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Por que precisamos falar de desigualdade?

Why do we need to talk about inequality?

Seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país. Os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%. Uma mulher trabalhadora que ganha um salário mínimo mensal levará 19 anos para receber o equivalente que um super-rico recebe em um único mês. Esse é o cenário atual do Brasil. Definitivamente, precisamos falar sobre as desigualdades (Oxfam Brasil, 2017OXFAM BRASIL. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. 2017. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacao/a-distancia-que-nos-une-um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/. Acesso em: 20 mar. 2021.
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).

O relatório da Oxfam Brasil - A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras -, publicado em 2017, escancara os vergonhosos indicadores sociais do Brasil, campeão mundial da desigualdade social.

Esse relatório veio a público em uma conjuntura de crise política deflagrada pelo golpe de 2016, que depôs a presidente Dilma Rousseff legitimamente eleita, e em meio às contrarreformas desencadeadas pelo governo ilegítimo de Michel Temer. Crise capitaneada pela EC nº 95/2016, que estabeleceu novo regime fiscal com o congelamento de gastos públicos por 20 anos; secundada pela contrarreforma trabalhista de 2017, que desconstruiu a CLT e os direitos trabalhistas duramente conquistados; passando pela contrarreforma da previdência social, que excluiu benefícios essenciais de parcelas da classe trabalhadora; e, nesse momento, em curso, a contrarreforma administrativa, que visa desconstruir o regime jurídico único e as carreiras públicas do Estado.

São medidas que se inscrevem num quadro de profunda e persistente desigualdade, oriunda da socialização cada vez maior do trabalho e da crescente apropriação privada da riqueza por ele gerada.

Eis o cenário que pavimentou a eleição do (des)governo Bolsonaro e a ascensão da ultradireita fascista no Brasil, em meio à crise econômica de longo alcance, associada à crise pandêmica deflagrada pelo vírus SARS-CoV-2 ou novo coronavírus.

A pandemia escancara a desigualdade brasileira, que distribui desigualmente os riscos de contaminações e mortes, evidenciando o mapa classista, racializado e sexuado da desigualdade estrutural, em que grupos de trabalhadores(as) periféricos(as), negros(as) e mulheres são as maiores vítimas.

A pandemia da covid-19 expandiu-se para as periferias, favelas e interiores do país, atingindo populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, trabalhadores(as) do campo e da cidade, a população em situação de rua, catadores de lixo, trabalhadores(as) do mercado informal, artesãos, refugiados, famílias chefiadas por mulheres, população LGBTI+, dentre outros. Agrava este cenário o desmonte das políticas públicas e o descaso, especialmente do governo federal, que insiste numa oposição perversa entre economia e saúde, tornando ainda mais evidente o darwinismo social e o desprezo pela vida como forma de governo.

Sob o signo da tragédia social que se abateu com a pandemia do novo coronavírus, a desigualdade, a desproteção social e a regressão de direitos ganham o epicentro do debate nacional e internacional.

Por essas razões, precisamos falar de desigualdade!

Em 2021, o relatório da Oxfam Brasil, intitulado O vírus da desigualdade, destaca que em todo o mundo milhões de pessoas estão sendo empurradas para a pobreza, enquanto os mais ricos, ou “os super-ricos”, seja empresas, seja indivíduos, estão prosperando à custa da crise e de uma concentração maior de renda e poder.

A pandemia de coronavírus tem o potencial de levar a um aumento das desigualdades em quase todos os países ao mesmo tempo, a primeira vez que isso acontece desde o início dos registros. O vírus expôs, se alimentou e aumentou as desigualdades de renda, gênero e raça já existentes. Mais de dois milhões de pessoas já morreram e centenas de milhões estão sendo jogadas na pobreza, enquanto muitos dos mais ricos - indivíduos e empresas - prosperam. As fortunas dos bilionários voltaram ao pico pré-pandêmico em apenas nove meses, enquanto a recuperação para as pessoas mais pobres do mundo pode levar mais de uma década (Oxfam Brasil, 2021OXFAM BRASIL. O vírus da desigualdade. 2021. Disponível em: https://materiais.oxfam.org.br/o-virus-da-desigualdade. Acesso em: 20 mar. 2021.
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).

