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A relação de classe e raça na formação da classe trabalhadora brasileira

The relationship of class and race in shaping the Brazilian working class

RESUMO:

O propósito deste artigo é apresentar e analisar, ainda que sucintamente, através de Fernandes (2007)FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007., Ianni (1978)IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. e Moura (1992)MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. a complexidade da relação classe e raça no entendimento da composição da classe trabalhadora brasileira. Parte-se da compreensão de que as teorias racialistas, mesmo no processo de transição do escravismo para as relações de trabalho na sociedade capitalista, persistiram na formação da classe trabalhadora brasileira.

Palavras-chave:
Escravismo; Capitalismo; Classe trabalhadora

ABSTRACT:

The purpose of this article is to briefly present and analyze the complexity of class and race relations in the understanding of the composition of the Brazilian working class, through Fernandes (2007)FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007., Ianni (1978)IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. and Moura (1992)MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.. One The must begin by understanding that racialist theories persisted in the formation of the Brazilian Working class and that this happened since very beginning of the process of transition from slavery to labor relations in capitalist society.

Keywords:
Slavery; Capitalism; Working class

Introdução

As mudanças no sistema produtivo no Brasil e as novas composições da força de trabalho, presentes no início do século XX, são decisivas para o entendimento do processo organizativo da classe trabalhadora, seja mediado pela sua inserção produtiva no mercado de trabalho, seja através da compreensão dos sujeitos que a compõem, mesmo que alijados dessa inserção. Ainda que não seja objeto do presente artigo, vale destacar dois acontecimentos relevantes dos anos de 1930 no Brasil: a fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1929 e a formação da Frente Negra Brasileira (1931-7). A riqueza desse momento histórico é elucidativa da necessidade de analisar a complexidade constituinte da formação da classe trabalhadora brasileira, inseparável do processo organizativo da população negra no Brasil.

Segundo Florestan Fernandes (2007, p. 260)FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007., "como a economia de trabalho livre se organizou sobre um patamar pré-capitalista e colonial, seria lamentável se ignorássemos como as determinações de raças se inseriram e afetaram as determinações de classes". Se essa análise é absolutamente pertinente para entender o nascimento do capitalismo brasileiro, ela também providencia poderosos elementos para compreender a formação da classe trabalhadora no país. É acerca desse aspecto que se pretende discorrer no ensaio que ora se apresenta.

As classes sociais, na perspectiva marxista, são demarcadas a partir do modo de produção capitalista e pressupõe a apropriação da riqueza socialmente produzida pela classe dominante - a burguesia -, a partir da exploração da força de trabalho da classe trabalhadora, que vende por meio de seu corpo a capacidade laborativa. Todo esse processo constituinte do capitalismo, produtor da exploração do homem pelo homem, marca essa sociedade pela divisão dessas duas classes - a dominante e a trabalhadora -, e é essa divisão que produz as infindas desigualdades, pois tudo o que o trabalhador produz é apropriado por uma minoria, os donos dos meios de produção, a burguesia. (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Versão pdf.)

Parte-se da ideia de que essa classe se perfaz nas singularidades dos diferentes sujeitos e grupos que a constituem e, ao longo da história, reivindicam interesses comuns, mas também diferentes, em virtude das especificidades produzidas pelos lugares que ocupam.

Todavia, a classe social não é apenas resultado do lugar que se ocupa no modo de produção capitalista, se detentor dos meios de produção ou se possuidor apenas de sua força de trabalho. Esse tipo de definição seria meramente descritivo se não levasse em conta a processualidade conflitiva que lhe é constituinte, pois que é no antagonismo da luta que a classe trabalhadora forja-se a si mesma. Quer dizer, é a luta de classes o motor das relações sociais e das classes que a compõem.

A escravidão como um dos pilares estruturantes do capitalismo

Octavio Ianni, em seu livro Escravidão e racismo, evidencia a relação entre escravidão e capitalismo demonstrando como esses aspectos se constituem simultaneamente, ao mencionar que "o mesmo processo de acumulação primitiva, que na Inglaterra estava criando algumas condições histórico-estruturais básicas para a formação do capitalismo industrial, produzia no Novo Mundo a escravatura, aberta ou disfarçada". O autor trata do tema a partir da discussão acerca da acumulação primitiva do capital, compreendida por ele como o "processo social, político e econômico mais característico de transição do feudalismo para o capitalismo" (Ianni, 1978IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978., p. 4).

