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O direito constitucional ao Benefício de Prestação Continuada (BPC): o penoso caminho para o acesso

The Constitutional Right to the Continued Payment Benefit (BPC): the arduous path to its access

Resumo:

O BPC é o único benefício da Assistência Social garantido pela Constituição Federal de 1988 no valor de um salário mínimo mensal. Apesar de ser imprescindível na vida dos beneficiários e de suas famílias, tendo mais de 4,5 milhões de benefícios mantidos, a materialização do BPC em dois espaços (Assistência Social e INSS), a burocracia estatal, a falta de informações e, principalmente, a (i)lógica perversa dos critérios tornam penoso o caminho percorrido pelos usuários.

Palavras-chave:
Benefício de Prestação Continuada; Seguridade Social; Assistência Social; Previdência Social

Abstract:

The BPC is the only benefit from Social Assistance guaranteed by the Federal Constitution of 1988 in the amount of one minimum monthly salary. It was found that, despite of being indispensable in the lives of its more than 4,5 million recipients and their families, BPC’s materialization in two spaces (Social Assistance and INSS), the bureaucracy, the absence of information, and especially the perverse (i)logic of its criteria make an arduous path for its users to go through.

Keywords:
Continued Payment Benefit; Social Welfare; Social Assistance; Social Security

Introdução

Atualmente, o Benefício de Prestação Continuada atende 2.527.257 pessoas com deficiência e 2.022.221 idosos, totalizando 4.549.478 beneficiários.1 1 Dados referentes a janeiro de 2018. Fonte: Síntese/Dataprev. Esses dados revelam a importância e a abrangência do BPC, pois é bastante significativo o número de pessoas e famílias que passaram a ter direito a um salário mínimo mensal desvinculado da necessidade de contribuição direta.

O benefício foi reivindicado no processo de redemocratização do país, vivenciado na efervescência dos movimentos sociais e políticos na década de 1980, depois de um duro período de ditadura militar. Conforme Boschetti (2006)BOSCHETTI, I. Seguridade Social e trabalho: paradoxo na construção das políticas de previdência e assistência social no Brasil. Brasília: Letras Livres, Editora UnB, 2006., o benefício que até então fazia parte da Previdência Social, a Renda Mensal Vitalícia (RMV), passou a ser pensado na Assistência Social. A RMV, criada em 1974 pela Lei n. 6.179, era um benefício no valor de 60% do salário mínimo, destinado às pessoas idosas com setenta anos ou mais e aquelas incapacitadas para o trabalho, que tivessem sido filiadas à Previdência por pelo menos doze meses, pessoas que tivessem exercido atividade remunerada por cinco anos, consecutivos ou não, mesmo sem filiação à Previdência, e aquelas que tivessem ingressado na Previdência após completar sessenta anos sem direito aos benefícios regulamentares e que não auferissem renda superior ao valor da RMV. Portanto, o acesso a esse benefício tinha como pressuposto a filiação ao regime previdenciário ou a comprovação de trabalho e não tinha o valor de um salário mínimo,2 2 Somente em 1991 o valor passou para um salário mínimo, conforme o artigo 5º da Constituição Federal, que preceitua a equiparação de todo benefício previdenciário a esse valor. já o BPC está desvinculado de contribuição direta3 3 Há os benefícios previdenciários para o segurado especial garantidos na CF/88. Embora não tenha a contribuição direta à Previdência Social, os trabalhadores não estão isentos de contribuição, que vem do excedente comercializado de sua produção e também do pagamento de salários. Por não terem a contribuição direta, são submetidos a rigorosas normas quando requerem os benefícios. e da necessidade de comprovação de trabalho, o que é um marco no Brasil.

O BPC foi garantido na Constituição Federal de 1988 como um dos objetivos da Política de Assistência Social da seguinte forma: um salário mínimo mensal a pessoa com deficiência4 4 O termo usado nas legislações para se referir à pessoa com deficiência era “pessoa portadora de deficiência” ou “deficiente”. Após a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas de 2006, que teve seu protocolo facultativo assinado pelo Brasil em 2007, instituiu-se que a terminologia é “pessoa com deficiência”. e ao idoso que comprovem não ter meio de prover a própria subsistência e nem tê-la provida por sua família. Contudo, ficou a cargo da legislação específica a definição dos critérios para a gestão, a manutenção, para o financiamento e o acesso, e até então a Assistência Social não tinha o status de direito. Somente na mencionada Constituição é que foi assegurada como Política de Seguridade Social, junto à Saúde e à Previdência Social.

Em meados da década de 1990, sob a influência do ideário neoliberal,5 5 O neoliberalismo é impulsionado no governo Fernando Collor, intensifica-se e se consolida no governo Fernando Henrique Cardoso, expressa sua continuidade nos governos Lula e Dilma Rousseff e se aprofunda no governo ilegítimo de Michel Temer. as retrações em relação ao que foi garantido para a Seguridade Social e para as outras políticas já têm início. Assim, apesar do reconhecimento legal, o processo de transformação das prerrogativas constitucionais em direitos não aconteceu conforme prescrito. As políticas públicas foram diretamente atingidas pelas contrarreformas do Estado, que restringem direitos com o argumento de redução de custos, privilegiando o privado em detrimento do público e deixando explícita a indicação de ausência da democratização da gestão da Seguridade Social.

Essa realidade impactou na regulamentação da Política de Assistência Social. Além disso, os governos posteriores à aprovação da CF/88 não tinham interesse em aprovar uma lei que organizasse essa política, que, via de regra, era utilizada como manobra política para fins eleitoreiros. Nesse contexto, a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) foi aprovada cinco anos após a aprovação da Constituição, em dezembro de 1993 (Lei n. 8.742).

