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Entre o projeto de modernidade e a efetivação da democracia: marcas deixadas na construção da vida social brasileira

Between projecting modernity and putting democracy into practice: marks left in the construction of the Brazilian social life

Resumos

O presente artigo retoma algumas interpretações sobre o projeto de modernidade, aproximando-as de alguns elementos da formação social brasileira, considerando sua estreita relação para a afirmação e valorização da democracia no Brasil. Além disso, destacam-se interpretações sobre o processo de redemocratização da sociedade brasileira que ressaltam a importância da prática dos movimentos sociais para a validação desse processo.

Democracia brasileira; Formação sócio-histórica do Brasil; Modernidade; Movimentos sociais; Participação popular; Redemocratização brasileira


The present article resumes some interpretations of the project of modernity. It approaches them to some elements of the Brazilian social formation, considering the narrow relationship for the affirmation and the valuation of democracy in Brazil. Moreover, the article stresses the interpretations of the redemocratization of the Brazilian society that show how important the practice of the social movements was to the validation of such a process.

Brazilian democracy; Brazilian social-historic formation; Modernity; Social movements; Popular participation; Brazilian redemocratization


ARTIGOS

Entre o projeto de modernidade e a efetivação da democracia: marcas deixadas na construção da vida social brasileira* * Artigo elaborado a partir do Capítulo 4: "Formação social, modernidade e democracia: pegadas nos caminhos dos movimentos sociais" da tese: Lideranças e movimentos sociais no cenário sociopolítico da cidade de São Paulo: experiências coletivizadas no Observatório dos Direitos do Cidadão entre os anos 2001 e 2009, elaborada pela referida autora.

Between projecting modernity and putting democracy into practice: marks left in the construction of the Brazilian social life

Giselle Silva Soares

Doutora em Serviço Social pela PUC-SP, mestre em Serviço Social pela PUC-SP — São Paulo/SP, Brasil. Graduada em Ciências Sociais pela USP. Bacharelado e licenciatura, concluído em 1999. E-mail: giselle.silva.soares@gmail.com

RESUMO

O presente artigo retoma algumas interpretações sobre o projeto de modernidade, aproximando-as de alguns elementos da formação social brasileira, considerando sua estreita relação para a afirmação e valorização da democracia no Brasil. Além disso, destacam-se interpretações sobre o processo de redemocratização da sociedade brasileira que ressaltam a importância da prática dos movimentos sociais para a validação desse processo.

Palavras-chave: Democracia brasileira. Formação sócio-histórica do Brasil. Modernidade. Movimentos sociais. Participação popular. Redemocratização brasileira.

ABSTRACT

The present article resumes some interpretations of the project of modernity. It approaches them to some elements of the Brazilian social formation, considering the narrow relationship for the affirmation and the valuation of democracy in Brazil. Moreover, the article stresses the interpretations of the redemocratization of the Brazilian society that show how important the practice of the social movements was to the validation of such a process.

Keywords: Brazilian democracy. Brazilian social-historic formation. Modernity. Social movements. Popular participation. Brazilian redemocratization.

1. Introdução

O texto aqui apresentado nasceu da indagação acerca das dificuldades para a realização dos princípios democráticos na sociedade brasileira. Desta forma, toma-se como ponto de partida aspectos que caracterizam a modernidade como proposta de projeto societário, considerando os princípios democráticos contemplados nele.

A concepção de modernidade associa-se ao modelo sócio-histórico europeu, resultante do esgotamento da ordem social, política e econômica e da revolução burguesa. Na realidade social brasileira, o projeto europeu foi transplantado (Sodré, 1981), configurando-se em um projeto de modernidade com traços avançados e conservadores, entre os quais podemos considerar as inúmeras dificuldades para as manifestações e mobilizações populares.

O tema deste artigo tem ligação com a prática dos movimentos sociais, pois no cenário sociopolítico brasileiro as manifestações em defesa da garantia dos direitos confrontaram-se e confrontam-se às peculiaridades da formação social brasileira. Portanto, na sociedade brasileira a realização do projeto da modernidade e dos princípios democráticos corresponde à adequação das características e interesses de seu grupo dirigente.

