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Diversidade e liberdade sexual: Defensoria Pública, movimentos sociais e a PrEP no SUS

Diversity and sexual freedom: Public Defense, social movements and PrEP in the Brazilian Public Health System

Resumo:

O artigo analisa a defesa da liberdade sexual, da diversidade e dos direitos sexuais pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pelos movimentos sociais no processo de inclusão da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do Sistema Único de Saúde - SUS para HIV/Aids, enfatizando o contraponto feito nas atuações contra discursos e práticas institucionalizados heteronormativas e tecnocráticas.

Palavras-chave:
Diversidade; Direitos sexuais; Profilaxia pré-exposição; Defensoria Pública; Movimentos sociais

Abstract:

This article is a brief analysis on sexual freedom, diversity and sexual rights as sustained arguments by Brazilian Public Defense (Defensoria Pública do Estado de São Paulo) and social movements during the process of public consultation and further approval of Pre-Exposure Prophylaxis (PrEP) in the Brazilian Public Health System, emphasizing a substancial critique on technocracy and heteronormativity.

Keywords:
Diversity; Sexual rights; Pre-exposure prophylaxis; Public Defense; Social movements

A princípio eu fazia oral sem preservativo (só o oral, penetração deus me livre!) nos ocós que eu queria fazer, todos. Transar era um tesão pra quem era Amara há tão pouco tempo, ainda toda insegura com o próprio corpo, doida por um elogio: sendo desejada, eu desejaria em troca, assim simples. E nisso vivi o gozo de prová-los por inteiro, cada centímetro com meus cinco sentidos (até audição usei - os barulhos que ali se ouvem, impagáveis!). Doença não peguei nenhuma, obra da PrEP, da vacina pra hepatite A+B e da minha sorte gorda, mas chegou a hora de eu parar com isso antes que seja tarde, seja pra educar esses lixos, seja porque nenhum deles merece o risco que eu andei correndo. Começa a Era do Guanto (o capuz), e era uma vez prazer). (Moira, 2016MOIRA, Amara. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo, 2016., p. 145)

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar a contribuição dos movimentos sociais e da Defensoria Pública do estado de São Paulo no processo de incorporação da profilaxia pré-exposição (PrEP) no Sistema Único de Saúde (SUS), destacando, para tanto, um elemento reivindicativo comum e imbricado à demanda material pelo medicamento profilático: a potencialidade de liberdade pelo reconhecimento do impacto no prazer sexual e, assim, a defesa do direito à PrEP como atinente ao direito à liberdade sexual. Para tanto, está dividido em quatro partes.

Na primeira parte, faz-se um breve histórico da incorporação da PrEP no SUS, contextualizando-se a análise pretendida.

Na segunda, investiga-se o papel dos movimentos sociais e da Defensoria Pública do estado de São Paulo nesse processo de incorporação tecnológica.

Na terceira, é analisado o discurso de defesa do direito à liberdade sexual enquanto engendrado no discurso de defesa da PrEP como direito sanitário, inclusive a partir de uma perspectiva teórica sobre movimentos sociais.

Na quarta e última parte são apresentadas as considerações finais.

2. Breve histórico da incorporação da PrEP no SUS

No tempo recente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) emanam diversas recomendações sobre a implementação da PrEP nas políticas públicas sanitárias dos Estados-membros da ONU, inscritas no documento Oral Pre-Exposure Prophylaxis: putting a new choice in context, de 2015.

Nessa publicação (Unaids, OMS 2015UNAIDS; OMS. Oral Pre-Exposure Prophylaxis: putting a new choice in context. Disponível em: <http://www.who.int/hiv/pub/prep/who-unaids-prep-2015.pdf?ua=1>. Acesso em: 5 out. 2017.
http://www.who.int/hiv/pub/prep/who-unai...
) são colecionadas todas as evidências científicas de efetividade da PrEP, com especial destaque para o elevado grau de aderência ao novo método de prevenção, além do baixo número de reações adversas decorrentes do uso da medicação pertinente, bem como todas as vantagens da adoção dessa nova estratégia de prevenção; adoção essa, frise-se, de forma articulada com as estratégias já existentes, considerando grupos sociais mais vulneráveis (como as mulheres, por exemplo) e sem ignorar as diretrizes imperativas para a sua implementação, devendo os Estados coordenar ações a partir da efetiva participação democrática das pessoas interessadas e envolvidas, em especial das comunidades locais.

Posteriormente, na Conferência Internacional de Aids das Nações Unidas de 2016 (a 21st International AIDS Conference), a diretora do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde brasileiro, Adele Benzaken, noticiou que a PrEP seria incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) até o final de 2016 e que o protocolo clínico respectivo seria submetido a consulta pública ainda em agosto de 2016 (Agência Aids, 2016AGÊNCIA AIDS. Aids 2016: Adele Benzaken, diretora do Departamento de Aids, anuncia em Durban que Brasil terá PrEP até fim do ano. 19 jul. 2016. Disponível em: <http://agenciaaids.com.br/home/noticias/noticia_detalhe/25143>. Acesso em: 5 out. 2017.
http://agenciaaids.com.br/home/noticias/...
).