No processo de regulamentação foram previstos critérios perversos para o acesso ao benefício: idade de setenta anos ou mais para o idoso, a condição de incapacidade para a vida independente e para o trabalho para a pessoa com deficiência e para ambas a renda per capita familiar no valor inferior a ¼ do salário mínimo, bem como revisão bienal. Esses critérios foram aprovados de forma a delimitar ao máximo o alcance do BPC; e, por mais que ao longo dos anos tenham sido alterados, o critério que mais impacta na garantia do direito, o da renda, não sofreu nenhuma alteração.6 6 Nas conferências da Assistência Social, espaço de avaliação e de proposições para a política, há a discussão sobre a alteração desse critério e propostas para aumento da renda per capita, assim como a alteração de outros critérios.

Somente em janeiro de 1996 a concessão do BPC foi iniciada - sete anos após a garantia constitucional - através do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), órgão responsável pela política previdenciária. No INSS predomina-se a ideia de seguro, de tal maneira que apenas quem trabalha formalmente ou que seja contribuinte individual7 7 Atualmente é possível contribuir como autônomo com 20% do salário mínimo até o teto previdenciário e como facultativo com 11% do salário mínimo, e ainda como facultativo de baixa renda e microempreendedor individual (MEI) em 5% do salário mínimo. Para contribuir não é necessário vínculo com o trabalho. Portanto, estar filiado não significa estar trabalhando, mas sim ter condições de pagar. pode ter acesso aos benefícios. O direito a um benefício no valor de um salário mínimo, sem contribuição direta, fere a ética capitalista. O fato de ser operacionalizado em um órgão responsável por benefícios previdenciários, vinculados em grande parte à contribuição direta, acarretou a construção do BPC como um “intruso” à realidade do INSS (Maciel, 2008MACIEL, C. A. B. Benefício de Prestação Continuada: as armadilhas. Presidente Venceslau: Letras à Margem, 2008., p. 142).

Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo analisar a regulamentação e a operacionalização do BPC. Inicia-se com um breve panorama da garantia do benefício, sua aprovação e regulamentação e em seguida apresenta a dicotomia entre Previdência e Assistência Social e os entraves no processo de concessão, os quais tornam penoso o caminho percorrido pelos usuários.

A garantia do BPC e a (i)lógica perversa dos critérios

No processo de construção da Constituição na década de 1980 foram criadas subcomissões para pensar as propostas no âmbito da Seguridade Social. Por ser na época uma área com pouca visibilidade social e política, a Assistência Social não se constituiu como objeto de reivindicações. E, conforme pesquisa realizada por Boschetti (2006)BOSCHETTI, I. Seguridade Social e trabalho: paradoxo na construção das políticas de previdência e assistência social no Brasil. Brasília: Letras Livres, Editora UnB, 2006., não se identificou demandas em torno dessa política, mas sim reivindicações pelo direito a um salário mínimo para pessoas com deficiência e idosos. Para se estabelecer o valor de um salário mínimo para o BPC - que até então não era nomeado assim -, houve muitas discussões e embates na Constituinte. Mesmo com propostas contrárias, o benefício foi aprovado com esse valor.

Na elaboração da Loas, por ser a área em que havia menos organização política e institucional, os grupos de trabalho tiveram que iniciar sem uma base constituída, resultando em muitos obstáculos para a propositura da lei. Havia diferentes propostas em torno da regulamentação do BPC, e a lógica da diminuição do alcance do benefício era a que norteava a maior parte delas.

Os representantes do Ministério da Previdência Social tinham dois principais argumentos: o primeiro, que esse projeto tinha uma imprecisão conceitual entre Previdência e Assistência ao instituir um benefício sem prévia contribuição; o segundo, que esse benefício poderia desmotivar o ingresso no trabalho formal (Boschetti, 2006BOSCHETTI, I. Seguridade Social e trabalho: paradoxo na construção das políticas de previdência e assistência social no Brasil. Brasília: Letras Livres, Editora UnB, 2006.). Quanto à imprecisão conceitual, o fato de na Assistência Social ser garantido um benefício sem contribuição direta não a desqualifica; pelo contrário, insere essa política no âmbito da proteção social brasileira. O segundo argumento traz o entendimento de que os trabalhadores poderiam “optar” pela informalidade, já que teriam acesso a um benefício assistencial na velhice. Esses argumentos foram usados também nas propostas de contrarreforma da Previdência Social de 1998 e de 2016, para justificar o aumento da idade para o idoso e a desvinculação do valor do salário mínimo.

No capitalismo, a permanência no trabalho informal ou estar desempregado não é uma escolha, mas uma condição do sistema. Na divisão social do trabalho e frente à mercantilização da vida, as pessoas “são obrigadas a vender sua força de trabalho e a vendê-la quando consegue e onde consegue. Estão, portanto, subordinadas a uma escravizante divisão do trabalho” (Iasi, 2013IASI, M. L. A maldição e a emancipação do trabalho (ou como a humanidade dançou e como ela pode dançar). In: SILVA, J. F. S. (Org.). Sociabilidade burguesa e Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 45-61., p. 57). A sociabilidade burguesa, para manter sua dominação, oprime através de mecanismos ideológicos, justificando a exploração da força de trabalho como natural, conciliando-a com a ideia de igualdade e liberdade.

Assim, a regulamentação da Assistência Social seguiu a lógica propagada pelo Consenso de Washington,8 8 Esse Consenso partiu de uma convenção realizada em 1989, na capital dos EUA, Washington, onde foram discutidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo governo norte-americano os caminhos políticos necessários para implementação do programa de estabilização. de que o Estado deve apenas se comprometer com o alívio das situações mais aviltantes de pobreza. Nesse sentido, os programas, benefícios e serviços têm uma abordagem compensatória e focalizada, e o BPC foi assegurado sob essa perspectiva.

