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Judicialização da questão social e a banalização da interdição de pessoas com transtornos mentais

Judging the social issue and making the adjudication of insanity banal

Resumo:

O artigo analisa o protagonismo do Poder Judiciário no enfrentamento da questão social, no bojo dos processos de interdição de pessoas com transtornos mentais. A judicialização da questão social se dá a partir da transferência de responsabilidades do Poder Executivo para o Judiciário no que se refere à garantia de direitos sociais, levada a cabo no processo de interdição, o que acaba privando os interditados do gozo dos direitos civis e políticos. Tal procedimento revela, sob uma nova roupagem, a face conservadora e coercitiva do Estado.

Palavras-chave:
Judicialização; Questão social; Interdição civil

Abstract:

This article aims at analyzing how the Judicial Department deals with the social issue, in the processes of adjudication of insanity. Judging the social issue is accomplished by transferring the Executive Department's responsibilities to the Judicial Department as to guarantee the social rights in the process of adjudication, which ultimately deprives the interdicted of the enjoyment of their civil and political rights. We have concluded that such a procedure reveals the state's conservative and coercive aspect, under a new guise.

Keywords:
Judging; Social issue; Civil interdiction

1. Introdução

O presente artigo pretende analisar o protagonismo atual do Poder Judiciário no enfrentamento da questão social, a partir de estudo realizado nos processos de interdição civil das pessoas com transtornos mentais que tramitavam em uma das varas de família da Comarca de Volta Redonda, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro.

Os resultados do referido estudo, que compuseram tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, indicaram que as demandas que emergem nos processos de interdição traduzem as diversas expressões da questão social, vivenciadas pelas pessoas com transtornos mentais, cujo enfrentamento revela a transferência de responsabilidades do Poder Executivo para o Judiciário no que se refere à garantia de direitos sociais e à proteção social.

Entretanto, o protagonismo do Poder Judiciário se constrói no âmbito de um processo judicial que priva o sujeito do gozo dos seus direitos civis e políticos, o que evidencia, como veremos, a face coercitiva do Estado para efetivar o controle dessa parcela da população.

Os muros dos hospícios foram substituídos pelas invisíveis amarras da interdição civil, o que não alterou a condição de cidadania do louco conforme almejado pelo movimento da reforma psiquiátrica. Tal transferência de responsabilidades configura, no nosso entendimento, uma face do fenômeno da judicialização da questão social.

Em um contexto marcado por mudanças significativas na relação entre Estado e sociedade, processadas desde as últimas décadas do século XX, consideramos que a judicialização da questão social se constitui como efeito da reconfiguração dos mecanismos de enfrentamento da questão social, conduzidas em especial pelo Estado, que revigoram práticas de caráter punitivo e repressivo contra a classe trabalhadora para conter suas movimentações, rebeldias e reações frente às desigualdades sociais por ela vivenciadas.

O planejamento de tal estudo foi desencadeado a partir da sistematização do trabalho de um dos autores, que é assistente social do Tribunal de Justiça. A inserção no real, por meio dessas atividades, descortinou as mais diversas expressões da questão social vivenciadas pelas pessoas com transtornos mentais e seus familiares. O acesso à realidade e condições de vida das pessoas com transtornos mentais que foram alvos dos processos de interdição civil nos lançaram em uma particularidade complexa, que, iluminada pelo debate teórico, nos fez problematizar a participação do Poder Judiciário no enfrentamento das expressões da questão social.

No bojo da referida sistematização do trabalho do assistente social, em especial nos processos de interdição civil, identificamos que as expectativas dos sujeitos que procuram a justiça mantêm relação não somente com a matéria do feito (no nosso caso, a necessidade de ser decretada a interdição civil da pessoa com transtorno mental), mas também revelam necessidades vinculadas exatamente ao enfrentamento das diversas manifestações da questão social, que atingem seu cotidiano.

Percebemos que a expectativa dos familiares que recorriam ao Poder Judiciário, em sua maioria, era a de acessar, por meio da interdição, benefícios assistenciais ou previdenciários. No discurso dos familiares, capturados durante a realização do estudo social, fora o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que exigiu o termo de curatela para que o benefício fosse requerido ou mantido. Vale destacar que não existem bases legais para tal exigência, com exceção do benefício de aposentadoria por invalidez. Nesse sentido, uma primeira indagação foi produzida: por que para ter direitos sociais garantidos e, consequentemente, enfrentar as mazelas impostas pela condição de pobreza, era preciso perder a possibilidade de gozar dos direitos civis e políticos?

Outra demanda descortinada no âmbito da realização do estudo social foi a referente ao acesso a tratamento no campo das políticas de saúde mental. A maioria das pessoas com transtornos mentais não tinha acesso ao tratamento de saúde prescrito pelas diretrizes desenhadas pela política nacional de saúde mental, tendo em vista que seu projeto terapêutico estava reduzido a consultas médicas bimensais ou trimestrais. Assim, a questão do acesso e da permanência da pessoa com transtorno mental no serviço de atenção psicossocial se transmutou em alvo de intervenção do Poder Judiciário no bojo do processo de interdição. Então, uma segunda indagação foi construída: por que o Poder Judiciário se transformou em liderança no processo de construção do projeto terapêutico da pessoa com transtorno mental?

Obviamente, outras mazelas vivenciadas pelas pessoas com transtornos mentais também foram identificadas durante a realização dos estudos sociais nos processos de interdição civil. Indagamos, por exemplo, por que o comprometimento da reprodução material, o isolamento social a que estão submetidos, os estigmas sofridos e a falta de acesso a tratamento de saúde adequado estavam sendo apresentados ao Poder Judiciário para que fossem construídas respostas capazes de enfrentar tais expressões da questão social? Novamente a garantia de acesso a direitos sociais estaria vinculada à perda do gozo dos direitos civis e políticos.

A partir da articulação entre as observações empíricas e as reflexões teóricas realizadas, emergiram indagações que motivaram a construção da nossa proposta de estudo: por que o Poder Judiciário tem sido acionado para ser protagonista no enfrentamento das expressões da questão social vivenciadas pelos sujeitos e ainda na efetivação de dispositivos de atenção no campo das políticas sociais ofertadas pelo Poder Executivo?