Neste quadro, é importante retomar que a modernidade como projeto societário constituiu-se apoiada nas noções de racionalidade, universalidade, liberdade, igualdade, além de percorrer o ideal democrático. Portanto, a transformação que a envolve se processou tanto no plano socioeconômico como no sociopolítico (Wanderley, 2003). Em decorrência disso, novas instituições foram formadas, o papel do Estado foi definido com a defesa da formação da República, além da institucionalização de princípios democráticos.

Contudo, a ampliação e garantia dos direitos, o exercício da cidadania e a forma democrática de governar são condições da instituição do Estado moderno e elementos da esfera política da vida social. Sabe-se que na realidade social brasileira tais elementos e tal Estado não se realizaram plenamente, configurando-se em problemas políticos, sociais, econômicos e em dilemas para participação popular.

A vida política na sociedade moderna, em decorrência da revolução burguesa, se desenvolveu a partir da possibilidade de regular a liberdade e os interesses entre os diversos cidadãos. Deriva disso a concepção de bem comum ou vontade geral como princípio presente na sociedade capaz de possibilitar a livre associação entre os cidadãos, ou seja, pelo menos idealmente frente às vontades particulares deve prevalecer a vontade geral (Rousseau, 1983).

A valorização da democracia na sociedade moderna sugere a participação dos cidadãos na vida pública ou na vida comum, pressupondo a comunicação entre Estado e seus cidadãos, sendo que as questões governamentais correspondem às reflexões dos próprios cidadãos, podendo gerar uma espécie de consciência governamental como produto da própria consciência social. A sociedade, assim, pode alcançar mais consciência de si mesma, participando da vida pública e, com isso, a presença de indivíduos democráticos se faz importante para a deliberação, a reflexão e o espírito crítico no curso da própria vida pública (Durkheim, 2002).

Em contrapartida, na perspectiva da teoria crítica (Marx, 1984), a valorização da democracia direta no âmbito da sociedade moderna associa-se à possibilidade da constituição de uma esfera política sem a separação entre Estado e cidadãos, caminho necessário para a superação da emancipação política e o alcance da emancipação humana.

Segundo Bobbio (2000), a democracia se associa a um conjunto de regras, caracterizando-se como a regra da maioria e sua realização dependem da garantia dos direitos. As decisões coletivas são então tomadas a partir do princípio da legitimidade e envolve determinados procedimentos. No entanto, a democracia moderna nasce da tentativa de legitimar a liberdade e individualidade humana, porém a vida política se configura como uma construção artificial da vontade dos indivíduos. Nesse sentido, a democracia moderna se realiza pelas suas promessas não cumpridas.

Os argumentos levantados demonstram que a democracia moderna teve papel relevante para legitimar as liberdades individuais e ampliar a vida política da sociedade.

No entanto, se a modernidade resulta de projeto concebido pela sociedade europeia, parece pertinente retomar aspectos que remetem à sociedade brasileira, bem como à valorização dos ideais democráticos. Entende-se que tais características persistem na vida social brasileira até os dias de hoje, configurando-se como questões ou dilemas à realização da participação popular.

2. Democracia à brasileira

A compreensão da modernidade processada no Brasil abarca elementos que remontam sua origem, considerando a esfera política e os valores socioculturais constituintes e constitutivos da vida em sociedade. Os elementos que configuram a formação social brasileira podem ser interpretados como heranças deixadas à afirmação e consolidação da vida pública, das conquistas e garantias resultantes das lutas e mobilizações sociais, bem como dos canais democráticos de participação.

A desigualdade social no Brasil é reflexo das contradições geradas pelo modo capitalista de produção e das condições sócio-históricas presentes desde a formação de sua vida social. Tal fator dificultou o exercício da cidadania por grande parte da população, distanciando-a da dimensão do direito, contribuindo para reforçar o aspecto conservador em que se processou a modernidade brasileira, bem como o desenvolvimento socioeconômico, aparentemente independente da esfera política.

