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Questão étnico-racial: desigualdades, lutas e resistência

Ethnic-racial question: inequalities, struggles and resistance

Esta edição especial da Revista Serviço Social & Sociedade traz para o debate o "Racismo e suas expressões socioinstitucionais: traços estruturantes da sociedade brasileira", que junto com a edição anterior da Revista sobre o tema da "Diversidade sexual e de gênero", compõem um denso circuito de diálogos e reflexões que se articulam ao XI Seminário Anual de Serviço Social promovido pela Cortez Editora, no último mês de maio de 2018, sobre a instigante questão: "Questão social, sexismo, racismo e lgbtfobia: Que país é esse?"

O compromisso com a superação das desigualdades sociais, com o combate a todas as formas de opressão e exploração, faz parte do posicionamento do serviço social brasileiro há décadas.

Quando a profissão constrói uma direção social crítica, ela o faz buscando um referencial teórico-metodológico que permita olhar para a realidade numa perspectiva de totalidade e, ao mesmo tempo, coloca a necessidade de um posicionamento ético-político; isto faz com que o serviço social brasileiro avance, mas ao mesmo tempo requer dos profissionais um constante aprimoramento profissional. Afinal, como superar as marcas dos preconceitos socialmente construídos e que fazem parte da nossa formação social e política?

Desconstruir preconceitos exige conhecimento, reflexão e posicionamento ético-político. Porém, não é possível superar limites se estes nem sequer são percebidos e apreendidos como tal. Como afirma Kosik (1995)KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., ninguém investiga para além do imediato, se não acreditar que existe algo a ser descoberto. Afinal, nós assistentes sociais vivemos nessa sociabilidade e construímos conceitos e juízos provisórios para seguir a vida como seres sociais. Como muito bem nos lembra Heller (1980)HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1980., os juízos provisórios que são contestados pela razão e pela experiência, mas que se mantêm inabalados, são preconceitos, e mais: o afeto da fé os sustenta, basta acreditar, não importa que tenham sido cientificamente desconstruídos, ou se mostrado equivocados pela vivência. Nas palavras da própria autora:

a maioria dos preconceitos, embora nem todos, são produtos das classe dominantes [...] Isso não é apenas consequência de suas maiores possibilidades técnicas, mas também de seus esforços ideológicos hegemônicos: a classe burguesa aspira a universalizar a sua ideologia (Heller, 1980HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1980., p. 54).

Essa edição da Revista Serviço Social & Sociedade vem contribuir com esse processo permanente que a profissão tem feito ao longo dos últimos 40 anos, no sentido de avançar teórica e politicamente. Afinal, o racismo é uma marca estruturante da formação sócio-histórica brasileira, e remonta à face bárbara de um país que insiste em ser moderno (Ianni, 1994IANNI, Octavio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1994.). Segundo José de Souza Martins (1994)MARTINS, José de Souza. O poder do atraso - ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994., trata-se de uma "sociedade de história lenta", ou ainda, trata-se de uma interpretação da realidade social, a partir da perspectiva de uma "sociologia de história lenta", que

permite fazer uma leitura dos fatos e acontecimentos orientada pela necessidade de distinguir no contemporâneo a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado (...) Mais do que isso, uma sociologia da história lenta permite descobrir, e integrar na interpretação, estruturas, instituições, concepções e valores enraizados em relações sociais que tinham pleno sentido no passado, e que, de certo modo, e só de certo modo, ganharam vida própria. É sua mediação que freia o processo histórico e o torna lento (Martins, 1994MARTINS, José de Souza. O poder do atraso - ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994., p. 14).

Tais marcas sócio-históricas que persistem na questão étnico-racial em nosso país seguem no artigo sobre as "Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo", de Zelma Madeira e Daiane de Oliveira Gomes. Importa ressaltar, como defendem as autoras, que frente às persistentes desigualdades raciais encontram-se as resistências negras.