Inicialmente, identificamos 247 processos de interdição civil que tramitavam no ano de 2013 dentre os 4.576 que compunham o acervo físico da Vara de Família, lócus da pesquisa. No universo de 247 processos, identificamos 46 que se referiam à interdição civil de pessoas com transtornos mentais. Desses 46, entrevistamos cinco curadores.

Em um primeiro momento, apresentaremos o debate teórico que fundamentou o estudo; posteriormente serão apresentados os principais resultados do trabalho de campo.

Entendemos que a compreensão acerca da relação entre "questão social"; "Estado", "cidadania"; "direito" e "loucura" está submetida à análise das determinações societárias que marcaram e marcam os interesses do capital em diferentes conjunturas históricas.

Consideramos que é por meio de uma perspectiva histórica que nos aproximamos do movimento de determinada realidade e, dessa forma, podemos desencadear, no circuito das ideias, a captura da dinâmica das relações sociais que configuraram e constroem respostas para a chamada questão social, em especial na cena contemporânea.

Compreendemos que a produção de conhecimento acerca das determinações e leis gerais que moldam a sociedade capitalista faz sentido se produzimos mediações, na sua dimensão reflexiva, que sejam capazes de apreender as referidas particularidades históricas e identificar sua concretude (Pontes, 1997PONTES, R. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997.).

Consideramos, assim, que o universo constituído dos processos de interdição das pessoas com transtornos mentais explicita um conjunto de situações que condensam, no plano da singularidade, elementos importantes para o estudo da temática.

2. A produção da questão social, as formas de enfrentamento de suas expressões engendradas pelo Estado e o trato destinado ao louco no marco do capitalismo

O debate sobre questão social e sobre as formas de enfrentamento desenhadas na relação estabelecida entre a sociedade civil e o Estado sinaliza que assistimos, na contemporaneidade, à reedição de práticas conservadoras no trato dos sujeitos que vivenciam suas mais diversas expressões (Iamamoto, 2008IAMAMOTO, M. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez , 2008.; Netto, 2010NETTO, J. P. Uma face contemporânea da Barbárie. In: ENCONTRO INTERNACIONAL "CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE", 3., Serpa, 30-31 de outubro/1º de novembro de 2010. Disponível em: <http://pcb.org.br/portal/docs/umafacecontemporaneadabarbarie.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2014.
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).

A questão social tem sua gênese no marco da sociabilidade imposta pelo capitalismo, na tensão entre o processo de produção de desigualdades sociais e o processo de resistências e rebeldias da classe trabalhadora. No capitalismo, a apropriação privada dos meios e frutos do trabalho engendra a produção das desigualdades sociais, mas não é capaz de conter as reações e rebeldias da classe trabalhadora, que publiciza as mazelas vivenciadas e trava histórica batalha de reconhecimento dos seus direitos (Netto, 2001NETTO, J. P. Cinco notas a propósito da "questão social". Temporalis, Rio de Janeiro, ano II, n. 3, 2001. ISBN: 85-85610-20-4.).

Por isso, a classe dominante aciona o Estado para controlar e conter os movimentos da classe trabalhadora e se utiliza de práticas de coerção e consenso para administrar, incorporar ou rechaçar as demandas e reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e de vida. Ora são acionados recursos dos aparelhos ideológicos para a produção do consenso, ora acionados os recursos dos aparelhos repressivos do Estado para garantir a submissão da classe trabalhadora a determinado tipo de organização política e econômica em particular (Cerqueira Filho, 1982CERQUEIRA FILHO, G. A "questão social" no Brasil: crítica ao discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.; Aliaga e Bianchi, 2011ALIAGA, L.; BIANCHI, Á. Força e consenso como fundamentos do Estado. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 5, 2011. Disponível em: <http://www.blogconvergência.org>. Acesso em: 10 ago. 2014.
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).

Entretanto, se assumirmos o debate de Gramsci (1991)GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1991., que entende o Estado composto pela sociedade política e a sociedade civil, passamos a compreender que as instituições combinam e articulam os mecanismos de coerção e consenso para promoverem a dominação e o enquadramento da classe trabalhadora.

E não só a dominação daqueles que estão na linha de frente das lutas por seus direitos, mas de todos os segmentos que compõem a classe trabalhadora - com destaque para aqueles que não estão inseridos no espectro da produção, mas que são funcionais para a garantia dos meios, que promovem a precarização do trabalho, com destaque para a taxação mínima dos salários e o incentivo a competitividade entre os trabalhadores (Marx, 1982MARX, K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: LTC, 1982.).

O reconhecimento dos direitos, em especial os políticos e sociais, é fruto da luta da classe trabalhadora, ou seja, a condição de cidadania no mundo moderno é resultado da luta travada pelas classes subalternas. Entretanto, as noções de direito e de cidadania são apropriadas pela classe dominante e passam a assumir complexa e contraditória função ideológica na medida em que reconhece os sujeitos como iguais, mas ordena e disciplina os conflitos sociais (Coutinho, 2005COUTINHO, C. N. Notas sobre cidadania e modernidade. Revista Ágora, Vitória, ano 2, n. 3, dez. 2005. Disponível em: <http://www.assistentesocial.com.br>. Acesso em: 29 ago. 2012.
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).

O direito e as políticas sociais ganham destaque enquanto mecanismos ideológicos de produção de consenso, na medida em que a legislação reconhece, no plano legal, os direitos civis, políticos e sociais e as políticas sociais anunciam o acesso a determinados bens e serviços necessários à reprodução material e espiritual dos trabalhadores. Entretanto, engendram meios de controle dos comportamentos e difusão de determinados padrões que devem moldar o tipo de relação social a ser estabelecida, de acordo com o ideário burguês, o que evoca o uso da coerção. Tais mecanismos devem ser capazes de escamotear os nexos que produzem as desigualdades sociais, despolitizando a questão social e reconhecendo suas manifestações como efeitos de atributos individuais.

