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Praxis, gênero humano e natureza: notas a partir de Marx, Engels e Lukács

Practice, mankind and nature: notes from Marx, Engels and Lukács

Resumos

Tendo por base o pensamento de Marx, Engels e Lukács, o artigo sustenta que o gênero humano se funda sobre a práxis e evolui segundo uma dinâmica que reforça os elementos sociais e reduz as determinações naturais sobre a forma de vida humana.

Práxis; Gênero humano; Natureza


From Marx, Engels and Lukacs, the argument in the article supports that mankind is based on practice and evolves by a dynamic that reinforces the social elements and reduces the natural determinations over the form of human life.

Practice; Mankind; Nature


ARTIGOS

Praxis, gênero humano e natureza: Notas a partir de Marx, Engels e Lukács

Practice, mankind and nature - notes from Marx, Engels and Lukács

Epitácio Macário

Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza/CE, Brasil; professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará (Uece) com atuação no mestrado acadêmico em Serviço Social (Mass), coordenador do Centro de Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser Social - Cetros. Presidente da Seção Sindical do Andes na Uece. E-mail: e_macarius@yahoo.com.br

RESUMO

Tendo por base o pensamento de Marx, Engels e Lukács, o artigo sustenta que o gênero humano se funda sobre a práxis e evolui segundo uma dinâmica que reforça os elementos sociais e reduz as determinações naturais sobre a forma de vida humana.

Palavras-chave: Práxis. Gênero humano. Natureza.

ABSTRACT

From Marx, Engels and Lukacs, the argument in the article supports that mankind is based on practice and evolves by a dynamic that reinforces the social elements and reduces the natural determinations over the form of human life.

Keywords: Practice. Mankind. Nature.

Introdução

Nos Manuscritos de 1844, Marx esboçou um sistema categorial que fornece esteios para a fundamentação da esfera social do ser. Partiu da constatação de que o homem tem uma existência corpórea, objetiva, tal como plantas e animais. Por ser objetivo, é um ser sofredor, na medida em que os outros objetos (o meio exterior) é a condição de sua existência, porquanto o homem tem de atuar sobre os objetos externos para garantir-se como ser vivo. Um ser que independa completamente dos objetos exteriores só pode ser concebido idealisticamente; na prática seria uma monstruosidade. Em contraste, todavia, com os demais seres vivos, o "ser natural humano" é um "ser existente para si mesmo", "ser genérico, que, enquanto tal, tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser como em seu saber". A atividade com que intercambia com o meio faz dele um ser para si, um ser duplicado no saber e nas coisas. E, na sequência, proclama:

Consequentemente, nem os objetos

humanos

são os objetos naturais assim como estes se oferecem imediatamente, nem o

sentido humano,

tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade

humana,

objetividade humana. A natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser

humano

de modo adequado. (Marx, 2010, p. 127-28)

Noutro manuscrito, o pensador alemão põe o trabalho como a atividade vital humana, a vida produtiva por meio da qual o ser natural humano se confirma como particularidade e universalidade, como indivíduo e gênero. Diz ele que,

[...] na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar efetivamente, como

ser genérico.

Esta produção é a sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a

sua obra

e a sua efetividade (Wirklichkeit). O objeto do trabalho é portanto a

objetivação da vida genérica do homem:

quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (Idem, ibidem, p. 85)

A posição do ser natural humano sobre seus próprios pés, isto é, como realização de sua atividade vital, será ampliada em A ideologia alemã. Nessa obra, a teoria da atividade consciente como demiurgo do ser social ganha em profundidade e abrangência ao abarcar todas as formas de atuação do homem sobre a natureza e a sociedade. A história humana emerge aqui como construto dos próprios homens, como resultado e processo das ações dos indivíduos na produção de suas condições materiais de existência. Essas ações ocorrem sempre por meio de um conjunto cada vez mais complexo de relações sociais que respondem, ao fim, pela produção dos valores de uso e dos bens espirituais necessários à existência individual e coletiva. À atividade responsável pela produção da história o autor chamou de práxis.

Na primeira tese sobre Feuerbach, o acento de Marx recai precisamente sobre a práxis como atividade humana sensível, objetiva, que opera a interpenetração do mundo das coisas e da subjetividade. Aqui já não há lugar para uma consciência anteposta, sobreposta e/ou separada da objetividade; ao contrário, patenteia-se categoricamente uma nova concepção segundo a qual tanto a objetividade como a subjetividade humanas são instauradas pela práxis, pela atividade humana sensível.1 1 . José Chasin (1995, p. 398) sintetiza esse ponto de vista: "Transitividade ou conversibilidade entre objetividade e subjetividade compreende, pois, a dissolução da unilateralidade ou limites desfiguradores, materialistas e idealistas, do sujeito e do objeto: aquele perde a estreiteza de pura interioridade espiritual e este a de mera exterioridade inerte. Pela constatação do intercâmbio, a subjetividade é reconhecida em sua possibilidade de ser coisa no mundo, e a objetividade como dynameis - campo de possíveis. O sujeito se confirma pela exteriorização sensível, na qual plasma sua subjetividade, e o objeto pulsa na diversificação, tolerando formas subjetivas ao limite de sua plasticidade, isto é, de sua maleabilidade para ser outro". A tese I golpeia de uma só vez o materialismo até então existente (incluído o de Feuerbach) - para quem o mundo objetivo é mera exterioridade - e o idealismo (inclusive o hegeliano) - que desenvolveu "o lado ativo" da subjetividade, mas "de modo abstrato", sem considerar a "atividade real e sensível como tal" (Marx, 2007, p. 27). Ambos, o materialismo e o idealismo, não conseguiram alcançar a verdadeira natureza da práxis como atividade humana sensível que engendra a objetividade e a subjetividade simultaneamente.