A vida sociopolítica e econômica brasileira formou-se a partir de suas origens agrárias e, como consequência disso, o patriarcalismo e o patrimonialismo se constituíram e, de algum modo, ainda presentes na sociedade brasileira. No curso da história, os reflexos dessa formação sociocultural alcançaram o processo de desenvolvimento urbano-industrial tanto quanto a base da democracia brasileira, que pode ser entendida mais como resultante da ação da classe dominante do Brasil do que da participação popular, embora ela tenha existido e persistido em momentos diversos da vida social brasileira.

Tal argumento se afirma pela expressão "de cima para baixo", recorrente no pensamento social brasileiro ao abordar a formação sócio-histórica, a efetivação da democracia e a participação dos movimentos sociais no curso da vida social brasileira.

A sociedade brasileira tem em sua composição o "tipo primitivo da família patriarcal", denotando o estreito vínculo entre a esfera da vida privada e a esfera da vida pública, dificultando a formação de um Estado pautado nos ­ideais da modernidade e restringindo as possibilidades de exercício da cidadania. Na formação da vida social brasileira houve o "predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal". Cabe ressaltar que esse fator se configura como condição para a consolidação da democracia e de suas instituições (Holanda, 1995, p. 141-145).

Assim, os valores tradicionais constitutivos da formação da sociedade brasileira expressam uma ordem social vinculada a redefinições e adaptações precárias ou deformadas do modelo europeu, a concepção de burguesia chegou tardiamente ao Brasil. As instituições jurídicas e políticas, que deveriam expressar a ordem legal democrática, na verdade converteram-se em "instrumentos da burocratização da dominação patrimonialista no nível estamental", reforçando o predomínio das vontades particulares na constituição do cenário sociopolítico brasileiro (Fernandes, 2006, p. 34-87).

Para Prado Júnior (2004), a revolução brasileira que possibilitou o desenvolvimento urbano do século XX tem sua origem no contexto rural. Daí a concepção de que o desenvolvimento capitalista brasileiro tem raízes em uma economia agrária, a fase feudal precedente ao capitalismo. Portanto, encontra-se presente na vida social brasileira. As raízes nacionais favoreceram sua condição de dependência constituída no mercado econômico mundial, denominada imperialismo.

Cabe ressaltar que o Estado nacional em formação se configurou de um lado em "veículo para a burocratização da dominação patrimonialista e para a realização concomitante da dominação estamental no plano político", organizado para servir aos "propósitos econômicos, aos interesses sociais e aos desígnios políticos dos estamentos senhoriais". De outro lado, para a garantia dos direitos fundamentais do cidadão se manteve na agência formal da organização da ordem social, o que denotava um Estado nacional liberal tanto democrático quanto moderno. Porém a democracia constituída como resultado da revolução burguesa brasileira se configurou como restrita, deixando os princípios igualitários e democráticos em segundo plano (Fernandes, 2006, p. 90-239).

No processo de modernização da sociedade brasileira, o poder público favoreceu o enriquecimento privado, permitindo que o governo se tornasse instrumento do desenvolvimento econômico, bem como o surgimento de uma burguesia que se alimentou e progrediu da "ação estatal e das iniciativas públicas". Desta forma, a administração pública se tornou uma "densa trama de negócios particulares" (Prado Júnior, 2004, p. 124, 161 e 165).

A naturalização do liberalismo não ocorreu na formação social brasileira, resultando em uma democracia como um "lamentável mal-entendido", que se explica pela negação da autoridade denotando a tendência do tratamento familiar aos governantes. Em decorrência disso, o liberalismo na vida social brasileira foi adequado conforme "direitos e privilégios da classe dominante". Nesse contexto, os movimentos reformadores brasileiros se constituíram "quase sempre de cima para baixo", caracterizado por inspiração intelectual e sentimental. Em consequência disso, as "conquistas liberais" feitas "durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade" (Holanda, 1995, p. 160-161).