No final do editorial da Revista Serviço Social & Sociedade n. 132, as autoras lembravam do assassinato de Marielle Franco, dignamente lembrada como "mulher, negra, bissexual, moradora em favela, socióloga, defensora dos direitos humanos e a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro nas últimas eleições municipais". Sem dúvida, passados 120 dias de sua morte ainda não desvendada, faz-se necessário relembrar de sua figura nesta Revista 133, também pela face da luta e resistência. Em um capítulo do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil (2017), Marielle Franco apresenta um texto que trata justamente sobre uma outra perspectiva para se olhar para as periferias da cidade, suas mulheres e suas populações:

Ainda que essa realidade das desigualdades, que pavimenta a história brasileira, tenha maior impacto em toda a periferia, principalmente nas favelas, as mulheres desse amplo território não são marcadas pela carência, como aparece no discurso predominante da imprensa e do poder hegemônico. Assumiram papel de centralidade de ações criativas e de conquistas de políticas do Estado que atuaram no caminho inverso das desigualdades, ampliando direitos em várias dimensões humanas. Conquistaram, assim, alterações em seus territórios com força para disputar, na cidade, novas localizações no imaginário popular e para as relações humanas (Franco, 2017FRANCO, Marielle. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista negra e favelada. In: BUENO, Winnie et al. (Orgs.). Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Porto Alegre: Editora Zouk, 2017., p. 91).

Ou seja, a questão étnico-racial vincula-se ao próprio processo de construção desigual de nossas cidades, que reproduzem o modelo desigual e discriminatório da nossa formação societária, de que trata o artigo "Notas para o debate das relações de exploração-opressão na sociedade patriarcal-racista-capitalista", de Milena Fernandes Barroso.

O debate sobre a questão étnico-racial dialoga diretamente com questões muito importantes para o serviço social que sustenta seu projeto profissional fundamentalmente a partir da teoria marxiana, e que tem na centralidade do trabalho o elemento fundante da sociabilidade. Afinal, haveria uma hierarquia na determinação da realidade e, portanto, a prioridade da classe? A questão racial vem depois? É preciso ficar atento a este debate, afinal, a prioridade ontológica do trabalho defendida pela teoria marxiana não se confunde com o estabelecimento de hierarquias; ao reconhecer no trabalho o elemento que funda a sociabilidade humana, essa referência teórica nos permite entender o que é a realidade como construção social; ora mas o trabalho sempre foi executado pelos diversos seres humanos que compõem a realidade e que estabeleceram diferentes tipos de economia e sociedade. Na sociedade capitalista, a base que sustenta a desigualdade social é a exploração do trabalho, que vai acontecer de diferentes maneiras de acordo com outras particularidades que compõem a classe trabalhadora de cada país. Como muito bem destacam os artigos publicados nesta edição, se quisermos entender a classe trabalhadora desse país, temos que analisar a própria formação da sociedade brasileira, afinal, essa classe trabalhadora sempre teve sexo e cor. Sem o eixo classe não é possível entender a realidade brasileira, porém somente com esse complexo social tampouco a entenderemos, afinal nada mais estranho a Marx que um único determinante definindo uma realidade. Totalidade significa entender a complexidade que compõe as diversas particularidades presentes na realidade.

Cisne e Santos (2018)CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Morais. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca básica de serviço social, v. 8) enfrentam esse debate e reafirmam a necessidade de identificar esses complexos sociais. A perspectiva de totalidade reclamada pelas autoras identifica o trabalho como elemento fundante da sociabilidade, mas descrevem três divisões estruturais que, associadas entre si, compõem a realidade:

Partimos da concepção marxista de que as relações sociais se fundam por meio do trabalho. O trabalho, nesta sociedade hetero-patriarcal-racista-capitalista, possui três divisões estruturais associadas entre si: a) a divisão social fundada nas relações entre as classes; b) a divisão racial, fundada nas relações sociais de raça; c) a divisão sexual, fundada nas relações de sexo. As relações sociais são perpassadas pela apropriação do trabalho de um grupo ou classe sobre outro. São essas relações sociais, mediadas por antagonismos e hierarquias, que processam a produção e a reprodução sociais, permeadas pela exploração da força de trabalho e pelas opressões a ela vinculadas (Cisne; Santos, 2018CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Morais. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca básica de serviço social, v. 8), p. 25).