Foi o capital comercial que comandou a consolidação e a generalização do trabalho compulsório no Novo Mundo. Toda formação social escravista dessa área estava vinculada, de maneira determinante, ao comércio de prata, ouro, fumo, açúcar, algodão e outros produtos coloniais. Esses fenômenos, protegidos pela ação do Estado e combinados com os progressos da divisão do trabalho social e da tecnologia, constituíram, em conjunto, as condições da transição para o modo capitalista de produção. Assim, para compreender em que medida o mercantilismo "prepara" o capitalismo, é necessário que a análise se detenha nos desenvolvimentos das forças produtivas e das relações de produção. Mas para compreender esses desenvolvimentos é preciso situá-los no âmbito das transformações estruturais englobadas na categoria acumulação primitiva. Nesse sentido é que a acumulação primitiva expressa as condições históricas da transição para o capitalismo. Foi esse o contexto histórico no qual se criou o trabalhador livre, na Europa, e o trabalhador escravo, no Novo Mundo. Sob esses aspectos, pois, o escravo, negro ou mulato, índio ou mestiço, esteve na origem do operário. (Idem, p. 8)

Evidencia-se ainda, que para o autor "a exploração do trabalho compulsório, em especial do escravo, estava subordinada aos movimentos do capital comercial europeu" (Idem). Ele observa que a expansão e o funcionamento do capital mercantil cria um paradoxo, que se dá pela coexistência do trabalho livre e do trabalho escravo. Segundo Ianni (1978, p. 12)IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978., "no limite, o escravo estava ajudando a formar-se o operário", ou seja, a escravidão "estava dinamicamente relacionada com o processo de gestação do capitalismo na Europa". Se por um lado a análise de Ianni (1978)IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. aponta a relação entre a escravização efetivada nos territórios coloniais e a formação do proletariado europeu, por outro, essas mesmas reflexões são decisivas à compressão do processo de escravização como condição necessária ao desenvolvimento do capitalismo.

Marx (2013, p. 514)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Versão pdf. evidencia que a acumulação primitiva é "prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida". De acordo com ele (p. 515), "ela aparece como ‘primitiva’ porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde". Considerando tais aspectos, o que Ianni (1978)IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. demonstra - conforme já mencionado - é que a escravidão é um dos aspectos constituintes do capitalismo e trará diferentes implicações nas diferentes partes do mundo. Ao encontro dessa perspectiva, Florestan Fernandes (2007, p. 260)FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007. esboça questões que coadunam com o discorrido, afirmando que "como a economia de trabalho livre se organizou sobre um patamar pré-capitalista e colonial, seria lamentável se ignorássemos como as determinações de raças se inseriram e afetaram as determinações de classes". Mas no que esses aspectos afetam a formação da classe trabalhadora brasileira?

Tem-se, aqui, elementos que dão condições para pensar acerca das especificidades da classe trabalhadora brasileira, em uma realidade na qual a escravidão é, sumariamente, parte constitutiva do capitalismo, servindo historicamente ao desenvolvimento do capitalismo desde a sua gênese.

Um dos elementos marcantes que garantiu o lugar da escravidão nesse processo, perpetuando-o por outros meios, foi a difusão das teorias racialistas. Vale dizer que as teorias racialistas não foram suspensas com a abolição da escravatura. Ao contrário, essas teorias raciais que, ao longo da história, fizeram da diferença, desigualdade, foram incorporadas na vida social brasileira e imbricadas ao sistema capitalista, passando a determinar as formas de organização do trabalho. Clóvis Moura, em seu livro História do negro brasileiro (1992), ao tratar da crise do sistema escravista no Brasil afirma que, antes mesmo do fim da escravidão, se cria no país o mito da superioridade do trabalhador branco.

