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Nadir Kfouri, patrimônio do Serviço Social brasileiro e da PUC-SP

Nadir Kfouri, patrimony of the Brazilian Social Services and of PUC-SP as well

HOMENAGEM

Nadir Kfouri, patrimônio do Serviço Social brasileiro e da PUC-SP

Nadir Kfouri, patrimony of the Brazilian Social Services and of PUC-SP as well

É com profunda emoção que ocupamos este espaço da Revista Serviço Social & Sociedade para prestar uma homenagem a Nadir Kfouri, um dos maiores legados do Serviço Social brasileiro e da PUC-SP.

Em um número de julho de 1984, do Porandubas (jornal interno da PUC-SP à época), uma longa entrevista intitulada "Dia simplesmente" marcava o fim de seus dois mandatos como reitora dessa Universidade Vinte e sete anos se passaram desde então e a marca de nossa querida reitora está indelevelmente "inscrita" na história da PUC-SP.

Retomamos brevemente traços de sua biografia publicados na referida entrevista. É Nadir nos falando de si, de sua família, de suas escolhas, de sua experiência de vida como assistente social, educadora e cidadã inserida radicalmente em seu tempo.

Nadir Gouvêa Kfouri nasceu em Avaré, em 19 de dezembro de 1913, numa família de origem libanesa de seis filhos. A família mudou-se para São Paulo quando ela tinha 14 anos. Seu pai, Salomão Kfouri, comerciante, "foi um homem trabalhador que ganhava bem", mas, com família tão grande, precisou contar com o trabalho de seus filhos Trabalhando desde os 18 anos, Nadir dizia aos 70 anos: "tenho uma longa vivência de assalariada". Relembra o pai como alguém que exerceu grande influência sobre ela Mesmo sem nunca ter frequentado a escola, falava e escrevia corretamente em português, francês e árabe e gostava muito de literatura Com ele aprendeu o amor pelos livros. Nadir viveu rodeada de livros, lia vários ao mesmo tempo, em português e inglês, literatura clássica, grandes escritores contemporâneos. Ler era seu entretenimento preferido, nas suas palavras: "quando estou lendo sou uma excelente companhia para mim mesma, me distraio muito — gosto de ler..."

Fez toda a sua formação em escolas públicas: Escola Caetano de Campos, Instituto de Educação da Universidade de São Paulo (cursos de aperfeiçoamento pedagógico), que muito contribuíram com sua formação profissional Participou intensamente de movimentos da Ação Católica. Dizia ela: "aí fui me inflamando por essa sede de justiça, que trago em mim até hoje". Se tivéssemos que escolher uma única característica de Nadir Kfouri, diríamos que é exatamente essa busca de justiça que a conduziu em cada um de seus passos e, certamente, foi um dos motivos que a fez optar por cursar o Serviço Social na primeira escola brasileira. Fez parte da 1ª Turma, juntamente com Helena Junqueira e Luci Montoro.

Seu registro no Conselho Regional de Assistência Social é de número 26. For-mou-se em Serviço Social em 1938 Seu trabalho de conclusão de curso foi sobre os Educandários da Capital, em que mostrava o absurdo de uma disciplina rígida, numa total ausência de relacionamento pedagógico com as crianças e adolescentes.

Tem início uma rica vida profissional como assistente social e educadora.

A partir de 1940 foi professora na Escola de Serviço Social, então agregada à PUC-SP. Viajou aos Estados Unidos como bolsista de pós-graduação na National Catholic School of Social Service, em Washington. Fez apenas os créditos, pois precisaria de mais tempo para elaborar a tese, porém, em suas palavras, a "Faculdade precisava de mim", e então voltou para assumir a vice-direção em 1947 e a direção em 1951.

Foi também diretora e assistente social da Legião Brasileira de Assistência — LBA em São Paulo e da Secretaria do Bem-Estar Social do município de São Paulo.

Nadir formou gerações de assistentes sociais, deu cursos em todo o Brasil e em países da América do Sul. Como perita das Nações Unidas, deu aulas em escolas sediadas em Madri e Barcelona. Da Espanha voltou apaixonada, como ela mesma dizia: "não é preciso dizer por que a gente se apaixona pela Espanha. O espanhol é cheio de vitalidade e ao mesmo tempo tem grande sentido de tragédia, que se vê em Garcia Lorca".

Em 1970, a Escola de Serviço Social passou a integrar a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, em 1972, Nadir se tornou Diretora do Centro de Ciências Humanas, cargo do qual se demitiu por discordar da forma como o desdobramento daquele Centro (que naquele tempo englobava também os cursos de Ciências Jurídicas e Econômicas) foi conduzido pela Reitoria e pelo Conselho Universitário.

