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Goldmann e o estruturalismo genético* * Artigo originalmente publicado na revista Serviço Social & Sociedade, n. 21, ago. 1986.

Goldmann and genetic structuralism

Resumo:

O presente artigo é resultante de palestra proferida pelo Professor Michael Löwy na PUC-SP em 1985 sobre a obra de Goldmann, em particular do conceito de estruturalismo genético, inspirado na obra de Marx, para designar o método dialético. O estruturalismo genético é um conceito amplo, compreendido enquanto método que busca analisar totalidades estruturadas, e observar qual é a dialética entre o todo e as partes. Goldmann foi influenciado pela obra de Lukács, pela epistemologia genética de Piaget, enfatizando o processo histórico de constituição do objeto na sua totalidade e de constituição de sujeitos coletivos, na qual as classes sociais apresentam centralidade. O conceito tem aplicação no terreno particular da cultura, mas também como definição de método das ciências sociais e de aplicação em todos os terrenos do conhecimento social.

Palavras-chave:
Estruturalismo genético; História; Classe social

Abstract:

The present article results from a lecture given by professor Michael Löwy at PUC-SP in 1985. The lecture was about Goldmann's works, particularly about the concept of genetic structuralism, inspired by Marx's work, to designate the dialectical method. Genetic structuralism, a broad concept, is understood as a method that seeks to analyze structured totalities, and to observe which the dialectic between the whole and the parts is. Goldmann was influenced by both Lukács's works and Piaget's genetic epistemology. Genetic structuralism emphasizes the historical process of the constitution of the object in its totality, and of the collective subjects'constitution, in which the social classes show centrality. The concept is applied in the particular field of culture, but also as definition of the Social Science method, and it is applied in every field of social knowledge.

Keywords:
Genetic structuralism; History; Social class

Considero que a obra de Goldmann representa uma das contribuições mais importantes do marxismo no campo das ciências sociais e, sobretudo, no campo da sociologia da cultura, que foi o campo onde mais desenvolveu seus trabalhos.

O conceito de estruturalismo genético é um conceito amplo, que tem aplicação não só no terreno particular da cultura, mas também como definição de método das ciências sociais, de aplicação em todos os terrenos do conhecimento social.

Goldmann se considerava discípulo e continuador da obra de Lukács, mas do Lukács dos escritos dos anos 1920, particularmente do Lukács de História e consciência de classe. A referência metodológica, filosófica, teórica, para Goldmann, era esse livro, publicado em 1923, e que andou meio esquecido durante muito tempo, entre outras razões porque o próprio Lukács não queria nem mais ouvir falar dele, não queria que ele fosse traduzido, nem reeditado. Desse modo, esse livro havia desaparecido, não apenas no sentido histórico, mas também no sentido físico, porque não se o encontrava em lugar nenhum, só em algumas raras bibliotecas, sem reedição e sem tradução.

Goldmann, de alguma maneira, redescobriu o livro durante a guerra em uma biblioteca na Suíça e ficou deslumbrado com ele. A partir daí, começou a utilizar o método de Lukács para os seus trabalhos, naturalmente, reformulando-o, reinterpretando-o. Iniciou pelo trabalho que fez logo em seguida sobre a filosofia de Kant e, depois, para a sua principal obra, que é O Deus escondido (Le Dieu caché), que é uma análise da visão trágica de mundo, em Pascal e em Racine.

A partir desses trabalhos concretos, Goldmann formula em alguns escritos uma espécie de resumo do método que ele vinha empregando nessas obras. Desses resumos, o mais conhecido é As ciências humanas e a filosofia. Também, em vários artigos e em outros trabalhos, ele avança definições sobre métodos, em particular sobre estruturalismo genético, em um conjunto de ensaios que foi publicado nos anos 1950, sob o título de Investigações dialéticas (Recherches dialectiques), que é uma coletânea de ensaios sobre vários temas, alguns de caráter metodológico, outros teórico e filosófico.

No curso dos anos 1960, Goldmann publica um livro sobre Sociologia da literatura, e continua escrevendo trabalhos de caráter teórico mais geral. Alguns desses ensaios foram reunidos depois em várias coletâneas, das quais talvez a mais importante é a chamada Marxismo e ciências humanas (Le Marxisme et sciences humaines).

O conjunto dessa obra, em que se equilibram de maneira bastante interessante investigações concretas sobre obras filosóficas e literárias e ensaios metodológicos, teóricos, epistemológicos, é uma obra muito rica que, ao mesmo tempo, representa uma grande coerência metodológica e uma grande inquietude, uma grande busca de redefinições constantes. É uma obra que está constantemente se criticando, procurando se adaptar aos novos problemas.