Porém apenas em março de 2017 será aberta a referida consulta pública pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec),1 1 A Conitec foi criada pelo Decreto n. 7.646/11, sendo um órgão permanente da estrutura do Ministério da Saúde e com a finalidade de assessorar tecnicamente a pasta no tocante à incorporação, alteração ou exclusão de tecnologias sanitárias no SUS, bem como na elaboração e alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. oportunizando a manifestação de entidades e órgãos externos ao Ministério da Saúde para fins de elaboração do que hoje é o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) de Risco à Infecção pelo HIV (Ministério da Saúde, 2017MINISTÉRIO DA SAÚDE. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. Disponível em: <http://abiaids.org.br/abia-critica-atraso-brasileiro-na-adocao-do-truvada-para-a-prevencao-do-hiv-no-sus/28802>. Acesso em: 5 out. 2017.
http://abiaids.org.br/abia-critica-atras...
).

A partir daí, inicia-se, até o momento presente, o processo burocrático de efetiva disponibilização da política pública, ainda em andamento.

3. O papel dos movimentos sociais e da Defensoria Pública de São Paulo

Se já é muito importante reconhecer a relevância do papel dos movimentos sociais de mobilização e luta pelos direitos da população soropositiva em geral, no que diz respeito à PrEP essa análise é crucial. Isso porque, ao longo desta década, esses movimentos se articularam e direcionaram seus esforços no sentido da reivindicação da PrEP como um direito.

Do ponto de vista histórico, é nítido o enorme papel desempenhado pelos movimentos sociais na construção e implementação da política pública sanitária para HIV/Aids no Brasil, o que, aliás, é assinalado com destaque na análise acadêmica do tema. Richard Parker (1997, p. 11-12)PARKER, Richard (Org.). Políticas, instituições e AIDS: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Abia, 1997. resume:

A resposta inicial à Aids, de 1982 a 1985, só pode ser entendida completamente dentro do contexto do período de abertura, com a eleição de forças progressistas de oposição, abertas ao diálogo e dispostas a responder às preocupações da sociedade civil, no nível estadual, e com a continuidade do regime militar, com sua mentalidade fundamentalmente autoritária, no nível federal. De forma muito semelhante, a mudança na política federal, assim como a crescente resposta não governamental à epidemia, de 1986 a 1990, está muito de acordo com o espírito do governo Sarney e a gradual redemocratização da vida brasileira. Esta mudança é caracterizada pela organização intensa da sociedade civil (e o surgimento de ONGs em uma variedade de áreas) junto com a transformação extremamente lenta da máquina administrativa do governo federal [...]. Como o próprio governo Collor, o período de 1990 a 1992 ocupa uma espécie de tempo fora do tempo, no qual a nação como um todo, e especificamente a comunidade de Aids, parecia estar vivendo um pesadelo coletivo que se esperava chegasse logo ao fim. O estabelecimento de um novo governo após a renúncia de Collor, com a completa manutenção das instituições democráticas, claramente assinalou uma nova era da redemocratização da sociedade brasileira, um sentimento crescente de maturidade e uma nova disposição tanto da sociedade civil como do Estado para trabalhar juntos na solução dos problemas sociais e econômicos com que a nação se defrontava - e mais uma vez a recente história dos programas e políticas de Aids no Brasil claramente reflete essas tendências e direções.

Lembre-se que os primeiros casos da Aids, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, foram verificados entre homens homossexuais, razão pela qual o ativismo LGBT exerceu um considerável papel na defesa dos direitos das pessoas soropositivas, em especial cobrando do Estado uma resposta de saúde adequada e que não fosse pautada pelos matizes discriminatórios e preconceituosos que despontavam na mídia no início da epidemia (Laurindo-Teodorescu e Teixeira, 2015LAURINDO-TEODORESCU, Lindinalva; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Histórias da Aids no Brasil. v. 1: As respostas governamentais à epidemia de Aids. Brasília: Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, 2015., p. 25-51).

E lembre-se, também, da observação crítica de Susan Sontag (1989)SONTAG, Susan. Aids and its metaphors. 1. ed. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1989. de que, nos anos 1980, com o aparecimento dos primeiros casos de contaminação pelo vírus HIV e de desenvolvimento da Aids nos Estados Unidos, ganhou força o discurso conservador moralizante, focalizado na repreensão a todo comportamento sexual que fosse considerado desviante2 2 O conceito de desviante aqui utilizado diz respeito àquele desenvolvido por Becker (2008), pautado pelo reconhecimento do desvio enquanto criação da sociedade, na percepção da reação social àquele que viola as normas postas por um grupo social. (isto é, diferente da relação heterossexual monogâmica3 3 Como leciona Gayle Rubin (2007), há uma hierarquia das relações sexuais no Ocidente, fundamentado, principalmente, no pensamento religioso cristão e em sua moral sexualizada. Dirá Rubin (2007, p. 151): “Modern Western societies appraise sex acts according to a hierarchical system of sexual value. Marital, reproductive heterosexuals are alone at the top erotic pyramid. Clamouring below are unmarried monogamous heterosexuals in couples, followed by most other heterosexuals. Solitary sex floats ambiguously. The powerful nineteenth-century stigma on masturbation lingers in less potent, modified forms, such as the idea that masturbation is an inferior substitute for partnered encounters. Stable, long-term lesbian and gay male couples are verging on respectability, but bar dykes and promiscuous gay men are hovering just above the groups at the very bottom of the pyramid. The most despised sexual castes currently include transsexuals, transvestites, fetishists, sadomasochists, sex workers such as prostitutes and porn models, and the lowliest of all, those whose eroticism transgresses generational boundaries”. ), em especial as relações homossexuais entre homens. Nessa época, conforme a autora, divulgou-se a Aids como “câncer gay” e associada exclusivamente às pessoas integrantes dos “grupos de risco”, principalmente homens homossexuais, muito sob orientação do discurso conservador de controle de práticas desviantes, em flagrante desserviço ao empoderamento e acolhimento das pessoas enfermas. O discurso, principalmente o governamental, nos termos dessa análise, assumiu o tom de que a Aids seria uma doença “deles” (os desviantes, marginais) e que, portanto, “nós” (os cidadãos de bem, observadores da moral e dos bons costumes) estaríamos a salvo.