O preconceito étnico-racial foi e ainda é um dos pilares de sustentação das desigualdades, e isso tem que ser tratado no trabalho e na formação dos estudantes e profissionais que compõem o serviço social brasileiro. Afinal, o combate a todas as formas de preconceito tem que estar no cotidiano de formação e do trabalho profissional, e não apenas ser abordado quando uma atividade discriminatória surge.

O mito da democracia racial realizou um grande desserviço para a sociedade brasileira e combatê-lo compõe nosso posicionamento ético-político. E como afirma Matos (2015)MATOS, Maurílio Castro de. Considerações sobre atribuições e competências profissionais de assistentes sociais na atualidade. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 678-698, out./dez. 2015., o nosso projeto profissional não é um jaleco que colocamos para trabalhar, independentemente de nossos valores e concepções. Na realidade, são nossas concepções que irão dar a direção para o projeto profissional e:

Se estivermos mais qualificados (as), daremos, no trabalho, respostas melhores. Se efetivamente internalizarmos os valores do projeto ético-político, que são emancipatórios, daremos respostas emancipatórias para "a dureza" do dia a dia - que naturaliza a desigualdade social, estimula o preconceito, desqualifica os indivíduos fora do padrão dominante - tanto no trabalho como nas outras esferas da sociabilidade (Matos, 2015MATOS, Maurílio Castro de. Considerações sobre atribuições e competências profissionais de assistentes sociais na atualidade. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 678-698, out./dez. 2015., p. 685).

Nesta edição, o leitor e a leitora ficarão fortalecidos para essa luta, pois, de fato, os diversos artigos, cada um com um enfoque, nos subsidiam e apoiam teórica e politicamente esse posicionamento coerente, previsto pelo projeto profissional do serviço social.

Os artigos, em geral, que compõem este número da Revista tratam da temática étnico-racial sob a tríade "desigualdade, luta e resistência", e o fazem em diálogo plural com o referencial marxiano e com o projeto profissional do serviço social brasileiro.

Ainda que a ênfase dos artigos recaia sobre a questão dos negros, a Revista traz ainda o debate sobre a questão indígena. Um deles escrito, por Elizângela Cardoso de Araújo Silva, destaca o direito a terra como condição fundamental para os povos indígenas.

O outro artigo sobre esta temática é de autoria de Joaquina Barata Teixeira, intitulado "Etnias amazônicas: confrontos culturais e intercorrências no campo jurídico". Não sem motivo, esta assistente social e professora aposentada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em sua incansável militância pela questão indígena aos 82 anos de idade, recebeu justa homenagem no XI Seminário Anual de Serviço Social, cujo texto "Joaquina Barata: Amauta do Serviço Social brasileiro", de autoria do Prof. Marcelo Braz, encerra este número da Revista, recordando-nos a importância de saber reconhecer méritos e comemorar juntos, pois ao fazê-lo estamos dando visibilidade a trajetórias de vida densamente vividas.

Referências

  • CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Morais. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca básica de serviço social, v. 8)
  • FRANCO, Marielle. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista negra e favelada. In: BUENO, Winnie et al. (Orgs.). Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Porto Alegre: Editora Zouk, 2017.
  • HELLER, Agnes. O cotidiano e a história 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
  • IANNI, Octavio. A ideia de Brasil moderno São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
  • MARTINS, José de Souza. O poder do atraso - ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.
  • MATOS, Maurílio Castro de. Considerações sobre atribuições e competências profissionais de assistentes sociais na atualidade. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 678-698, out./dez. 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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