O que é, então, o estruturalismo genético? O estruturalismo genético é a maneira pela qual Goldmann define o método dialético, o método marxista. Seu ponto de partida é (como em Lukács, em História e consciência de classe) a categoria da totalidade que, segundo Lukács, introduz o princípio revolucionário no campo da ciência.

A categoria da totalidade significa que qualquer fenômeno social, ou cultural, tem que ser visto como parte de uma totalidade mais ampla, e que essa totalidade tem de ser vista como uma estrutura. Isto é, essa totalidade não é um conjunto homogêneo, é algo que é estruturado e sua estrutura é o tipo de relação que se estabelece entre as partes e o todo: existe um tipo de articulação entre as várias partes dessa totalidade e esse conjunto, que constitui a estrutura total.

O estruturalismo genético é, portanto, um método que procura analisar totalidades estruturadas, e que procura observar qual é a dialética entre o todo e as partes, entendendo que é impossível compreender a totalidade sem a articulação das suas partes, sem perceber o lugar que elas ocupam nas relações que constituem a estrutura total.

Partindo dessa visão dialética, da circulação entre o elemento parcial e a totalidade, Goldmann trata de superar uma oposição tradicional na ciência social acadêmica, que era a oposição entre a compreensão e a explicação.

O conceito de compreensão, que aparece com o historicismo, parte da ideia de que as ciências sociais são ciências compreensivas, que elas têm a tarefa de compreender o significado cultural, social, das várias manifestações da realidade social. Enquanto as ciências naturais têm função puramente explicativa. Outras correntes da ciência social, como o Positivismo, insistem unicamente na natureza explicativa de todas as ciências.

Goldmann procura relativizar essa oposição e mostrar como, na análise das totalidades, vai se estabelecendo uma relação dialética entre a compreensão e a explicação.

A compreensão procura entender a estrutura significativa imanente de um objeto de estudo, qualquer que ele seja. Suponhamos, por exemplo, dois pedaços de madeira, com um prego no meio; entender sua estrutura significativa imanente implica entender que isto é uma cruz, e que esta cruz tem um certo significado simbólico, religioso. Esta seria a estrutura significativa, imanente do objeto.

Mas necessitamos também de uma explicação desse objeto. Além de compreendê-lo, precisamos explicá-lo. Para essa explicação, precisamos ter o contexto mais amplo, do qual a cruz é um elemento. Se a cruz estiver no teto de uma igreja, em cima de um túmulo, no peito de um cidadão, ou se é uma imagem em um livro, enfim o contexto em que aparece a cruz é que vai permitir explicar qual é o seu significado, que papel ela joga, por que ela se encontra nesse lugar. Suponhamos, por exemplo, que essa cruz esteja no teto de uma igreja, sua função é, digamos, ilustrar o papel funcional que tem aquele edifício. Deste modo, quando explicamos a função de um objeto, não apenas compreendemos seu significado, como também o porquê dele estar ali situado, a sua função, e o seu relacionamento com a totalidade mais ampla, no caso, a Igreja.

A ideia de Goldmann é de que a compreensão é a análise interna, da significação imanente de um objeto social ou cultural, e a explicação se faz quando se insere este objeto, esta totalidade limitada, parcial, em uma estrutura mais ampla. Quando vemos o lugar que ocupa este objeto particular, limitado, dentro da estrutura mais ampla, quando o inserimos nessa estrutura, explicamos seu papel, sua natureza, as razões de sua existência etc.

Em outras palavras, o método estruturalista genético é uma espécie de círculo permanente, onde é a compreensão da nova estrutura que nos dá a explicação desse elemento parcial. Suponhamos que essa nova estrutura seja a igreja, precisamos compreender o edifício como uma estrutura significativa (não é um galpão, um supermercado, um estacionamento), essas paredes têm um significado, constituem uma estrutura significativa que, se a compreendermos, estamos explicando a cruz que está no teto. Então, a explicação dessa nova totalidade, dessa nova estrutura mais ampla, nos fornece a explicação do elemento parcial, com o qual nós havíamos começado.