Nesta perspectiva, desenvolvimento econômico e desenvolvimento político ocorreram na sociedade brasileira de forma dissociada, sendo que o Estado nacional foi organizado a partir de uma concepção "tecnocrática da democracia restrita". Assim, o ordenamento sociojurídico e político brasileiro refletem tanto a tradição de democracia restrita como a orientação modernizadora de governo forte, consagrando os valores do Estado de direito, que foram se concretizando conforme as necessidades de afirmação e legitimação do poder de seu grupo dirigente (Fernandes, 2006, p. 404).

No entanto, é importante afirmar que a democracia também se adquire pela prática e não apenas por "geração espontânea e sem antecedentes, ou inspiração não se sabe do quê". Com base nisso, as ações populares remetem à possibilidade de aquisição de "experiência política" por parte do povo, aprendendo a defender "conscientemente seus verdadeiros interesses e promover com acerto suas aspirações de maneira tão racional como os demais setores da população brasileira". Pois participação popular na vida política, ou seja, na "condução do poder público", é o que pode caracterizar a efetivação e a legitimação da própria democracia (Prado Júnior, 2004, p. 250-251).

Pode-se considerar que os elementos apontados acima estão contidos na cultura brasileira, que pode ser entendida como expressão das diversidades e dos antagonismos presentes no cenário socioeconômico e sociopolítico, inserida nas relações sociais à medida que recoloca as questões que envolvem a sociedade e o Estado (Ianni, 1992).

Desse modo, as diversidades e os antagonismos da vida social estão presentes nas práticas dos diversos grupos sociais, sendo que os movimentos sociais acabam por expressar aspectos fundantes da realidade nacional, razão pela qual suas práticas alcançam uma dimensão cultural.

Nesse sentido, a realização e a efetividade dos princípios democráticos perpassam as condições culturais, pois os modos de viver e pensar, os valores culturais, as condições materiais da vida em sociedade remetem às condições de organização do poder político e econômico. Além disso, a "liberdade indispensável à democracia política é também um valor cultural" inserido na vida em sociedade. Desta forma, pode-se considerar que é o povo que "coloca a questão da democracia para os diferentes setores sociais e a sociedade como um todo" com maior frequência, as manifestações e lutas populares "figuram a presença e a permanência desse povo na luta pela democracia" (Ianni, 1992, p. 155 e 156).

O exame sobre o projeto de modernidade brasileiro demonstra que a revolução burguesa brasileira foi promovida pelo próprio grupo dirigente do país, fazendo prevalecer seus direitos e interesses. Tal situação permitiu que a esfera política se desenvolvesse distante da maior parte da população, denotando a construção de um espaço público brasileiro com pouca expressão da participação popular.

O exercício da cidadania se manteve distante por décadas para a maior parte da população, sobretudo para parcela mais empobrecida da sociedade brasileira. Nesse processo, o direito se revestiu de privilégio em função da particularização do espaço público.

A constituição da democracia brasileira revela a contradição de que embora ela tenha se processado "de cima para baixo" é, ao mesmo tempo, o povo que coloca a necessidade de percorrer seus ideais, sobretudo pela defesa da ampliação e garantia dos direitos na vida em sociedade. Daí a importância da democracia se adquirir pela prática, ou seja, pela prática dos movimentos sociais, potencializando a concepção de uma cultura política brasileira capaz de estimular e ampliar a participação popular nos espaços públicos.

Portanto, à forma democrática de governar mescla-se a proximidade ou o distanciamento da herança do projeto de modernidade brasileiro. Atualmente as políticas da cidade refletem com maior ou menor intensidade princípios conservadores assentados na vida social brasileira.

A redemocratização da sociedade brasileira corresponde ao momento histórico composto por vários elementos. Entre eles estão as práticas dos movimentos sociais no cenário sociopolítico, vislumbrando a ampliação e a garantia dos direitos e do processo de participação popular.

3. Redemocratização da sociedade brasileira

A efetivação formal da democracia, bem como a institucionalização e a efetivação dos espaços de participação dependem de esse projeto resultar não apenas dos interesses do grupo dirigente, mas também da prática dos movimentos sociais, correspondendo, assim, à superação da construção de regras democráticas "de cima para baixo", tradicionais e, por vezes, autoritárias. A inversão de tal processo pressupõe a presença de sujeitos sociais no cenário sociopolítico brasileiro com o intuito de pressionar a construção de regras democráticas constituídas de "baixo para cima".