[...] de um lado aumenta a demanda internacional pelo café e, de outro, aumenta o preço do escravo internamente. Isto levará a que alguns segmentos, mercantis ou com capitais paralisados com a extinção do tráfico, se organizem no sentido de suprir a procura de braços. Mas, como esses segmentos visavam uma taxa de lucro elevada e altamente compensadora, não irão recrutar o trabalhador nacional não branco e em particular o negro. Essa mão de obra é descartada já antes da abolição, e se cria o mito da superioridade do trabalhador branco importado que traria, consigo, os elementos culturais capazes de civilizar o Brasil. (Moura, 1992MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992., p. 56)

Ou seja, de acordo com Moura, ainda que a mão de obra branca imigrante fosse mais cara, e mesmo que sem experiência e condições técnicas para o trabalho aqui exigido, o "trabalhador branco importado traria consigo os elementos culturais capazes de civilizar o Brasil". Desta forma, a mão de obra negra "é descartada já antes da abolição", a partir de uma concepção de superioridade racial branca, pautada no parecer "científico" higienista. Tais aspectos se associam e dão forma à política de branqueamento no país, que determina historicamente que o negro - para ser "aceito" - precisa se enquadrar nos padrões da "civilidade branca", ou seja, no "mundo dos brancos", como analisa Florestan Fernandes em sua obra,

O negro foi exposto a um mundo social que se organizou para os segmentos privilegiados da raça dominante. Ele não foi inerte a esse mundo. Doutro lado, esse mundo também não ficou imune ao negro. Todos os que leram Gilberto Freyre sabem qual foi a dupla interação, que se estabeleceu nas duas direções. Todavia, em nenhum momento essas influências recíprocas mudaram o sentido do processo social. O negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como "igual". Quando se dá a primeira grande revolução social brasileira, na qual esse mundo se desintegra em suas raízes - abrindo-se ou rachando-se através de várias fendas, como assinalou Nabuco - nem por isso ele contemplou com equidade as "três raças" e os "mestiços" que nasceram de seu intercruzamento. Ao contrário, para participar desse mundo, o negro e o mulato se viram compelidos a se identificar com o branqueamento psicossocial e moral. Tiveram de sair de sua pele, simulando a condição humana-padrão do "mundo dos brancos". (Fernandes, 2007FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007., p. 33, grifos no original)

A análise de Moura (1992, p. 62)MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. coaduna com o discorrido por Florestan Fernandes, indicando em seu trabalho como a política de branqueamento operou já no fim da escravidão, evidenciando que "o trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado", "o ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas". Neste sentido, para Moura (Idem), "o negro, ex-escravo, é atirado como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o racismo é remanipulado" o que cria "mecanismos de barragem para o negro em todos os níveis da sociedade, e o modelo do capitalismo dependente é implantado, perdurado até hoje". Ou seja, no caso brasileiro, esses elementos demarcam o lugar que o Brasil ocupará na divisão internacional do trabalho, já no capitalismo.

Sobre as marcas desse processo, o "retrato das desigualdades de gênero e raça" publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, aponta informações que dão mostras dos níveis de subalternização e exploração que se perpetuam atualmente, tais como:

A taxa de desocupação dos homens passou de cerca de 5%, em 1995, para, aproximadamente, 6%, em 2009, ao passo que, para as mulheres, o resultado variou de cerca de 7% para 11%, em relação aos mesmos intervalos considerados. O desemprego é também uma realidade permeada de desigualdades de gênero e raça. Assim, a menor taxa de desemprego corresponde à dos homens brancos (5%), ao passo que a maior remete às mulheres negras (12%). No intervalo entre os extremos, encontram-se as mulheres brancas (9%) e os homens negros (7%). (Ipea, 2011IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4. ed. Brasília: Ipea, 2011. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf. Acesso em: 10 dez. 2017.
http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revis...
, p. 27)

[...]

Quando se combinam as desigualdades de gênero e raça, percebe-se que as diferenças se acentuam: enquanto, em 2009, os homens brancos possuíam o maior índice de formalização (43% com carteira assinada), as mulheres negras apresentavam o pior (25% com carteira assinada). (Idem)

[...]