O primado da atividade humana sensível - a práxis - como fundamento da esfera social do ser conduz a que o indivíduo seja imediatamente implicado como sujeito histórico, pois é ele o portador e o realizador da atividade prática sensível (teses I, VI, VII e VIII). Nessa perspectiva, a dinâmica social tem de processar-se por meio da práxis dos indivíduos que exercitam sua atividade sensível sempre no seio e através de um conjunto de relações que os imbricam com a dinâmica total da sociedade (Marx e Engels, 2003, p. 111). As relações estabelecidas na produção da vida material constituem as forças genéricas responsáveis, ao cabo, pela estruturação, manutenção e transformação da totalidade social. São essas forças sociais e suas realizações materiais e espirituais que ditam o conteúdo da história e, portanto, põem as condições e possibilidades de existência dos indivíduos.2 2 . Cf. Marx e Engels (2007, p. 70): "A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações individuais, cada uma das quais explora os materiais, capitais e forças de produção transmitidas por aquelas que a precederam; quer dizer, que de um lado prossegue em condições completamente distintas da atividade precedente, enquanto de outro lado modifica as circunstâncias anteriores mediante uma atividade totalmente diferente...". Portanto, o gênero humano é posto em vida pela força social nascida das sínteses relacionais das práxis dos indivíduos, razão por que supera o mutismo biológico e se instaura como dinâmica geral, progressiva, da qual os indivíduos são partes moventes - na medida de sua atividade consciente sensível - e movidas - porque sua atividade ocorre em condições concretas postas pelo movimento da sociedade e no mais elevado grau pela generidade.

A práxis é a atividade sensível do homem pela qual produz os meios de existência e, ao produzi-los, engendra novas necessidades que já não dimanam da base biofísica. A estas novas necessidades, os homens reagem produzindo novos meios de satisfazê-las e assim sucessivamente. Nas palavras de Lukács (1981b, p. 146) "pela combinação da atividade social dos homens na reprodução da própria vida, [...], nascem categorias e relações categoriais completamente novas, qualitativamente diversas que [...] modificam também a reprodução biológica da vida humana." A combinação da atividade social dos homens não somente implica uma transformação cada vez maior e mais profunda da natureza, mas também engendra categorias e relações qualitativamente diversas que formam o conteúdo da vida social. Por isto, diz Lukács, a sociedade "encontra cada vez menos já 'prontas' na natureza as condições da própria reprodução as quais, ao contrário, ela cria mediante a práxis social dos homens" (Idem, ibidem, p. 146-47). Com efeito, a reprodução biológica é um momento ineliminável da reprodução social, mas o que caracteriza esta última é o fato de a atividade social dos homens edificar, paulatinamente, um conjunto de novas relações e categorias não mais determinadas pela base biológica. A reprodução social se caracteriza pelo contínuo afastamento - ainda que jamais a eliminação - das barreiras naturais da vida humana.

Este artigo objetiva caracterizar, em largos traços, esse processo, tendo por base importantes textos de Marx, Engels e Lukács.

1. O significado da expressão afastamento das barreiras naturais

A alimentação é uma necessidade natural de todo ser vivo, por conseguinte, do ser natural humano. Como assevera Marx (2011, p. 47), porém, "Fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua, com mão, unha e dente". Aqui se põe em evidência o caráter socialmente fundado das formas concretas de satisfação da fome, porquanto o homem produz seu alimento transformando a natureza e o submete a outra transformação: ele prepara seu alimento, utilizando utensílios, métodos e rituais criados pela sociedade. O homem responde, pois, a uma necessidade de origem biológica sob uma forma socialmente instituída.

Não é apenas, todavia, a forma como o homem responde à fome que assume determinação social; também a própria fome é alterada na sua forma natural, em virtude da ação social dos homens. Pensamos nas conquistas do trabalho que foram se acumulando até chegar o ponto de proporcionar o acúmulo de excedentes de víveres com a descoberta da agricultura e o criatório de animais. Sem dúvida, estes acontecimentos reagiram sobre a determinação natural da fome, porquanto proporcionaram maior acesso dos indivíduos aos alimentos, bem como inseriram no hábito alimentar o consumo da carne. Se deixarmos de lado, porém, o fato do aumento da quantidade de alimentos e da passagem à dieta carnívora ter provocado consequências biológicas consideráveis, argumenta o filósofo húngaro, "permanece o fato de que a regulamentação social da posse da comida tem, indubitavelmente, efeitos biológicos" (Idem, ibidem, p. 148). A propriedade privada dos alimentos conduz ao paradoxo da fome em escala social, numa época de predomínio da abundância, como acontece atualmente. A fome das populações submetidas à miséria é biologicamente diferente daquela da parcela da população que tem acesso, à saciedade, aos alimentos. Outro aspecto a ser referido, seguindo o raciocínio do mestre magiar, é o advento da cozinha internacional. Com o entrecruzamento dos povos e nações, dinamizado pelo mercado mundial, a cozinha local e regional espraiou-se para outros lugares e nações, influenciando o gosto e o hábito noutras paragens e recebendo influências destas. Os hábitos alimentares de cada comunidade foram objeto de mudanças em virtude da adoção, no seu cotidiano, da cozinha de outras comunidades ou nações. Lukács argumenta que "o fato de que isto assuma hoje, de várias maneiras, as formas de manipulação, do consumo de prestígio etc., mostra precisamente a que alto grau de sociabilização se chegou também neste campo" (Idem, ibidem, p. 149).

Este recobrimento e alteração dos elementos biológicos por leis puramente sociais verificam-se, também, no domínio da sexualidade. É instrutivo, nesse sentido, observar como as grandes transformações econômicas e sociais ocorridas no fim da barbaria e início da civilização provocaram mudanças significativas na relação entre os sexos. Na compreensão de Engels (1987), o desenvolvimento das forças produtivas e o fato de os homens terem assumido posição de relevo na produção econômica em comparação com o papel das mulheres levaram ao desaparecimento da forma de família baseada no direito materno, instaurando a família monogâmica patriarcal. Desde então, a norma social impunha a devoção de fidelidade da mulher ao marido, ao contrário de outrora, quando esta mantinha relações sexuais com vários homens. Não é difícil compreender de que modo, uma vez sedimentada no costume, esta norma operou mudanças significativas na própria atração entre os sexos (Engels, 1987) e, fundamentalmente, nos rituais que o precedem.