Nessa perspectiva de análise, o direito e o Poder Judiciário aparecem com essas funções de produzir a coerção e o consenso. No modo de produção capitalista, o direito estabeleceu a igualdade jurídica entre os que vendem a força de trabalho e aqueles que detêm os meios de produção, construindo a ideia da condição de igualdade entre um e outro. Entretanto, tal noção escamoteou, tornou invisível a relação de exploração a que o trabalhador é submetido por meio da mais-valia e da apropriação privada dos frutos do seu trabalho. O trabalhador não sabe o que produziu e nem o que entregou ao seu patrão (Poulantzas, 1997POULANTZAS, N. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1997.).

O Estado corrobora para o fetiche da igualdade jurídica, tendo em vista que, na relação com o cidadão, desmonta a possibilidade de ele se perceber enquanto classe social. O Estado individualiza o sujeito e inscreve suas demandas em um plano abstrato para fragilizar sua capacidade de mobilização e para possibilitar o controle de sua existência (Moreno, 2008MORENO, N. Superestrutura. In: FELIPPE, W. (Org.). O Estado burguês e a revolução socialista. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008.; Mascaro, 2002MASCARO, A. Introdução à filosofia do direito: dos modernos aos contemporâneos. São Paulo: Atlas, 2002.).

Então, o direito ganha papel fundamental na estruturação da circulação de mercadoria, da extração da mais-valia e do estabelecimento de contratos das mais diversas naturezas para garantir a acumulação do capital e a posse da propriedade. Ou seja, o direito é configurado a partir de interesses de classe. Nesse sentido, podemos evocar o seu caráter coercitivo, pois sanciona, regula e consolida as relações sociais necessárias para garantir o domínio da classe hegemônica (Engels e Kautsky, 2012ENGELS, F.; KAUTSKY, K. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, [1887] 2012.).

O Poder Judiciário é a parte do Estado que vai defender e interpretar a lei, zelando pelo seu cumprimento. No Estado moderno, que inaugura os meios necessários para a expansão do capitalismo, o Poder Judiciário representa os interesses da burguesia para preservar o conjunto de códigos que legitima a relação capital-trabalho. O Poder Judiciário surgiu, dessa forma, para punir, adaptar e integrar aqueles transgressores às normas e regras sociais que sustentam o desenvolvimento das forças produtivas (Faria, 2001FARIA, J. E. O Poder Judiciário nos universos jurídico e social: esboço para uma discussão de política judicial comparada. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 67, 2001.).

A dimensão histórica da luta de classes e do modo como a questão social é entendida e enfrentada é importante para compreendermos a contemporaneidade. É fundamental, nesse sentido, identificar as particularidades históricas, que engendraram a publicização da questão social, materializada na luta pelos direitos de cidadania, bem como na interferência do Estado para seu enfrentamento.

No capitalismo concorrencial, organizado desde a expansão da indústria na Europa do século XVIII, a pobreza foi configurada a partir dos efeitos da industrialização e crescia na mesma proporção em que aumentava a capacidade de produção dos bens e riquezas. No entanto, foram os primeiros protestos dos operários, no século XIX, que publicizaram a questão social, evidenciando a reação da classe trabalhadora às precárias condições de trabalho e de vida (Netto, 2001NETTO, J. P. Cinco notas a propósito da "questão social". Temporalis, Rio de Janeiro, ano II, n. 3, 2001. ISBN: 85-85610-20-4.).

Entretanto, o pensamento liberal produz ideias para impedir a associação entre a gênese das novas manifestações da pobreza e o desenvolvimento capitalista. A propriedade privada e a ordem burguesa não poderiam ser problematizadas e, por meio de ideias moralizantes, a questão social foi vinculada a fenômenos da natureza humana, cujo enfrentamento deveria emergir da intervenção junto aos indivíduos considerados incapazes para ascender na escala social. Foi negada, no bojo de tais ideias, a necessidade de o Estado interferir no enfrentamento das manifestações da questão social por meio de políticas sociais. Deveria ser do indivíduo o mérito de prover sua subsistência por meio do seu próprio esforço e trabalho. Atributos pessoais, como a preguiça e a vadiagem, eram reconhecidos como a causa da pobreza e de todas as demais manifestações da questão social. A vigilância e o controle foram o que restou aos considerados fracassados (Duriguetto e Montaño, 2011DURIGUETTO, M. L.; MONTAÑO, C. Estado, classes e movimento social. São ­Paulo: Cortez, 2011.).

Assim, a questão social foi considerada "caso de polícia". O pensamento liberal clássico legitimou, então, as relações que sustentavam o modo de produção capitalista em sua gênese e escamoteou progressivamente as explorações nele contidas. Desta forma, se no marco do capitalismo concorrencial a gênese da questão social foi inscrita no plano privado, ou seja, como consequências de atributos individuais, o trato destinado à questão social assumiu o caráter repressivo e compensatório (Cerqueira Filho, 1982CERQUEIRA FILHO, G. A "questão social" no Brasil: crítica ao discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.).

O Poder Judiciário, conforme descrito, emerge nesse cenário para garantir a repressão àqueles considerados inadaptados ao sistema e defender o direito à propriedade privada. O caráter compensatório da ação do Estado se desvelou na promulgação de direitos civis e políticos, que sinalizam que parte das demandas dos trabalhadores foi transformada em leis. Entretanto, se constituíram como instrumentos favoráveis à difusão da ideologia burguesa. A demanda por proteção social "via direitos sociais", foi negada (Behring e Boschetti, 2008BEHRING, E.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2008.).

O trato destinado aos loucos pertencentes à classe trabalhadora, no século XIX, se molda a partir dos tipos de relações sociais que o modo de produção capitalista configurou. Os loucos não foram reconhecidos como sujeitos capazes de produzir e atender às expectativas do mercado de trabalho. Podemos considerar que, dessa forma, foram inscritos no chamado exército industrial de reserva, compondo parte da população supérflua - montada para reduzir, dentre outros, os cursos com a força de trabalho.