Todavia, é reconhecido o processo de arrefecimento da participação e de enfraquecimento dos movimentos sociais militantes pelos direitos das pessoas soropositivas, por diversos fatores (Pinheiro, 2015PINHEIRO, Thiago Félix. Camisinha, homoerotismo e os discursos da prevenção de HIV/Aids.Tese (doutorado em Ciências - Programa de Medicina Preventiva) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 173-180), em especial a diminuição dos recursos destinados às políticas públicas para HIV/Aids, inclusive por força da cessação de projetos do Banco Mundial na temática. Em síntese (Idem, p. 178-180):

A pauperização e a desmobilização, que têm caracterizado o cenário atual dos movimentos sociais LGBT e de Aids, se expressam não apenas na diminuição do número de organizações e na dispersão de suas bandeiras, mas também no próprio enfraquecimento de sua atuação em relação à prevenção de HIV/Aids [...].

Em consequência, os movimentos sociais passaram a ter menos influência na condução da resposta brasileira. Seus posicionamentos e reivindicações, embora ainda contem com alguma expressividade, têm perdido espaço e força na formulação dos discursos preventivos e em outros âmbitos do enfrentamento da epidemia.

Isso pode ser visto, principalmente, na produção de campanhas e outros materiais de prevenção. O empobrecimento das ONGs e a economia dos recursos disponíveis têm se revertido na centralização da produção dos discursos nas instâncias mais centrais da política pública de saúde. Assim, tem sido reforçado o lugar do governo como o principal produtor dos parâmetros teóricos e técnicos da prevenção [...].

A configuração dessa crise, que atinge governo e movimentos sociais de formas diferentes, compromete, em especial, o direcionamento de discursos preventivos para o público gay/HSH. O combate à elevada vulnerabilidade desse segmento ao HIV/Aids encontra-se, assim, em um momento de defasagem, de impedimentos e, portanto, de desafios relevantes a se enfrentar.

A despeito do cenário de fragilidade, os movimentos sociais não deixarão de se manifestar a respeito da PrEP. A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids - Abia, uma das principais entidades da sociedade civil a trabalhar com o tema, faz, no período em análise, diversas manifestações públicas (2015 e 2016), engajando-se ativamente não só na defesa da incorporação da PrEP, como uma tecnologia útil ao combate à epidemia.

A Abia também falará, representada por sua então advogada Marcela Vieira, em 25 de fevereiro de 2016, na conferência Direitos Humanos e Combate à Discriminação na Perspectiva da Vida com HIV/Aids: Avanços e Retrocessos, organizada pela Defensoria Pública do estado de São Paulo, com posterior publicação da exposição.

Referida conferência, organizada pelo então Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito (hoje Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial) da Defensoria Pública paulista, durou três dias e dedicou a inteireza do segundo deles a discutir o impacto dos avanços tecnológicos, notadamente a PrEP, em especial na perspectiva de avanços jurídicos do direito à saúde.

Além da Abia, participam desses debates o médico e ativista Henrique Contreiras, envolvido diretamente no projeto interinstitucional PrEP Brasil,4 4 Remete-se, aqui, ao seu site oficial: Disponível em: <www.prepbrasil.com.br>. Acesso em: 5 out. 2017. representantes do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo, a assistente social e pesquisadora Damares Pereira Vicente e o médico pesquisador e docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Ésper Kallas. Há ainda um painel para se debater a utilização da PrEP no sistema carcerário.

Um ano depois, algumas das exposições da conferência irão compor publicação digital (Silva e Arnesen, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; PRATA, Ana Rita Souza. Parecer. assunto: inclusão das novas tecnologias de profilaxia pré-exposição (PrEP) na política pública para HIV/Aids - direito à PrEP. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Parecer%20-%20PrEP%20-%20Defensoria%20Publica.pdf>. São Paulo: 2017. Acesso em: 5 out. 2017.
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). Além disso, a Defensoria Pública participará, no primeiro semestre de 2017, da consulta pública da PrEP, apresentando parecer técnico-jurídico pela aprovação da PrEP (Silva e Prata, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; PRATA, Ana Rita Souza. Parecer. assunto: inclusão das novas tecnologias de profilaxia pré-exposição (PrEP) na política pública para HIV/Aids - direito à PrEP. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Parecer%20-%20PrEP%20-%20Defensoria%20Publica.pdf>. São Paulo: 2017. Acesso em: 5 out. 2017.
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).