Contudo, como tem sido discutido nos inúmeros fóruns de debate, a pandemia não é nem um acaso da natureza nem um azar que se abateu sobre a sociedade contemporânea. Nem é responsável pela dinâmica da crise, embora os custos humanos e sociais provocados por ela sejam incomensuráveis.

O trabalho precário, a aceleração do desemprego, as exíguas moradias periféricas sem ventilação e infraestrutura urbana, o colapso do sistema de saúde, o transporte público insuficiente e superaglomerado, a presença nas ruas de um número ampliado de pessoas e famílias em situação de rua; enfim, o aumento exponencial da fome e da pobreza, resvalando para a miséria absoluta, deve ser tributado às contradições próprias do modo de produção capitalista.

No fundamental, a dinâmica da crise evidenciada pela pandemia é do modelo de relação social, baseado na apreensão dos meios de produção pelas mãos de alguns e pela exclusão automática da maioria dos seres humanos das condições de sustentar materialmente sua existência, sustento que as classes desprovidas de capital são coagidas a obter mediante estratégias de venda de sua força de trabalho. O modo de produção capitalista é a crise (Mascaro, 2020MASCARO, Alyson Leandro. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 7).

E o enfrentamento da crise estrutural e sistêmica do capital está sendo conduzido, aliás, como sempre acontece, no sentido de preservar a acumulação capitalista, ainda que sob novas bases. A crise, com seus efeitos disruptivos e desagregadores, antes de significar a superação do capitalismo gera mais acumulação, provocando disputas pela hegemonia de novas frações do capital, como as que presenciamos no tempo presente, com a supremacia do capital financeiro, rentista e parasitário.

No caso do Brasil, a crise sanitária encontra as crises econômica e política que a exponenciaram. A versão fundamentalista, de traços fascistas e hiperautoritária do neoliberalismo à brasileira, expõe com todas as tintas o desmanche a que vinham sendo submetidas as políticas de proteção social, com a consequente precarização dos(as) trabalhadores(as) e das condições de trabalho, dinâmica aprofundada pelos governos pós-golpe.

A pandemia escancarou as fragilidades do sistema de saúde, mercantilizado e subfinanciado, e das políticas públicas em seu conjunto, revelando sua face mais cruel: o aprofundamento das desigualdades sociais. São os(as) mais pobres, em especial, negros(as), mulheres e idosos(as) pobres, que mais têm sofrido com a propagação do vírus e com a ausência de políticas de proteção social, especialmente do apoio de uma renda básica universal, alimentação, medicamentos e serviços essenciais. Cresceram o desemprego, a fome, os despejos.

A situação de pandemia expõe com muita crueza as dimensões contraditórias desse processo: de um lado, a falência das medidas ultraneoliberais que desfinanciaram as políticas sociais, especialmente o SUS e o SUAS, sistemas de proteção social mais requisitados no contexto da pandemia. E, ao mesmo tempo, a necessidade de mais Estado e do fortalecimento das políticas públicas para enfrentamento dessa grave crise (Raichelis e Arregui, 2021RAICHELIS, Raquel; ARREGUI, Carola C. O trabalho no fio da navalha: nova morfologia no Serviço Social em tempos de devastação e pandemia. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 141, p. 134-152, jan./abr. 2021., p. 143).

Por isso, precisamos falar de desigualdade!

Na direção dessas reflexões, este número 141 da revista Serviço Social & Sociedade tem como temas desigualdade, proteção social e direitos, na busca por contribuir com o adensamento do debate e com a construção de alternativas para o exercício profissional das e dos assistentes sociais que atuam nos diferentes espaços sócio-ocupacionais.