A manifestação da loucura foi traduzida como doença pela psiquiatria alienista, especialidade médica que é criada para classificar os comportamentos que não poderiam ser reconhecidos como normais na sociedade burguesa. Os loucos são desclassificados para o trabalho e, desse modo, alijados do espectro da produção e do convívio social, na medida em que representavam perigo para a vida em sociedade. Foram considerados desprovidos da razão e, nesse sentido, destituídos de sua condição de cidadania. O processo de segregação espacial e social promoveu o encarceramento dos loucos e da loucura nos grandes manicômios. Tal isolamento foi prescrito como tratamento, na medida em que era necessário "controlar as expressões desenfreadas das paixões desenhadas pela loucura". A produção de conhecimento da psiquiatria legitima as práticas disciplinadoras que pretendiam a ordem pública, na medida em que retira da órbita das cidades aqueles que estavam à margem do espectro da produção. Na mesma medida, a descrição da normalidade trazida pela psiquiatria, que classificava aquilo que era perigoso e incapaz, adensa a formação de uma cultura dominante acerca dos padrões que deveriam forjar a concepção do modelo ideal de cidadão (Amarante, 1992AMARANTE, P. (Org.). As razões da tutela: psiquiatria, justiça e cidadania do louco no Brasil. Rio de Janeiro: Te Corá Editora, 1992.).

No século XX, o ideário liberal que pregava o empreendedorismo individual como solução de enfrentamento da questão social passa a ser questionado no bojo do crescimento do movimento operário, bem como no próprio âmbito dos teóricos que desenhavam o próprio desenvolvimento do capital monopolista.

No contexto pós-Segunda Guerra Mundial, o Estado passa a ser configurado a partir da lógica de que deveria intervir no mercado e na organização de políticas sociais universalistas, capazes de oferecer cobertura social aos trabalhadores. A questão social se transforma em "caso de política" no âmbito do que se convencionou chamar Estado de bem-estar social, e suas manifestações passam a ser compreendidas como problemas resolvíveis no âmbito da administração pública.

Obviamente, tais mudanças nas funções do Estado ocorreram a partir de alterações significativas nos padrões de produção: centralização da produção nas empresas, produção em grande escala, racionalização das operações realizadas pelos trabalhadores, promessa de pleno emprego etc. Nomeado como modelo fordista de produção, a nova configuração aprofundou a exploração da força de trabalho, na medida em aumentou o ritmo de trabalho, diminuiu o tempo empregado para a produção e ampliou a fragmentação entre o planejamento e a execução do trabalho (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.; Mota, 2009MOTA, A. E. Crise contemporânea e as transformações na produção capitalista. In: CFESS/ABEPSS (Org.). Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília, 2009.; Oliveira, Braga e Rizek, 2010OLIVEIRA, F.; BRAGA, R.; RIZEK, C. (Orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo , 2010.).

No bojo do processo de reconhecimento de direitos sociais e de luta pela democracia após a Segunda Guerra Mundial, a psiquiatria também é conduzida a um processo de reforma, motivada pelas denúncias de violações dos direitos humanos ocorridas nos grandes hospitais psiquiátricos. A mais significativa reforma psiquiátrica foi conduzida na Itália, a partir do final da década de 1960, que pauta o fim do hospício enquanto mecanismo de tratamento para o louco. A prescrição de cuidados ultrapassa a necessidade de isolamento e adentra o campo da necessidade de oferta de serviços substitutivos ao hospital e o reconhecimento dos direitos de cidadania da pessoa com transtorno mental. A proposta de desinstitucionalização da loucura construída na Itália não só redesenha os serviços de saúde mental, mas também favorece a produção de uma cultura que pretende a desconstrução do estigma da periculosidade do louco e que aponta para o reconhecimento de suas possibilidades e o fortalecimento de suas capacidades enquanto cidadão (Amarante, 1995______ (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FioCruz, 1995.).

O Poder Judiciário, no marco da construção do Estado de bem-estar social, tem suas estratégias de controle da sociedade alteradas na medida em que se deparou com o conjunto de leis que anunciaram os direitos sociais. Foi instigado a zelar pela aplicação de leis que foram construídas sob o pressuposto da igualdade e da equidade social. Nessa perspectiva, também passou a zelar pelos direitos sociais e a condicionar o Poder Executivo a formular e a executar políticas sociais com propósitos distributivistas. Dessa forma, o direito se constituiu como referência e recurso para a garantia de direitos sociais. Obviamente que não abandona suas tradicionais funções de punição e controle daqueles considerados desviantes (Vianna, Burgos e Sales, 2007VIANNA, L. W.; BURGOS, M.; SALES, P. Dezessete anos de judicialização da política. Tempo Social, São Paulo, v. 19, n. 2, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.brpdftsv19n2a02v19n2.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2010.
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).

Os resultados desse modelo de produção e de Estado foram sustentados até a década de 1970. A crise de acumulação do capital exigiu da classe dominante a construção de respostas, que foram configuradas por meio da reestruturação produtiva, da financeirização da economia e da difusão da ideologia neoliberal. A restauração do processo de acumulação do capital exigiu um novo desenho do modelo de produção, marcado pela flexibilização dos processos de produção, pelo atendimento de demandas específicas do mercado de consumo e ainda pela desterritorialização da produção. Tal estratégia foi configurada pelo ataque aos movimentos sociais e sindicais e pela incorporação na produção de altas tecnologias, o que reduziu a necessidade do trabalho vivo (Braz e Netto, 2008BRAZ, M.; NETTO, J. P. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez , 2008.).

Outrossim, a valorização de uma parcela de trabalhadores qualificados que se submetem à polivalência de funções para atender às exigências do mercado expulsa uma massa de indivíduos, facilmente descartados, para um mundo de trabalho marcado pelo subcontrato ou pela informalidade das relações trabalhistas.