No plano formal da democracia, a efetivação do ideal liberal está relacionada à dimensão dos direitos no curso da vida social. Pode-se considerar que seu aprimoramento acontece sob a ótica liberal com a necessidade de organizar a sociedade (Weffort, 1984), pois os limites formais liberais são decisivos para a democratização da sociedade brasileira (Coutinho, 1980). Desse modo, a presença dos movimentos sociais no cenário sociopolítico é capaz de pressionar a igualdade política entre cidadãos diferentes com possibilidades de ser representados e de participarem nas decisões da vida política (Chaui, 1989).

A democratização da vida política brasileira está vinculada à realização da participação popular, demandando a constituição do espaço público como condição de coisa pública, ou seja, como o lugar onde os sujeitos sociais possam reelaborar suas práticas e onde acontece o exercício do poder (Chaui, 1989). Portanto, a participação desses sujeitos sociais configura-se como relevante para a renovação democrática brasileira (Coutinho, 1980) e como caminho possível para que os cidadãos se tornem dirigentes, havendo enfim a democratização do Estado brasileiro (Weffort, 1984).

Tal democratização alcança o problema da legitimidade. A responsabilidade desse processo implica todas as esferas da vida social, remetendo às questões relacionadas à garantia dos direitos dos cidadãos tanto quanto à questão do exercício do poder.

A concepção de democracia no Brasil associa-se à dimensão do instrumento de poder, constituindo-se em uma "espécie de ferramenta" para atingi-lo, dificultando a possibilidade de "pensar a democracia como um fim em si". Nesta perspectiva, na vida política perde-se o "sentido do direito e da legitimidade". Sua decorrência é a institucionalização da "prática da usurpação como norma" (Weffort, 1984, p. 32-40).

Contraditoriamente, a concepção de liberdade viabiliza à democracia brasileira se tornar um valor geral, afinal se constitui no terreno da luta, à medida que passa a ser "objetivo comum geral, do conjunto das forças políticas", sua luta é a luta pela "hegemonia dentro da democracia"; ao mesmo tempo, a afirmação da democracia como valor é indissociável da "realização da dignidade humana", sua afirmação também remete à questão do Estado e à questão da democracia sob a ótica liberal, o que significa tanto a reorganização do Estado como da sociedade (Weffort, 1984, p. 52-73).

Weffort (1984) considera a importância de os cidadãos não se confinarem à condição de segunda classe, assumindo pela própria democracia a condição de dirigentes.

Porém o processo de redemocratização da sociedade brasileira constituiu uma democracia regulatória, ou seja, uma democracia "corporativista no que se refere à participação dos segmentos organizados da sociedade" com a presença da natureza "reguladora" nos moldes da democracia liberal. Por um lado, os avanços obtidos, no "processo de estabelecimento da democracia" correspondem à ampliação dos direitos na sociedade brasileira. Por outro, há a inibição de tendências conservadoras, indicando contradições do sistema com uma "interpenetração e uma fusão de elementos modernos e tradicionais, democráticos e autoritários" (Weffort, 1992, p. 13, 20 e 29).

Desta forma, o fortalecimento da democracia pressupõe o desempenho do papel relevante das lideranças e das instituições correspondentes, uma vez que as possibilidades de democratização se potencializam na medida em que há consciência dessas lideranças, pois o Estado pode se tornar mais democrático com a ampliação da participação da sociedade em suas decisões.

A universalização dos direitos no Brasil implica a afirmação do ordenamento jurídico formal, o que corresponde ao alcance da igualdade sociopolítica independente da condição socioeconômica de seus cidadãos.

Desta forma, o processo de redemocratização da sociedade brasileira remete à complexidade de sua vida social, expressa na "emergência de uma sociedade civil acentuadamente pluralista", mesclando a essência da democracia liberal, ou seja, a afirmação da soberania popular, o fato de que todos os indivíduos são cidadãos e participam ou devem participar igualmente na formação da vontade política geral (Coutinho, 1980, p. 13-15).