Utilizando um exemplo do próprio Goldmann, de seu trabalho em relação à obra de Racine. No primeiro momento, Goldmann se ocupa em compreender a estrutura interna da obra de Racine, é um processo de compreensão da estrutura significativa de sua obra dramática. Uma vez conseguida essa totalidade, isso lhe permite explicar uma série de elementos parciais, que são as várias obras de teatro que Racine escreveu, onde se manifesta uma visão trágica do mundo. Ao compreender esta visão, Goldmann está explicando cada uma das peças em função da compreensão geral da estrutura significativa, que é a visão trágica de mundo. No segundo momento, ele procura compreender um fenômeno mais amplo, que é o jansenismo, uma corrente religiosa, trágica, que aparece na França, no século XVII, da qual a obra de Racine é apenas um elemento. O jansenismo produziu um conjunto de obras filosóficas, teológicas, literárias, e o teatro de Racine é apenas um elemento dessa totalidade muito mais ampla, desse grande movimento cultural, filosófico, político, religioso. Então, se se compreender a natureza do jansenismo, vai-se poder explicar as obras de Racine. Trata-se, entretanto, de um movimento de ida e volta: compreendendo e explicando o teatro de Racine, pode-se entender também melhor o que foi o jansenismo; o elemento parcial ajuda a entender a totalidade.

Em seguida, Goldmann passa a um nível mais amplo, que é o da classe social, a nobreza togada (noblesse de robe). Essa classe social particular era composta pelos juízes, pelos funcionários do Parlamento, e por uma série de personagens que eram de origem burguesa (plebeus), mas que tinham sido enobrecidos pela monarquia para exercer funções jurídicas e administrativas no Estado absolutista. Esta classe se encontrava em uma situação muito crítica porque, por um lado, era de origem burguesa e, por outro, se encontrava enobrecida, a serviço da monarquia; deste modo, ela sentia todas as contradições dessa situação, que era, ela mesma, trágica. Então, se se compreendesse a situação histórico-social da nobreza togada, se estaria explicando o fenômeno do jansenismo, que era um elemento da vida, da produção e da visão social da nobreza togada.

A compreensão da situação histórica da nobreza togada dava a explicação do que foi o jansenismo, da mesma maneira que a compreensão e a explicação do que foi o jansenismo ajudavam a compreender e a explicar a situação da nobreza togada.

Goldmann desenvolve esse jogo dialético entre a compreensão e a explicação em um processo de totalização cada vez mais amplo, no qual ele vai integrar as totalidades particulares nas totalidades mais amplas, até atingir um certo limite, que é o objeto que aparece como a última totalidade relevante para o trabalho que estava sendo feito, a sociedade francesa do século XVII.

Esse, então, é o primeiro aspecto do método dialético, do estruturalismo genético: a compreensão das totalidades estruturadas, combinando a compreensão do seu significado imanente, com sua explicação, como parcelas de uma totalidade articulada mais ampla.

Imediatamente, devemos introduzir o segundo aspecto do método, porque os dois são inseparáveis, posto que ele se chama estruturalismo genético. Por que genético? Porque não se pode entender uma estrutura sem a sua gênese. Por que Goldmann utiliza esse conceito de "gênese"? Em parte é por influência de Piaget, o célebre psicólogo e epistemólogo suíço (do qual Goldmann foi aluno), que desenvolveu toda uma teoria chamada de epistemologia genética, insistindo na importância da gênese para se entender toda uma série de fenômenos, primeiro no nível da psicologia, depois em nível do social, no nível do histórico etc. Foi um pouco por influência dessa teoria de Piaget, dessa epistemologia genética, que Goldmann utilizou o conceito de estruturalismo genético. Mas, o que ele quer dizer com "genético" é, na realidade, a mesma coisa que histórico. O que ele designa como gênese é o processo de constituição histórica do objeto, da totalidade, da estrutura. Nesse sentido, para Goldmann, na realidade, o que se chama de estrutura deve ser entendido como um processo, um processo de estruturação, um processo genético de formação de estrutura, seguido de um processo de desestruturação.

Em lugar de estruturas rígidas, imóveis, fixas, o que se tem é um processo constante de formação e decomposição de estruturas, um processo constante de gênese e de declínio de estruturas, de estruturação e desestruturação.

Uma estrutura se forma, tem uma gênese, depois ela conhece uma crise, ela se decompõe e, ao mesmo tempo em que vai se decompondo, uma nova estrutura vai aparecendo no seu seio, vai sendo gerada, conhece a sua gênese: a esse processo constante é que Goldmann chama de a gênese das estruturas e da totalidade.

Francamente, eu prefiro o conceito de história e historicidade, porque a gênese sempre me faz pensar em começo. A palavra gênese significa "no começo". Gênese se refere, sobretudo, ao começo, à origem, enquanto o conceito de história implica o passado, o presente e o futuro. E o futuro joga um papel muito importante também na teoria de Goldmann. Em minha opinião (talvez em uma reserva conceitual, terminológica em relação a Goldmann), seria mais adequado chamar o método de Goldmann de estruturalismo histórico, em lugar de estruturalismo genético.

A partir desta compreensão do que é o método dialético, Goldmann vai criticar o que ele mesmo chama de estruturalismo não genético, de estruturalismo a-histórico, que já nessa época na França tinha uma influência muito grande. O estruturalismo, por exemplo, da linguística, da antropologia de Lévi-Strauss etc.