Nesse cenário, são criadas condições para se intensificar a exploração da força de trabalho. A redução salarial, a precarização das relações de trabalho, a redução dos postos de trabalho, o emprego em tempo parcial e o desemprego maciço desencadearam as metamorfoses atuais no mundo do trabalho. A precarização das condições e relações de trabalho diminuiu concretamente a possibilidade de reprodução material dos trabalhadores, ampliando a produção da pobreza a níveis nunca vistos.

As críticas ao Estado regulador quebram a espinha dorsal do Estado de bem-estar social, destruindo as regulamentações que foram conquistadas pelo movimento de luta dos trabalhadores. O movimento sindical e social também é esvaziado e cooptado, comprometendo a luta coletiva dos trabalhadores.

A intervenção do Poder Executivo na implementação de políticas sociais de caráter universal e redistributivista passa a ser descartada em nome da redução dos gastos públicos. Os programas no âmbito dessas políticas são reduzidos a ações fragmentadas, focalizadas, seletivas e compensatórias.

As manifestações da questão social passam a ser identificadas novamente como problemas de caráter individual e passam a ser tratadas com viés moralizante. Foi preciso reconceituar a questão social para que a responsabilidade sobre o seu enfrentamento recaísse sobre o indivíduo ou sobre a própria sociedade civil. Nesse sentido, são reeditados mecanismos conservadores de enfrentamento da questão social.

A assistencialização minimalista das políticas sociais e a repressão aos pobres são reconhecidas como estratégias de enfrentamento da questão social que se afirmam na cena contemporânea (Netto, 2010NETTO, J. P. Uma face contemporânea da Barbárie. In: ENCONTRO INTERNACIONAL "CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE", 3., Serpa, 30-31 de outubro/1º de novembro de 2010. Disponível em: <http://pcb.org.br/portal/docs/umafacecontemporaneadabarbarie.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2014.
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). A intencionalidade de tais estratégias é oferecer "programas pobres para os pobres", recortando como alvo das ações compensatórias e fragmentadas apenas aquelas parcelas da população consideradas vulneráveis. A repressão aos pobres sinaliza o viés coercitivo sobre os pobres com a ampliação de medidas vinculadas à segurança pública e à consequente ampliação do quantitativo de encarcerados. Sem emprego e sem rede de proteção social, o trabalhador se constitui em ameaça que deve ser gerenciada por uma austera política de segurança pública para a manutenção da chamada ordem pública (Netto, 2010NETTO, J. P. Uma face contemporânea da Barbárie. In: ENCONTRO INTERNACIONAL "CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE", 3., Serpa, 30-31 de outubro/1º de novembro de 2010. Disponível em: <http://pcb.org.br/portal/docs/umafacecontemporaneadabarbarie.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2014.
http://pcb.org.br/portal/docs/umafacecon...
; Wacquant, 2001WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.).

Nesse sentido, a desarticulação da luta dos trabalhadores, o esvaziamento do conteúdo de classe do seu projeto societário e, ainda, a inscrição da gênese das expressões da questão social nos aspectos vinculados à subjetividade dos sujeitos que as vivenciam oferecem as bases para as intervenções coercitivas do Estado. A judicialização da questão social se traduz, então, como uma dessas estratégias na medida em que o Poder Judiciário, em sua gênese, foi desenhado para desempenhar a função da coerção na perspectiva da adaptação, do controle e da punição dos comportamentos que carregam em si a rebeldia e a reação à ordem estabelecida. A fragmentação dos fenômenos sociais vivenciados pelos sujeitos se dá por meio da sua individualização nos processos judiciais. O debate indica a invasão do direito nos processos de regulação da sociabilidade e das práticas sociais - incluindo aquelas que, tradicionalmente, se inscreviam no mundo privado, como: as relações de gênero, o trato destinado às crianças, pessoas com deficiência etc. (Vianna et al., 1999VIANNA, L. W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.).

Assiste-se, entretanto, à manutenção e à expansão, no plano legal, do reconhecimento dos direitos sociais, civis ou políticos. Essa se constitui como estratégia de produção de consenso para operacionalizar o controle da classe trabalhadora. Podemos citar, como exemplo, o caso brasileiro. A Constituição de 1988 permitiu o acesso a uma série de direitos sociais, civis e políticos após longo período de luta de movimentos sociais que representavam os interesses da classe trabalhadora. Reconhecida como a Constituição Cidadã, declarou o dever do Estado de promover políticas sociais de caráter universalista. Alterou as funções, em específico do Poder Judiciário e do Ministério Público, que passaram a ser regidos pelos princípios da democracia, igualdade e equidade social.

Entretanto, a expectativa de materialização dos direitos que a constituinte promulgou foi ameaçada pela onda neoliberal que marca a estruturação do Estado brasileiro na década seguinte. É o caso do processo de afirmação dos direitos das pessoas com transtornos mentais. No Brasil, na década de 1980, grupos de trabalhadores, familiares e usuários dos serviços de saúde mental desencadeiam o movimento da reforma psiquiátrica. A luta pela desconstrução da lógica manicomial contribui para a promulgação de legislações em defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, bem como de alteração da organização dos serviços de atenção psicossocial. Entretanto, a materialização das diretrizes e normativas consolidadas no âmbito da legislação da área e também no desenho dessa política, bem como a estruturação em curso dos serviços substitutivos ao manicômio foram submetidas às ameaças dos efeitos nefastos da política neoliberal.

O Poder Judiciário, no contexto neoliberal, se apresenta como saída para aqueles sujeitos que não encontram respostas para a garantia de seus direitos sociais. Os sujeitos buscam o Poder Judiciário quando os outros recursos, principalmente do Poder Executivo, já foram exauridos. Assim, medidas de proteção social são demandadas ao Poder Judiciário, e não às instituições que originalmente deveriam atendê-las (Iamamoto, 2004______. Questão social, família e juventude: desafios do trabalho do assistente social na área sociojurídica. In: LEAL, M.; MATOS, M.; SALES, M. (Orgs.). Política social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2004.).

Em um cenário de escassez de acesso aos bens e riquezas socialmente produzidos, tendo em vista a precarização do trabalho, o sucateamento das políticas sociais e a perda da referência da luta coletiva, o Poder Judiciário é acionado sob a expectativa de que direitos específicos de cidadania sejam garantidos.