4. O discurso sobre liberdade sexual na reivindicação do direito à PrEP

Retomando a epígrafe do presente artigo, a citação de trecho da autobiografia da travesti e ativista Amara Moira (2016, p. 145)MOIRA, Amara. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo, 2016. expõe a contradição entre o uso do preservativo e o prazer nas relações sexuais, que é uma das questões centrais em torno das discussões pautadas pelos movimentos sociais e demais atores na reivindicação pelo direito à PrEP.

A questão do prazer sexual é pouco debatida no seio das políticas públicas para HIV/Aids, muito por força do paradigma moralista e heteronormativo5 5 O conceito de heteronormatividade é muito trabalhado na Academia nos estudos de gênero e de sexualidade, e, em quase todas as suas análises por toda a diversidade de autores nota-se que, em comum, há um olhar sobre a heterossexualidade enquanto situação de poder, em especial ante o desviante, como já visto em nota de rodapé anterior sobre a hierarquia das relações sexuais demonstrada por Gayle Rubin (2007). Uma conceituação muito clara e direta da heteronormatividade pode ser encontrada em Berenice Bento (2010, p. 9), que primeiro pontua acerca da dita naturalidade da heterossexualidade: “os discursos da diferença sexual darão suporte, a partir de um discurso científico, ao julgamento das condutas. Por essa concepção a mulher e o homem são portadores de diferenças irrelativizáveis. Da espessura da pele ao tamanho do crânio, da estrutura psíquica aos complexos, tudo é diferença.A refinada engenharia da diferença sexual esquadrinhou os corpos com o objetivo de provar que não há nada em comum entre o feminino e o masculino. O único momento de encontro possível aconteceria no ato sexual. A heterossexualidade, portanto, seria uma expressão natural e normal dos corpos”. E prossegue, situando as relações de poder que permeiam a hetero e a homossexualidade: “Pensar a heterossexualidade como um regime de poder significa afirmar que longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, inscreve-se reiteradamente através de constantes operações de repetição e de recitação dos códigos socialmente investidos como naturais. O corpo-sexuado e a suposta ideia da complementaridade natural, que ganha inteligibilidade através da heterossexualidade, é uma contínua e incessante materialização intencionalmente organizada, condicionada e circunscrita pelas convenções históricas que se apresenta como a história”. E essa mesma heteronormatividade, como elucida Judith Butler (1990), é um marco fundante do pensamento ocidental, pressuposto oculto do tabu da vedação ao incesto desenvolvido tanto na antropologia quanto na psicanálise e, portanto, arraigada no Weltanschauung presente. que a norteia estruturalmente. Entretanto, como bem assinala Damares Pereira Vicente (in Silva e Arnesen, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; ARNESEN, Erik Saddi (Orgs.). Direitos humanos e combate à discriminação na perspectiva da vida com HIV/Aids: avanços e retrocessos. In: Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 1. ed. São Paulo: Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2017., p. 39), a luta contra a Aids trouxe abertura para a discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos:

Essa temática, extremamente delicada e polêmica, que articula as categorias gênero, reprodução e sexualidade, a partir do avanço dos tratamentos, mas também impulsionada pela exigência de respeito pleno aos direitos sexuais e reprodutivos, fez avançar a discussão sobre gênero e violência sexual, especialmente as praticadas contra as mulheres no âmbito de relações estáveis; sobre sexualidade e gênero, reconhecendo as diferenças entre mulheres em relações homoafetivas e relações heteroafetivas; sobre maternidade e gênero; sobre a maior vulnerabilidade das mulheres para as DST/Aids e sobre a responsabilidade dos serviços de saúde de promover, orientar e informar a população, especialmente mulheres, sobre suas possibilidades, recursos e direitos de exercício da sexualidade e da maternidade, ainda que boa parte dos serviços de saúde continue a privilegiar apenas a questão reprodutiva, muitas vezes sem sequer tocar na questão da sexualidade.

Nesse diapasão, ao mesmo tempo em que se forma um verdadeiro ethos do uso do preservativo, em especial por força das massivas campanhas públicas de propagação desse método de prevenção de barreira, a contaminação pelo vírus e a epidemia serão ressignificadas pelas novas gerações, construindo um conflito sociocultural que pode ser superado pelo reconhecimento do direito à PrEP. Sobre uma nova “ética da camisinha”, Thiago Félix Pinheiro salienta (2015, p. 141)PINHEIRO, Thiago Félix. Camisinha, homoerotismo e os discursos da prevenção de HIV/Aids.Tese (doutorado em Ciências - Programa de Medicina Preventiva) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.:

Na direção contrária, conforme a camisinha foi se destacando em relação a outras possíveis estratégias preventivas, as recomendações foram adquirindo um tom que, além de prescritivo, era, em muitos casos, impositivo. O uso de camisinha foi, então, elevado à condição de norma e a compreensão de que essa estratégia deveria ser adotada eclipsou a ideia de que era uma opção a ser oferecida às pessoas e que elas que poderiam incorporá-la ou não de acordo com sua avaliação ou vontade. Assim, a noção de escolha cedeu lugar à de conscientização ou responsabilidade em relação à norma a ser adotada.