Goldmann questiona esse tipo de estruturalismo a-histórico, de estruturalismo que faz abstração do processo, que pretende encontrar estruturas invariáveis. Um estruturalismo que se fecha metodologicamente a toda dimensão histórica dos fatos sociais. Sua conclusão dialética é a seguinte: "A ideia de estudo puramente contínuo, diacrônico, que ignora o sistema e as estruturas, é tão ­impossível, do ponto de vista científico, e inadequado em relação à realidade - que é um processo permanente de estruturação e desestruturação -, quanto um estudo puramente sincrônico, que trataria as estruturas fora dos sujeitos que as transformam." Ele recusa esse dilema. Por um lado, rejeita uma visão de historicismo puro que ignoraria as estruturas - seria um pouco a visão da historiografia tradicional, que enumera cronologicamente os fatos sem ver que existem estruturas que os originam, tais como a estrutura social, a econômica, os modos de produção, a estrutura de classes, isto é, os elementos estruturais que são essenciais para se entender o processo histórico, processo este que, ele mesmo, é estruturado, não é um simples fluxo amorfo de acontecimentos.

Por outro lado, Goldmann recusa o que seria uma concepção de estrutura puramente sincrônica, aquele corte estrutural que faz abstração do tempo, que considera as estruturas como algo estático e fixo. Para Goldmann, o método estruturalista genético (que para ele é sinônimo de método marxista) é necessariamente histórico, um método que deve entender a historicidade das estruturas. Nesse sentido, Goldmann retoma, em certa medida, a herança do historicismo, pela mediação da obra de Lukács (História e consciência de classe), que situa o conceito de história como elemento central do método marxista.

A pergunta que se coloca agora é se a ciência social tem que ser necessariamente histórica. A grande questão da ciência social é a questão do sujeito do processo histórico: quem é o sujeito das transformações históricas? Goldmann critica duas concepções tradicionais sobre a questão, uma mais antiga e outra mais recente.

A primeira, que vem desde a Filosofia das Luzes, e que continua a se manifestar no Empirismo inglês e, mesmo, no existencialismo ou na fenomenologia, é a concepção de que o único sujeito possível é o indivíduo. Essa posição começa com Descartes, com o nacionalismo clássico: para Descartes, o único sujeito possível é o indivíduo que pensa, cogito ergo sum - é através do pensamento do indivíduo que se constrói o conjunto da realidade. No existencialismo, o sujeito é sempre o indivíduo, a liberdade é individual, o conhecimento se faz em relação ao indivíduo e suas sensações, portanto, o único sujeito possível do comportamento, do pensamento e da ação é o indivíduo. Contra essa epistemologia individualista, Goldmann afirma que os sujeitos da história não são os indivíduos simplesmente, que o sujeito essencial é um sujeito transindividual, isto é, um sujeito coletivo.

Goldmann rejeita também a concepção, predominante na França nessa época, que é a concepção do estruturalismo não genético, não histórico, de Foucault, de Lévi-Strauss, da Linguística, da Psicanálise, de Lacan e do próprio Althusser, no campo do marxismo. Trata-se de um conjunto de concepções muito diferentes entre si, mas que têm em comum a ideia de que não existe, de que tem-se que eliminar mesmo, a ideia de um sujeito na história, tem-se que estudar o processo histórico como produzido por estruturas objetivas, não subjetivas.

Para estas escolas, de estruturalismo não genético, são as estruturas que criam os acontecimentos históricos. Por exemplo, é a linguagem que produz o pensamento e a cultura. No caso de Althusser, são as relações de produção que atribuem papéis aos indivíduos. São sempre estruturas objetivas que são os verdadeiros sujeitos do processo histórico. Contra isso, Goldmann insiste em que a linguagem, as estruturas, as relações de produção, não são sujeitos e nunca produzem nada, que são os homens que, inseridos em uma estrutura determinante - uma estrutura de língua, de relações de produção -, produzem a história. São os homens que criam a própria linguagem, que a transformam e que criam e transformam as relações de produção.

Nesse sentido, as estruturas são resultado de uma certa prática, da ação desse sujeito transindividual, e serão modificadas por esses sujeitos, e essa modificação, essa transformação, é uma característica essencial dessas estruturas. Deste modo, essas estruturas têm que ser concebidas como um processo permanente de produção, da qual os sujeitos são os homens organizados em coletividades.