Ao longo dos anos, muitas leis, decretos e normativas foram estabelecidos para a concessão, manutenção e revisão do BPC, e somente a partir de janeiro de 1996 teve início a operacionalização do benefício no INSS, com o Decreto n. 1.744/95, que determinou que a concessão da RMV seria extinta a partir dessa data. Nesse decreto foram feitas imposições desnecessárias e que contrariam a garantia constitucional, entre elas a comprovação da ausência de renda, e não somente a comprovação de renda inferior a ¼ do salário mínimo per capita familiar, e que o laudo emitido pelo SUS apresentado pela pessoa com deficiência deveria ser submetido à análise da perícia médica do INSS. Não bastassem os critérios perversos, ainda foram aprovadas normativas que excediam a legislação.

Esse decreto assegurou também que o INSS, ou o órgão autorizado, quando necessário, promoveria verificações junto a outras instituições de Previdência ou de Assistência Social, bem como junto aos atestantes ou vizinhos do requerente para comprovação de renda. Mesmo não estando em vigor desde 2007, o servidor do INSS que faz a habilitação do BPC - isso acontece também na análise de outros benefícios -, em geral o técnico do seguro social,9 9 Com a reestruturação dos cargos em 2004, através da Lei n. 10.855, foi instituída a carreira do seguro social. Os cargos de nível auxiliar e intermediário passaram a ser denominados “técnico do seguro social” e os cargos de nível superior, passaram a “analista do seguro social”, que pode ter formação superior em qualquer área ou formação específica. Em geral, os técnicos do seguro social são os profissionais que atendem os requerentes, recebem os documentos, protocolam, habilitam e fazem a análise do benefício. pode solicitar documentos adicionais e pesquisa externa quando entende ser necessária a comprovação da renda e da composição familiar. Ainda que as informações constantes no requerimento do BPC sejam declaratórias, verifica-se a necessidade de fiscalização em relação a essas informações, ou seja, se são verídicas ou não.

Essa relação de fiscalização conforma as relações sociais no INSS. É importante esclarecer que nem sempre essa pesquisa externa é feita na casa do requerente. O servidor vai à casa de vizinhos com o propósito de questionar sobre sua vida. Isso remete à maneira como, historicamente, são tratadas as pessoas que solicitam um benefício ou serviço da Assistência Social, sendo sujeitas a situações que expõem a vida delas.

A composição familiar para fins de análise de renda sofreu algumas mudanças, mantendo sempre nos textos que são as pessoas que vivem sob o mesmo teto. Atualmente é considerada família, para fins de BPC: o requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados.10 10 No início do processo de concessão era considerada família todos que viviam sob o mesmo teto. A partir de 1998, com a Lei n. 9.720, o conceito de família foi alterado para: cônjuge ou companheiro, filho não emancipado e o menor de 21 anos ou inválido. Explicita-se a contradição: um benefício pessoal e intransferível exige a comprovação de renda de pai e mãe e de irmãos e filhos solteiros, não havendo uma análise para além dos rendimentos.

Em relação à idade para acesso ao BPC, no Decreto n. 1.744 foi garantido que, a partir de 1º de janeiro de 1998, a idade do idoso para acesso ao benefício11 11 No artigo 38 da Loas estava prevista essa alteração. seria reduzido para 67 anos e, em 1º janeiro de 2000, para 65 anos. Contudo, isso não se concretizou, pois a Lei n. 9.720 de 1998 instituiu que a idade para acesso ao BPC continuaria sendo 67 anos. Ao final de 2003, com a aprovação do Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741, um importante acontecimento na regulação dos direitos dos idosos,12 12 Em janeiro de 1994 foi aprovada a Política Nacional do Idoso, através da Lei n. 8.842; porém não foi tratado sobre o BPC, que havia sido regulamentado em dezembro de 1993 pela Loas. a idade foi reduzida para 65 anos, ainda que tenha sido instituído pelo Estatuto que idoso é aquele com idade igual ou superior a sessenta anos.

Outra garantia foi que o benefício concedido a uma pessoa idosa não será computado para fins do cálculo da renda familiar per capita para outro idoso. Mesmo com esse avanço, muitos idosos ainda não tiveram acesso ao BPC, pelo fato de não ter sido assegurado a todas as famílias que tenham duas pessoas idosas vivendo sob o mesmo teto; fica assegurado somente se os dois idosos forem beneficiários da Assistência Social, mas não da Previdência.

O aumento na concessão do benefício após essas mudanças, que passaram a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2004, demonstra o quanto o acesso à política previdenciária ainda não é presente na vida de milhões de trabalhadores. Em 2003, o número de benefícios mantidos para pessoas idosas era de 664.875; já em 2004, o número era de 933.164, havendo um aumento, em um ano, de 40,35% após a aprovação do Estatuto do Idoso.13 13 De 2001 para 2002 o aumento na concessão foi de 16,33%, e de 2002 para 2003 foi de 24,64%.

Um importante passo na luta pelos direitos das pessoas com deficiência foi a aprovação, pelo Decreto n. 6.214/07, da avaliação da deficiência e do grau de incapacidade14 14 A avaliação da deficiência inclui a avaliação social e a avaliação médica. Para a regulamentação dessa nova forma de avaliar a pessoa com deficiência era necessário que o INSS promovesse concurso público para contratação de assistentes sociais, já que havia nesse momento apenas 548 profissionais em todo o Brasil e somente 270 desempenhavam atividades específicas do Serviço Social, conforme relatório do CFESS (2008). Com o concurso realizado, a partir de junho de 2009 foram contratados, a princípio, novecentos assistentes sociais e, ao longo da vigência do concurso, esse número chegou a 1.350. Feito isso, a partir de julho de 2009 iniciou-se a avaliação social e médica baseada na CIF. para o acesso ao BPC, com base na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2001. Com isso, esse decreto apresentou uma nova perspectiva para a compreensão da pessoa com deficiência, embora tenha mantido em seu texto o conceito de incapacidade para o trabalho e para a vida independente posto pela Loas. A permanência desse conceito contradiz o novo entendimento de deficiência baseado na CIF.