Se não levarmos, porém, na devida conta apenas as transformações macroestruturais, que sem dúvida implicam mudanças consideráveis no âmbito da sexualidade, também podemos perceber o quanto as formas fenomênicas do progresso econômico social interferem nesta esfera. A manipulação de essências e a produção de cosméticos para o uso corporal, bem como os modos de vestir, influenciam decisivamente no funcionamento dos instintos sexuais. Todos estes fatos atestam, pois, que

[...] a recíproca atração sexual não perde jamais seu caráter essencialmente físico, biológico, mas a relação sexual, com a intensificação das categorias sociais, acolhe em si um número crescente de conteúdos que, mesmo se sintetizando mais ou menos organicamente com a atração física, têm, todavia, um caráter - direta ou indiretamente - humano-social que é heterogêneo em relação a ela. (Lukács, 1981b, p. 150)

Impusemos realce a dois complexos relacionados diretamente à reprodução da vida: a fome e o sexo. O objetivo era mostrar que, mesmo em se tratando de fenômenos fundados por estrita necessidade da reprodução biológica, há uma intervenção da lei social sobre tais fenômenos, caracterizando um afastamento das determinações naturais, na medida em que elas são recobertas por conteúdos puramente sociais. A análise do excedente econômico nos situará em um degrau acima no esclarecimento deste ponto de vista.

2. Excedente econômico e desenvolvimento da sociabilidade

Pelo trabalho, o homem se apropria da natureza sempre mediante relações sociais que constituem formas de vida grupai e comunitária. Nas condições originárias, a comunidade não ultrapassa o caráter de um gregarismo naturalmente fundado que fornece a base para o desenvolvimento do trabalho. É Marx (2011, p. 380) quem sustenta que

A coletividade tribal que surge naturalmente, ou, se preferirmos, o gregarismo, é o primeiro pressuposto - a comunidade de sangue, linguagem, costumes etc. -

da apropriação das condições objetivas

da sua vida e da atividade que a reproduz e objetiva (atividade como pastor, caçador, agricultor etc.).

As leis naturais que fundam o gregarismo originário são alvo de profundas transformações tão logo se desenvolvem o trabalho e a divisão/cooperação que o acompanham. Tem início um processo de criação, desigual e contraditória, de premissas sociais que recobrem aquelas condições e determinações naturais da existência do homem. Isto quer dizer que o trabalho engasta o caráter comunal originário num processo de complexificação que culmina com a própria dissolução da totalidade originária, dando lugar a formações superiores lastreadas em relações sociais. A produção de excedentes econômicos é um dos feitos do trabalho social que respondem pela socialização crescente da vida humana.

A produção de excedentes econômicos desencadeou processos que, de um lado, impulsionaram as necessidades humanas e a própria divisão do trabalho; de outra parte, implicaram a cristalização da divisão social do trabalho sob a forma de classes sociais antagônicas. No primeiro caso, o excedente engendrou as bases materiais da dedicação exclusiva de parte da força de trabalho em tarefas preparatórias, voltadas para a organização da comunidade e para o fabrico de instrumentos de trabalho e defesa. Em todos estes casos, o pressuposto material é que a comunidade produza mais do que o necessário para a reprodução imediata dos indivíduos; do contrário, nenhum esforço poderia ser deslocado da produção direta de víveres e a sociedade humana teria estacionado na mera reprodução da vida - e permaneceria no estádio do gregarismo originário.

No segundo caso, a capacidade do trabalho de produzir mais do que o necessário para a existência imediata do seu executor e da comunidade "cria a base ob jetiva da escravidão, antes da qual existia apenas a alternativa de matar ou adotar o inimigo feito prisioneiro", precipitando uma clivagem no interior do gênero humano que segue "através de várias etapas, ao capitalismo, onde este valor de uso da força de trabalho [a capacidade de produzir excedente] se torna a base de todo o sistema" (Lukács, 1981, p. 136).

Em sentido ontológico - e não imediatamente valorativo -, o surgimento das classes sociais mediante o regime de escravidão expressa um avanço, um progresso da sociabilidade, pois na situação anterior a igualdade social se baseava na escassez de víveres e na dependência direta da natureza. O surgimento das classes sociais tem por fundamento, precisamente, o desenvolvimento das forças produtivas, um dado grau de evolução do poder interventivo (transformador) do homem (sociedade) sobre a natureza. As classes repousam, pois, em bases puramente sociais, e já não podem ser explicadas por nenhum determinante de ordem natural.

Para efeito do que nos interessa, é bastante salientar que a produção de excedente econômico tem peso decisivo na ampliação dos poderes genéricos do homem, precisamente porque concede base à ampliação da divisão do trabalho e de suas formas de cooperação, alçando a sociedade a patamares mais desenvolvidos.

3. Divisão do trabalho como veículo da socialização crescente do ser social

A divisão do trabalho "é, por assim dizer, tão antiga quanto o trabalho, dele é um produto orgânico necessário" (Lukács, 1981, p. 136). Ela já comparece nos primeiríssimos estádios de desenvolvimento da comunidade humana sob a forma de um agir em conjunto no interior de uma mesma atividade. No início, ela tem por base elementos naturais, depois esta determinação vai sendo suplantada, recoberta por leis puramente sociais.

Nas comunidades originárias, ocorre uma distribuição das atividades segundo atributos fisiológicos das pessoas. Este é o caso da divisão do trabalho entre homens e mulheres. Com o desenvolvimento social, entretanto, a atribuição de papéis e status diferenciados para homens e mulheres passou a ser determinado unicamente pelas relações sociais. Desta forma é que o destaque ou rebaixamento do lugar que as mulheres ocupam na sociedade vai depender, por um lado, de fatores de ordem econômica que dizem respeito à relevância das suas funções para o aumento da produção social, e, de outra banda, das concretas formas com que a socieda-de institui e atribui papéis, funções e status. Por isso, houve situações históricas em que as mulheres preponderavam no plano social exatamente porque não só as funções que assumiam no interior da força coletiva eram vitais para a comunidade (pense-se nos primórdios da agricultura e da domesticação de animais), mas também porque, tão somente por seu intermédio eram conhecidos os descendentes do clã e, portanto, a mulher constituía o critério de repartição do produto social no seio da comunidade. Tão logo estas premissas foram superadas pelo próprio desenvolvimento da sociedade - a primeira pelo domínio masculino das atividades mais importantes na produção do excedente econômico e a segunda pelo advento da família monogâmica -, as mulheres foram sendo relegadas a posições inferiores na estrutura social (Engels, 1987).