O conjunto de artigos expressa, por distintas mediações analíticas e recortes temáticos, a preocupação de pesquisadores(as), profissionais e militantes com a persistente desigualdade, as desproteções sociais e a derruição de direitos que atingem cada vez mais amplas camadas das classes trabalhadoras.

Os(as) leitores(as) irão encontrar nesse número da revista Serviço Social & Sociedade um rico painel temático relacionado com: os fundamentos da relação entre desigualdade e capitalismo alicerçada na propriedade privada e na concentração da riqueza; as raízes do racismo na estruturação do Estado brasileiro; a Teoria da Revolução Burguesa no Brasil com base nos aportes de Florestan Fernandes; o sistema de proteção social no Uruguai; a experiência de políticas públicas e redes de apoio aos migrantes haitianos em pequeno município no Rio Grande do Sul; as expressões da questão social, particularizando a situação de deficiência; o enfrentamento ao trabalho infantil através de oficinas pedagógicas.

Destaca-se a atualidade do debate sobre o Cadastro Único de Entidades Sociais, trazido por um dos artigos, que problematiza as mudanças promovidas pelo governo federal no chamado CadÚnico, em curso desde dezembro de 2020, discutindo as evidências e os impactos para a população e para a gestão pública municipal. O artigo é um alerta para o desmonte das políticas de seguridade social, em particular, o esvaziamento de atribuições e funções dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), bem como do trabalho profissional de assistentes sociais e demais profissionais.

Sobre essa questão, Paz (2021, p. 61)PAZ, Rosangela D. O. da. Cadastro Único (CadÚnico) e tarifa social de água e esgoto. In: BRITTO, Ana Lucia; MORETTI, Ricardo de S. (org.). Água como direito: tarifa social como estratégia para a acessibilidade econômica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Brasília: ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento), 2021. adverte:

Tirar a responsabilidade dos municípios é esvaziar a descentralização político-administrativa definida na Constituição Federal de 1988 e construída no Sistema Único de Assistência Social na afirmação da autonomia dos municípios em suas particularidades territoriais.

E, por fim, compõe este número um artigo com a resenha do livro Serviço Social na história, publicado pela Cortez Editora em 2019, relevante contribuição para, nas palavras da autora, “possibilitar a aproximação à profissão em diferentes países e demonstrar [...] o quão necessária é a ultrapassagem das fronteiras geográficas brasileiras, para entendermos o quanto avançamos desde a constituição da profissão no Brasil, as conquistas históricas (coletivas) da categoria e as lutas que permanecem sendo travadas para continuarmos disputando essa árdua trilha histórico-profissional”.

Uma última palavra aos(às) leitores(as): em tempos de urgência e devastação, definitivamente precisamos falar de desigualdade! Não apenas para denunciá-la, mas principalmente para superá-la.

Esperamos que esta edição da revista contribua para isso.

Boa leitura!

Referências

  • MASCARO, Alyson Leandro. Crise e pandemia São Paulo: Boitempo, 2020.
  • OXFAM BRASIL. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. 2017. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacao/a-distancia-que-nos-une-um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/ Acesso em: 20 mar. 2021.
    » https://www.oxfam.org.br/publicacao/a-distancia-que-nos-une-um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/
  • OXFAM BRASIL. O vírus da desigualdade 2021. Disponível em: https://materiais.oxfam.org.br/o-virus-da-desigualdade Acesso em: 20 mar. 2021.
    » https://materiais.oxfam.org.br/o-virus-da-desigualdade
  • PAZ, Rosangela D. O. da. Cadastro Único (CadÚnico) e tarifa social de água e esgoto. In: BRITTO, Ana Lucia; MORETTI, Ricardo de S. (org.). Água como direito: tarifa social como estratégia para a acessibilidade econômica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Brasília: ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento), 2021.
  • RAICHELIS, Raquel; ARREGUI, Carola C. O trabalho no fio da navalha: nova morfologia no Serviço Social em tempos de devastação e pandemia. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 141, p. 134-152, jan./abr. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021
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