Somente com a Lei n. 12.470, aprovada em agosto de 2011, essa expressão foi retirada da lei, permanecendo o entendimento de que pessoa com deficiência é, de acordo com o Artigo 20, § 2º, “aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (Brasil, 2011BRASIL. Lei n. 12.470, de 31 de agosto de 2011. Altera a Lei n. 8.742. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12470.htm>. Acesso em: 15 maio 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Assim, a concessão do BPC para pessoa com deficiência esteve por anos associada à incapacidade para o trabalho e para a vida independente. E pode-se afirmar que ainda está associada, visto que apesar de a introdução da avaliação da deficiência ter aberto a possibilidade de discussão do conceito de deficiência, o que pouco ocorria ou não ocorria no cotidiano do trabalho no INSS, a mudança na lei não assegura a apreensão do novo entendimento de deficiência pelos profissionais envolvidos na avaliação.

Em 2011 foi aprovada a Portaria Conjunta MDS/INSS n. 01, de 2011, que impôs o quesito de impedimento de longo prazo, fixado em dois anos, sendo esse analisado pelo perito médico. Ao avaliar o impedimento como de curto prazo, o benefício é indeferido, independentemente do resultado da avaliação da deficiência. O critério de longo prazo fragmentou o conceito de deficiência, pois a avaliação sobre a deficiência ser de curto prazo nem sempre leva em consideração a necessidade e o acesso a tratamentos para habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência.

A partir de novembro de 2016, com o Decreto n. 8.805, somente tem direito à avaliação da deficiência a pessoa que atender ao critério de renda. No caso de pedido de recurso ou pedido judicial, o requerente não terá o resultado da avaliação da deficiência. Isso ocorreu um ano após a aprovação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), Lei n. 13.146, de 2015. Um passo para assegurar direitos e outro na contramão desse avanço.

São tantas alterações ao longo de 25 anos que é difícil, inclusive, identificá-las no cotidiano de trabalho. Entre tantas leis, decretos e portarias, cabe refletir sobre o que, efetivamente, resultou em melhorias para os indivíduos que requerem o BPC e para os que são beneficiários. Parece que não foram tantos os avanços, ainda mais que muitos deles deveriam estar garantidos na Loas desde 1993. Entretanto, podem ser mencionados aqui: a alteração da idade para 65 anos, o fato de não se considerar o recebimento do BPC de uma pessoa idosa na contagem de renda para outra pessoa idosa, a inclusão da avaliação da deficiência baseada na CIF, o recebimento do BPC para a pessoa com deficiência concomitantemente à remuneração na condição de aprendiz, e a suspensão do benefício em caso de trabalho, em vez de seu cancelamento.15 15 Na Lei n. 12.435/11 foi assegurado que a cessação do benefício à pessoa com deficiência não impede nova concessão, mesmo que seja para ingresso no mercado de trabalho. E no Decreto n. 7.617/11 foi prevista a suspensão do pagamento do BPC por dois anos, em caráter especial, quando a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, mediante comprovação da relação trabalhista ou da atividade empreendedora, podendo o benefício ser reestabelecido com a cessação do contrato de trabalho.

A burocracia tem como objetivo, entre outros, a garantia da apropriação da mais-valia e a manutenção da ordem social de exploração da força de trabalho. Portanto, tantas mudanças nas leis não seriam de fato desenhadas para alterações que proporcionassem maiores condições de acesso e manutenção do BPC, levando em conta que as leis são propostas por um Congresso que responde aos interesses do capital. E por isso são aprovadas e implementadas sem nem mesmo passar pelas instâncias deliberativas da Política de Assistência Social, conforme a CF/88 assegurou.

Ao longo dos anos foram emitidas diferentes Ações Civis Públicas (ACP), que trazem mudanças no processo de análise em determinados períodos e locais. Recentemente foi aprovada a ACP n. 5044874-22.2013.7100/RS, de âmbito nacional,16 16 Houve ACP de âmbito regional, estadual e nacional que trouxeram importantes reflexões sobre os critérios do BPC. Aqui foi citada essa ACP pela importância em âmbito nacional. decidindo que as despesas decorrentes diretamente do tratamento e necessidades da pessoa com deficiência e do idoso devem ser analisadas pelo assistente social do INSS, com possibilidade de desconsideração do recorte de renda posto pela Loas. Caso o assistente social conclua que há o comprometimento da renda, o idoso terá imediatamente seu direito reconhecido e a pessoa com deficiência passará pela avaliação da deficiência. Contudo, o parecer social por essa ACP está vinculado à comprovação dos gastos e à negativa da prestação do serviço pela rede pública de saúde.

Há um avanço para a ampliação do BPC com o entendimento de que o critério da renda é de fato injusto, mas é importante ponderar que as famílias, mesmo que tenham renda per capita superior a ¼ do salário mínimo, nem sempre têm condições de custear tratamento de saúde. Além disso, a ACP vinculou, literalmente, a emissão do parecer social a comprovantes. Desse modo, o direito à saúde, quando negado, precisa ser comprovado e analisado para o acesso ao BPC. Um paradoxo da realidade brasileira: para acessar um direito constitucional é necessário que outro tenha sido negado.

