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Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo

Work and mental wear: the individual's right to be the owner of himself

RESENHA

Edna Maria Goulart Joazeiro

Assistente social, socióloga, doutora em Educação pela Unicamp e docente da PUC-Campinas/SP, Brasil. E-mail: emgoulart@uol.com.br

O livro Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo, de autoria de Edith Seligmann-Silva, editado pela Cortez, constitui uma efetiva contribuição para a análise de um tema fundamental na contemporaneidade: a relação ente saúde mental e desgaste do trabalho. O livro empreende uma reflexão ancorada em um corpo conceitual sólido, fundado em análise densa, que permite ao leitor indagar-se sobre as conexões entre saúde mental e trabalho. A autora aponta haver uma unicidade na relação corpo/mente, que torna indissociável a relação entre saúde geral e saúde mental. Afirma que há uma inter-relação entre o trabalho e os processos saúde/doença, cuja dinâmica se inscreve de modo mais vigoroso nos fenômenos mentais, mesmo quando sua natureza seja eminentemente social. Nessa perspectiva, a autora inclui como objeto de análise não só o trabalho, mas a falta de trabalho e o trabalho precarizado que se materializa sob a forma dos riscos sociais do desemprego, dos riscos psicossociais derivados da desqualificação, tanto quanto dos ataques à dignidade dos trabalhadores. Vemos aí verdadeiros atentados à ética, pois implicam perturbações na estabilidade mental, ao mesmo tempo, que produzem agravos à saúde.

Na primeira parte do livro, a autora busca delinear um campo ampliado da Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) e o situa como um campo multidisciplinar ainda em processo de consolidação. Recorre às múltiplas contribuições dos conhecimentos oriundos de diversas disciplinas. Enfatiza a importância dos fundamentos oferecidos pela Filosofia e pela Ética para a SMRT, além de apontar as contribuições dos seguintes campos: a Psicopatologia Geral, a Psiquiatria Clínica, a Psicologia do Trabalho, a Psicanálise, a Psicodinâmica do Trabalho (PDT). No decorrer da obra, preocupa-se em assinalar como o encadeamento da trama de conceitos de cada um dos campos tem contribuído na tessitura de um arcabouço conceitual marcado pela relação de interdependência e de interpenetração do que denomina o campo ampliado da Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT). Desse modo, destacou as contribuições tanto da Psicologia Organizacional quanto da Psicologia do Trabalho, tendo afirmado que esta última, a princípio, centrava sua análise nos aspectos cognitivos, e que gradualmente se expandiu, aprofundando tanto o estudo da dimensão cognitiva quanto o da psicoafetiva, penetrando no exame da intersubjetividade e, mais recentemente, dos fenômenos microssociais e micropolíticos. Assinalou que não existem fronteiras, mas sim uma convergência e muitas vezes fusões importantes da Psicologia do Trabalho em relação a outras disciplinas, destacando entre elas a Psicologia Social, a Sociologia do Trabalho, a Ergonomia, a Ergologia, a Antropologia do Trabalho e a Psicodinâmica do Trabalho e, em certos estudos, a Psicanálise. Acrescentou a esse quadro as contribuições provenientes do campo da Saúde do Trabalhador, bem como das outras abordagens das patologias vinculadas ao trabalho; além de conferir destaque à Neurologia Clínica, à Neurociência, à Toxicologia e à Epidemiologia.

Na obra, a densidade da análise conceitual está enriquecida pela discussão de diversos estudos desse campo de conhecimento e das próprias pesquisas da autora. Essa configuração da obra deu-se com o objetivo de permitir um diálogo com aqueles que executam e vivenciam o trabalho no cotidiano. A autora utiliza de forma consistente o resultado de suas próprias pesquisas realizadas entre os anos 1980-1987;1 1 . Cf. Seligmann-Silva, 1981-83; Seligmann-Silva, Delía, Sato, 1985 e 1986; Seligmann-Silva, 1984-85; Seligmann-Silva, 1986-87. ancorada nesse rico material, analisa o desgaste mental e as repercussões das condições laborais na vida e na saúde mental de trabalhadores de diversos ramos de atividade, tais como os trabalhadores industriais da cidade de Cubatão, da siderúrgica da cidade de São Paulo, bancários, funcionários da área operativa do Metrô de São Paulo, além de analisar a saúde psicossocial no trabalho em tecnologias ditas avançadas, em estudo de caso feito com digitadores e operadores de console em processos computadorizados. Nesse intrincado de análises, a autora assinala algumas características relacionadas à constituição do desgaste mental e às defesas e resistências desenvolvidas pelos trabalhadores e suas famílias, além de apontar as repercussões de crises econômicas, bem como da recessão e o processo de ampliação da sobrecarga de trabalho, o aumento da tensão e da fadiga na vida laboral dos entrevistados. Assinala que o sofrimento mental tem sido ampliado pelo temor do desemprego, expondo trabalhadores a riscos mentais importantes pelo desenvolvimento de um tipo de gestão que exerce controle por meio da exploração dos temores de perda do emprego. A precarização do emprego, o temor da perda do emprego faz parte do que a autora denominou como a desumanização do trabalho contemporâneo e a expansão do desamparo.