Junto ao consenso geral a respeito do que deveria ser feito em termos de prevenção, emergiu uma condenação, ora velada, ora explícita, da não adoção ou da utilização não consistente dessa prática. Tornou-se comum as pessoas reconhecerem a imprescindibilidade do uso de camisinha e até reproduzirem a recomendação, mesmo quando estas não realizavam tal prática.

E, por outro lado, há pesquisas como a do também palestrante na mencionada conferência organizada pela Defensoria Pública, Luís Augusto Vasconcelos da Silva (2009aSILVA, Luís Augusto Vasconcelos da. Masculinidades transgressivas em práticas de barebacking. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3/2009, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v25n6/20.pdf>. Acesso em: 5 out. 2017.
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e 2009b)______. Barebacking e a possibilidade de soroconversão. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, jun. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v25n6/20.pdf>. Acesso em: 5 out. 2017.
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, realizada com homossexuais que deliberada e conscientemente não usam o preservativo, havendo até mesmo relatos, ainda que muito minoritários, de algumas percepções da contaminação pelo vírus HIV como uma espécie de libertação, por tornar as práticas sexuais mais livres e independentes do uso do preservativo - notadamente no campo da subcultura homossexual masculina do chamado barebacking.6 6 “De modo geral, as diferentes motivações para o barebacking constituem uma região fronteiriça de tensão entre o prazer do contato sensorial e o risco de infecção. Nessa perspectiva, todos os praticantes parecem ter em comum um discurso sobre o prazer mais livre e intenso no sexo sem camisinha, ainda que, para alguns, esse prazer esteja estreitamente vinculado a uma experiência mais excessiva ou transgressiva, inclusive por desafiar o vírus, a doença e os limites da própria vida. Dessa forma, busco não estabelecer uma simples oposição entre prazer do risco versus prazer do contato total, mas pensar essas dimensões analíticas como processos que acontecem na fronteira. Gostaria, portanto, de ressaltar que a ideia de prazer do risco não significa, necessariamente, movimento intencional (consciente) em direção ao adoecimento ou contaminação pelo HIV. Estou reconhecendo que esse prazer está intimamente vinculado à ideia de transgressão (ou violação) de fronteiras, que incluem a separação dos corpos. Essa possibilidade de transgredir ou atravessar esses limites mobiliza diferentes sentimentos e emoções, entre eles, medo, ansiedade, preocupação e culpa” (Silva, 2009a).

Significar e conhecer, portanto, que não apenas o prazer sexual se faz presente no debate - ainda que no espaço do marginal dentro da marginalidade -, como também há discursos e práticas de ressignificação do vírus HIV e das relações sexuais (especialmente entre homens), até mesmo na perspectiva de uma experiência nova de vida. A respeito, Luís Augusto Vasconcelos da Silva bem resume essas manifestações, no artigo decorrente de sua palestra (Silva e Arnesen, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; ARNESEN, Erik Saddi (Orgs.). Direitos humanos e combate à discriminação na perspectiva da vida com HIV/Aids: avanços e retrocessos. In: Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 1. ed. São Paulo: Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2017., p. 10-11):

A prática sexual desprotegida, principalmente em algumas situações mais específicas (e extremadas), de contato total com o outro (e com fluidos corporais), apresenta-se como uma dessas formas “excessivas” no uso do corpo, como contraponto a uma infinidade de discursos sobre a boa forma, o corpo saudável e o sexo seguro. Em vários momentos, estar em uma situação de perigo, ambiguidade, contradição e ruptura com os bons modos e organização (fechamento) dos corpos, implicará satisfação pessoal, suplemento do prazer e sensação de maior liberdade, ainda que não isentos de conflitos morais.

Portanto, é claro tanto para os movimentos sociais quanto para a Defensoria Pública que o direito à PrEP não comporta apenas uma dimensão exclusivamente de saúde pública e de contenção de epidemia. Há uma demanda ulterior no sentido de uma expressão nova do direito à liberdade, ou, melhor dizendo, de um direito sanitário como condição material para a ampliação da esfera de possibilidade de exercício do direito à liberdade. Não por acaso, no já mencionado parecer técnico (Silva e Prata, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; PRATA, Ana Rita Souza. Parecer. assunto: inclusão das novas tecnologias de profilaxia pré-exposição (PrEP) na política pública para HIV/Aids - direito à PrEP. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Parecer%20-%20PrEP%20-%20Defensoria%20Publica.pdf>. São Paulo: 2017. Acesso em: 5 out. 2017.
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), busca-se sustentar a PrEP como um direito sanitário por meio de interpretações que contemplem o respeito ao direito fundamental e humano à liberdade, especialmente à liberdade sexual.

Por tudo isso, o discurso de liberdade pode ser enxergado como um elemento inovador em relação às pautas históricas dos movimentos sociais de defesa de direitos de pessoas vivendo com HIV/Aids, já que vai além de uma reivindicação material simplesmente, bem como se preocupa não apenas com a própria manutenção da vida biológica, como também com condições de liberdade e de bem-estar dessa vida, já garantida com a conquista dos medicamentos antirretrovirais no SUS.