Não bastassem os critérios e a burocracia, ainda há o processo de revisão, REVBPC. A primeira revisão, embora tenha sido prevista para 1997, oficialmente só aconteceu a partir de janeiro de 2000. Porém, no período de setembro de 1997 e fins de 1999 foram realizadas auditorias que cancelaram cerca de 40% dos benefícios em manutenção. Além disso, a revisão dos laudos emitidos pelo SUS, a partir da Lei n. 9.720/98, também foi uma forma de inibir a concessão do BPC para pessoas com deficiência (Silva, 2004SILVA, M. L. L. Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social: impacto e significado social. In: SPOSATI, A. (Org.) Proteção social de cidadania: inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004. p. 227-237.).

Nos moldes como foi prevista pela Loas, a revisão se configura em uma medida de caráter fiscalizatório e restritivo, dado que é pouco provável que o idoso e a pessoa com deficiência, com renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo mensal, tenham condições de superar essa situação e não mais estar em critérios tão restritivos em apenas dois anos. Ademais, com as constantes alterações nos critérios de acesso por intermédio das inúmeras leis e normativas, principalmente a mudança da composição familiar, muitos beneficiários podem estar nas mesmas condições que possibilitaram o acesso ao BPC, mas diante dessas alterações, é possível que não estejam mais. Verificado o período de recebimento “indevido”, são cobrados os últimos cinco anos. Sendo assim, a pessoa com deficiência e o idoso passam de beneficiárias a devedoras,17 17 Os valores cobrados chegam a R$ 58.000,00 reais. mesmo que estejam em situação de extrema pobreza.

A atual revisão vem sendo realizada por cruzamento dos dados dos sistemas governamentais. Os beneficiários e/ou seus responsáveis têm um prazo para defesa. Fazendo-a ou não, findado o prazo, o benefício é suspenso e o beneficiário tem outro prazo para apresentar recurso. Em busca de melhores condições de vida ou por necessidade imediatas, as famílias mudam de residência, de cidade, alterando também a composição familiar, mas não necessariamente mudando as condições que deram acesso ao BPC. Contudo, o que vale nesse processo é a letra da lei e a intenção de redução do BPC sob a argumentação de ser um “gasto” excessivo, conforme artigos disseminados pela equipe econômica do governo para justificar a inserção do benefício na contrarreforma da Previdência.18 18 Disponível em: <https://www.fazenda.gov.br/sala-de-imprensa/artigos/2017/reforma-distributiva>. Acesso em: abr. 2017.

O penoso caminho para o acesso

Por que o Benefício da Assistência Social é operacionalizado pelo INSS, órgão responsável pela política previdenciária? A Assistência Social, recentemente garantida como política pública, não tinha estrutura para atender aos solicitantes do benefício. Do mesmo modo, o BPC precisaria ser operacionalizado pelo governo federal, pois, além da dificuldade em controlar a concessão, se ele estiver sob a responsabilidade das prefeituras municipais, há o fato de ser um benefício reclamável judicialmente.

O INSS tem experiência com a organização e o controle dos benefícios previdenciários e dispõe de mecanismos operacionais e judiciais para operacionalizar um benefício federal. Dessa forma, mesmo que não havendo Agência da Previdência Social (APS) na maior parte das cidades, esse foi o órgão indicado para a concessão e manutenção do BPC.

No Brasil há 5.570 municípios, segundo dados do IBGE, e há atualmente 1.553 Agências da Previdência Social19 19 Além dessas, há 86 APS de demandas judiciais, cinco unidades móveis flutuantes, sete APS de acordos internacionais, noventa PrevCidades e duas unidades de atendimento móvel. Dados retirados do sistema Intraprev da Previdência Social em 18 de abril de 2017. (APS) em 1.394 cidades. Porém, no início do processo de operacionalização do BPC, esse número era ainda menor, pois muitas APS foram inauguradas nos últimos anos.20 20 Em 2009 foi iniciado o Programa de Expansão da Rede de Atendimento do INSS (PEx). Esse programa tem como objetivo aumentar o número de APS para diminuir os grandes deslocamentos. Ainda assim foi necessário que a operacionalização do benefício assistencial ficasse sob a responsabilidade do INSS, uma vez que, embora não haja APS na maioria dos municípios brasileiros, a cobertura de atendimento do INSS está em todo território nacional. E o Instituto conta com os procuradores federais, que defendem os interesses da autarquia partindo de uma rigidez legalista. Devido ao não reconhecimento do direito constitucional, os requerentes buscam a efetivação do direito por meio judicial, havendo, assim, um grande volume de processos.21 21 Conforme Nota Técnica n. 03 de 2016 DBA/SNAS/MDS, foi apurado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2012, que 70,6% dos 970.176 casos apresentados em um ano aos juizados especiais federais eram provenientes da Previdência Social, sendo 6,2% relativos ao BPC.

É importante compreender que essa forma de gerir o benefício traz consequências em relação ao seu entendimento e à sua concepção. Trata-se de um benefício sem filiação obrigatória, sendo operacionalizado em uma instituição com a perspectiva do seguro social em detrimento do conceito de Seguridade Social garantido na CF/88. Os trabalhadores do INSS atuam focados nas rotinas de serviços previdenciários, com o propósito de manter a reprodução dos interesses dessa política. Não era uma novidade para os servidores um benefício para pessoas com deficiência e idosos, tendo em vista que esse já era o órgão regulador e concessor da RMV. Todavia, essa renda tinha como pressuposto a comprovação de trabalho ou de filiação ao regime previdenciário e não era concedido para crianças e adolescentes.