A pluralidade da sociedade civil se associa à democracia de massa, o que corresponde à "conquista de poder" das classes populares opondo-se aos "interesses burgueses e aos pressupostos teóricos do liberalismo clássico". Portanto, a organização de "baixo para cima" das classes populares indica importante mecanismo na constituição dos sujeitos políticos coletivos (Coutinho, 1980, p. 26).

A questão da democracia é decisiva para a vida social brasileira, inclusive seus "limites puramente formais-liberais", pois seu "caráter elitista e autoritário" assinalou toda a "evolução política, econômica e cultural do Brasil", inclusive nos "breves períodos democráticos". Em decorrência desse fato, às forças populares caberia a inversão da "tendência elitista" presente no cenário sociopolítico brasileiro, eliminando suas "consequências nas várias esferas do ser social brasileiro", uma vez que tal elitismo se reveste como "profunda renovação democrática do conjunto da vida brasileira" (Coutinho, 1980, p. 33).

De tal modo, o "aprofundamento político da democracia" pressupõe a "ampla incorporação organizada das grandes massas" no cenário sociopolítico brasileiro, o que pode acontecer através da "socialização crescente da política", onde a organização dos vários "sujeitos coletivos de base" com respeito à autonomia e diversidade desses possibilitaria que o processo de renovação democrática acontecesse "de baixo para cima". Tal renovação deve envolver a "incorporação permanente de novos sujeitos individuais e coletivos ao processo de transformação social", a "participação de múltiplos sujeitos sociais, políticos e culturais", respeitando a "unidade na diversidade" na elevação dos princípios democráticos (Coutinho, 1980, p. 35-40).

Segundo Coutinho (1980), o aprofundamento da democracia brasileira vincula-se à validação e à realização do processo de participação popular associada à consolidação do regime de liberdade, articulando uma democracia de massas com a efetivação e a superação da democracia formal. Tal aprofundamento seria uma possibilidade para o distanciamento das bases patriarcais e conservadoras presentes no cenário sociopolítico brasileiro.

A democracia na vida social brasileira se efetivou mais pela institucionalização do Estado democrático do que pela realização do processo de participação popular. Essa característica manteve o distanciamento da participação popular no acompanhamento e gerenciamento do Estado democrático, mesmo com o reconhecimento da responsabilidade da sociedade na afirmação e no aprofundamento dos princípios democráticos.

Tal processo suscita a potencialização de lideranças e movimentos sociais a uma prática tanto inovadora quanto política, compreendendo-a como mediadora entre o poder público e as demandas populares, pressupondo uma ação que se coloque na esfera sociopolítica da vida em sociedade.

Enquanto esfera político-institucional, a democracia pode ser entendida como uma forma política aberta aos conflitos e se define pela capacidade de convivência e acolhimento desses. Assim, sua legitimidade acontece, por exemplo, pela "institucionalização dos partidos e pelo mecanismo eleitoral" (Chaui, 1989, p. 145).

Nesta perspectiva, à questão democrática perpassa a contradição central da sociedade capitalista que se realiza através do Estado e, como esfera político-institucional, o mesmo é transformado "pelo alto", na perspectiva do grupo dirigente. Portanto, o aparecimento do Estado relaciona-se à separação imediata entre economia e política, e a concepção de universalidade vela a valorização do valor na vida social (Chaui, 1989, p. 166).

Desse modo, a prática dos movimentos sociais tem papel relevante na questão democrática como esfera político-institucional, pois a crítica e a prática desses movimentos têm importância em momentos decisivos na história do desenvolvimento e reprodução social da vida material, uma vez que tal processualidade se revela também na esfera da sociedade civil (Chaui, 1989, p. 178).

Nesse contexto, pode-se considerar que os "momentos de democratização" constitutivos da vida social brasileira ou foram populares e "não institucionalizados" ou do grupo dirigente, correspondendo ao momento da conjuntura (Chaui, 1989, p. 213 e 216).