Finalmente, a distribuição por setor de atividade é igualmente importante para qualificar o padrão de inserção da população no mercado. É possível verificar que o setor de serviços apresentou um aumento expressivo no período analisado, tanto para os homens, quanto para as mulheres ocupadas, embora seu detalhamento revele peculiaridades. Os dados evidenciam uma clara segmentação ocupacional, tanto relacionada ao gênero, quanto à raça. As mulheres, especialmente as negras, estão mais concentradas no setor de serviços sociais (cerca de 34% da mão de obra feminina), grupo que abarca os serviços de cuidado em sentido amplo (educação, saúde, serviços sociais e domésticos). Já os homens, sobretudo os negros, estão sobrerrepresentados na construção civil (em 2009, este setor empregava cerca de 13% dos homens e menos de 1% das mulheres). O setor agrícola apresentou queda generalizada na oferta de empregos, mas segue sendo atividade relevante, especialmente para os homens e na região Nordeste. Já o nível de emprego na indústria manteve-se relativamente estável (com leve aumento), sobretudo no Sul e Sudeste, seguindo empregando mais homens, sobretudo brancos. (Idem)

Ainda sobre esse processo de marginalização, delineado por Moura (1992)MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992., é relevante destacar que a condição da cor agrava-se quando observada a condição de gênero. Pode-se verificar que dentre as taxas de desemprego, a menor delas está entre homens brancos, e a maior, entre as mulheres negras. Além disso, os dados demonstram o mesmo fluxo quando se trata da formalização do trabalho. Ao tratar da distribuição do trabalho, o estudo citado anteriormente demonstra que as mulheres negras - em sua maioria - ocupam o setor de serviços, e o homem negro, o espaço de trabalho da construção civil.

Ora, se o "ex-escravo é jogado como sobra na periferia do trabalho livre", parece que a ele seria destinado o exército industrial de reserva, já que sua mão de obra era considerada "inferior" em detrimento da mão de obra branca. Para Marx (2013, p. 707)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Versão pdf., o exército industrial de reserva corresponde a "uma população trabalhadora excedente" que é um "produto necessário da acumulação ou desenvolvimento da riqueza com base capitalista" porque, nas palavras dele "essa superpopulação se converte" em "alavanca de acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista". Ou seja, "ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele tivesse criado por sua própria conta", sendo que a formação desse exército permite que o valor da força de trabalho seja regulado de acordo com o mercado.

Contudo, o que a história nos aponta é que o trabalhador escravizado - pelo menos no caso brasileiro - ocupou o lugar de "sobra da sobra", não estando qualificado nem mesmo a ocupar lugar no exército industrial de reserva. Florestan Fernandes, em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, explica esse processo ao sinalizar que,

Nas zonas onde a prosperidade econômica desaparecera, os senhores já se haviam desfeito do excesso de força de trabalho escravo, negociando-a com os fazendeiros do leste e do sul. Para eles, a abolição era uma dádiva: livravam-se de obrigações onerosas ou incômodas, que os prendiam aos remanescentes da escravidão. Nas zonas onde a prosperidade era garantida pela exploração do café, existiam dois caminhos para corrigir a crise gerada pela transformação da organização do trabalho. Onde a produção se encontrava em níveis baixos, os quadros da ordem tradicionalista se mantinham intocáveis: como os antigos libertos, os ex-escravos tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semiocupados da economia de subsistência do lugar ou de outra região. Onde a produção atingia níveis altos, refletindo-se no padrão de crescimento econômico e de organização do trabalho, existiam reais possibilidades de criar um autêntico mercado de trabalho: aí, os ex-escravos tinham de concorrer com os "trabalhadores nacionais", que constituíam um verdadeiro exército de reserva (mantido fora de atividades produtivas, em regiões prósperas, em virtude da degradação do trabalho escravo) e, principalmente, com a mão de obra importada da Europa, com frequência constituída por trabalhadores mais afeitos ao novo regime de trabalho e às suas implicações econômicas ou sociais. Os efeitos dessa concorrência foram altamente prejudiciais aos antigos escravos, que não estavam preparados para enfrentá-la. Mas correspondiam aos interesses dos proprietários de terras e donos de fazendas, tanto quanto aos mecanismos normais da ordem econômica emergente. Em consequência, ao contrário do que se poderia supor, em vez de favorecer, as alternativas da nova situação econômica brasileira solapavam, comprometiam ou arruinavam, inexoravelmente, a posição do negro nas relações de produção e como agente de trabalho. (Fernandes, 2008______. A integração do negro na sociedade de classes. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008., p. 31-32, grifos nossos)

O autor continua,

[...] ainda nos fins do século XIX, todas as posições estratégicas da economia artesanal e do pequeno comércio urbano eram monopolizadas pelos brancos e serviam como trampolim para as mudanças bruscas de fortuna, que abrilhantam a crônica de muitas famílias estrangeiras. (Idem, p. 33-34; grifos nossos)