Este determinismo social ocorre também com aquela relação de preponderância dos anciãos sobre os mais novos nas sociedades tradicionais. Aparentemente, esta diferenciação de papéis, de status, parece radicar numa determinação biológica, qual seja, a longevidade dos anciãos. Em verdade, porém, "a vida mais longa não é senão a base biológica sobre a qual se realiza a acumulação das experiências de vida socialmente importantes" (Lukács, 1981b, p. 139). Uma vez que os saberes mais relevantes relacionados ao convívio social e à produção econômica se baseiam, nestas sociedades, na experiência, os anciãos só podem ter um lugar de destaque, porquanto são os portadores desta experiência, daquilo que chamamos de sabedoria; porém, "À medida que as experiências socialmente decisivas não são mais acumuladas por via empírica e conservadas na memória, mas são deduzidas por generalizações, esta posição exclusiva dos anciãos vai gradualmente decaindo" (Idem, ibidem). A lei social se impõe, também neste caso, aos elementos de ordem biológica.

A distribuição do trabalho na comunidade consoante atributos fisiológicos resulta na fixação de determinados indivíduos no desempenho de atividades preparatórias, fazendo surgir as profissões. Pensamos, principalmente, na fixação das mulheres no fabrico de utensílios e na tecelagem, bem como no estabelecimento de alguns homens no fabrico de instrumentos. Em todos os casos, a fixação faz com que estes indivíduos desenvolvam habilidades que transponham o normal naquele ramo de atividade, desencadeando o surgimento dos ofícios profissionais. Doravante, o exercício do ofício já não deriva de atributos fisiológicos, mas do aprendizado, às vezes muito longo, do seu saber-fazer. E dado que a diversificação em profissões é uma conquista da qual não é possível regredir, a própria dinâmica social passa a alocar sempre mais braços e mentes ao seu cultivo, impulsionando, assim, uma crescente diferenciação no seio da comunidade. O fato biológico é recoberto por normas socialmente assentidas, com o que a diferenciação no seio do gênero humano segue, em todos os casos aludidos, uma dinâmica cujo impulso, rota e ritmo dependem de fatores puramente sociais.

Esta diferenciação interna à comunidade, determinada por leis puramente sociais, mostra-se com toda a força na divisão entre trabalho material e intelectual. É fato que o trabalho implica dois tipos de teleologias que se relacionam reflexivamente: as primárias e as secundárias.3 3 . Cf. Lukács (1981, p. 155): "As posições teleológicas necessárias [ao trabalho] são, como vimos, de duas formas: aquelas que visam transformar, com finalidades humanas, objetos naturais [...] e aquelas que tencionam incidir sobre a consciência dos outros homens para impeli-los a executar as posições desejadas. Quanto mais se desenvolve o trabalho, e com ele a divisão do trabalho, tanto mais autônomas se tornam as formas das posições teleológicas do segundo tipo, e tanto mais podem se desenvolver em um complexo por si da divisão do trabalho." A divisão do trabalho material e intelectual tem seu germe plantado no fato de que, com o desenvolvimento social, as teleologias secundárias vão assumindo cada vez mais a forma de atividades exclusivas, exigindo a dedicação exclusiva de algumas pessoas, enquanto as outras cuidam da transformação da natureza. Desta forma, começa a se engendrar uma separação entre os que lidam com as atividades organizativas da sociedade (baseadas nas teleologias secundárias) e os que se dedicam ao trabalho no sentido estrito (teleologias primárias). O que está em tela é o se tornar autônomo das atividades preparatórias (produção de instrumentos e utensílios, estudo da natureza, planejamento, organização e controle da comunidade etc.) e as de execução material do trabalho. Com a produção de excedentes, esta divisão se cruza e se determina, reflexivamente mesmo, com a divisão de classes. Com efeito, as posições teleológicas secundárias

[...] podem ser postas a serviço de um domínio, independente de quem se sirva disto, por via espontânea ou institucional. Daqui a frequente ligação do trabalho intelectual, tornado autônomo, com os sistemas de domínio classista, ainda que seus inícios sejam mais antigos e, apesar de, no curso da luta de classes, como se observa no Manifesto Comunista, uma parte dos próprios representantes do trabalho intelectual se deslocar, com uma certa necessidade social, para o lado dos oprimidos que se rebelam. (Lukács, 1981, p. 155)

Note-se que a separação entre trabalho material e intelectual delimita, concretamente, a posição que os indivíduos ocupam na esfera econômica e social. Consequentemente, a ligação entre as atividades intelectuais e o domínio de classe é, antes de tudo, uma lei social; vale dizer, é uma ligação que se determina pelo lugar ocupado pelas pessoas na estrutura econômico-social. Ela não trata, pois, de uma escolha a priori do tipo "de que lado devo ficar?". Antes que os indivíduos se perguntem por isto, eles já ocupam determinada posição num dos lados em questão. Com efeito, a própria posição que os intelectuais ocupam na estrutura econômico-social, e, por consequência, a defesa que empreendem de seus interesses particulares (vinculados a esta posição), os situa em ligação com o exercício do poder da classe dominante.

Isto não quer dizer que aquela questão "de que lado devo ficar" seja desprovida de força nas escolhas individuais. Com efeito, o antagonismo estrutural instaurado com o advento das classes sociais deve tomar a forma de confrontos parciais ou mais ou menos globais entre as classes. Mediante esse confronto, os indivíduos tomam ciência de sua vinculação de classe e são premidos a se pronunciar a favor ou contra determinados interesses. É nesse momento e em função das forças desabrochadas pelo conflito, em virtude da direção concretamente assumida pelo confronto, que os intelectuais podem renegar a própria posição e se dispor abertamente a favor dos oprimidos.

