar, sobretudo, o sistema dopaminérgico, promovendo a síntese de dopamina ou modulando receptores D28,9; foram também descritas alterações em outros neurotransmissores: serotonina (indução dos receptores 5-HT1A) e noradrenalina (atuação sobre seu transportador). Estudos em animais sujeitos a tratamento com ácido 13-cis-retinoico documentaram alterações no hipocampo: redução de volume e inibição da neurogênese8. Foram reportadas em humanos alterações funcionais do córtex pré-frontal, uma das poucas regiões em que ocorre síntese de ácido retinoico. Num estudo por tomografia de emissão de positrões em indivíduos medicados com isotretinoína, registrou-se metabolismo diminuído no córtex orbitofrontal9. De assinalar a reduzida amostra e a exclusão de doentes com história psiquiátrica.

Na prática clínica, surge como dificuldade o fato de a depressão ser comum nos indivíduos com acne. Formas severas dessa doença dermatológica têm elevado impacto em termos de morbilidade psiquiátrica6. Autores têm sugerido que a isotretinoína pode ter impacto psicológico positivo nas formas graves de acne, porventura em doses mais baixas que as empregues em alguns dos relatos de efeitos psiquiátricos adversos10. Por outro lado, a elevada prevalência da depressão na população torna difícil a identificação de pequenos fatores potencialmente contribuintes. Acresce como dificuldade a deficitária operacionalização do constructo depressão; frequentemente, os investigadores não utilizam entrevistas estruturadas ou instrumentos psicométricos fiáveis, dificultando a distinção entre depressão clínica e meros sintomas depressivos2.

Em conclusão, uma potencial associação entre isotretinoína e quadros psiquiátricos, nomeadamente depressivos, não pode ser confirmada com base na evidência disponível. Embora a investigação básica tenha sugerido putativos mecanismos etiopatogênicos, a evidência clínica tem-se baseado fundamentalmente em relatos de casos, que não foram sistematicamente reproduzidos em estudos epidemiológicos. Às limitações metodológicas dessas publicações, em que se ressalva a inexistência de estudos prospectivos controlados e randomizados, acrescem desafios a futuras investigações. Assinala-se a dificuldade de randomizar doentes para uma medicação que, não obstante comprovada eficácia em acne grave, é reconhecida como teratogênica, e cuja toma é dificilmente ocultada ao doente e profissionais, dada a elevada incidência de efeitos adversos facilmente notados e característicos. Também a inclusão do suicídio como "outcome" possível coloca, além de questões éticas, dificuldades como a necessidade de uma amostra porventura superior a 100.000 indivíduos, acompanhada por um período de tempo significativo.

Não obstante a incerteza quanto aos eventuais sintomas psiquiátricos atribuíveis à isotretinoína, e apesar da ausência de critérios claros que contraindiquem sua utilização, nada obsta à prudência na prática clínica. Será recomendável que se monitorizem sintomas depressivos e ideação de morte, porventura veiculando informação a doentes e familiares e encorajando o relato de alterações do humor ocorridas durante tratamento com isotretinoína.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesse relativo ao presente artigo.

Fontes de financiamento

Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Recebido: 16/11/2011

Aceito: 6/12/2011

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  • Endereço para correspondência:

    Nuno Gonçalo Gomes Fernandes Madeira
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    Praceta Mota Pinto
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      2012
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