Em contraponto ao Estado, na vida social brasileira despontam a formação da opinião pública e a prática dos movimentos sociais como sujeitos sociais novos com expressão política e capacidade de relacionamento com as diferentes esferas do poder político. A sociedade política formada nesse processo percorre a realização dos princípios de igualdade e liberdade. Nesse sentido, os movimentos sociais se configuram como movimentos políticos, pois buscam ampliar e garantir direitos, às vezes constituídos pelo confronto ou pela convergência, capaz de levar à "reelaboração prática da ideia e do exercício do poder que não é identificado exclusivamente com o Estado" (Chaui, 1989, p. 284-285).

Os passos dados que caracterizam avanços na realização da democracia formal são relevantes para o curso da vida social. No entanto, a prática dos movimentos sociais no exercício de ampliar, tornar pública e pressionar o Estado acerca das demandas populares se configura como caminho possível para a efetivação de ações políticas e o fortalecimento de espaços públicos expressivos da necessidade ou da vontade da maior parte da população brasileira.

4. À guisa de conclusão

A modernidade no Brasil e os princípios democráticos se processaram apoiados em bases patriarcais e conservadoras, comprometendo a prática dos movimentos sociais formadas no cenário sociopolítico brasileiro. Desta forma, a ideologia liberal que respalda a concepção da democracia moderna não se efetivou na sociedade brasileira em virtude da prevalência dos direitos como privilégio ao longo de várias décadas.

A redemocratização da sociedade permitiu que novos elementos ocupassem o cenário sociopolítico brasileiro no sentido da ampliação e da garantia dos direitos, embora tenham sido adequados às características socioculturais anteriormente instituídas na vida social.

No entanto, a garantia de direitos e o exercício de cidadania se vinculam ao processo de participação popular, bem como à validação dos princípios democráticos. Associa-se a isso a necessidade de a prática dos movimentos sociais se configurarem como ações políticas.

Movimentos e lideranças sociais buscam formas para estreitar e intensificar o diálogo com o poder público com o intuito de acompanhar a forma democrática de governar.1 1 . Destaca-se a experiência do Observatório dos Direitos do Cidadão (ODC), na cidade de São Paulo, em que lideranças representativas de movimentos sociais diferentes reuniam-se com o propósito de debater, acompanhar e problematizar a forma democrática de governar, além dos problemas e dilemas para realizarem suas ações. O ODC foi objeto de estudo da tese elaborada e aqui referida. No site: < www.polis.org.br>, é possível ter acesso a produções e publicações do ODC. Cabe ressaltar que o exercício dessa ação política permite a formação e o fortalecimento de sujeitos sociais, ou seja, de cidadãos-sujeitos que se preparam e se apropriam de um conjunto de conhecimentos, de discurso técnico e reforçam o processo e a realização da participação popular, ao mesmo tempo que esbarram constantemente no movimento contraditório das bases constituintes da sociedade brasileira.

Enfim, as concepções e os argumentos trabalhados neste artigo reforçam a necessidade da inversão de direção no processo de consolidação e efetivação dos princípios democráticos na sociedade brasileira a fim de constituir e afirmar os espaços públicos de participação popular, bem como o direcionamento da sociedade brasileira na perspectiva do bem comum.

Recebido em 28/10/2011

Aprovado em 28/11/2011

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    Artigo elaborado a partir do Capítulo 4: "Formação social, modernidade e democracia: pegadas nos caminhos dos movimentos sociais" da tese:
    Lideranças e movimentos sociais no cenário sociopolítico da cidade de São Paulo: experiências coletivizadas no Observatório dos Direitos do Cidadão entre os anos 2001 e 2009, elaborada pela referida autora.
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    . Destaca-se a experiência do Observatório dos Direitos do Cidadão (ODC), na cidade de São Paulo, em que lideranças representativas de movimentos sociais diferentes reuniam-se com o propósito de debater, acompanhar e problematizar a forma democrática de governar, além dos problemas e dilemas para realizarem suas ações. O ODC foi objeto de estudo da tese elaborada e aqui referida. No
    site: <
    www.polis.org.br>, é possível ter acesso a produções e publicações do ODC.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Out 2011
    • Aceito
      28 Nov 2011
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