Duas suposições podem se derivar da discussão precedente. Primeira: no caso humano, a relação entre lei geral e particularidade é radicalmente diversa daquela que opera na esfera biológica, porquanto o gênero humano se forma como lei objetiva na mesma medida em que opera intensa diferenciação interna. As relações da individualidade com a generidade são feitas por cadeias de mediações cada vez mais abrangentes e complexas. Segunda: quanto mais se desenvolvem as mediações - esteadas amplamente na divisão do trabalho -, mais se engendram possibilidades de que as partes se diferenciem e assumam determinadas posições em confronto com a lei geral. No caso em epígrafe, o intelectual chega mesmo a contradizer a norma geral ao se pôr ao lado dos dominados. A análise da troca e do valor, cuja origem radica na divisão do trabalho, reforçará e sancionará a tese aqui suscitada.

4. Divisão social do trabalho, troca e valor

Em O capital, Marx afirma que cada "comunidade encontra diferentes meios de produção e diferentes meios de subsistência em seu ambiente natural" e, por isso, desenvolve modos de produção e produtos que, em contraste com os de outras comunidades, revelam diferenças e especificidades. Também neste comenos, se trata de uma divisão natural do trabalho que vai ser suplantada, dando lugar a uma repartição ocupacional fundada exclusivamente em laços sociais. O veículo fundamental desta passagem é a troca, haja vista o que leciona Marx (1996, p. 403):

É essa diferença natural que provoca a troca recíproca de produtos e em consequência a transformação progressiva desses produtos em mercadoria, ao entrarem em contato as comunidades. A troca não cria a diferença entre os ramos de produção, mas estabelece relações entre os ramos diferentes e transforma-os em atividades mais ou menos interdependentes dentro do conjunto da produção social. A divisão social do trabalho surge aí através da troca entre ramos de produção que são originalmente diversos e independentes entre si.

A divisão social do trabalho tem como veículo basilar a troca realizada entre comunidades. Com esta, uma diferenciação meramente natural passa a ser realizada sob forma puramente social, ou seja, a determinação natural passa a constituir apenas a base sobre a qual se ergue um conjunto de relações econômicas que já não têm nada de natural: a troca de valores de uso. Por meio desta, inicia-se o entrecruzamento das comunidades, um movimento de integração em unidades cada vez mais abrangentes, introduzindo as bases para a explicitação do gênero humano.

A troca é um elemento que opera em mão dupla: ao mesmo tempo que supera a limitação natural das comunidades, situando-as em relação umas com as outras de modo a torná-las interdependentes - formando uma totalidade, ou o conjunto da produção social na citação acima - também implica uma diferenciação interna à própria comunidade, sendo esta um elemento a mais no recobrimento dos elementos naturais por categorias puramente sociais. Com o tempo, a troca desborda o relacionamento entre comunidades e se infiltra nelas mesmas tornando-se uma mediação fundamental no relacionamento entre as unidades privadas de produção, as famílias, e depois entre os próprios indivíduos que compõem a comunidade. Neste caso, expressa Marx (1996, p. 403):

[...] os órgãos particulares de um todo unificado e compacto se desprendem uns dos outros, se dissociam, sob a influência da troca de mercadorias com outras comunidades e tornam-se independentes até ao ponto em que a conexão entre os diversos trabalhos se processa por intermédio dos produtos como mercadorias. No primeiro caso [na troca entre comunidades], o que era independente se torna dependente; no segundo [a troca entre famílias e indivíduos], o que era dependente se torna independente.

Compreende-se, desta forma, como a divisão do trabalho origina a troca4 4 . Este é um ponto de ruptura de Marx com a teoria econômica clássica. Smith (1996), por exemplo, afirma que a divisão do trabalho deriva da propensão natural dos homens ao intercâmbio de seus produtos. Para Marx é o exato oposto: a divisão do trabalho dá origem à troca. Ver a este respeito Sweezy (1986, p. 31-3). e esta, uma vez tornada hábito social, age sobre aquela, alçando-a a patamares mais elevados. De dois modos a troca impulsiona a divisão do trabalho: pela inserção de cada particularismo local num conjunto de relações muito mais amplo e pelo impulso que fornece à diferenciação interna das próprias comunidades. Evidentemente, ela surge tendo por pressuposto um estádio de desenvolvimento das forças produtivas que origine valores de uso numa quantidade superior às necessidades internas da comunidade. Ela também pressupõe que o desenvolvimento das necessidades sociais atingiu um ponto em que a comunidade já não as pode supri com seu trabalho interno e, por isso, recorre às trocas fronteiriças. Estes pressupostos, no entanto, encontram na permuta mercantil o móvel fundamental de seu desenvolvimento ulterior. Isto quer dizer que divisão do trabalho, forças produtivas, excedente econômico, necessidades sociais e trocas mercantis são fatores que se determinam, reflexivamente mesmo, no movimento da reprodução social. E não é demais assinalar que o modo e a intensidade com que penetram o metabolismo econômico-social das comunidades determinam o caráter estacionário ou progressista de cada formação social particular. O contraste entre o modo de produção asiático e greco-romano é particularmente instrutivo quanto a este fato.5 5 . Verificar a esse respeito a seção intitulada "Formas que precederam a produção capitalista", dos Grundrisse (Marx, 2011, p. 388-423).

A troca se ergue sobre a base de produtos que respondem a necessidades da comunidade e, com isto, ela se liga à base material da sociedade, vale dizer, ao trabalho, como forma de intercâmbio do homem (sociedade) com a natureza. Ela mesma, porém, só pode emergir como relação entre comunidades e posteriormente entre os indivíduos da mesma comunidade como proprietários privados, o que lhe confere o caráter de mediação social mediante a qual os valores de uso podem suprir as necessidades comunais, familiares ou individuais.