E, ao ser compartilhado tal discurso de liberdade tanto pelos movimentos sociais quanto por parcela do Estado (no caso, a Defensoria Pública), ele ganha força reivindicativa e argumentos técnicos quando transborda da fala e da reivindicação dos movimentos para manifestações como a publicação digital das apresentações (Silva e Arnesen, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; ARNESEN, Erik Saddi (Orgs.). Direitos humanos e combate à discriminação na perspectiva da vida com HIV/Aids: avanços e retrocessos. In: Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 1. ed. São Paulo: Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2017.) e o parecer técnico-jurídico apresentado ao Conitec (Silva e Prata, 2017SILVA, Rodrigo Augusto Tadeu Martins Leal da; PRATA, Ana Rita Souza. Parecer. assunto: inclusão das novas tecnologias de profilaxia pré-exposição (PrEP) na política pública para HIV/Aids - direito à PrEP. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Parecer%20-%20PrEP%20-%20Defensoria%20Publica.pdf>. São Paulo: 2017. Acesso em: 5 out. 2017.
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).

Sader (2001)SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. pensava no discurso como constituinte dos sujeitos coletivos, apontando para o momento da prática discursiva como aquele de forja da identidade coletiva e do movimento social, concretizando demandas, carências e necessidades que, antes do ato discursivo, permaneciam em um campo de virtualidade.7 7 “Se pensarmos num sujeito coletivo, nós nos encontramos em sua gênese, com um conjunto de necessidades, anseios, medos, motivações, suscitado pela trama das relações sociais nas quais ele se constitui. Assim, se tomarmos um grupo de trabalhadores residentes numa determinada vila da periferia, poderemos identificar suas carências, tanto de bens materiais necessários à sua reprodução quanto de ações e símbolos através dos quais eles se reconhecem naquilo que, em cada caso, é considerado sua dignidade. Mas essas demandas de reprodução material e de reconhecimento simbólico encontram-se, antes dos discursos, apenas em estado de existência virtual. Existem sem forma nem atualidade. E é claro que, quando nos referimos a essa existência virtual antes dos discursos, trata-se apenas de uma situação lógica, já que tais demandas jamais existem nesse estado mudo; em cada situação concreta se encontram materializadas de um modo particular. É através dos discursos que tais demandas são nomeadas e objetivadas de formas específicas. É através dos discursos que a carência virtual de bens materiais se atualiza numa carência de casa própria ou de um barraco, de sapatos ou de vestidos, de feijão com arroz ou carne de sol, de escola para os filhos ou televisão. É através dos discursos que a demanda do reconhecimento da própria dignidade pode ser satisfeita por meio do trabalho árduo ou da preservação do fim de semana para pescar, da liberdade individual ou da integridade da família, do culto religioso ou da liberdade política” (Sader, 2001, p. 58-59).

No caso em análise, em que pese o discurso de a liberdade sexual não ser o início propriamente dito dos movimentos sociais em questão, é certo, porém, que é o discurso de liberdade uma possibilidade de reinvenção e atualização existencial desses movimentos quando já alcançados direitos reivindicados anteriormente e, mais ainda, um traço de união com o Estado por meio do compartilhamento discursivo - permitindo com que a demanda do movimento seja rapidamente acolhida, ao menos por setores estatais ligados à defesa dos direitos humanos.

Essa complexificação, por sua vez, faz a luta pela PrEP como um direito saltar da esfera de uma reivindicação estritamente material e ligada às condições mínimas de existência e de sobrevivência, alcançando a esfera das chamadas lutas identitárias ou culturais, presentes nas chamadas Teorias dos Novos Movimentos Sociais (Alonso, 2009ALONSO, Angela. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua Nova [on-line], São Paulo, n. 76, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n76/n76a03.pdf>. Acesso em: 5 out. 2017.
http://www.scielo.br/pdf/ln/n76/n76a03.p...
).

Ainda, verifica-se que, até mesmo pelo marcado tom tecnocrático que perpassa as políticas sanitárias e o Ministério da Saúde nesse tempo histórico, o repertório utilizado pelos movimentos sociais será igualmente tecnocrático, seja por meio de manifestações técnicas, seja por falas tecnicistas em espaços com tal configuração - contribuindo na formatação, inclusive, de uma manifestação técnica do campo jurídico pela Defensoria Pública, contemplando as dimensões reivindicativas.

Nesse sentido, há outros três pontos de afastamento dos movimentos sociais ditos tradicionais ou clássicos,8 8 “Com efeito, os movimentos antigos - particularmente o movimento operário - se mobilizavam como grupos socioeconômicos, por meio de organizações formais e grupos de pressão política, para atingir interesses específicos (o crescimento econômico, uma participação maior na distribuição do produto social ou segurança para o status já adquirido), ao passo que os novos, com organizações mais informais e igualitárias, tentariam atingir objetivos que atravessam as linhas de classe como gênero, raça, paz, ecologia e autonomia local. Em lugar do individualismo e do progresso material, os novos movimentos valorizariam a autonomia pessoal, o reconhecimento e a autodeterminação” (Sallum Jr., 2005, p. 18-19). seja quanto ao repertório mais consolidado dos movimentos sociais tradicionais (manifestações, ocupações, greves etc.), ainda que, inexoravelmente, a reivindicação pelo direito à PrEP diga respeito a uma tecnologia que é condição material de existência humana; seja quanto às estruturas, já que, aqui, temos associações e entes despersonalizados reivindicando uma fala perante o Estado e, inclusive, operando junto com parte do Estado (Defensoria Pública), sem qualquer projeto ou preocupação de transformação do Estado existente; seja quanto à transversalidade de classes sociais presentes nos movimentos.

