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Editorial

Este número da revista Serviço Social & Sociedade vem a público em um difícil contexto para a sociedade brasileira. A crise econômica e política do país vem se ampliando e se constituindo em solo fértil para a expansão dos conservadorismos na vida social. O "governo" ilegítimo da nação assume cotidianamente o projeto ultraliberal conservador que aprofunda as privatizações, desmonta políticas sociais, sua estruturação e financiamento, atingindo especialmente a Seguridade Social; destrói direitos e ameaça duramente as conquistas dos trabalhadores com propostas de reforma trabalhista e previdenciária; coloca a democracia em questão e põe em evidência os "perigos da desordem jurídica". No campo da economia, vivemos a dura experiência de ajuste aos interesses do capital financeirizado, a expropriação de nossas riquezas agrícolas e minerais, situação na qual é exemplar o fato de o governo abrir mão do controle das jazidas de petróleo da camada de pré-sal, colocando a Petrobras à exploração do capital estrangeiro.

Em um momento em que a profissão comemora seus 80 anos construídos com muita coragem e com a colaboração de muitas gerações, esse difícil e contraditório contexto interpela o Serviço Social sob vários aspectos, que vão desde o agravamento da questão social e de seus impactos na vida da classe que vive do trabalho, às transformações que ocorrem nas políticas sociais, âmbito privilegiado do exercício da profissão profissional e lugar onde participa de processos de resistência e constrói alianças estratégicas na direção de um outro projeto societário. O pressuposto é de "que há uma profunda relação entre as transformações, em andamento, no regime de acumulação na ordem capitalista, especialmente as mudanças que caracterizam a esfera da produção e o mundo do trabalho, associadas à nova hegemonia liberal-financeira e as transformações que ocorrem nas políticas sociais contemporâneas" que se tornam cada vez menos universais.

Nessa perspectiva, este número da Revista apresenta algumas dessas análises privilegiando as duas conferências da abertura do evento proferidas por duas brilhantes intelectuais do Serviço Social brasileiro, cujos temas foram: "80 anos do Serviço Social no Brasil: a certeza na frente, a história na mão", proferida por Marilda Villela Iamamoto, e "Os 80 anos do Serviço Social brasileiro: conquistas históricas e desafios na atual conjuntura", proferida por Ana Elizabete Mota. O repúdio ao golpe contra a democracia marcou as conferências, colocando em evidência, conforme Iamamoto, "sua orquestração em sintonia com uma geopolítica dos centros mundiais de poder contra os governos progressistas de Nuestra América como parte das estratégias anticíclicas apoiadas na exploração abusiva dos trabalhadores e de riquezas das regiões periféricas".

Nessa conjuntura, Iamamoto apresenta um quadro da situação atual do trabalho e da formação acadêmica no Serviço Social brasileiro e realiza uma retrospectiva dessas oito décadas de seu desenvolvimento e renovação crítica. Ressalta alguns desafios ao Serviço Social em tempos de crise econômica e política no país, considerando as tensões entre projeto profissional e trabalho assalariado, espaços sócio-ocupacionais, perfil dos profissionais, as relações entre Serviço Social e seguridade social pública. Conclui afirmando a necessidade de qualificar o exercício profissional, de retomar o trabalho de educação de base no apoio à organização e aos movimentos dos trabalhadores na defesa dos direitos conquistados.

Em direção semelhante, Mota destaca as conquistas históricas do Serviço Social brasileiro. Aponta os desafios da profissão na atual conjuntura, mostrando a reatualização do que denominou de "cultura da crise", cujas "diretrizes atuais são: a judicialização do poder, a moralização da política e a fetichização dos ajustes fiscais, que desmontam as políticas sociais e subtraem direitos sociais". Mostra como a cultura política do momento não opera rupturas com o projeto neoliberal e mercantil do final do século XX, ao contrário, radicaliza essa ofensiva incorporando novas mediações, com destaque para a desqualificação da esquerda, reforçada pela corrupção "espetacularizada midiaticamente" e pelo avanço do pensamento conservador moral da direita. Finalmente, ressalta o significado do Projeto ético-político do Serviço Social. Conclui que, nas três últimas décadas, o Serviço Social ampliou sua função intelectual, contribuindo para a formação da cultura profissional que se contrapõe à hegemonia das classes dominantes, em orgânica articulação com a esquerda marxista no Brasil.

A análise de conjuntura, com destaque para a crise estrutural do capital e para o avanço do conservadorismo, constitui uma marca forte desse número, e nessa direção avançam também os textos seguintes de Boschetti, Iasi e Braz, que problematizam e aprofundam em seus artigos essa análise. Boschetti apresenta os impactos da crise sobre o Trabalho, agudizando as expressões da questão social e a barbárie cotidiana que assola a vida da classe trabalhadora e amplia as demandas ao Serviço Social, sobretudo em decorrência da supressão dos direitos e do processo de pauperização, contexto no qual a autora destaca a pertinência do projeto ético-político da profissão. Mauro Iasi vai analisar o Serviço Social brasileiro no contexto geral da luta de classes em que se insere. Enfatiza o desfecho do ciclo que se abriu com a crise da autocracia burguesa e que se fecha com o fim dramático do ciclo petista pela interrupção institucional levada a cabo pelas forças conservadoras e golpistas. O autor vai apresentar como hipótese, que a gravidade da crise econômica e da crise política só pode ser compreendida se acrescentarmos a este quadro o fato que vivemos o "limite da estratégia que conduziu os trabalhadores no período mais recente de nossa história, a Estratégia Democrática Popular, que encontra no PT sua mais clara expressão e protagonismo". Conforme o autor, "apesar de sua inegável eficiência em propiciar a longevidade dos governos petistas, a governabilidade pelo alto via concessões e alianças encontra seu limite no momento em que a acumulação de capitais e as manifestações mais evidentes de sua crise cobram novas formas políticas de gerência do Estado burguês". Assim, Iasi aponta para o "fim de um ciclo no qual predominou uma estratégia que agora encontra seu limite histórico. A crise econômica que abala as bases da governabilidade petista não é apenas uma crise conjuntural, mas uma clara crise estrutural do processo de acumulação capitalista que cada vez mais assume a forma de uma crise sistêmica, ou, nos termos de Mészáros (2002), uma crise que expressa a ativação dos limites estruturais últimos do capitalismo".