Este determinismo social atesta-se ainda mais intensamente no momento em que a troca se torna o tipo de mediação fundamental na interação entre as pessoas, seja no que concerne às atividades produtivas, seja no âmbito das atividades responsáveis pela reprodução social. Neste momento, os produtos do trabalho se tornam mercadorias não já em decorrência de uma especialização do trabalho nas comunidades - e por isso estas tenham de trocar seus produtos para satisfazer as necessidades que não conseguem suprir com seu próprio trabalho -, mas principalmente porque a troca se universalizou enquanto forma de socialização dos trabalhos singulares. Estes mesmos, para se inserirem no conjunto da produção social, hão de ser mediados por atos de troca. Consequentemente, o tornar-se mercadoria dos produtos do trabalho deixa de ser um movimento a posteriori e assume a condição de pressuposto da própria produção, porquanto o trabalho é tornado, ele mesmo, mercadoria. Isto significa um alargamento substantivo das determinações sociais sobre os condicionamentos naturais da existência do homem. Como pensa Lukács (1981, p. 141): "O devir mercadoria dos produtos do trabalho representa, portanto, estágio superior de sociabilidade; significa que o movimento da sociedade é dominado por categorias cada vez mais puramente sociais e não mais somente naturais."

A crescente socialização torna-se mais evidente ao se tomar o valor na qualidade de princípio regulador dos câmbios mercantis e em cujo conteúdo e forma já não habita nenhum átomo de natureza. O valor só pode vir à tona como expressão de determinadas relações sociais, isto é, como manifestação de uma forma de reciprocidade social fundada na propriedade privada e na troca mercantil. O movimento de universalização das trocas comerciais é também o moto pelo qual o valor pode se erguer como abstração geral que preside o intercâmbio das mercadorias e, por esta via, a reciprocidade no plano econômico e social. O valor é, pois, uma abstração no exato sentido de que supera as singularidades diferenciadoras de cada mercadoria e dos trabalhos que as engendraram reduzindo-os a única dimensão: à quantidade de tempo necessário para sua produção. Portanto, dizer que se cuida de uma abstração engendrada no âmbito das relações sociais não significa uma indiferença da categoria valor em relação aos valores de uso, tampouco quer sinalizar para algum espiritualismo vazio. Esta forma de situar o problema apenas esclarece ser o valor uma entificação ainda mais socialmente pura do que o próprio valor de uso que acompanha o homem desde que se pôs de pé pelo trabalho. Intentamos exprimir ainda que o valor só se engendra e opera no âmbito de uma relação reflexiva com o valor de uso - um dado da natureza socialmente transformado - com o que ele se liga à produção material da vida. Esta ligação com a base natural sobre a qual repousa a reprodução da vida humana, contudo,

[...] não diminui em nada o grande passo adiante realizado pela sociabilidade, o emergir e se fazer universal e dominante do valor de troca como mediador puramente social das relações recíprocas entre os homens. Ao contrário. É justamente esta mediação que faz surgir na práxis dos homens relações sociais tão importantes que, uma vez conscientes, tornam as relações ainda mais sociais. (Lukács, 1981b, p. 142)

A universalização da troca e do valor como mediações fundamentais da sociabilidade implica a centralização da vida econômico-social em torno da categoria tempo de trabalho socialmente necessário; é este, devidamente elaborado, que fornece em concreto a grandeza de valor das mercadorias e apenas o tendo por base a troca pode se universalizar (Marx, 1996, p. 45-46). A substância do valor não pode radicar em nenhuma propriedade particular das mercadorias, tampouco nos trabalhos singulares que lhes dão origem; o valor tem determinação fundamental no trabalho em geral, ou melhor, no quantum de trabalho estabelecido socialmente para a produção das mercadorias. E, como o trabalho se mede em tempo, então, a substância do valor só pode ser o tempo de trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias. Na presença desta categoria, os trabalhos singulares adquirem determinação puramente social, já que é a lei social que determina o tempo e o grau de habilidade média para a execução de certa tarefa e, ademais, esta lei delimita concretamente o quantum de trabalho vivo requerido na reprodução econômica e social.

Com isto, antes de mais nada, o tempo de trabalho individual requerido para a fabricação de um produto adquire uma determinidade que transcende o dado natural. Nos primeiríssimos estágios do trabalho a coisa principal era o nascimento do produto: o tempo necessário para obtê-lo era assunto de importância secundária. Do mesmo modo, a diversidade dos rendimentos dos trabalhos singulares originalmente era fundada nas características biológicas (até psíquicas) dos indivíduos. Somente em um determinado nível do processo de produção e troca surge o tempo de trabalho socialmente necessário como verdadeira categoria social. (Lukács, 1981b, p. 143)

O tempo, como um dado de natureza, constitui presença constante na vida humana e, sem dúvida, forneceu algum parâmetro para a reprodução social em qualquer período da história. Somente com a universalização das trocas mercantis, todavia, ele se torna uma categoria elaborada socialmente, conforme se depreende da análise de Marx sobre a fantasiosa situação de Robinson Crusoé, o solitário habitante da ilha selvagem tão a gosto dos teóricos da economia clássica: nas condições em que se encontra, tal homem "tem de satisfazer diferentes necessidades e, por isso, é compelido a executar trabalhos úteis diversos, fazer instrumentos, fabricar móveis, domesticar lamas, pescar, caçar. [...] A própria necessidade obriga-o a distribuir, cuidadosamente, seu tempo entre suas diversas funções" (Marx, 1996, p. 85). Aqui temos o tempo servindo de parâmetro para a alocação das energias pessoais da nossa figura literária, mas a divisão do tempo a que a personagem de Daniel Defoe se vê obrigada não deriva de uma sanção social: ela, na solidão, tem de dedicar parcelas do seu tempo às atividades necessárias a sua existência.