3. Proteção social ou violação de direitos? A judicialização da questão social e a banalização da interdição

O presente estudo desvelou um universo complexo, cuja primeira impressão nos fez construir a reflexão de que o conteúdo explicitado nos processos judiciais se referia a histórias que eram individuais, que pertenciam a sujeitos particulares. O primeiro desafio se apresentou: ultrapassar a fragmentação dos fenômenos produzida pela intervenção do Judiciário no tecido social. Era necessário estabelecer conexões entre a singularidade e a universalidade das relações sociais que se mostravam naquela particularidade.

Vale destacar que a interdição é promovida frente à prova da incapacidade absoluta ou relativa de determinados sujeitos sociais de exercerem pessoalmente os atos da vida civil.

Observa-se que a interdição civil tem sido reconhecida como medida judicial que promove a proteção da pessoa com transtorno mental, na medida em que ela não tem autonomia para exercer os atos da vida civil e, consequentemente, necessita da ajuda de terceiros para que suas necessidades, de todas as ordens, sejam atendidas. Espera-se que o curador, nomeado pelo juiz a partir de critérios estabelecidos pelo Código Civil, exerça com zelo suas ­funções, na perspectiva de garantir a reprodução material e psicossocial satisfatória de seu curatelado.

Entretanto, se as leis, incluído aqui o Código Civil brasileiro, forem compreendidas como produção social, constituídas como mecanismos de legitimação de práticas que funcionam como suportes para que as múltiplas relações de dominação se estabeleçam nas relações sociais, o debate acerca da interdição deve ser remetido à própria construção do perfil de cidadão esperado no marco do capitalismo.

Mas quem são os sujeitos que figuram como partes nos processos judiciais de interdição civil? Tais dados evidenciam que tanto mulheres como homens estão sujeitos a ser alvos dos processos de interdição civil. Não foram observadas discrepâncias que pudessem aludir a questões de gênero vinculadas à necessidade da interdição civil. No âmbito da pesquisa realizada, esses homens e mulheres têm, em sua maioria, mais de quarenta anos. Tal dado nos fez refletir que não é o alcance da maioridade ou a emersão da doença (que, segundo o debate da psiquiatria, emerge geralmente na juventude) que se caracteriza como motivo para a formulação do pedido de interdição (Santos e Siqueira, 2010SANTOS, E. G.; SIQUEIRA, M. M. Prevalência dos transtornos mentais na população brasileira: revisão sistemática de 1997 a 2009. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 59, n. 3, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo>. Acesso em: 12 nov. 2014.
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). Os resultados indicam ainda que a maioria dos interditados mantém dependência econômica dos benefícios de seus pais.

Acerca dos curadores, constatamos que a maioria que assume o exercício da função é mulher - o que evidencia a tendência da mulher a assumir, no universo privado, as tarefas vinculadas ao cuidado com os membros da família que demandam atenção diferenciada. Tal tendência está associada ao modo desigual de como a mulher é tratada na sociedade, recheado de preconceitos e machismo. Constatamos, ainda, que não existe, nesse universo pesquisado, relação entre a idade dos curadores e sua nomeação para a função. O que verificamos, sobre a relação de parentesco do curador com o curatelado, é que em 51% dos casos não são os pais que são nomeados curadores, conforme a hierarquia estabelecida no Código Civil (que prioriza os pais, a seguir os cônjuges e depois outros familiares). Tais dados nos aproximam da reflexão de que as configurações das famílias na contemporaneidade não obedecem ao padrão de família burguesa que a lei pretende preservar.

Os indicativos demonstram que outros membros de uma família extensa também aparecem no cenário como liderança para a resolução das questões relativas à pessoa com transtorno mental. A pesquisa indicou que a maioria das famílias vive dificuldades de garantir sua reprodução material, tendo em vista a baixa renda, a precariedade de acesso ou permanência no mercado de trabalho e as precárias condições habitacionais, ou seja, a maioria das pessoas com transtornos mentais que são alvos dos processos de interdição - que compuseram o universo da pesquisa - é homem ou mulher inserido em famílias extensas e pobres, são dependentes da renda dos pais e são cuidados por mulheres.

Intencionamos especificamente capturar os motivos que desencadearam a propositura da interdição das pessoas com transtornos mentais, bem como as expressões da questão social vivenciadas por esses sujeitos. Intencionamos também, nesse âmbito, estabelecer conexões entre os motivos que desencadearam a propositura do processo de interdição e as necessidades de enfrentamento da questão social.

Os resultados indicam que tanto nos processos ajuizados por familiares quanto nos processos propostos pelo Ministério Público, a doença é reconhecida como a motivação central para legitimar a formulação do pedido de interdição, o que nos fez analisar a existência de associação direta entre a doença e a incapacidade, apesar de o Código Civil (2002)BRASIL. Código Civil de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. apresentar a noção de discernimento como referência para a avaliação da capacidade para os atos da vida civil.

Nessa percepção sobre a loucura, a doença se sobrepõe e anula qualquer outro tipo de característica do sujeito. Os estigmas construídos sobre a loucura, em especial aquele que associa sua manifestação com a violência e a periculosidade, impedem a ampliação do espectro da visão acerca da sua condição de cidadania. Na sociedade que se fundou a partir da troca de mercadorias, aquele que não tem nada para oferecer não pode ser considerado cidadão. O que o louco tem para trocar não é valorizado, pois não pode ser transformado em mercadoria. Só a sua doença.

Nesse sentido, as práticas médicas, jurídicas e sociais servem historicamente para materializar mecanismos necessários para atender às expectativas da ordem burguesa, na medida em que criam e classificam o tipo ideal de cidadão que seja capaz de se submeter aos processos de sociabilidade que favoreçam a produtividade. A manifestação da doença, nesse sentido, justificaria a classificação da incapacidade do chamado louco: suas habilidades e competências não seriam úteis ao espectro da produção e da sociabilidade capitalista.