Quais são essas coletividades, esses sujeitos transindividuais? Goldmann diz que existem vários sujeitos transindividuais, os grupos profissionais, as escolas religiosas, os grupos intelectuais, as famílias, enfim, uma série de grupos, mas que o sujeito fundamental, o sujeito transindividual decisivo para a compreensão do processo histórico, são as classes sociais. As classes sociais, para Goldmann, são o fator essencial do conjunto de relações entre os homens, e são elas que produzem a totalidade social, que são o sujeito essencial do processo histórico.

Como é que se define uma classe social? Para Goldmann, existem três níveis fundamentais na classe social:

  1. a função que ela tem no processo de produção;

  2. sua relação e seus conflitos com outras classes;

  3. a visão de mundo que corresponde à sua posição social.

O primeiro elemento, a função na produção, é essencial. Nesse sentido, Goldmann é um marxista clássico. Para ele, o elemento econômico, a função produtiva, é determinante, não só para aquela classe cuja principal atividade é a produção, mas também para aquelas cuja principal atividade não está ligada à produção. Então, não só os que produzem, mas também os que não produzem, são determinados, no seu modo de vida, na sua consciência, pela sua função em relação à produção. As classes que não participam diretamente da produção, que são as classes dominantes, ou privilegiadas, têm que consagrar boa parte de sua atividade a defender e justificar os seus privilégios. Deste modo, o seu caráter não produtivo é decisivo para definir a sua concepção, a sua vida, a sua mentalidade, digamos, a sua estrutura mental.

Por exemplo, a nobreza da corte, na época da monarquia absolutista no século XVII, era uma classe que não participava absolutamente em nada na produção. Então, em que medida se pode dizer que era a sua função no ­processo produtivo que determinava sua consciência? Segundo Goldmann, o fato deles não serem produtores, de serem consumidores, parasitas e, em certa medida, exteriores à produção, mas terem uma posição privilegiada que lhes permitia consumir abundantemente, determinava em grande medida o seu comportamento, a sua mentalidade. Existiam duas formas de consciência da nobreza da corte, a epicurista e a mística. Aparentemente, eram formas opostas: o epicurismo valorizava os prazeres e o consumo ostentatório, e o misticismo, ao contrário, implicava retirar-se dos prazeres e negá-los. Mas, nos dois casos, a vida moral era orientada pelo problema dos prazeres e do consumo, para aceitá-los ou recusá-los. O único critério pelo qual se definia a moral e as preocupações daquela classe estava relacionado ao consumo e ao prazer, fosse para aceitá-los, fosse para criticá-los.

Para Goldmann, a visão de mundo das classes está condicionada pela sua posição social, pela sua posição no processo de produção, pela sua função na estrutura social, mas isso não quer dizer que essa visão de mundo possa ser explicada unicamente em função desses determinantes socioeconômicos. Existe um processo de autonomia relativa da visão de mundo e de suas várias manifestações culturais, literárias, filosóficas, ou outras. Em última análise, a visão de mundo está fundada em uma certa posição de classe, mas ela vai se desenvolver, nas suas várias manifestações, em função da autonomia própria da esfera de sua manifestação religiosa, cultural, filosófica, que não é redutível unicamente a essa determinação de classe. Goldmann insiste muito na importância desse conceito de autonomia relativa, que se refere à própria história da esfera da produção do sujeito, que tem a sua própria dinâmica, a sua particularidade.

Ao analisar o fenômeno da visão de mundo de uma classe, Goldmann procura mostrar que essa visão corresponde ao máximo de consciência possível de uma classe, que determina o limite de sua visão de mundo. Esta consciência possível não é a mesma coisa que a consciência imediatamente dada. Goldmann retoma a distinção de Lukács entre a consciência de classe empírica e a consciência atribuída da classe - Zugeredinetes Bewusstsein -, que Goldmann traduz por consciência possível. Trata-se de uma tradução não literal (essa não é a palavra utilizada por Lukács), mas eu considero que ela dá bem o sentido do que Lukács queria dizer. A consciência possível significa, portanto, os limites que correspondem à posição estrutural de classe.

Goldmann insiste muito nesse conceito para se entender o processo histórico, e critica as análises empiristas que se limitam a descrever o estado presente da consciência de classe. Por exemplo, os estudos sobre a classe operária, que se limitam a descrever o que os operários estão pensando em um momento determinado e que daí deduzem toda uma teoria sobre o aburguesamento da classe operária. Goldmann critica isto insistindo que os estudos superficiais da opinião e da consciência empírica devem ser distinguidos de outros mais fundamentais, que têm por base a consciência possível, que corresponde à posição estrutural da classe na sociedade e à sua função no processo de produção.