O imperativo que obriga Robinson Crusoé a se ocupar de suas diversas atividades segundo um tempo determinado corresponde à lei social que na produção mercantil estabelece um quantum determinado de tempo e um grau médio de habilidade para a execução de determinadas tarefas. A diferença fundamental entre os dois exemplos reside no fato de o primeiro ser uma criação fantasiosa e o outro corresponder à realidade, bem como no fato de que, para a personagem, a distribuição do tempo nas diversas tarefas é prerrogativa sua como homem isolado de todo contato humano, ao passo que, na produção mercantil, a alocação dos trabalhos particulares é atributo do movimento espontâneo das trocas que estabelece, por si mesmo, a quantidade de tempo e de esforços que a sociedade deve dispensar em cada uma das atividades necessárias. Em consequência, a distribuição do tempo para cada tarefa transparece cristalinamente para Crusoé e é assumida como posição consciente; já no caso da formação social capitalista, a distribuição do trabalho social segundo um tempo assentido socialmente não transparece aos indivíduos, porquanto aparece sob a forma fetichizada de coisas que se trocam. Trata-se de uma lei da sociedade da qual as pessoas apenas sofrem as consequências, mas não a conhecem nem a controlam, sendo por ela dominadas.

Também na Idade Média europeia, quando a "dependência pessoal caracteriza tanto as relações sociais da produção material, quanto as outras esferas da vida baseadas nessa produção", (Idem, ibidem, p. 86), o tempo de trabalho constitui a referência concreta sobre a qual se tecem as relações econômico-sociais. Em virtude, porém, de a forma social coincidir diretamente com sua configuração concreta, a distribuição do trabalho segundo o tempo é uma realidade cristalina e

cada servo sabe que quantidade de sua força pessoal de trabalho despende no serviço do senhor. [...] No regime feudal, sejam quais forem os papéis que os homens desempenham, ao se confrontarem, as relações sociais entre as pessoas na realização de seus trabalhos revelam-se como suas próprias relações pessoais, não se dissimulando em relações entre coisas, entre produtos do trabalho. (Marx, 1996, p. 86)

O mesmo ocorre na reprodução de uma família camponesa que produz para as próprias necessidades. Tal como acontece com a personagem em sua ilha ensolarada, a família - como corpo social que trabalha - tem que distribuir para os indivíduos as diversas tarefas com vista a suprir as necessidades, e isto é feito de acordo com um tempo determinado. Neste caso, "as forças individuais de trabalho operam, naturalmente, como órgãos da força comum de trabalho da família e, por isso, o dispêndio das forças individuais de trabalho, medido pelo tempo de sua duração, manifesta-se, aqui, simplesmente, em trabalhos socialmente determinados" (Marx, 1996, p. 87).

Vê-se, com efeito, que a distribuição social do trabalho segundo o princípio temporal não pressupõe a troca mercantil. Trata-se, antes, de uma manifestação que se revela em várias formações sociais, muito embora nas sociedades pré-capitalistas não se tenha fundado ainda uma lei social que determina a média de tempo necessário e o grau médio de habilidade para cada trabalho singular. Nos exemplos tratados há pouco, os trabalhos singulares se inserem diretamente na tessitura do labor social total e não mediados pela troca. As mediações aí operantes são de outra ordem e se tecem como relações de dependência pessoal, laços consanguíneos e familiares, e os trabalhos singulares são levados em conta segundo a sua utilidade e os atributos pessoais neles impressos. Nesse âmbito, o tempo emerge como objetividade natural que, sem dúvida, fornece algum parâmetro para a distribuição dos trabalhos no tecido social, porém ainda não assumiu uma determinatividade social que o faça uma lei reguladora de toda a produção e circulação econômico-social. A própria produção material, uma vez que não se volta para a valorização do valor, mas tão somente para o atendimento das necessidades da comunidade, não gravita à órbita do quantum de tempo empregado na realização dos produtos. Em verdade, o que interessa é o valor de uso dos produtos do trabalho. Em função dessa característica de reprodução dessas sociedades, o tempo de trabalho aparece aí como determinação em si, natural e espontaneamente aceita, diferentemente do que acontece quando a produção econômica passa a ser regida pela lógica mercantil: aqui, o tempo natural é elaborado, é instituído como lei social que regula a produção e reprodução da sociedade, e cada trabalho singular tem de se adequar a esta lei sancionada socialmente. Tudo se faz, aqui, em função do tempo. É o Time is Money benjaminiano.

"Somente em um determinado nível do processo de produção e troca surge o tempo de trabalho socialmente necessário como verdadeira categoria social" (Lukács, 1981b, p. 143). Isto quer dizer que a longa universalização das trocas mercantis como forma de reciprocidade social constitui o movimento pelo qual o tempo de trabalho socialmente necessário se engendra como força determinativa que condiciona a inserção dos trabalhos singulares no conjunto da produção econômica. É uma vitória da sociabilidade que, por sobre as peculiaridades de cada trabalho singular e do seu produto, se ergam determinações puramente sociais como a troca, o valor e o tempo de trabalho socialmente necessário, já que elas apenas expressam uma forma de ser da reprodução econômico-social não mais determinada por forças naturais. Nas palavras de Lukács, "a sociabilização da produção na troca de mercadorias, com todas as suas formas fenomênicas necessariamente contraditórias, é um veículo objetivo do progresso em direção à sociabilidade".

Estamos aqui perante uma categoria que, a exemplo do excedente econômico, exprime caráter contraditório. Com efeito, o tempo de trabalho socialmente necessário constitui um avanço do ponto de vista da socialização da reprodução econômico-social, porém se efetiva no capitalismo sob o fetiche mercantil, servindo de base e parâmetro para a exploração do trabalho pelo capital. Isto, entretanto, não invalida sua natureza de categoria puramente social que, uma vez tornada consciente e assumida livremente na práxis social dos homens, deve se interverter em condição da emancipação humana.