Esse movimento de associar doença e incapacidade é reproduzido pelos médicos que elaboram os laudos que acompanham as peças da inicial do processo judicial. A maioria dos laudos é feito por médicos da rede pública de saúde, onde as pessoas com transtornos mentais são atendidas. O documento não expressa nada além do tipo de doença que o paciente possui. Nenhuma outra informação acerca das capacidades que poderiam ser consideradas é registrada. A perícia médica realizada pelo psiquiatra nomeado pelo juízo corrobora, em sua maioria, com o laudo da inicial, reproduzindo o movimento que associa doença e incapacidade. Não foram encontradas indicações que sugerissem a interdição parcial. A lente que associa doença com incapacidade é a que conduz o olhar para o sujeito que figura como interditando. Os demais aspectos de sua existência são lateralizados. A questão é que a banalização da interdição civil se aproxima da violação dos direitos humanos.

Nos processos, cujos autores foram os familiares, constatamos que a maioria procurou o Poder Judiciário para fazer o pedido da interdição em razão das exigências do INSS para requerer, manter ou disputar benefício previdenciário ou assistencial. A necessidade de garantir a reprodução material por meio do recebimento do benefício se apresentou como motivo que desencadeou a procura dos familiares pelo Poder Judiciário.

As famílias estão submetidas a situações de pobreza, não tendo acesso a formas dignas de reprodução material. A situação de pobreza se constitui uma das expressões da questão social vivenciadas pelos sujeitos envolvidos no estudo. A família, dessa forma, não procura a Justiça em razão da doença ou da incapacidade da pessoa com transtorno mental, mas para atender às exigências do INSS. Tal exigência é considerada violação de direitos, já que não está prevista em nenhuma legislação ou normativa - com exceção do requerimento para a aposentadoria por invalidez (Brasil, 2003). Além disso, o que a legislação estabelece como critério de concessão é a invalidez para o trabalho, que depende de avaliação médica extrajudicial.

Assim, observamos a transferência de responsabilidade do Poder Executivo para o Poder Judiciário: a atribuição de decidir indiretamente quem vai ou não receber o benefício - o que evidencia uma das faces da judicialização da questão social. Mas o impasse é que para acessar direitos sociais é preciso ser privado dos direitos civis e políticos. O que se verifica é a restrição do acesso aos direitos sociais por meio de condicionalidades que comprometem o gozo dos direitos civis e políticos. A minimização da intervenção do Estado no enfrentamento da questão social impôs a focalização das políticas sociais, cujo acesso depende de condicionalidades que objetivam dificultar o acesso e revelam a face coercitiva das ações do Estado.

Outras expressões da questão social foram identificadas no bojo da leitura dos processos judiciais postulados por familiares das pessoas com transtornos mentais: o isolamento social, a precariedade de vínculos familiares e sociais, a permanência nas ruas, a violência doméstica, o precário acesso e permanência nos serviços de saúde mental. Obviamente, tais manifestações da questão social não foram postuladas diretamente pelos familiares, mas identificadas no curso do processo. Tais situações de violação de direitos humanos, em sua maioria, não aparecem como alvo de intervenção da equipe dos Centros de Atenção Psicossocial e são descortinadas no âmbito do Poder Judiciário, incluindo aquela relativa à precariedade de acesso e permanência nos serviços de saúde. Assim, tais situações passam a ser enfrentadas no bojo do processo de interdição civil.

Nos processos de interdição civil, cuja autoria foi do Ministério Público, foram as notificações feitas ao órgão, em sua maioria pelas equipes dos serviços de saúde e de assistência social, que se constituíram em motivos para a formulação do pedido da interdição, junto com a justificativa da própria doença. As situações de violência de toda ordem vividas pelas pessoas com transtornos mentais (ou os comportamentos dos loucos que ameaçam os familiares ou a comunidade) são expressões da questão social, transformadas em motivos para requerer a declaração da incapacidade civil.

Nesse sentido, de vítimas, os loucos são transformados em réus: para serem protegidos, são privados da possibilidade de gozar dos direitos civis e políticos. Identificamos, assim, a transferência de responsabilidades do Poder Executivo para o Judiciário, evidenciando o movimento da judicialização da questão social. A propositura da interdição enquanto mecanismo que intenciona a proteção da pessoa com transtorno mental se traduz contraditória, pois tal ação judicial tem como principal efeito a suspensão dos seus direitos civis - o que compromete sua condição de cidadão e o inscreve nas teias da invisibilidade do tecido social. Tal movimentação também revela o quanto o sucateamento das políticas sociais de saúde, imposto pela política neoliberal, interfere na produção dos seus ­efeitos. O Ministério Público e o Poder Judiciário passam a ser referências para a resolução de situações inscritas na violação de direitos.

Portanto, na perspectiva de alcançar o objetivo específico de mapear as intervenções do Poder Judiciário no curso dos processos de interdição, descortina-se as intencionalidades que contribuíram para a materialização de tais intervenções e a relação com a garantia de direitos fundamentais. O protagonismo do Poder Judiciário no enfrentamento da questão social é notório: configura-se desde o acolhimento indiscriminado do pedido de interdição civil até as ações, por meio de envio de ofícios e realização de audiências especiais.

As intencionalidades do interrogatório feito na audiência de impressão pessoal revelam o perfil de cidadão que o Estado reconhece como capaz de gozar dos direitos civis e políticos: consumidor, trabalhador, eleitor e proprietário. As perguntas dirigidas aos portadores de transtornos mentais pretendem aferir a incapacidade do sujeito no exercício desses atributos e funções. Existem, então, vinculações dessa concepção de cidadania, revelada nas perguntas dos operadores do direito, e as próprias concepções de cidadania que foram e são produzidas no marco da ordem burguesa.

Analisamos, dessa forma, que o processo de interdição se constitui um dos mecanismos engendrados pelo Estado para materializar o controle junto daqueles que não correspondem às expectativas da sociedade acerca do padrão de cidadania que se tornou hegemônico, via classe dominante, e que não são úteis na cadeia produtiva. Tais sujeitos são considerados sobrantes em relação à sua participação no nefasto processo que objetiva a garantia da acumulação do capital.