Pode-se dizer, então, que nesse processo histórico se encontram, simultaneamente, uma luta material e uma luta identitária (de desconstrução da cis-heteronormatividade), ou, melhor até, uma luta por um meio material de concretização de uma luta identitária.

5. Considerações finais

A construção de um discurso de defesa da PrEP como defesa do direito à liberdade sexual ressignifica e, de certa forma, refunda os movimentos sociais de defesa de direitos das pessoas que vivem com HIV/Aids, em um momento histórico no qual se acumulam lutas por uma política pública de saúde já alcançada e contemplada, com grande êxito e grau de satisfação.

Ao mesmo tempo, é também um discurso que, ao ser compartilhado com entes e estruturas do Estado voltadas para a defesa dos direitos humanos - notadamente, a Defensoria Pública do estado de São Paulo -, ganha força e abre possibilidades de construção de uma política pública pautada não só nas reivindicações reais, mas também com linguagem e viés menos tecnocráticos e maior atenção às peculiaridades socioculturais presentes.

Avançando, portanto, ao se enxergar a demanda atual e presente dos movimentos sociais pelo reconhecimento, afirmação e execução da PrEP como um direito sanitário, visualiza-se igualmente todo o processo histórico de formação e conformação das políticas públicas brasileiras para HIV/Aids, mas também o reconhecimento da PrEP como um direito necessário à construção da dignidade humana, trazendo para o debate sanitário oficial a emergência do direito à liberdade sexual como um fator relevante e decisivo a ser considerado pelo SUS.