Ele dá dois exemplos engraçados: uma enquete Gallup, que se fizesse na França no começo do ano de 1789, descobriria que toda a população estava satisfeita com a majestade do rei, que a ideia de uma República era considerada um pecado abominável. Esta seria a opinião esmagadora da maioria da população, dos camponeses, do povo. Obviamente, a partir daí, seria impossível descobrir o que iria se passar depois. O mesmo poderia ser feito na Rússia, em janeiro de 1917, se se tivesse feito um estudo entre os operários: a maioria deles teria afirmado que a salvação viria de Sua Majestade o czar, o "pai do povo".

Isso é, para Goldmann, uma prova de que certa sociologia acadêmica burguesa, que trabalha com esse tipo de análise superficial, é incapaz de entender os processos reais que estão se dando no seio da sociedade, as possibilidades objetivas que existem para o desenvolvimento de movimentos sociais revolucionários, na medida em que ignoram o conceito de consciência possível (ou de máximo de consciência possível), que é quem nos dá a ideia dos limites de variações possíveis da consciência de classe, e que nos permite ir mais além daquilo que está dado imediatamente, ao nível da superfície.

Os principais trabalhos de Goldmann no campo do estruturalismo genético são os trabalhos no terreno da sociologia estruturalista genética da cultura (literária, filosófica etc.). Em suas análises nesse terreno, Goldmann busca mostrar como, em um momento histórico determinado, uma classe social apresenta um tipo determinado de consciência possível. A partir dessa consciência possível, elabora uma certa visão de mundo. Encontramos em Goldmann uma tentativa de montar uma tipologia de visões de mundo, uma espécie de análise das diversas formas de visão de mundo possíveis. Ele menciona, principalmente, o racionalismo, o empirismo, o individualismo, o existencialismo, a visão trágica e a visão dialética de mundo. Mas, obviamente, ele mesmo reconhece que não é uma lista exaustiva e que existem seguramente outras visões de mundo, tão ou mais importantes que essas. Pessoalmente, acho que falta nessa lista a visão romântica anticapitalista, que é uma das mais importantes, e que Goldmann nunca analisou.

Deste modo, é a partir da classe social, da consciência possível de classe, que vai se desenvolver a visão de mundo de uma classe, e essa visão de mundo vai se manifestar em seu comportamento social. Isto é importante porque a visão de mundo não é só um fenômeno espiritual, é algo que se manifesta tanto na prática, no comportamento econômico, social, político, real da classe, quanto em nível conceitual, através de doutrinas, teorias filosóficas, ou no terreno da imaginação, através de obras culturais, literárias, artísticas e outras.

Existem vários exemplos que ilustram o parentesco, a afinidade, a homologia, entre as obras literárias que exprimem a mesma visão de mundo. Por exemplo, a filosofia de Kant e a obra literária de Schiller ou a filosofia de Schelling e a obra dos escritores românticos, ou ainda a filosofia de Hegel e a obra literária de Goethe.

A relação entre a visão de mundo e as obras culturais não é uma relação de identidade de conteúdo. Não é no nível simplesmente de uma análise superficial de conteúdo que se pode descobrir a relação entre a visão de mundo e uma obra literária. Por exemplo, no caso de Racine, o conteúdo de suas peças de teatro não tem nada a ver com o cristianismo, nem com o jansenismo, nem com a teologia: trata da Grécia mitológica. No entanto, a estrutura significativa das peças de Racine tem em seu centro o problema do Deus escondido, o Deus ausente e presente ao mesmo tempo, Deus sem o qual nada tem sentido, mas que não se manifesta. Este problema trágico é o problema central desse teatro, da mesma maneira que é o problema central da teologia e da religião jansenista. Então, a análise da relação entre a visão de mundo e a obra literária não é uma análise superficial de conteúdo, mas é uma análise da estrutura significativa do texto.

A partir desse método estruturalista genético, Goldmann vai rejeitar o método tradicional da história da filosofia e da cultura. Esse método tradicional que explica o desenvolvimento da história literária, cultural e filosófica pelas influências. Goldmann mostra a importância muito limitada que tem esse tipo de análise, na medida em que a influência não explica nada, pelo contrário, é necessário explicar por que houve essa influência e não outra. A influência, longe de explicar, precisa ser explicada. Por exemplo, explica-se a obra de São Tomás de Aquino pela influência de Aristóteles. Segundo Goldmann, com isso não avançamos nada para entender o fenômeno do tomismo na Idade Média. Para entender por que a teologia no século XIII teve necessidade de ir buscar Aristóteles, de integrar em sua estrutura o racionalismo aristotélico, temos que analisar a sociedade medieval da época, o desenvolvimento da cidade, do comércio, do poder temporal, desenvolvimento esse que vai exigir um maior emprego de argumentos racionais, que vai dar maior peso à racionalidade e que, portanto, vai exigir uma teologia mais racional. No momento em que a teologia deve se racionalizar, vai utilizar Aristóteles como elemento que vai-lhe permitir o desenvolvimento de uma nova teologia.