No artigo seguinte, Marcelo Braz vai discutir a crise brasileira e o processo político que levou à ascensão de um conservadorismo reacionário e ao impeachment de Dilma Rousseff. Vai mostrar a derrota da estratégia de conciliação de classes e como os sujeitos sociais centrais da conjuntura encarnam interesses reais de classes, especialmente aqueles vinculados ao capital financeiro e a seus agentes internos e oferecer elementos para que o leitor entenda os limites da democracia no Brasil e os resultados da política conciliatória da burguesia em nosso país. O autor enfatiza que a derrubada de Dilma e do PT significa mais que um atentado à democracia: significa, para as classes dominantes, que é hora de uma nova hegemonia que crie condições ideais para a reprodução dos interesses capitalistas num cenário novo que substitua a forma hegemônica que até então serviu. Ou seja, se a forma anterior já não é mais eficaz, trata-se de construir um novo bloco de poder para criar as condições ideais. Aproximando-se ainda mais do cenário profissional cotidiano, os dois artigos seguintes vão ressaltar a criminalização das classes subalternas no espaço urbano e as ações profissionais do Serviço Social, de Maria Lúcia Duriguetto, e as lutas autônomas frente ao modelo democrático-popular de contrarrevolução permanente, de Pablo Polese. Duriguetto trata dos processos sócio-históricos de criminalização das classes subalternas e de suas formas político-organizativas no contexto das ofensivas do capital à sua crise. A partir do exposto, evidencia os desafios para o projeto profissional do Serviço Social no espaço das cidades. Polese enfatiza em seu trabalho a tática e estratégia anticapitalista em um contexto de vigência do modelo democrático-popular de gestão dos conflitos sociais. O autor vai concluir que a fragmentação constitui uma condição de nosso tempo histórico. A partir dessa constatação, vai levantar algumas hipóteses de análise acerca do caráter contraditório das soluções postas em prática pela esquerda, em especial depois da revolta popular de junho de 2013.

O artigo de Edistia Maria de Oliveira aborda os 80 anos do Serviço Social brasileiro, tendo como referência os Códigos de Ética, como expressão da dinâmica processual em que a profissão foi concebida e se desenvolveu. O texto tem como finalidade ressaltar a maturidade da profissão, fundamentada no pensamento marxiano e no projeto ético-político profissional, embora reconheça que contraditoriamente ainda existam resquícios de sua origem, marcada pelo neotomismo e por práticas de ajustamento e ajuda social.

Este número da Revista é enriquecido ainda por uma homenagem prestada pela Cortez Editora às professoras da primeira escola de Serviço Social do Brasil, ou seja, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A realização de tal homenagem coube à professora Maria Liduína de Oliveira e Silva.

Cabe destacar também a apresentação de alguns depoimentos realizados por destacados professores, refletindo sobre momentos relevantes do Serviço Social no Brasil, nesses 80 anos de construção histórica.

Maria do Socorro Reis Cabral ressaltou a relevância do Curso de Serviço Social da PUC-SP, o primeiro no país.

Maria Lúcia Barroco discorreu sobre as conquistas éticas da profissão, remetendo aos Códigos de Ética de 1986 e 1993, que romperam com os pressupostos que predominaram durante mais de quarenta anos nos Códigos de Ética do Serviço Social brasileiro.

Por sua vez, Maria Beatriz Costa Abramides fez importante análise do III Congresso Brasileiro de Serviço Social, realizado em São Paulo, em 1979, o amplamente conhecido "Congresso da Virada", que com muita força e garra abriu um caminho novo para a profissão.

Trata-se, como se vê, de um número de fundamental importância, profundamente inserido nas comemorações relativas aos 80 anos do Serviço Social no Brasil, trazendo contribuições de alto significado para uma leitura sócio-histórica e ético-política não apenas da profissão, mas especialmente da atual conjuntura.

Finalmente, gostaríamos de assinalar que, quando encerrávamos este editorial, chegou-nos a notícia da morte do Comandante Fidel Castro, que partiu no dia 25 de novembro aos 90 anos, após um caminho de lutas contra a desigualdade e a injustiça.

Para ele, trechos de um pequeno poema de Arturo Corcuera: "Para hablar de Fidel hay que cederle la palabra al mar, pedir su testimonio a las montañas. El Turquino canta y cuenta su biografía, los árboles lo recuerdan, saben su edad y repiten su nombre. La edad de Fidel es la edad de los framboyanes en flor, la enhiesta edad de su barba verde olivo. Todos lo sabemos: los héroes no tienen edad, tienen historia, hacen la historia, son la historia."

Referências

  • MARTINELLI, Maria Lúcia. O Serviço Social na contemporaneidade: questões de identidade. Belo Horizonte: Conexões Geraes/CRESS, 2011.
  • ______. Transformações societárias contemporâneas: repercussões para as identidades profissionais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DO CENTRO DE ESTUDOS DE ÍBEROAMÉRICA, 8., Anais.., Universidade de Salamanca, Espanha, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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