Na segunda parte do livro são apresentadas as transformações do trabalho e o advento do uso de políticas e de práticas gerenciais, cujo uso dá-se em consonância com os objetivos de intensificação do uso do trabalho humano. A exacerbação do uso de ferramentas gerenciais de controle sobre o trabalhador tem levado, segundo a autora, à intensificação de uma sujeição que, muitas vezes, se constitui paralelamente a um processo de alienação. Na terceira parte, denominada - o "trabalho dominado" - a autora analisa e contextualiza a trajetória das metamorfoses da dominação, da alienação e do submetimento nas situações de trabalho sob a hegemonia do pensamento neoliberal. Nesse intrincado de relações, apresenta a confluência entre as mutações sociais e as do trabalho e suas repercussões na vida mental.

Na quarta parte, foram apresentados estudos que revelam a constituição e as manifestações do desgaste mental laboral em diversos ramos do trabalho e os impactos subjetivos e a vulnerabilização psíquica acarretada pelos acidentes de trabalho. Aborda ainda a importância da dimensão psicossocial da prevenção dos acidentes e o do atendimento psicológico aos acidentados. Na quinta parte do livro, a autora discute a "interface família-trabalho", dando destaque especial a estudos que assinalam as múltiplas dimensões presentes nas interfaces entre as novas configurações da família e do trabalho e suas repercussões na saúde mental da mulher trabalhadora. Dá ênfase aqui ao papel que o Serviço Social tem na dupla dimensão na intervenção junto a essa população e na luta pela efetivação de políticas públicas voltadas para a prevenção, a proteção e a recuperação da saúde do trabalhador. Na sexta e na sétima partes, aborda, respectivamente, as visões e percepções do trabalho pelo trabalhador e a importância dos suportes sociais e afetivos na proteção à saúde mental.

Na oitava parte do livro, denominada "Metamorfoses articuladas: sofrimento social, trabalho e desgaste mental", a autora tece sua análise em três capítulos. No primeiro, aborda a psicopatologia do trabalho nas situações de recessão e de desemprego. No segundo discute a precarização da saúde mental no contexto da precarização social e do trabalho, e no terceiro, focaliza as expressões clínicas do desgaste mental no trabalho contemporâneo, dando destaque especial à psicopatologia engendrada pela precarização e pela violência diuturnamente presentes nas relações de trabalho e de vida de parte das populações na sociedade moderna. Nessa análise, a autora dá uma efetiva contribuição para o entendimento do papel de um gerenciamento transfigurado - o gerencialismo -, no qual a arte de administrar é degradada pelo economicismo.

A abrangência e a complexidade do tema levam a autora a tecer uma trama analítica ancorada num arcabouço conceitual oriundo de diversos campos de conhecimento. Essa tessitura confere à obra um valor ímpar, à medida que permite ao leitor refletir sobre a temática da dominação relacionada às conexões entre o trabalho e o processo de desgaste humano. No decorrer da obra, ela analisa as múltiplas determinações implicadas na relação saúde/doença vinculadas à vida laboral, e o faz fundada em eixos de análises consistentes pautadas em vasta revisão de literatura de diversos campos do saber. Sua análise, fortemente marcada por uma leitura ética, tem uma dimensão ao mesmo tempo profundamente humana e política, posto que propõe um compromisso em defesa da vida.

Ao longo da obra, a autora aponta que a desumanização do trabalho contemporâneo e a expansão do desamparo exigem um enfrentamento, e para fazê-lo propõe a desmistificação por meio da superação do medo veiculado pela ideologia que postula a crença de que na era da globalização é inexorável o aprisionamento sem saída para quem vive do trabalho. O livro termina expressando, através das "reflexões finais" que estamos "em busca de caminhos".

Recebido em 20/6/2011

Aprovado em 4/7/2011

  • SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011. 624 p.
  • Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo

    Work and mental wear: the individual's right to be the owner of himself
  • 1
    . Cf. Seligmann-Silva, 1981-83; Seligmann-Silva, Delía, Sato, 1985 e 1986; Seligmann-Silva, 1984-85; Seligmann-Silva, 1986-87.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011
    Cortez Editora Ltda Rua Monte Alegre, 1074, 05014-001 - São Paulo - SP, Tel: (55 11) 3864-0111 , Fax: (55 11) 3864-4290 - São Paulo - SP - Brazil
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