Numa "sociedade de homens livres, que trabalham com meios de produção comuns, e empregam suas múltiplas forças individuais de trabalho, conscientemente, como força de trabalho social" (Marx, 1996, p. 87), o tempo de trabalho assume outra forma ao se prestar a funções sociais profundamente diversas daquelas assumidas no capitalismo. Mediados por formas de organização conscientemente criadas, os homens controlam a produção na sua globalidade e, por isso, a totalidade de forças que põe a economia em movimento se lhes transparece como extensão de suas próprias forças. O tempo de trabalho desempenharia, nestas circunstâncias, dupla função: regular a proporção entre as diversas funções e as necessidades, bem como medir a participação dos indivíduos nas atividades comunitárias e no usufruto da riqueza produzida socialmente. A economia de tempo na produção cria, assim, as possibilidades concretas do rico desenvolvimento físico e espiritual dos homens, pois: "Tanto para o indivíduo singular, como para a sociedade, a omnilateralidade do seu desenvolvimento, da sua satisfação e da sua atividade depende da economia de tempo" (Marx apud Lukács, 1981b, p. 143-44).

O progresso feito pela forma social capitalista consiste, neste particular, em ter criado forças produtivas e formas de intercâmbio universais. As primeiras põem a base da diminuição progressiva do trabalho necessário à produção econômica e da consequente liberação de tempo para outras atividades. E já que o intercâmbio se realiza no plano mundial lastreado em premissas puramente sociais, abre-se um leque de possibilidades concretas de que ele seja assumido e dirigido conscientemente pelos homens. Para tanto, é necessário superar as mediações alienadas que sustêm o gênero humano, dentre as quais se destacam a propriedade privada, o capital e o Estado.

5. Conclusão

A posição da atividade humana sensível - a práxis - como fundamento do ser social instaura uma ontologia crítica que supera a exterioridade com que o idealismo e o materialismo trataram as relações entre essência e fenômeno, universalidade e particularidade, generidade e individualidade, objetividade e subjetividade. A práxis implica que a subjetividade se confirma na medida em que intervém, ativa e produtivamente, sobre o mundo exterior, o qual oferece os limites e possibilidades da ação do sujeito, na medida mesma de sua plasticidade ou de sua maleabilidade para ser outro, como assinalou Chasin (1995).

O mundo humano emerge, assim, como processo fundado nas sínteses relacionais das práxis humanas. Na compreensão de Lukács (1981b, p. 186),

é nestas somas e sínteses que se exprime [...] a continuidade do social. Elas constituem um tipo de memória da sociedade, que conserva o adquirido do passado e do presente fazendo deles os veículos, as premissas, os pontos de apoio para o desenvolvimento futuro.

Tais sínteses relacionais constituem, precisamente, as forças genéricas responsáveis pela produção e fixação das objetivações humanas. Os traços comuns às várias etapas da evolução histórica correspondem àquilo que na tradição filosófica se chamou de essência humana - agora revelada como criação histórica.

O traço característico da entificação progressiva e processual do gênero humano, como tencionamos demonstrar, é dado pelo crescimento extensivo e inten sivo de elementos sociais e a consequente regressão dos condicionantes naturais. Intentamos dizer que as condições de existência do homem são cada vez menos dadas pela natureza e cada vez mais produzidas socialmente. As profundas transformações operadas na práxis do trabalho, desde a fabricação de machados de pedra até a conquista do espaço e a microeletrônica, impulsionaram e exigiram transformações de mesma monta nas formas de relações sociais. O progresso no domínio da natureza - facilmente intuído no âmbito do trabalho - foi acompanhado do processo de aumento e complexificação das mediações sociais que interligam o homem e o gênero. O surgimento das classes sociais e o de complexos parciais como a política, a educação escolar, o direito e o valor de troca como regulador da economia dão prova disto. Daí é possível derivar o seguinte: o gênero humano produz leis que tendem à universalização (lei do valor, mercado mundial), tornando-se cada vez mais unitário, o que só pode ocorrer pela diversificação das mediações internas, vale dizer, pela expansão e aprofundamento das diferenças parciais. É este o terreno onde surge e se reproduz a individualidade ou a personalidade, hoje mistificada pela ideologia do individualismo possessivo narcísico.

Recebido em 17/7/2012

Aprovado em 10/12/2012

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  • 1
    . José Chasin (1995, p. 398) sintetiza esse ponto de vista: "Transitividade ou conversibilidade entre objetividade e subjetividade compreende, pois, a dissolução da unilateralidade ou limites desfiguradores, materialistas e idealistas, do sujeito e do objeto: aquele perde a estreiteza de pura interioridade espiritual e este a de mera exterioridade inerte. Pela constatação do intercâmbio, a subjetividade é reconhecida em sua possibilidade de ser coisa no mundo, e a objetividade como
    dynameis - campo de possíveis. O sujeito se confirma pela exteriorização sensível, na qual plasma sua subjetividade, e o objeto pulsa na diversificação, tolerando formas subjetivas ao limite de sua plasticidade, isto é, de sua maleabilidade para ser outro".
  • 2
    . Cf. Marx e Engels (2007, p. 70): "A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações individuais, cada uma das quais explora os materiais, capitais e forças de produção transmitidas por aquelas que a precederam; quer dizer, que de um lado prossegue em condições completamente distintas da atividade precedente, enquanto de outro lado modifica as circunstâncias anteriores mediante uma atividade totalmente diferente...".
  • 3
    . Cf. Lukács (1981, p. 155): "As posições teleológicas necessárias [ao trabalho] são, como vimos, de duas formas: aquelas que visam transformar, com finalidades humanas, objetos naturais [...] e aquelas que tencionam incidir sobre a consciência dos outros homens para impeli-los a executar as posições desejadas. Quanto mais se desenvolve o trabalho, e com ele a divisão do trabalho, tanto mais autônomas se tornam as formas das posições teleológicas do segundo tipo, e tanto mais podem se desenvolver em um complexo por si da divisão do trabalho."
  • 4
    . Este é um ponto de ruptura de Marx com a teoria econômica clássica. Smith (1996), por exemplo, afirma que a divisão do trabalho deriva da propensão natural dos homens ao intercâmbio de seus produtos. Para Marx é o exato oposto: a divisão do trabalho dá origem à troca. Ver a este respeito Sweezy (1986, p. 31-3).
  • 5
    . Verificar a esse respeito a seção intitulada "Formas que precederam a produção capitalista", dos
    Grundrisse (Marx, 2011, p. 388-423).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Jul 2012
    • Aceito
      10 Dez 2012
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