No decorrer dos anos houve limitada interlocução entre a Assistência e a Previdência Social, pelas diferentes estruturas e organização dessas políticas, contrariando o previsto na CF/88. Uma das consequências desse processo é que muito dos beneficiários acreditam estar aposentados, seja por idade, adquirida por meio do trabalho,22 22 Embora o BPC não esteja vinculado à contribuição direta, os beneficiários, em sua maioria, trabalharam ao longo de suas vidas, formal e informalmente e, quando impossibilitados de trabalhar por diferentes motivos, têm no BPC uma alternativa. seja por invalidez, devido à deficiência ou à doença que impossibilita o ingresso no trabalho, acarretando na invisibilidade do benefício da Assistência Social, justamente por ser concedido no INSS e não ter havido um acompanhamento constante por parte dos serviços socioassistenciais.

Em 2009 foi garantido através da Portaria n. 44 do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) que os beneficiários e suas famílias são usuários da Assistência Social e que deve ser assegurado o acesso a serviços, programas e projetos da rede socioassistencial. Na Política Nacional da Assistência Social (PNAS/04) o BPC já havia sido integrado à proteção social básica como garantia de renda básica. É importante ressaltar que por ser operacionalizado pelo INSS, dissemina-se a ideia de que é um benefício de responsabilidade somente da Previdência Social. Diante disso, apesar de o BPC ser gerido, financiado e regulamentado pela Loas, a aprovação da Portaria n. 44 é significativa, pois traz em seu texto a premência do atendimento pela Assistência Social.

A partir do Decreto n. 8.805/16 ficou determinado como requisito para concessão, manutenção e revisão do BPC que requerente e beneficiário sejam inscritos no Cadastro Único obrigatoriamente23 23 Até então havia o Decreto n. 7.617/11, que assegurou que os beneficiários e suas famílias devem ser cadastrados no Cadastro Único para programas sociais do governo federal, a fim de subsidiar a revisão bienal do BPC. e que as informações para o cálculo da renda familiar mensal per capita serão declaradas no momento da inscrição da família do requerente no referido cadastro. É importante que o BPC esteja vinculado ao Cadastro da Assistência Social, não para o controle, mas sim para acompanhamento pela rede de serviços socioassistenciais dos beneficiários e dos que requerem e não têm o acesso garantido.

As dificuldades em relação à compreensão dos critérios, a necessidade de agendamento do serviço pelo portal do INSS ou pelo teleatendimento e os documentos que devem ser apresentados no protocolo resultam em entraves para o acesso ao benefício. É exatamente nesse contexto que os intermediários identificam essas pessoas e oportunizam um “auxílio”, cobrando por esse serviço. Os valores vão de três a seis salários mínimos em média, são altos frente à realidade dos beneficiários que vivem com renda per capita familiar inferior a ¼ do salário mínimo e são pessoas com deficiência e idosos. Com a instituição do INSS digital,24 24 O atendimento digital tem como objetivo tornar o processo virtual, diminuindo o atendimento ao público e, consequentemente, as informações e orientações. essa realidade se torna ainda mais cruel para os requerentes, pois impõe mais entraves para o acesso, facilitando a ação dos intermediários.

Por pertencer à Assistência Social e não ter vínculo direto com o trabalho e, principalmente, por ser declaratório, há na cultura institucional a concepção de que as pessoas com deficiência e os idosos que requerem o benefício possam fraudar o tão seguro sistema da Previdência Social. A fraudefobia que, segundo Pereira (1995, p. 43)PEREIRA, P. A. A construção do conceito de Assistência Social: aproximações e divergências na produção do Serviço Social. In: SPOSATI. A. (Org.) Assistência Social: polêmicas e perspectivas. São Paulo: Cadernos do Núcleo de Seguridade e Assistência da PUC/SP, 1995. p. 28-62. é o medo que se tem de o pobre fraudar o sistema, “faz com que se crie nas instituições de atenção social o seguinte mecanismo: o princípio da menor elegibilidade”. Essa marca é persistente na operacionalização do BPC. O medo da fraude faz com que os servidores sintam, no processo de habilitação, não só a necessidade de inúmeras comprovações e de constatação pela pesquisa externa, como também que haja uma efetiva fiscalização na manutenção do BPC.

O acesso aos benefícios da Assistência Social teve historicamente a particularidade de ser vergonhoso e, inclusive, um incômodo. Esse estigma não é resultado dessa política, mas é “um instrumento intencional, para fazer com que o pobre se sinta envergonhado de receber aquele benefício” (Pereira, 1995PEREIRA, P. A. A construção do conceito de Assistência Social: aproximações e divergências na produção do Serviço Social. In: SPOSATI. A. (Org.) Assistência Social: polêmicas e perspectivas. São Paulo: Cadernos do Núcleo de Seguridade e Assistência da PUC/SP, 1995. p. 28-62., p. 43). Assim, restringe-se o acesso ao benefício, focalizando nos pobres mais pobres, visto que, conforme a autora, “o benefício não deve desencorajar o pobre a encontrar, por esforço próprio, a sua subsistência”.

O atendimento no INSS, assim como em outros órgãos públicos, reproduz a ideologia burguesa, e isso é condição para a reprodução e a acumulação capitalista. A gestão do INSS utiliza o autoritarismo, degradando as relações de trabalho, e os servidores reproduzem esses valores no atendimento aos cidadãos que buscam os serviços.

Em 2016, o BPC foi incluído na Proposta de Emenda Constitucional n. 287 (PEC), que propõe a contrarreforma da Previdência Social. O argumento principal é que é preciso revisar os critérios do BPC para não gerar incentivos inadequados. Para não “desincentivar” a contribuição direta, a proposta inicial era aumentar a idade para setenta anos de idade e des­vincular o valor do BPC do salário mínimo.