Em 1976 assumiu a função de Reitora da PUC-SP, por indicação do então Grão-Chanceler Dom Paulo Evaristo Arns, que precisou interceder junto ao Papa Paulo 6º para quebrar o tabu de ser a pioneira entre as mulheres a ser indicada para esse cargo em uma universidade católica Ela mesma nos contou que, chamada por D. Paulo, foi cheia de argumentos para não aceitar o convite. Porém Dom Paulo não lhe deu muita chance de argumentação e disse-lhe: "já sei de todos os seus argumentos. Mas sei que seu nome tem boa aceitação na comunidade Este é o Ano Internacional da Mulher e gostaria muito que na Reitoria da PUC-SP estivesse uma mulher". Iniciava-se assim sua trajetória como reitora. Em 1980 é reeleita pelo voto direto da comunidade puquiana para mais um mandato. Era a primeira vez que a PUC-SP elegia seu reitor através de eleições diretas, fato que inaugurava este procedimento democrático na universidade brasileira.

Suas palavras expressam o que esta experiência representou para ela:

A lição que recebi é de como é difícil a prática democrática Eu me considero uma mulher democrática e estou convencida de que a democracia se aprende vivendo ... somos um povo com pouca vivência democrática [...] A lição é esta: a democracia vale a pena, é um desafio, é difícil Requer um esforço de toda hora. A PUC é em si mesma uma alegria para mim ... a responsabilidade não me intimida mas a ideia de dominação sempre me foi intolerável. Talvez isso tenha marcado minha reitoria, no sentido de sempre trabalhar em equipe. Formei equipe com pessoas diferentes, porém capazes de trabalhar juntas e encontrar um fundamento que é o projeto educacional da PUC. Se somos educadores, devemos ser capazes de nos relacionar e trabalhar juntos. Exercer o poder numa democracia é assumir a responsabilidade até o fim: é respeitar e exigir respeito. Quando os alunos ocuparam minha sala, fiquei chocada. Foi uma experiência extremamente penosa. Por quê? Pois eu, como reitora, nunca entraria num Centro Acadêmico sem antes avisar ... O que me preocupa é que vivemos numa sociedade auto ritária e contaminados por ela. Sei que vivemos momentos difíceis de transição de costumes, num mundo extremante violento. Os educadores estão perplexos...

A gestão de Nadir Kfouri enfrentou momentos importantes e difíceis vividos pela PUC-SP no contexto da ditadura. Foi uma defensora da Universidade diante das arbitrariedades da ditadura militar, abriu as portas da Universidade Católica para intelectuais perseguidos, entre os quais Paulo Freire e Florestan Fernandes, e iniciou a reconstrução do TUCA (teatro da PUC-SP) após os incêndios criminosos de 1984.

O episódio de maior tensão foi certamente a invasão da PUC-SP pelas forças policiais comandadas pelo coronel Erasmo Dias, então Secretário de Segurança de São Paulo, que ela enfrentou do jeito que sempre foi, como mulher forte e decidida, coerente com seus princípios de preservação da autonomia universitária, inabalável na afirmação da justiça e do respeito à dignidade humana.

Noticiada amplamente pela imprensa, permanece na memória a cena histórica protagonizada pela reitora, ao deixar o secretário da Segurança de São Paulo, coronel Erasmo Dias, de mão suspensa no ar, ao se recusar a cumprimentá-lo na noite em que a polícia que ele comandava invadiu violentamente a PUC-SP, onde se realizava um encontro para retomada da UNE, em 1977. "Não dou a mão a assassinos", disse do alto de sua altiva indignação.

Vale a pena registrar aspectos de sua vida pessoal, que tem como um de seus maiores prazeres a convivência com sua família ("tenho uma sobrinhada que é uma beleza"), que gostava de viajar, fazer amigos ("tenho amizades que vêm da infância e tenho amigos em várias partes do mundo"), que gostava de uma cervejinha, uma incondicional torcedora do Corinthians. E fiel ao cristianismo, que para ela sempre foi um estímulo e uma orientação de vida.

Com estes fragmentos quisemos partilhar com os leitores da Revista Serviço Social & Sociedade traços dessa pessoa incomum que foi Nadir Kfouri. Para as novas gerações fica aqui um exemplo de educadora que concebe a Universidade "como o lugar por excelência onde se questiona, se exerce a liberdade e se adquire consciência crítica".

Como gestora democrática, ciente de suas responsabilidades, respeitou as diferentes opiniões e propostas, caminhou orientada pela justiça na busca de uma universidade autônoma comprometida com seu tempo.

Este é o legado de Nadir Gouvêa Kfouri, falecida em 13 de setembro de 2011, aos 97 anos. Deixa para a Universidade brasileira, para a PUC-SP e para o Serviço Social brasileiro um enorme legado, expresso, entre múltiplas conquistas, pela construção da primeira pós-graduação em Serviço Social no país.

A ela nossa gratidão, nosso reconhecimento e nossa saudade.

Mariângela Belfiore Wanderley e

Raquel Raichelis

Setembro, 2011

Recebido em 19/9/2011

Aprovado em 21/9/2011

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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