A perícia médica também se apresenta como elemento do processo de interdição que elucida a produção de subsídios para a tomada de decisão do magistrado. Nos quesitos apresentados pelos operadores de direito aos peritos médicos, identificamos a associação entre a doença e a incapacidade do sujeito. O reconhecimento das possibilidades do sujeito de exercer os atos da vida civil está intrinsecamente vinculado à demonstração de sua sanidade mental. Desta forma, os operadores do direito definem, baseados na perícia médica, quem tem ou não capacidade para trabalhar, consumir, votar e gerenciar seus bens e riquezas.

Portanto, a partir da leitura das atas de impressão pessoal e dos quesitos enviados pelos operadores de direito para a perícia médica, observamos um dos movimentos que configura o protagonismo do Poder Judiciário: este possui a prerrogativa de analisar a capacidade dos interditandos para o gozo da vida civil e política, ou seja, pretende aferir se os interditandos se enquadram ou não no perfil de cidadão útil para a sociedade. Definida a legitimidade do pedido de interdição, o Poder Judiciário publiciza tal decreto na perspectiva de materializar seus efeitos: enviam ofícios para o Cartório do Registro Civil (para averbação da interdição na certidão de nascimento) e ao Tribunal Regional Eleitoral (para cancelamento do título). Enfim, uma das versões do processo de judicialização da questão social é aquela que se refere à apresentação da tarefa ao Poder Judiciário de classificar se o sujeito que tem um transtorno mental é incapaz de gozar de seus direitos civis e políticos.

Observamos que foi na audiência de impressão pessoal, na maioria dos processos, que a interdição provisória foi decretada: a concordância com o pedido de interdição nos processos, cujos autores foram os familiares, está diretamente relacionada ao reconhecimento das necessidades dos sujeitos de proverem os meios para garantir o sustento da pessoa com transtorno mental. Assim, o enfrentamento da pobreza depende indiretamente da ação do Poder Judiciário, que, como já ressaltamos, passa a ser protagonista do acesso dos sujeitos aos seus direitos sociais em virtude das exigências do INSS. As famílias não reconhecem outra instância, instituições ou serviços que reúnem recursos para atender tal demanda. Nesse sentido, não questionam a exigência do INSS em razão do desconhecimento acerca dos efeitos da interdição, bem como da necessidade prática de recebimento do benefício.

Outra intervenção do Judiciário, que evidencia o seu protagonismo no enfrentamento da questão social, é o controle sobre a administração e uso do benefício pelo curador. A extensão do controle sobre o exercício do múnus da curatela ultrapassa o pedido de ciência de informações referentes à movimentação bancária, ao tipo de benefício ou ao patrimônio da família ou curatelado, ou ainda quanto ao uso do dinheiro. Tal controle se expressa por determinações que, na maioria das vezes, são preventivas a um possível abuso do curador: suspensão da possibilidade de contrair empréstimo, bloqueio do uso da poupança, proibição de compra e venda de imóveis.

Cabe ainda ao Poder Judiciário, no curso do processo de interdição, tomar providências diante das diversas necessidades dos interditandos, as quais revelam as diferentes manifestações da questão social a que estão submetidos - em especial aquelas vinculadas à precariedade do tratamento no campo da atenção psicossocial. Tais intervenções se traduzem na tomada de decisão de envio de ofícios, que requisitam a prestação dos serviços à pessoa com transtorno mental, bem como pela realização de audiências especiais em que, em sua maioria, fica estabelecido como a pessoa com transtorno mental deverá ser atendida no serviço de atenção psicossocial.

Avaliamos que, nesse cenário, emerge outra versão da judicialização da questão social: as expressões da questão social vivenciadas pelas pessoas com transtornos mentais se transformam em motivos para a propositura da interdição civil - que, por sua vez, se transforma em mecanismo de busca de respostas para o seu enfrentamento. O Poder Judiciário assume, então, no bojo do processo de interdição, o protagonismo no enfrentamento do isolamento social a que o interditando está submetido, dos abusos físicos ou psicológicos, da negligência ou do abandono e, em especial, da precariedade do acesso ou permanência dos interditandos e interditandas na política de atenção psicossocial. A questão é que para proteger a pessoa com transtorno mental, que sofre tais mazelas, é preciso privá-la do gozo dos direitos civis, o que evidencia a face punitiva do Estado sob aqueles que, no plano da imediaticidade, reclamam a sua proteção.

4. Considerações finais

Nesse sentido, após o alcance dos objetivos da pesquisa, pudemos constatar a confirmação das hipóteses do nosso estudo. Os dados obtidos indicam que o Poder Judiciário tem assumido protagonismo na construção dos mecanismos de enfrentamento da questão social, o que revela a retração do Poder Executivo na oferta de políticas sociais universais e articuladas.

Verificamos, assim, um processo de transferência de responsabilidades do Poder Executivo para o Judiciário acerca das necessidades de garantir o acesso a direitos sociais, bem como de produzir mecanismos de proteção social para pessoas com transtornos mentais, o que caracterizou, nesse estudo, a judicialização da questão social.

Obviamente que tal retração do Poder Executivo na oferta de políticas sociais de caráter universal, postulado pelo projeto neoliberal, se mostra na contramão da materialização dos princípios postulados pela Constituição acerca das funções do Estado. O fenômeno da judicialização da questão social compõe, então, as respostas construídas para o enfrentamento da questão na contemporaneidade e explicita contradições que forjaram a configuração do Estado e sua relação com a sociedade civil desde as últimas décadas do século XX.

Assim, identificamos que, no bojo das disputas entre as reivindicações de superação do modelo manicomial (levadas a cabo pelo movimento da reforma psiquiátrica) e as de preservação dos processos de controle da loucura (construídas historicamente para classificar os loucos como improdutivos), a interdição se apresenta paradoxalmente como estratégia de coerção, na medida em que priva os sujeitos do gozo dos seus direitos civis e políticos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2015
  • Aceito
    19 Out 2015
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