Esses argumentos são recorrentes no cotidiano institucional, usados no discurso de servidores públicos. A questão é: se com 65 anos a pessoa pode receber o BPC sem ter contribuído para a Previdência Social, então por que ela contribuirá? E, assim, as pessoas deixam de contribuir para ter acesso ao benefício mais “fácil”. Essa afirmação ignora a realidade do trabalhador que é explorado pelo sistema capitalista durante toda a vida e que, devido à flexibilização e à precarização do mundo do trabalho, não tem acesso ao emprego formal e não tem condições de ser um contribuinte individual. Outro equívoco é pensar no quanto é “fácil” ter acesso ao BPC, com tantos critérios restritivos e com a burocracia imposta. De fato, essa palavra não combina com a lógica do benefício.

Considerações finais

Entre os resultados da pesquisa, evidenciou-se que o BPC não foi consolidado conforme posto na CF/88, especificamente por ser um benefício no valor de um salário mínimo sem necessidade de contribuição direta. Mesmo com critérios de acesso restritivos e as revisões constantes, esse avanço na legislação de proteção social incomoda a burguesia, o Estado, os conservadores. Por isso as inúmeras tentativas de redução do BPC.

No processo de regulamentação, o alcance foi limitado a partir da imposição de critérios perversos, mas não foi só isso. A dificuldade em acessá-lo está também na burocracia, na compreensão da deficiência, nas revisões de cunho fiscalizador, na interlocução não consolidada entre a Assistência Social e o INSS, na fraudefobia e nas cobranças pelos intermediários. A garantia de uma importante transferência de renda para pessoas com deficiência e idosos tornou-se seletiva, focalizada, fragmentada e incerta.

Por ser materializado em dois espaços distintos, o BPC está entre duas políticas públicas de Seguridade Social que deveriam, em sua essência, articular-se, mas na realidade não é o que ocorre, e ainda há um jogo de empurra com os requerentes e beneficiários, entre a Previdência e a Assistência Social. Por ser operacionalizado pelo INSS, as dificuldades para o acesso ao BPC se ampliam. No cotidiano institucional são reproduzidos os valores e ideais conservadores pautados no imediatismo, culpabilizando as pessoas que buscam o benefício da Assistência Social. A visão fragmentada e reducionista acerca de um benefício sem contribuição direta e declaratório resulta em empecilhos para o reconhecimento do direito constitucional ao BPC.

Houve tantas mudanças nas leis, decretos e normativas que é difícil o acompanhamento e a compreensão dessas constantes alterações, principalmente no que concerne à operacionalização do BPC. Além disso, algumas regulamentações menores desconsideram a maior, gerando critérios adicionais com o propósito de restrição ao acesso. Nesse aspecto, confirma-se o quanto a burocracia é funcional ao sistema capitalista e à garantia da dominação de classe, por intermédio de mecanismos que possibilitam a legitimação da ordem. Essa situação tende a piorar com a instituição do atendimento digital. Frente à realidade brasileira, do alto índice de analfabetismo e do não acesso às mídias digitais, tornar os serviços informatizados dificultará ainda mais o acesso ao benefício.

O BPC não pode ser um fim em si mesmo. São necessárias a materialização da articulação dos serviços, programas, projetos e benefícios da Assistência Social e a efetivação do trabalho com os beneficiários e suas famílias e com as pessoas que requerem e não têm o acesso concretizado. Houve mudanças nas leis que garantiram avanços, contudo ainda é preciso muita luta para alcançar o que está assegurado na Constituição Federal. As contradições da sociabilidade burguesa permitem que um benefício que deveria ser garantido aos idosos e às pessoas com deficiência se torne um benefício focalizado na extrema pobreza, sendo ainda burocrático, longo e penoso o caminho para o acesso.