  • 1
    A Conitec foi criada pelo Decreto n. 7.646/11, sendo um órgão permanente da estrutura do Ministério da Saúde e com a finalidade de assessorar tecnicamente a pasta no tocante à incorporação, alteração ou exclusão de tecnologias sanitárias no SUS, bem como na elaboração e alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
  • 2
    O conceito de desviante aqui utilizado diz respeito àquele desenvolvido por Becker (2008)BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kuschnir. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008., pautado pelo reconhecimento do desvio enquanto criação da sociedade, na percepção da reação social àquele que viola as normas postas por um grupo social.
  • 3
    Como leciona Gayle Rubin (2007)RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: PARKER, Richard; AGGLETON, Peter (Orgs.). Culture, society and sexuality: a reader (sexuality, culture and health). 2. ed. Londres/Nova York: Routledge, 2007. p. 143-178., há uma hierarquia das relações sexuais no Ocidente, fundamentado, principalmente, no pensamento religioso cristão e em sua moral sexualizada. Dirá Rubin (2007, p. 151)RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: PARKER, Richard; AGGLETON, Peter (Orgs.). Culture, society and sexuality: a reader (sexuality, culture and health). 2. ed. Londres/Nova York: Routledge, 2007. p. 143-178.: “Modern Western societies appraise sex acts according to a hierarchical system of sexual value. Marital, reproductive heterosexuals are alone at the top erotic pyramid. Clamouring below are unmarried monogamous heterosexuals in couples, followed by most other heterosexuals. Solitary sex floats ambiguously. The powerful nineteenth-century stigma on masturbation lingers in less potent, modified forms, such as the idea that masturbation is an inferior substitute for partnered encounters. Stable, long-term lesbian and gay male couples are verging on respectability, but bar dykes and promiscuous gay men are hovering just above the groups at the very bottom of the pyramid. The most despised sexual castes currently include transsexuals, transvestites, fetishists, sadomasochists, sex workers such as prostitutes and porn models, and the lowliest of all, those whose eroticism transgresses generational boundaries”.
  • 4
    Remete-se, aqui, ao seu site oficial: Disponível em: <www.prepbrasil.com.br>. Acesso em: 5 out. 2017.
  • 5
    O conceito de heteronormatividade é muito trabalhado na Academia nos estudos de gênero e de sexualidade, e, em quase todas as suas análises por toda a diversidade de autores nota-se que, em comum, há um olhar sobre a heterossexualidade enquanto situação de poder, em especial ante o desviante, como já visto em nota de rodapé anterior sobre a hierarquia das relações sexuais demonstrada por Gayle Rubin (2007)RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: PARKER, Richard; AGGLETON, Peter (Orgs.). Culture, society and sexuality: a reader (sexuality, culture and health). 2. ed. Londres/Nova York: Routledge, 2007. p. 143-178.. Uma conceituação muito clara e direta da heteronormatividade pode ser encontrada em Berenice Bento (2010, p. 9)BENTO, Berenice. As tecnologias que fazem os gêneros. Trabalho apresentado no VIII Congresso Interamericano, Tecnologia e Gênero. Curitiba, 2010. Disponível em: <http://files.dirppg.ct.utfpr.edu.br/ppgte/eventos/cictg/conteudo_cd/E8_As_Tecnologias_que_Fazem_os_Gêneros.pdf>. Acesso em: 5 out. 2017.
    http://files.dirppg.ct.utfpr.edu.br/ppgt...
    , que primeiro pontua acerca da dita naturalidade da heterossexualidade: “os discursos da diferença sexual darão suporte, a partir de um discurso científico, ao julgamento das condutas. Por essa concepção a mulher e o homem são portadores de diferenças irrelativizáveis. Da espessura da pele ao tamanho do crânio, da estrutura psíquica aos complexos, tudo é diferença.A refinada engenharia da diferença sexual esquadrinhou os corpos com o objetivo de provar que não há nada em comum entre o feminino e o masculino. O único momento de encontro possível aconteceria no ato sexual. A heterossexualidade, portanto, seria uma expressão natural e normal dos corpos”. E prossegue, situando as relações de poder que permeiam a hetero e a homossexualidade: “Pensar a heterossexualidade como um regime de poder significa afirmar que longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, inscreve-se reiteradamente através de constantes operações de repetição e de recitação dos códigos socialmente investidos como naturais. O corpo-sexuado e a suposta ideia da complementaridade natural, que ganha inteligibilidade através da heterossexualidade, é uma contínua e incessante materialização intencionalmente organizada, condicionada e circunscrita pelas convenções históricas que se apresenta como a história”. E essa mesma heteronormatividade, como elucida Judith Butler (1990)BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. Londres/Nova York: Routledge, 1990., é um marco fundante do pensamento ocidental, pressuposto oculto do tabu da vedação ao incesto desenvolvido tanto na antropologia quanto na psicanálise e, portanto, arraigada no Weltanschauung presente.
  • 6
    “De modo geral, as diferentes motivações para o barebacking constituem uma região fronteiriça de tensão entre o prazer do contato sensorial e o risco de infecção. Nessa perspectiva, todos os praticantes parecem ter em comum um discurso sobre o prazer mais livre e intenso no sexo sem camisinha, ainda que, para alguns, esse prazer esteja estreitamente vinculado a uma experiência mais excessiva ou transgressiva, inclusive por desafiar o vírus, a doença e os limites da própria vida. Dessa forma, busco não estabelecer uma simples oposição entre prazer do risco versus prazer do contato total, mas pensar essas dimensões analíticas como processos que acontecem na fronteira. Gostaria, portanto, de ressaltar que a ideia de prazer do risco não significa, necessariamente, movimento intencional (consciente) em direção ao adoecimento ou contaminação pelo HIV. Estou reconhecendo que esse prazer está intimamente vinculado à ideia de transgressão (ou violação) de fronteiras, que incluem a separação dos corpos. Essa possibilidade de transgredir ou atravessar esses limites mobiliza diferentes sentimentos e emoções, entre eles, medo, ansiedade, preocupação e culpa” (Silva, 2009aSILVA, Luís Augusto Vasconcelos da. Masculinidades transgressivas em práticas de barebacking. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3/2009, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v25n6/20.pdf>. Acesso em: 5 out. 2017.
    http://www.scielo.br/pdf/csp/v25n6/20.pd...
    ).
  • 7
    “Se pensarmos num sujeito coletivo, nós nos encontramos em sua gênese, com um conjunto de necessidades, anseios, medos, motivações, suscitado pela trama das relações sociais nas quais ele se constitui. Assim, se tomarmos um grupo de trabalhadores residentes numa determinada vila da periferia, poderemos identificar suas carências, tanto de bens materiais necessários à sua reprodução quanto de ações e símbolos através dos quais eles se reconhecem naquilo que, em cada caso, é considerado sua dignidade. Mas essas demandas de reprodução material e de reconhecimento simbólico encontram-se, antes dos discursos, apenas em estado de existência virtual. Existem sem forma nem atualidade. E é claro que, quando nos referimos a essa existência virtual antes dos discursos, trata-se apenas de uma situação lógica, já que tais demandas jamais existem nesse estado mudo; em cada situação concreta se encontram materializadas de um modo particular. É através dos discursos que tais demandas são nomeadas e objetivadas de formas específicas. É através dos discursos que a carência virtual de bens materiais se atualiza numa carência de casa própria ou de um barraco, de sapatos ou de vestidos, de feijão com arroz ou carne de sol, de escola para os filhos ou televisão. É através dos discursos que a demanda do reconhecimento da própria dignidade pode ser satisfeita por meio do trabalho árduo ou da preservação do fim de semana para pescar, da liberdade individual ou da integridade da família, do culto religioso ou da liberdade política” (Sader, 2001SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001., p. 58-59).
  • 8
    “Com efeito, os movimentos antigos - particularmente o movimento operário - se mobilizavam como grupos socioeconômicos, por meio de organizações formais e grupos de pressão política, para atingir interesses específicos (o crescimento econômico, uma participação maior na distribuição do produto social ou segurança para o status já adquirido), ao passo que os novos, com organizações mais informais e igualitárias, tentariam atingir objetivos que atravessam as linhas de classe como gênero, raça, paz, ecologia e autonomia local. Em lugar do individualismo e do progresso material, os novos movimentos valorizariam a autonomia pessoal, o reconhecimento e a autodeterminação” (Sallum Jr., 2005SALLUM, JR., Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova [on-line], São Paulo, n. 65, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n65/a02n65.pdf>. Acesso em: 5 out. 2017.
    http://www.scielo.br/pdf/ln/n65/a02n65.p...
    , p. 18-19).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2018
  • Aceito
    26 Fev 2018
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