Importa registrar que nesse período tem-se uma alta taxa de entrada de imigrantes (trabalhadores brancos) no país. Skidmore (2012, p. 87)SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., constata que "ocorreu um rápido aumento na população ‘branca’ entre 1890 e 1950", sendo que,

A porcentagem de brancos, tal como definidos pelo censo oficial, cresceu de 44% em 1890 para 62% em 1950. O declínio concomitante da população de cor foi mais intenso na categoria mulatos entre 1890 e 1940, caindo de 41% para 21%, embora aumentasse para 27% em 1950 [...].

Sendo assim, os ex-escravos e/ou libertos passam a ocupar o que aparece em O capital como o segmento "mais baixo da superpopulação relativa". Para Marx (2013, p. 470-471)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Versão pdf., "o sedimento mais baixo da superpopulação relativa habita, por fim, a esfera do pauperismo". De acordo com ele, "abstraindo dos vagabundos, delinquentes, prostitutas, em suma, do lumpemproletariado propriamente dito, essa camada social é formada por três categorias", sendo:

Em primeiro lugar, os aptos ao trabalho. Basta observar superficialmente as estatísticas do pauperismo inglês para constatar que sua massa engrossa a cada crise e diminui a cada retomada dos negócios. Em segundo lugar, os órfãos e os filhos de indigentes. Estes são candidatos ao exército industrial de reserva e, em épocas de grande prosperidade, como, por exemplo, em 1860, são rápida e massivamente alistados no exército ativo de trabalhadores. Em terceiro lugar, os degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho. Trata-se especialmente de indivíduos que sucumbem por sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho, daqueles que ultrapassam a idade normal de um trabalhador e, finalmente, das vítimas da indústria - aleijados, doentes, viúvas etc. -, cujo número aumenta com a maquinaria perigosa, a mineração, as fábricas químicas etc. O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército trabalhador ativo e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles formam uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. O pauperismo pertence aos faux frais [custos mortos] da produção capitalista, gastos cuja maior parte, no entanto, o capital sabe transferir de si mesmo para os ombros da classe trabalhadora e da pequena classe média. (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Versão pdf., p. 470-471, grifos nossos)

Não se pretende aqui transpor o que Marx (2013)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Versão pdf. descreveu como "sedimento mais baixo da superpopulação relativa", de maneira mecânica para a realidade brasileira quando tratamos do fim da escravidão, mas sim refletir sobre as interfaces que permeiam essa categoria, quando pensamos as especificidades de nossa formação social. Ou seja, entende-se que no caso brasileiro não é necessário que o negro seja "degradado, maltrapilho, incapacitado para o trabalho", para que componha esse lugar, porque o racismo já destinou a ele - pela sua insígnia - o lugar de "incapaz", "inferior", "vagabundo" e de tantos outros atributos que o subjugam. Tais aspectos traduzem aos negros o adjetivo de "classe perigosa", denominação clássica - da administração pública do século XIX - atribuída a qualquer pessoa que fosse um potencial desagregador da ordem.

Sidney Chalhoub (1996)CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ao descrever historicamente os processos de expulsão e higienização dos cortiços no início do século XX, explicita as relações e disputas que perfazem esse espaço, formado predominantemente pela população negra. Dentre outras questões, o autor evidencia, a partir daquele ambiente, que a utilização do conceito de "classes perigosas" no Brasil, desde seu princípio, fez com que "os negros se tornassem os suspeitos preferenciais" (p. 23). De acordo ele,

Na discussão sobre repressão à ociosidade em 1888, a principal dificuldade dos deputados era imaginar como seria possível garantir a organização do mundo do trabalho sem recurso às políticas de domínio características do cativeiro. Na escravidão, em última análise, a responsabilidade de manter o produto direto atrelado à produção cabia a cada proprietário/senhor individualmente. Este organizava as relações de trabalho em sua unidade produtiva através de uma combinação entre coerção explícita e medidas de proteção e "recompensas" paternalistas - uma combinação sempre arriscada, aprendida no próprio exercício cotidiano da dominação. Com a desagregação da escravidão, e a consequente falência das práticas tradicionais, como garantir que os negros, agora libertos, sujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumulação de riquezas de seus senhores/patrões? (Chalhoub, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 23-24)

O Código Penal de 1890 (Decreto n. 847/1890) oferece indícios desses processos. Além da evidente criminalização da pobreza que ofereceria "perigo" à segurança pública, em seu capítulo XIII, intitulado "Dos vadios e capoeiras", associa a prática desta última a uma infração e, consequentemente, à sua criminalização, como se pode observar nos artigos que seguem,

Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:

Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.

Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.

Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400.

Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.

Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes. (Brasil, 1890BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Institui o Código Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 10 dez. 2017.
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decr...
)

Apesar de o Código Penal não explicitar de maneira direta a criminalização da pobreza e a definição de classe perigosa associada à insígnia de raça (pretos e mestiços), evidencia essa relação ao tratar da capoeira, por exemplo, prática esta de resistência da população negra afrodescendente desde a escravidão.

Também fazia parte do discurso entre os parlamentares da época uma forte produção de estereótipos em torno da população negra. Sobre isso, é notória as duas ideias sobre os "vícios" dos libertos. Uma delas imputa o "vício" como resultado das condições de vida nos cativeiros quando escravos, e a outra como algo que não se pode transformar, porque é resultante de sua própria natureza. Mesmo que apresente diferentes hipóteses acerca do que provocaria os "vícios" do liberto, é consenso o fato de que ele era "possuidor de ‘todos os vícios’".

De início, o deputado afirma algo que sugerimos há pouco: o "Estado" passa a ter o "dever imperioso" de agir decididamente na política de controle social dos trabalhadores. Em seguida, encontramos novamente uma certa confusão de ideias. Ao tentar explicar o que ele pressupõe sem nenhum esforço de comprovação - o "fato" de o liberto ser possuidor de "todos os vícios" -, nosso deputado mostra-se indeciso. Primeiramente, atribui os tais vícios dos negros a "seu antigo estado": as condições de vida no cativeiro seriam as responsáveis pelo suposto despreparo dos ex-escravos para a vida em liberdade. Logo adiante, todavia, e ainda na mesma frase, o parlamentar argumenta que a lei de 13 de maio não poderia mesmo ter abolido os vícios dos libertos, pois uma lei não pode transformar "o que está na natureza". Neste caso, o deputado já mudou claramente de conversa: os "defeitos" dos negros não se aplicam a partir de um determinado fato social - a escravidão -, porém se situam num campo extrínseco à história - a "natureza". Insinuam-se aqui, sem dúvida, as famigeradas teorias racistas, que se tornariam mais influentes nas décadas seguintes; e a consequência disso é o que os "defeitos" dos negros podem ser pensados como insuperáveis, tornando-se eles, assim, membros potencialmente permanentes das classes perigosas. (Chalhoub, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 25)

A intensa produção de déficits no corpo negro produziu, e ainda produz, marcas de toda ordem: na composição da classe trabalhadora, marcada pelo alijamento da população negra da relação salarial formal - exemplo disso é a formalização recente do trabalho das empregadas domésticas -; na segregação racista promovida pelo higienismo, na produção de inferioridade e estigma.

Considerações Finais

Os estudos e as investigações dão mostras que a constituição da classe trabalhadora brasileira possui não apenas a exploração própria do capitalismo, mas é marcada por um profundo processo de subalternização demarcado pela escravização e pelo racismo.

Além de compor o segmento mais baixo da superpopulação relativa, reduzidos ao pauperismo como "peso morto do exército industrial de reserva", como "custos mortos" que o capital repassa para a classe trabalhadora, os negros e negras contam com pouco reconhecimento pelos demais sujeitos que compõem a classe trabalhadora.

Como se tudo isso não bastasse, o capitalismo no Brasil constituiu o racismo como poderoso veículo de fratura na classe trabalhadora. Essa fratura funciona duplamente, isto é, serve para criar formas de opressão que maximizam a exploração e, tragicamente, para produzir uma desconfiança no interior da própria classe trabalhadora, ou seja, através da produção do medo no seu próprio interior, entre seus próprios pares, fragiliza-a politicamente enquanto sujeito capaz de promover a revolução.

Referências bibliográficas

  • BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Institui o Código Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 10 dez. 2017.
    » http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html
  • CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2018
  • Aceito
    18 Jun 2018
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