  • 1
    Dados referentes a janeiro de 2018. Fonte: Síntese/Dataprev.
  • 2
    Somente em 1991 o valor passou para um salário mínimo, conforme o artigo 5º da Constituição Federal, que preceitua a equiparação de todo benefício previdenciário a esse valor.
  • 3
    Há os benefícios previdenciários para o segurado especial garantidos na CF/88. Embora não tenha a contribuição direta à Previdência Social, os trabalhadores não estão isentos de contribuição, que vem do excedente comercializado de sua produção e também do pagamento de salários. Por não terem a contribuição direta, são submetidos a rigorosas normas quando requerem os benefícios.
  • 4
    O termo usado nas legislações para se referir à pessoa com deficiência era “pessoa portadora de deficiência” ou “deficiente”. Após a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas de 2006, que teve seu protocolo facultativo assinado pelo Brasil em 2007, instituiu-se que a terminologia é “pessoa com deficiência”.
  • 5
    O neoliberalismo é impulsionado no governo Fernando Collor, intensifica-se e se consolida no governo Fernando Henrique Cardoso, expressa sua continuidade nos governos Lula e Dilma Rousseff e se aprofunda no governo ilegítimo de Michel Temer.
  • 6
    Nas conferências da Assistência Social, espaço de avaliação e de proposições para a política, há a discussão sobre a alteração desse critério e propostas para aumento da renda per capita, assim como a alteração de outros critérios.
  • 7
    Atualmente é possível contribuir como autônomo com 20% do salário mínimo até o teto previdenciário e como facultativo com 11% do salário mínimo, e ainda como facultativo de baixa renda e microempreendedor individual (MEI) em 5% do salário mínimo. Para contribuir não é necessário vínculo com o trabalho. Portanto, estar filiado não significa estar trabalhando, mas sim ter condições de pagar.
  • 8
    Esse Consenso partiu de uma convenção realizada em 1989, na capital dos EUA, Washington, onde foram discutidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo governo norte-americano os caminhos políticos necessários para implementação do programa de estabilização.
  • 9
    Com a reestruturação dos cargos em 2004, através da Lei n. 10.855, foi instituída a carreira do seguro social. Os cargos de nível auxiliar e intermediário passaram a ser denominados “técnico do seguro social” e os cargos de nível superior, passaram a “analista do seguro social”, que pode ter formação superior em qualquer área ou formação específica. Em geral, os técnicos do seguro social são os profissionais que atendem os requerentes, recebem os documentos, protocolam, habilitam e fazem a análise do benefício.
  • 10
    No início do processo de concessão era considerada família todos que viviam sob o mesmo teto. A partir de 1998, com a Lei n. 9.720, o conceito de família foi alterado para: cônjuge ou companheiro, filho não emancipado e o menor de 21 anos ou inválido.
  • 11
    No artigo 38 da Loas estava prevista essa alteração.
  • 12
    Em janeiro de 1994 foi aprovada a Política Nacional do Idoso, através da Lei n. 8.842; porém não foi tratado sobre o BPC, que havia sido regulamentado em dezembro de 1993 pela Loas.
  • 13
    De 2001 para 2002 o aumento na concessão foi de 16,33%, e de 2002 para 2003 foi de 24,64%.
  • 14
    A avaliação da deficiência inclui a avaliação social e a avaliação médica. Para a regulamentação dessa nova forma de avaliar a pessoa com deficiência era necessário que o INSS promovesse concurso público para contratação de assistentes sociais, já que havia nesse momento apenas 548 profissionais em todo o Brasil e somente 270 desempenhavam atividades específicas do Serviço Social, conforme relatório do CFESS (2008)CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). CFESS Manifesta, de 24 de abril de 2008. Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta_concursoINSS_24abr2008.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017.
    http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessma...
    . Com o concurso realizado, a partir de junho de 2009 foram contratados, a princípio, novecentos assistentes sociais e, ao longo da vigência do concurso, esse número chegou a 1.350. Feito isso, a partir de julho de 2009 iniciou-se a avaliação social e médica baseada na CIF.
  • 15
    Na Lei n. 12.435/11 foi assegurado que a cessação do benefício à pessoa com deficiência não impede nova concessão, mesmo que seja para ingresso no mercado de trabalho. E no Decreto n. 7.617/11 foi prevista a suspensão do pagamento do BPC por dois anos, em caráter especial, quando a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, mediante comprovação da relação trabalhista ou da atividade empreendedora, podendo o benefício ser reestabelecido com a cessação do contrato de trabalho.
  • 16
    Houve ACP de âmbito regional, estadual e nacional que trouxeram importantes reflexões sobre os critérios do BPC. Aqui foi citada essa ACP pela importância em âmbito nacional.
  • 17
    Os valores cobrados chegam a R$ 58.000,00 reais.
  • 18
  • 19
    Além dessas, há 86 APS de demandas judiciais, cinco unidades móveis flutuantes, sete APS de acordos internacionais, noventa PrevCidades e duas unidades de atendimento móvel. Dados retirados do sistema Intraprev da Previdência Social em 18 de abril de 2017.
  • 20
    Em 2009 foi iniciado o Programa de Expansão da Rede de Atendimento do INSS (PEx). Esse programa tem como objetivo aumentar o número de APS para diminuir os grandes deslocamentos.
  • 21
    Conforme Nota Técnica n. 03 de 2016 DBA/SNAS/MDS, foi apurado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2012, que 70,6% dos 970.176 casos apresentados em um ano aos juizados especiais federais eram provenientes da Previdência Social, sendo 6,2% relativos ao BPC.
  • 22
    Embora o BPC não esteja vinculado à contribuição direta, os beneficiários, em sua maioria, trabalharam ao longo de suas vidas, formal e informalmente e, quando impossibilitados de trabalhar por diferentes motivos, têm no BPC uma alternativa.
  • 23
    Até então havia o Decreto n. 7.617/11, que assegurou que os beneficiários e suas famílias devem ser cadastrados no Cadastro Único para programas sociais do governo federal, a fim de subsidiar a revisão bienal do BPC.
  • 24
    O atendimento digital tem como objetivo tornar o processo virtual, diminuindo o atendimento ao público e, consequentemente, as informações e orientações.

Referências

  • BOSCHETTI, I. Seguridade Social e trabalho: paradoxo na construção das políticas de previdência e assistência social no Brasil. Brasília: Letras Livres, Editora UnB, 2006.
  • BRASIL. Lei n. 12.470, de 31 de agosto de 2011. Altera a Lei n. 8.742. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12470.htm>. Acesso em: 15 maio 2017.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12470.htm
  • ______. Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Nota Técnica n. 03 DBA/SNAS/MDS, de 21 de março de 2016. Sobre as concessões judiciais do BPC e sobre o processo de judicialização do benefício.
  • CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). CFESS Manifesta, de 24 de abril de 2008. Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta_concursoINSS_24abr2008.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017.
    » http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta_concursoINSS_24abr2008.pdf
  • IASI, M. L. A maldição e a emancipação do trabalho (ou como a humanidade dançou e como ela pode dançar). In: SILVA, J. F. S. (Org.). Sociabilidade burguesa e Serviço Social Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 45-61.
  • MACIEL, C. A. B. Benefício de Prestação Continuada: as armadilhas. Presidente Venceslau: Letras à Margem, 2008.
  • PEREIRA, P. A. A construção do conceito de Assistência Social: aproximações e divergências na produção do Serviço Social. In: SPOSATI. A. (Org.) Assistência Social: polêmicas e perspectivas. São Paulo: Cadernos do Núcleo de Seguridade e Assistência da PUC/SP, 1995. p. 28-62.
  • SILVA, M. L. L. Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social: impacto e significado social. In: SPOSATI, A. (Org.) Proteção social de cidadania: inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004. p. 227-237.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2018
  • Aceito
    19 Fev 2019
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