Não se trata de ver se essa análise concreta de Goldmann funciona ou não, mas esse é um exemplo de como ele procura utilizar o método estruturalista genético.

Gostaria de terminar com um último exemplo que me parece particularmente revelador do método de Goldmann e dos resultados a que ele pode chegar. Este exemplo é o do teatro de Jean Genet. Jean Genet é um dramaturgo francês que escreveu nos anos 1960 uma série de peças que tiveram grande impacto. As mais conhecidas são Les bonnes (história de umas empregadas que massacram a patroa), Le balon, Les nègres e, a última, Les paravents. Estas peças foram se tornando cada vez mais radicais, mais explosivas, mais subversivas e a última já assumiu um caráter explicitamente revolucionário. Em 1966, Goldmann escreve um artigo no qual procura analisar o teatro de Jean Genet, buscando determinar a visão de mundo que nele se manifestava. Esta visão de mundo era uma proposição radical de luta contra a sociedade existente (isto é, a sociedade capitalista), em nome de valores morais, estéticos e humanos, que nasceram na consciência, na imaginação e no vivido, a partir da recusa à opressão; valores estes que são os únicos que podem dar sentido à vida em uma sociedade fundada sobre o compromisso, sobre a dominação de uma minoria, sobre a mentira e sobre o declínio da vida cultural.

Tudo isso vai se manifestando no teatro de Genet e toma forma mais radical, mais extrema, na última peça, mais recente, Les paravents, cujo herói é uma espécie de revolucionário não conformista, um herói positivo em certa medida.

Partindo da hipótese de que a literatura exprime uma visão de mundo e de que a visão de mundo está relacionada aos processos sociais reais, aos processos que estão se dando na sociedade, e de que há uma relação entre a obra cultural e o desenvolvimento de correntes no seio da sociedade, Goldmann manifesta grande perplexidade frente à produção de Genet, que fazia grande sucesso na França. Perplexidade devida ao fato de que Goldmann, enquanto pensador político, em seus escritos da época, salientava a não existência na França de correntes de contestação revolucionária da ordem estabelecida, que a França era uma sociedade fundamentalmente conformista e que todas as classes haviam sido integradas, de alguma maneira, ao funcionamento da sociedade capitalista.

Ele manifesta, portanto, grande perplexidade diante do teatro de Jean Genet, e pergunta: Como é possível que um escritor possa escrever, hoje, nos anos 1960, essa peça? Trata-se de um simples acidente? Pode-se explicar isso unicamente pela evolução intelectual, pessoal, de Genet? Ou se trata de alguma coisa muito mais importante? Do primeiro sintoma de uma mudança histórica? Esta peça, Les paravents, será um fenômeno isolado e acidental? Ou será a primeira andorinha anunciando a primavera, representando uma reviravolta, um tournant na vida intelectual e social atual?

Dois anos depois se dão os acontecimentos de maio de 1968, aquela explosão que mostrou um potencial bastante inesperado de contestação econômica, social, política, ideológica, da juventude dos estudantes e de grandes setores da classe operária. Trata-se de algo que ninguém imaginava na época, ninguém previa, o próprio Goldmann, como pensador político, tampouco tinha previsto, mas como sociólogo da cultura havia, de alguma maneira, percebido que alguma coisa estava se preparando, e o havia intuído através de uma obra literária.

Acho que esse é um exemplo interessante da eficácia do método estruturalista genético de estudo da cultura, de como, através da análise de uma obra de teatro, Goldmann pôde ter a intuição de que alguma coisa estava se preparando no seio da sociedade francesa, que um tournant estava se gestando. Com muita perplexidade, com muitas dúvidas, ele foi o único a se perguntar se essa obra não estaria anunciando algo que iria acontecer. Acho que existem bem poucos exemplos na história da Sociologia da cultura, ou das análises dialéticas da cultura, de uma intuição tão profunda.

Uma outra intuição comparável se encontra na Teoria do romance, de Lukács. No seu último capítulo, escrito em 1916, Lukács se pergunta se a obra dos grandes escritores russos, como Tolstói, Dostoievski, não anunciariam a aurora de um novo mundo que estaria se preparando na Rússia. Importante é lembrar que isso foi escrito em 1916, no ano anterior à Revolução Russa. Considero, portanto, este outro exemplo interessante da intuição possível, através da literatura, dos processos profundos que se dão na sociedade.

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Pergunta - Qual é a diferença entre o estruturalismo genético e o materialismo histórico?

Resposta - Eu considero que a diferença é semântica e não é. O que Goldmann chama de estruturalismo genético é o que Marx chamava (se é que Marx chamava, porque não é tão evidente) de materialismo histórico. O que Goldmann faz é formular um novo termo para dar conta daquilo que, durante muito tempo, se chamou de materialismo histórico, para designar o método utilizado por Marx e por alguns dos principais marxistas (sobretudo Lukács) para analisar a realidade do capitalismo e da história da cultura. A questão está no porquê ele chama a isto de estruturalismo genético e não de materialismo histórico. Goldmann procura recuperar todo o trabalho feito pela escola estruturalista, que aponta para a importância do conceito de estrutura, como um conceito que mostra a relação orgânica entre as partes dentro do todo. Então, Goldmann procura resgatar isto, na medida em que ele considera que este é um aspecto essencial do método marxista, que não só Lévi-Strauss e os linguistas que analisam as estruturas, que o marxismo também é um método de análise das estruturas. É uma certa tentativa de polêmica contra o estruturalismo a-histórico, mas, ao mesmo tempo, trata de integrar a temática do estruturalismo como um aspecto válido, apresentando o marxismo como sendo o verdadeiro estruturalismo. O termo "genético" tem a função de designar a diferença radical entre o método e o estruturalismo estático, reificado, a-histórico, dominante nas ciências sociais da França. Pode-se dizer que a particularidade do conceito é semântica. Pode-se preferir materialismo histórico. Acho que esta não é uma questão decisiva, mas considero o estruturalismo genético uma denominação válida, tão legítima quanto qualquer uma das outras que se usam. Os conceitos de dialética histórica, dialética revolucionária, materialismo histórico, estruturalismo genético são adequados na medida em que eles afirmam aspectos essenciais do método de Marx. A única reserva que tenho em relação ao estruturalismo genético é o termo "gênese", que me parece demasiado limitativo, na medida que se refere ao passado, à origem, ao começo. Mas eu resgataria o essencial do conceito de Goldmann como uma compreensão histórica do estruturalismo.

Pergunta - Que relação há entre a obra de Goldmann e a obra clássica de Marx?

Resposta - O conjunto do método de Goldmann é inspirado pela obra de Marx: como Marx, ele situa o processo de produção como fundamento da totalidade social, como Marx ele vê nas classes sociais o sujeito do processo histórico, como Marx ele analisa a reificação e o fetichismo da mercadoria como fenômeno central da sociedade capitalista, como Marx ele vê no proletariado o agente emancipador da sociedade. É evidente a relação entre vários temas de Goldmann e a temática do marxismo clássico. Mas, ao mesmo tempo, há um enfoque diferente, sobretudo há um movimento que parte não só de Marx, mas de todo o acervo do marxismo do século XX, particularmente, da obra de Lukács. A obra de Lukács também se inspira nos escritos econômicos de Marx, mas ela procura desenvolver toda uma temática sobre o problema da consciência de classe, sobre o problema da retificação. Esses problemas estão sugeridos nas análises econômicas de Marx, mas que vão ser desenvolvidos, sistematizados e aprofundados por Lukács em História e consciência de classe, e são retomados por Lucien Goldmann, que vai desenvolvê-los em suas análises de sociologia da cultura. Goldmann elabora alguns aspectos do método marxista e os aplica em um campo em que Marx havia trabalhado muito pouco, que é a sociologia da cultura. Nesse sentido, a obra de Goldmann é um desenvolvimento criativo do marxismo, não é uma relação de simples decodificação ou de divulgação do marxismo. Não é uma relação de repetição estática das formulações de Marx. Ele procurou também incorporar elementos trazidos pelas ciências sociais modernas, ao mesmo tempo criticando os seus limites, por exemplo, incorporar as análises do estruturalismo, criticando seu caráter a-histórico, incorporar as análises de toda uma tradição sociológica alemã, criticando os seus limites. Se o marxismo pode se transformar em um instrumento de conhecimento e de transformação da realidade, ele tem que se desenvolver, tem que dar conta de fenômenos novos, tem que se aplicar a toda uma série de terrenos que Marx não pôde explorar. Nesse sentido é que eu vejo, ao mesmo tempo, a continuidade entre Goldmann e a temática clássica de Marx, e o que ele traz de novo, como contribuição. Naturalmente, a diferença é que Marx é o criador de uma nova concepção do mundo. O marxismo é uma nova concepção do mundo, do ponto de vista do proletariado. Goldmann não criou uma nova concepção de mundo.

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    Artigo originalmente publicado na revista Serviço Social & Sociedade, n. 21, ago. 1986.
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    Palestra proferida na PUC-SP em 21-6-1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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